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Construir colônias: reformas nas Américas c. 1760-1790
Ronald Raminelli
Ronald Raminelli
Construir colônias: reformas nas Américas c. 1760-1790
Building colonies: reforms in Americas c. 1760-1790
Anos 90, vol. 28, e2021007, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em
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RESUMO: Em perspectiva historiográfica e comparativa, o artigo analisa as reformas borbônicas e pombalinas. Essas intervenções se originaram das disputas entre as monarquias europeias e alteraram o pacto entre os reis e seus súbitos ultramarinos. Provocaram ainda revoltas comandadas por diversos setores da sociedade, mas essas reações diferiram bastante nas Américas. Reformas e revoltas elevaram as pressões econômicas e políticas no ultramar e tornaram mais nítidos os conflitos sociais. Antes pouco empregado, o termo “colônia” tornou-se mais usual e fundamental para entender os vínculos entre as monarquias e as possessões ultramarinas. Além de produzir em larga escala matérias-primas, as colônias destacaram-se pela mestiçagem e conflitos raciais.

PALAVRAS-CHAVE: América Portuguesa, América Hispânica, Reformas, Colônia, Metrópole.

ABSTRACT: From a historiographical and comparative perspective, the article analyzes the Borbonic and Pombaline reforms. These interventions originated from disputes between European monarchies and altered the pact between the kings and their overseas subjects. They also provoked revolts led by different sectors of society, but these reactions differed widely in the Americas. Reforms and revolts have raised economic and political pressures overseas and made social conflicts clearer. Previously little used, the term "colony” has become fundamental to understand the links between monarchies and overseas possessions. In addition to producing raw materials on a large scale, the colonies stood out for their miscegenation and racial conflicts.

KEYWORDS: Portuguese America, Hispanic America, Reforms, Colony, Metropolis.

Carátula del artículo

ARTIGO

Construir colônias: reformas nas Américas c. 1760-1790

Building colonies: reforms in Americas c. 1760-1790

Ronald Raminelli
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Anos 90, vol. 28, e2021007, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

Received: 02 November 2020

Accepted: 04 April 2021

As principais monarquias europeias reformaram a economia e a administração para fortalecer a sua soberania sobre os territórios ultramarinos na segunda metade do século 18. Denominadas borbônicas, pombalinas e britânicas, as reformas dos impérios coloniais planejavam reduzir o controle das elites coloniais sobre postos administrativos e militares, buscavam intervir no comércio colonial, reduzir o contrabando e aumentar as rendas fiscais. Criaram então relações mais hierárquicas entre metrópoles e colônias, atrelaram mais intensamente as economias coloniais aos interesses e neces- sidades metropolitanas. Assim, as economias ultramarinas tornaram-se cada vez mais necessárias ao equilíbrio político entre as monarquias da Europa (LYNCH, 1996, p. 37-59; MARSHALL, 2010, p. 158-206; MAXWELL, 1996, p. 95-117). Os fins das reformas não eram essencialmente econômicos, mas políticos. Atuavam para ampliar a soberania régia, manter exércitos e agentes administrativos. O crescimento econômico era a condição para sustentar a expansão administrativa, para impor um projeto destinado a criar divisões econômicas no império, onde as colônias ficavam responsáveis pelas matérias primas baratas, e as metrópoles pela produção manufatureira.

As reformas dos impérios coloniais tornavam mais nítidas os privilégios de súditos radicados no centro em relação aos residentes nas periferias. Entretanto, na Nova Espanha e Peru, espanhóis e seus descendentes se consideravam súditos da monarquia espanhola. Por muito tempo, os crioulos dividiam com os peninsulares o comando da justiça, fazenda e exércitos, ocupavam cargos obtidos por mercês ou pela compra. Em geral, as reformas provocaram a ruptura desses laços, respalda- vam a centralização política, impunham taxas, eliminavam os conselhos e cassavam privilégios e cargos. Enfim elas inviabilizavam a continuidade da negociação entre súditos e o rei, emperraram o funcionamento da monarquia compósita. A antiga ordem baseada na soberania compartilhada se rompeu com as reformas, como se evidencia na América espanhola. Entretanto, na América portuguesa, o perigo da rebeldia dos moradores das Minas Gerais era pressentido desde o início do governo de Pombal, e aí as reformas promoviam menores impactos.

Recorrendo à historiografia, o artigo pretende não somente comparar reformas fiscais e mili- tares promovidas nas Américas hispânica e portuguesa, mas também analisar as reações contrárias às intervenções das metrópoles. Para tanto, compararam-se três eventos: a revolta dos Comuneros (Nova Granada - 1781), revoltas motivadas pela expulsão dos jesuítas (Nova Espanha - 1767; Minas Gerais - 1760/1776) e a inconfidência mineira (Minas Gerais - 1789). Nesses eventos, ficam evi- dentes as reações contra as reformas, sobretudo em sua contestação fiscal. As reformas e revoltas alteraram a relação entre os reinos e seu ultramar. Antes pouco empregado entre os reformadores, o termo “colônia” se tornou mais recorrente no final do século 18 e passou a traduzir as diferentes relações mantidas entre metrópole e colônias.

De domínios às colônias

Para Pedro Pérez, os teóricos do reformismo espanhol buscavam obter os recursos necessá- rios para fortalecer o poder da monarquia, sem alterar a estrutura social e econômica peninsular, ou seja, sem impor reformas liberais à sociedade espanhola do Antigo Regime (PEREZ, 1998, p. 27-28; GARAVAGLIA; MARCHENA, 2005, p. 45-59). Embora diversas, as reformas sete- centistas apresentavam muitos pontos comuns. A Guerra dos Sete Anos provocou importantes intervenções nas colônias da América, ou seja, perdas ou ganhos de territórios e gastos crescentes com armamentos e soldados. Aí, as metrópoles buscaram fortalecer as tropas para conter invasões externas, as instabilidades internas, as revoltas das elites, das comunidades indígenas e de mestiços nos campos e cidades. Em princípio, a administração imperial planejava aumentar a presença de tropas regulares, compostas por oficiais e soldados espanhóis e portugueses.

A reforma militar na América hispânica pretendia construir fortificações e aumentar as tropas regulares, composta de peninsulares, dispostos em pontos estratégicos da América. O empreendimento não alcançou o resultado esperado, pois a administração teve dificuldades para recrutar soldados, enfrentou ainda a negativa de oficiais e soldados metropolitanos de permanecer longos períodos na América. De fato, o incremento dos gastos militares criou dívidas e aumentou a dependência da metrópole em relação ao financiamento viabilizado pelos comerciantes crioulos e peninsulares. Assim, a prata do rei ficava nas mãos dos homens de negócios (GARAVAGLIA; MARCHENA, 2005, p. 59-72; GUIMERÁ, 1996, p. 9-33; LYNCH, 1996, p. 48). Ao fim e ao cabo, a reforma militar espanhola resultou na maior presença de súditos americanos nas tropas, ou seja, aumento dos oficiais e soldados crioulos em detrimento dos peninsulares, sem contar com o enriquecimento dos comerciantes. Aliás, na Nova Espanha, as milícias de cor, homens livres e afrodescendentes, tiveram grande difusão e objetivavam fortalecer as defesas dos centros estratégi- cos, ameaçados pela ausência de tropas peninsulares e pelas possíveis investidas inglesas e francesas (VINSON III, 2001, p. 7-45).

No Brasil não seria diferente, pois as tropas regulares eram incapazes de defender o território contra as invasões estrangeiras. Para tanto, era necessário, segundo Carta Régia de março de 1766, o alistamento de nobres, brancos, mestiços, ingênuos e negros libertos (MELLO, 2012, p. 169). A reforma militar em Portugal e seu ultramar atuou na modernização das fortificações, no treina- mento, estruturação dos oficiais e suas tropas. No entanto, o governo de Portugal tinha outras prioridades, como reconstrução de Lisboa após o terremoto, incentivo às manufaturas e contenção do avanço jesuítico nas franjas do império (DIAS, 2014; MAXWELL, 1996, p. 169). De todo modo, implementado aí pelo Conde de Lippe, o modelo prussiano alterou a configuração disciplinar do exército português a partir de 1763, mas a profissionalização do exército teve resistências, como o desprezo da alta nobreza pela aquisição de saberes técnicos. No Brasil, em particular, a reforma buscou implementar a nova disciplina militar ao reduzir o número oficiais de altas patentes e renovar as fortificações (ALDEN, 1968, p. 116-194). Por conseguinte, a reforma militar na América portuguesa não teve a mesma dimensão da implementada no ultramar hispânico.

A economia colonial tornou-se importante alvo das reformas. Para Enrique Florescano, as reformas borbônicas pretendiam reverter a decadência econômica espanhola, tornando mais eficiente a exploração colonial. No debate historiográfico, uma corrente considerou as reformas como origem da prosperidade do século 18. A produção de metais preciosos teve um aumento de quase 50% e continuou a dominar a economia do México e do Peru. A prata do Potosí teve aumento crescente não somente devido à maior exploração da mão-de obra proporcionada pela mita, mas também pela política estatal dedicada a fomentar o abastecimento de mercúrio. As reformas também introduziram o livre comércio entre a Espanha e suas colônias, promovendo, entre 1778 e 1796, aumento significativo do comércio colonial, fossem as exportações para Espanha, fossem as importações direcionadas à América. Estabeleceu-se ainda o monopólio estatal sobre o tabaco e bebidas alcoólicas. Em Nova Granada, esses monopólios não somente prejudicavam os consumi- dores, mas também os plantadores, pois as leis restringiam as áreas de cultivo e marginalizavam os agricultores mais pobres. A política fiscal, portanto, teve enorme sucesso no México entre 1750 e 1810.

O monopólio sobre o tabaco e o aumento das alcabalas beneficiaram os cofres metropolitanos, mas prejudicaram os latifundiários, trabalhadores e comerciantes (FLORESCANO, 1975, t. I, p. 13-21; HALPERIN, 1985, p. 50-104; LYNCH, 1996, p. 42-43).

A visão otimista é contestada por estudos mais alentados que comprovam o aumento da produção de prata no início do século, ou seja, antes das reformas, e o seu declínio no final do século. Segundo Pedro Pérez, “[...] parece difícil seguir sosteniendo que las reformas borbóni- cas impulsaran un crecimiento económico generalizado y una modernización en las formas de producción” (LYNCH, 1996, p. 41-42; PÉREZ, 1998, p. 23-26). Carlos Marichal também retomou a análise sobre os resultados das reformas e criticou a propalada prosperidade da Nova Espanha no fim do período colonial. Aliás, nesse caso, tornou-se muito simplório questionar se o aumento na arrecadação se originou no crescimento econômico ou na intensa pressão fiscal. Na virada entre os séculos 18 e 19, a Nova Espanha operava como uma virtual submetrópoli para a América seten- trional. Os donativos e empréstimos levantados na Nova Espanha financiavam gastos, sobretudo militares, no Caribe. Assim, a bancarrota da Nova Espanha não se originou de desajustes internos, mas da extração de capitais para financiar os déficits da administração colonial, causados pelo aumento vertiginoso das guerras contra Inglaterra e França (MARICHAL, 1999, p. 278-300). Enfim, a perspectiva imperial permitiu a Marichal trazer elementos muito inovadores para o debate.

As reformas econômicas do tempo de Pombal buscavam reduzir a dependência portuguesa no comércio e na diplomacia com a Grã-Bretanha. Neste sentido, a política de substituição das manufaturas era o principal motor das reformas dedicadas ao incremento e difusão do saber técnico em Portugal. Aliás, as manufaturas eram largamente empregadas no comércio negreiro com Angola, pois tinham precedência sobre os produtos coloniais. Para incentivar a venda de manufaturas sobretudo no Brasil, a política colonial portuguesa recorreu à concessão de privilégios e oportunidades de negócios ao incentivar as companhias de comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, da Pesca das Baleias e de Pernambuco e Paraíba, entre outras. A política reformista da metrópole procurou também diversificar e fortalecer a agricultura em Portugal e em suas colônias (MAXWELL, 1996, p. 95-117; DIAS, 2014, p. 58-78).

O Alvará Régio de 3 de dezembro de 1750 criou o sistema de arrecadação, denominado derrama, que objetivava promover maior controle sobre a economia mineira. Assim, anualmente, o quinto da extração aurífera passou a ser pago a partir de cem arrobas de ouro. Em nome dos moradores da região, as câmaras municipais assumiram contratos de risco e se responsabilizaram a enviar ao fisco metropolitano a quantia devida. Ao longo dos anos, a derrama endividou inúmeros minei- ros devido à queda da produção aurífera (MAXWELL, 1978, p. 21-83). Enfim, entre 1750-1803, as reformas políticas e econômicas portuguesas apontaram para a centralidade do Brasil no império colonial. Para tanto, buscaram manter a integridade de suas fronteiras, reforçar a administração nos âmbitos fiscal, judicial e militar, e incentivar a agricultura. Aliás, os produtos agrícolas tornaram-se importantes fontes de renda, pois entre 1796 e 1807, 64,4% das exportações portuguesas eram compostas por produtos provenientes do Brasil, eram reexportações de algodão, couro, tabaco, açúcar, cacau e café (DIAS, 2014, p. 63 e 76).

Até o final do século 18, raras vezes a denominação “colônia” foi registrada na documentação espanhola e portuguesa para designar as suas possessões, aí eram frequentes os termos “reinos, domínios e províncias”. Na correspondência oficial, eles traduziam melhor as relações entre o monarca e seus vassalos, a negociação entre poderes comum às sociedades do Antigo Regime. Para o espanhol Alcedo y Herrera, a designação “colônia” era inapropriada às possessões portuguesas e espanholas, aí seria preferível empregar “reino”. Já os ultramares franceses e ingleses funcionavam como “colônias”. As possessões ibéricas caracterizavam-se pela dominação política, e as demais como exploração econômica. (BURKHOLDER, 2016, p. 125-133; CASTEJON, 2013, p. 251-271).

Na vasta documentação luso-brasileira do Arquivo Histórico Ultramarino, o termo “colônia” geralmente se refere à Colônia de Sacramento, Nova Colônia Sacramento ou Colônia do Rio da Prata1. Assim, era nomeação para o domínio luso sobre áreas remotas e fronteiriças, pois as demais regiões do litoral e do interior recebiam a denominação de capitanias. Até 1780, raramente se encon- tra o termo “colônia”, designando área de produção agrícola e mineral subordinada aos interesses metropolitanos. Com esse sentido, uma das primeiras referências às colônias retrocede ao reinado de D. João V, no parecer de Wenceslau Pereira da Silva de 1738 que propunha recuperar da ruína as principais lavouras da América portuguesa. Em análise econômica, refere-se à alta produtividade de áreas que competiam com o Brasil. Embora não mencione, o parecer descrevia a prosperidade de franceses e ingleses do Caribe2, ou melhor, não se referia aos domínios portugueses. No entanto, entre 1760 e 1770, época de intensa intervenção pombalina na Amazônia (BRITO, 2016), encon- tra-se notícias de armas enviadas às “colônias ultramarinas”, em documentos referentes ao Pará. Esses manuscritos mencionavam o “intendente geral das colônias” e o “Ministério da Repartição das Colônias”3. Em suma, o termo não era muito empregado, mas se referia às áreas remotas ou de alta exploração econômica.

No entanto, esse sentido se alterou nas décadas seguintes e passou ter significado mais econômico que político. Em carta de outubro de 1781 direcionada ao diretor do Real Jardim Botânico Domenico Vandelli, o ilustrado baiano José da Silva Lisboa assegurou que as colônias portuguesas recebiam muitas vantagens da metrópole, pois aí a agricultura não era oprimida por impostos, tampouco o subsídio literário danificava o comércio das aguardentes e carnes. Em 1797, D. Rodrigo de Sousa Coutinho escreveu ao governador do Estado do Pará e Rio Negro e remeteu plano para o estabelecimento de um correio marítimo, para viabilizar a troca de correspon- dências de Portugal com as suas “Colônias da parte Setentrional do Brasil”4. Em novembro de 1800, um ofício do intendente geral da Polícia Pina Manique ordenou aos governadores e capitães gene- rais dos “portos de mar das colônias” para ampliar as lavouras de mandioca. Planejava produzir farinha para a exportação direcionada aos diferentes portos do Reino5. Em princípio, percebe-se que o termo “colônia” era mais empregado na documentação administrativa que circulava entre Lisboa e as capitanias do Norte.

Em 1802, em requerimento ao soberano, Silva Lisboa novamente usou o termo e destacou a “vastidão das colônias” como um dos elementos responsáveis por elevar o reino de Portugal aos “altos destinos”6. Assim, no início do século 19, a denominação “colônia” destacou-se como a con- traparte do reino, como espaços distintos: a primeira reunia riquezas capazes de elevar a metrópole no concerto das Nações7. Entretanto, o termo ainda não evocava a exploração, significado que se tornou comum mais tarde, como no manifesto do Príncipe Regente de 1822: “A honra e dignidade nacional, os desejos de ser venturosos, a voz da mesma natureza mandam que as colônias deixem de ser colônias quando chegam à sua virilidade...”.8 Infelizmente, devido aos limites desse artigo, é impossível analisar esse novo significado do termo na documentação luso-brasileira.

Entre os espanhóis, as reformas estavam fortemente influenciadas pela economia polí- tica francesa, e seus ministros passaram a destacar as possessões como “objetos econômicos”. Essa confluência tornou mais recorrente o emprego da relação de subordinação e dependência entre metrópole e colônia. Assim, tencionavam seguir o exemplo de sucesso nas colônias inglesas e fran- cesas. Miravam não somente o ativo comércio entre as plantações, mercados e os portos comerciais do Atlântico, mas também intervinham na economia e nas forças militares sem negociar com os súditos ultramarinos. A intervenção era verticalizada. Neste sentido, vale mencionar como a pala- vra “colônia”, no sentido econômico, como entreposto dedicado à produção agrícola e mineira, tornou-se mais frequente nos escritos de Gálvez, Floridablanca, Campomanes e Jovellanos, embora ainda usassem as demais denominações. Rompiam então com a visão tradicional de monarquia compósita, onde o rei mantinha negociações com os súditos ultramarinos (CASTEJON, 2013, p. 251-271). Em suma, desde então os reformadores concebiam as colônias como “objetos econô- micos” vinculados às necessidades da metrópole. Os interesses coloniais não deviam contrariar ou concorrer com os planos da metrópole.

Revolta dos colonos

As reformas representavam a quebra do pacto entre o monarca e seus súditos, e as rebeliões buscavam recuperar a autonomia perdida. Aos poucos, a Espanha dos Borbóns rompeu com a solução partilhada de poderes e caminhava firmemente para adotar uma monarquia autoritária baseada em uma articulação vertical de poder. Na nova determinação, os ministros e vice-reis de Carlos III cassaram a autonomia dos reinos e províncias e fortaleciam a integração a um estado unitário. Aliás, a característica mais evidente nas reformas era a reorganização administrativa em favor da metrópole. Eram francamente unilaterais, conforme Garavaglia e Marchena, favoráveis ao sistema colonial e contrários aos moradores do ultramar, fossem parte das elites, fossem mestiços, indígenas e escravos (PHELAN, 1978, p. XVII-XIX; ELLIOTT, 2006, p. 317-324; GARAVAGLIA; MARCHENA, 2005, p. 45).

Ao atacar as reformas borbónicas, os súditos da revolta dos Comuneros (1781) concebiam a Nova Granada como parte do corpus mysticum politicum, com suas próprias tradições e procedimen- tos destinados a alcançar o “bem comum de toda comunidade”, conforme os costumes de Castela quinhentista. Com as reformas, sobretudo os monopólios e a exclusão dos crioulos dos cargos, o bem comum fora francamente desrespeitado. Os revoltosos defendiam a nulidade das leis injustas, pois era inerente ao corpo místico político ter o direito de aprovação das novas taxas. Esses cidadãos eram herdeiros da tradição burocrática descentralizada que lentamente se estabeleceu na América durante os reinos dos Habsburgos e dos primeiros Borbóns (PHELAN, 1978, p. XVII-XIX).

As rebeliões de Quito (1765) e de Comuneros (1781) atuaram como espetacular demonstração de força contra as reformas fiscais. Para Macfarlane, elas se iniciaram entre os populares e se fortale- ceram com a adesão de amplos setores, unidos em alianças temporárias. Os protestos inicialmente atacavam o estanco e as alcabalas, e, aos poucos, os levantes passaram a interferir nos conflitos entre criollos e peninsulares pelo controle de cargos. A instabilidade política não tornava somente evidente a incapacidade das elites locais de controlar os pobres insurgentes, mas também levantava suspeitas de que as elites americanas eram coniventes com os revoltosos, ou mesmo, incitavam-nos contra as reformas. Embora os incidentes se originassem frequentemente nas disputas entre facções locais, os protestos mais violentos eram precipitados pelo comportamento dos oficiais peninsulares que contrariavam a tradição local referente à coleta de taxas (PHELAN, 1978; MCFARLANE, 1984). Essas rebeliões não eram guiadas por ideias políticas, mas se posicionavam contra as reformas contrárias à tradição, às práticas dos governos da dinastia Habsburg, à “constituição não escrita”, ao pacto firmado entre os súditos de Nova Granada e os monarcas. Phelan asseverou que a quebra do pacto atingia as elites e o tradicional sistema de governo, a harmonia entre o rei e seus súditos. Segundo McFarlane, essas ideias de governo defendidas pelos Comuneros de Castela (1520-1521) e por pensadores espanhóis do século 16 estavam difusas em Nova Granada, guiavam também as práticas e crenças populares. Assim, a tradição castelhana quinhentista impulsionava as revoltas setecentistas originadas de terras remotas da América. As rebeliões eram então conservadoras, almejavam retornar ao passado, ao momento anterior às reformas, atacavam a arbitrariedade do governo e das leis fiscais, em ambiente de desordem civil. Em suma, expressavam ações populares

em defesa da tradição e da preservação da vida comunitária (MCFARLANE, 1984, p. 53-54).

As reformas pretendiam eliminar a autonomia remanescente dos antigos privilégios dos reinos e províncias. Estava também em curso uma reformulação da relação entre metrópoles e possessões. De acordo com a legislação indiana, os súditos americanos sentiam-se partes dos reinos dependentes de Coroa, e sobre essa base se fundaram muitas de suas demandas e práti- cas de autogoverno. A exclusão dos crioulos dos altos postos da administração, a imposição de novo regime fiscal, o ataque a várias prerrogativas da Igreja e a expulsão dos jesuítas se somam ao declínio das tradicionais negociações entre súditos e soberano (CHIARAMONTE, 2003, p. 94-95; BRADING, 2003, p. 42-43).

Na América, a revolta contra as reformas não se ateve aos descendentes de ingleses, espanhóis e portugueses, mas se alastraram nas comunidades indígenas, entre mestiços radicados nos centros urbanos e entre escravos. Na Nova Espanha, as reformas borbónicas pretendiam tornar mais útil o ultramar, pois se destacavam mais por sua lealdade do que por contribuir com as arcas dos reis. Em Madri, os ministros ainda consideravam perigosa a crescente influência das oligarquias nas instituições locais. Assim, os domínios ultramarinos não deveriam se vincular à Espanha baseado apenas na legitimidade do monarca, mas também em um amplo aparato burocrático e repressivo. Para tanto, o visitador José de Gálvez defendia a modificação unilateral dos acordos estabelecidos com os súditos, exigia maior contribuição fiscal, retirava a Igreja de seu importante protagonismo na política e remodelava a economia ultramarina para torná-la mais produtiva e dependente da Espanha. No entanto, a expulsão dos jesuítas tornou-se aí o episódio mais dramático das reformas, pois provocou revoltas nos centros mineiros ao norte da Nova Espanha (CASTRO, 1996, p. 95-96). Em maio de 1767, iniciaram-se violentos protestos contra as autoridades em San Luis Potosí, motivadas em princípio pela expulsão dos jesuítas, mas também pelos conflitos de terra e abusos perpetrados pelas autoridades contra os locais. Vale então mencionar o recrutamento de milícias provinciais, a chegada de tropas veteranas, o estanco do tabaco, maior controle sobre as alcabalas e aumento de tributos. Essas medidas prejudicaram os crioulos, os mulatos e as comunidades indígenas, ou seja, afetaram tanto a índios quanto a gente de razón. Aliás, a lógica dos estamentos não mais guiava as alianças entre os revoltosos, pois mulatos, mestiços e índios, por vezes, uniam-se motivados pelos mesmos interesses. De fato, a lógica socioeconômica era mais preponderante do que a estamental. De todo modo, os conflitos gerados pelas reformas atingiram toda a sociedade e debilitaram a legitimidade do rei. Os rebeldes passaram então a lançar diversos projetos de monar- quias indianas, embora tivessem características pouco definidas e utópicas. Como mencionou Felipe Castro, era muito forte a necessidade dos rebeldes de aceitar e defender “[...] los proyectos más fantásticos e irreales de monarquías plebeyas, buscaron candidatos a monarcas entre improbables personalidades criollas o, en el más extremo de los casos, se aferraron a personajes misteriosos [...]” (CASTRO, 1996, p. 183, p. 232-234, p. 274).

Em Portugal, o governo de Dom José I também cerceou as autonomias das capitanias e, aos poucos, drenou o poder do Conselho Ultramarino em direção aos Secretários de Estado, particu- larmente ao Secretário de Estado do Reino. Nesta conjuntura, no ultramar, percebe-se ainda uma nítida diminuição do poder decisório dos poderes locais, das câmaras municipais e ouvidorias, em contraste com o fortalecimento do comando dos governadores e vice-reis. Entretanto, na conjuntura de reformas, a principal revolta da América Portuguesa clamava uma solução drástica para o endividamento dos mineiros e principais potentados das Minas Gerais (RAMINELLI, 2015, p. 61-102; MAXWELL, 1978, p. 141-167). Antes, em dezembro de 1761, o governo pombalino criou o Erário Régio no Reino e as Juntas da Fazenda nas colônias para proteger o bem comum. Planejava modernizar a contabilidade e administração fiscal. As juntas pretendiam ainda dar certa autonomia aos poderes locais e amenizar a centralização promovida por Pombal. As reformas pombalinas no Brasil procuravam então envolver pessoas importantes do ultramar no governo local (MAXWELL, 1996, p. 129).

Na segunda metade do século 18, a metrópole passou a sentir a queda da arrecadação, motivada não somente pela diminuição da extração aurífera, mas também pelo declínio do comércio do açúcar, diamantes e tráfico escravos. Após o terremoto, os gastos com a reconstrução de Lisboa vieram a agravar ainda mais a situação econômica da metrópole. O aperto fiscal promovia maior pressão sobre os moradores do Brasil, pois, entre 1762 e 1776, grande parte das receitas da Coroa originava-se no ultramar. Vale então destacar os estreitos vínculos entre a queda da arrecadação, a maior participação das elites coloniais na administração do Brasil e as punições brandas às revoltas da segunda metade do século 18. Mesmo em crise, a economia colonial era primordial para o equi- líbrio econômico da metrópole. A tolerância com as elites coloniais era importante para manter a harmonia das relações. No entanto, a negociação com as elites não impediu que D. José e Pombal castigassem com severidade toda a tentativa de barrar a centralização do poder régio.

Desde o século 16, por centenas de vezes, os vassalos protestaram contra a política fiscal da monarquia portuguesa. A tradição rebelde manteve-se intensa até o governo de D. José, quando o crime de lesa-majestade foi estendido àqueles que atacassem os governadores. Mesmo assim, contrá- rios às reformas, militares e fazendeiros no Pará e Maranhão envolveram-se em murmurações. No Porto, os comerciantes levantaram-se contra os monopólios, enquanto na Bahia eles protestaram contra os donativos para reconstrução de Lisboa. Assim, a metrópole procurava evitar confrontos desnecessários com as elites coloniais (FIGUEIREDO, 2015, p. 125-174; RUSSELL-WOOD, 1998, p. 187-250).

Entre os rumores dos revoltosos, não se propalavam críticas ao rei, tampouco ambicionavam maior participação decisória na administração reinol. Os males da economia eram atribuídos aos governa- dores e as reformas implementadas no governo pombalino, particularmente em relação à fiscalidade nas Minas. Portugal e suas possessões não funcionavam a partir do modelo de monarquia compósita, tampouco a administração central contava com a participação de súditos ultramarinos. Talvez por não dispor dessa tradição política, os mineiros não bradassem por liberdade como os moradores da Nova Granada e Nova Espanha, almejavam particularmente perdão das dívidas e suspensão da derrama.

Os padres jesuítas também reagiram contra a Lei de Liberdade dos índios, ameaçaram a soberania régia nas fronteiras e, por isso, foram expulsos do ultramar e do reino de Portugal. Os padres contaram com apoiadores nas Minas Gerais. Nessa capitania, as inconfidências pom- balinas aconteceram nas vilas entre 1760 e 1776. Os rebeldes promoveram pequenos incidentes ao divulgar papéis sediciosos e críticas ao monarca e ao marquês. Os moradores não chegaram a um levante popular e nem pegaram em armas. Apenas expressaram o seu descontentamento aos brados e murmurações. Geralmente essa rebeldia era encabeçada por padres, antigos alunos dos colégios jesuítas e por demais simpatizantes da Companhia de Jesus. Eram presos, mas não submetidos às violências punitivas comuns em Portugal (CATÃO, 2005, p. 357-371; FIGUEIREDO, 2015, p. 166). Assim, Pombal exercia o seu poder coercitivo, mas se mostrava cauteloso ao punir os colonos.

Aliás, a sua prudência torna-se evidente quando comparamos o rigor adotado na repressão dos motins ocorridos no Reino e no Brasil. A postura precavida originava-se, segundo Luciano Figueiredo, de longo aprendizado com as revoltas ocorridas no Brasil. Aliás, a condução cuidadosa marca as relações políticas entre a administração central e as elites coloniais, “orienta em todas as direções a política do ministro quando se tratava de governar os súditos no Brasil” (FIGUEIREDO, 2015, p. 154). No período pombalino, a cautela desarmou os ânimos e evitou os velhos ressentimentos entre os colonos e as autoridades.

Depois de 1777, com o fim do governo pombalino, a negociação entre o governo e as elites coloniais se enfraqueceu, sobretudo nas Minas. Com a crise na mineração de ouro e diamante, o descontentamento dos mineiros elevava-se, agravado pelos desmandos do governador das Minas, Luís da Cunha Meneses. Esse governante frequentemente era acusado de se aliar a alguns magistrados e contrabandistas de diamantes para perpetrar “barbaridades inauditas”. Para averiguar os rumores e denúncias, o Secretário de Estado Martinho de Mello e Castro ordenou ao Visconde de Barbacena, o novo governador das Minas, a cobrança dos impostos atrasados, ou seja, cobrar a derrama. Mello e Castro não considerava o esgotamento das minas como motivo para a queda da arrecadação do quinto real. O secretário ainda planejava implantar reforma no sistema que impunha melhores condições para comercializar produtos portugueses e proteger a Real Fazenda (MAXWELL, 1996, p. 29-30). Cobrar a derrama causou estranheza na própria rainha que pediu ao secretário que fizesse avaliação dos impactos dessa norma sobre o cotidiano dos mineiros. Aliás, os revoltosos não culpavam a soberana pelas medidas draconianas de Mello e Castro, tampouco exigiam maior participação nas decisões administrativas. Os governadores eram os responsáveis pelos males da economia, particularmente em relação à fiscalidade nas Minas. Vale ainda acrescentar que panfletos também circulavam com denúncias de corrupção do sistema administrativo português. No entanto, a Inconfidência Mineira (1789) não se materializou em revolta, pois a derrama fora suspensa e desmobilizou os rebeldes. Aliás, eles aguardavam a cobrança dos impostos atrasados para desencadear o processo. Uma parte da elite mineira urdiu a revolta que incluía o assassinato do governador e a proclamação de independência. Essa traição arquitetada não se efetivou, não passou de rumores, constituía encontros secretos que foram descobertos e denunciados ao governador da capitania de Minas Gerais. Para Kenneth Maxwell, enfim, a inconfidência mineira vinculava-se ao endividamento dos exploradores de minas e contratadores (MAXWELL, 1978, p. 141-167; STARLING, 2018, p. 150-176).

As reações às reformas na América hispânica e na América portuguesa se diferiam bastante. No ultramar lusitano, as reformas mais impactantes atuaram no Estado do Grão-Pará e Maranhão, nas capitanias de Pernambuco e Paraíba e nas Minas Gerais. As elites dos maiores centros políticos e econômicos, os comerciantes e plantadores da Bahia e Rio de Janeiro, não se incomodaram muito com a intervenção do Marquês. Aliás, no Brasil, as rebeliões não tiveram a mesma repercussão e impacto quando comparadas às rebeliões de Nova Granada e Nova Espanha, sem contar com a grande rebelião Tupac Amaru (1780-1791). Os problemas políticos e econômicos provocados pelo terremoto de Lisboa, por certo, reforçaram a condução precavida das autoridades portuguesas em relação às elites coloniais. Entretanto, a Inconfidência Mineira (1789) resultou de postura mais agressiva do Ministro Martinho de Mello e Castro, mas o recuo da intervenção fiscal promoveu a desestruturação da revolta.

Colônias separadas da Nação

Alguns reformadores espanhóis incentivavam a criação da Gran España, união da Espanha e as Índias, que em princípio atenuava a subordinação do ultramar. O sistema de intendências constituía parte da estratégia para alcançar “una unión de todas las partes del imperio español en un Estado Nacional unitario, fortificado internamente como Gran España” (PIETSCHMANN, 1996, p. 301-303). Embora não destaque na análise, Pietschmann não se referira ao Estado Nacional do século 19, mas à Nação unificada pelo monarca, união política própria do século 18. Assim, o ultramar hispânico estava unido à Espanha, ambos sob o gládio dos soberanos espanhóis.

Depois de encaminhadas as reformas, entre as autoridades espanholas, sobretudo em docu- mentos de pouca circulação, a denominação “colônia” vinculava-se paulatinamente à subordinação política e econômica, à submissão aos interesses metropolitanos, embora essa conotação fosse mais frequente a partir do início do século 19. Para Lemperière, o termo “colônia” vinculava-se à explo- ração econômica e à injustiça e se opunha ao termo “província”, que detinha poderes políticos para negociar com o soberano, conforme a antiga noção de monarquia compósita que reunia a Espanha e as Índias sob gládio do soberano. Mas a ideia de “colônia” separava a metrópole do ultramar e o rejeitava como parte da Nação: “Le terme de colonie a contribué à singulariser l´espace, avant de le rejeter hors de la Nation” (LEMPERIERE, 2004).

A ativação do comércio e aumento dos rendimentos metropolitanos não somente promoviam o fortalecimento da soberania régia, mas viabilizaram paulatinamente a construção da Nação. Assim, as reformas alteraram o pacto entre a Coroa e os súbitos ultramarinos, originaram uma nova ideia de império, baseada mais na integração entre os territórios do que centralização política, segundo Adelman. Ao analisar o comércio livre entre os hispânicos e o intenso tráfico de escravos entre o Brasil e a África, ele destacou a grande capacidade de integração empreendida pelos comer- ciantes, por intermédio de redes institucionais ou informais. Os impérios eram mais integrados pela rede mercantil para servir à Nação, as reformas faziam fluir mais intensamente aos centros os lucros gerados nas colônias, intensificando, por conseguinte, os mecanismos de exploração:

“It would only be through vitalizing empires, insisted the reformers, that Iberian nations could ensure their sovereignty in the European concert of emerging nations” (ADELMAN, 2006, p. 25).

As metrópoles transformavam-se em Nação, enquanto as possessões americanas em colônias, integradas a um sistema atlântico de comércio.

Os reformadores defendiam as glórias da nação espanhola e tinham imagem utilitária da América, pois o ultramar era testemunho da sua capacidade expansionista e civilizacional. As reformas introduziram uma nova ideia de império, responsável por promover a distância entre a Espanha e seus territórios ultramarinos, pois “el concepto de Nación Española quedó algo limi- tado y restricto al espacio “civilizado” europeo”. Aliás, o ultramar era composto por imigrantes deslocados da Europa e responsáveis pela formação de culturas híbridas, aspecto mais destrutivo do processo colonial. Essa diversidade cultural promovia a divisão, comum às sociedades coloniais, entre senhores e escravos. Morelli ainda apontou para incompatibilidade entre a Monarquia e a Nação, a primeira era capaz de integrar os mais diversos súditos, enquanto a segunda requeria a homogeneidade de seus súditos para se fortalecer frente às demais (MORELLI, 2008, p. 8).

Durante séculos, “nação” teve sentido étnico, capaz de reunir grupos humanos identificados pelos costumes, língua e religião. Assim, não raro se encontram referências à “nação de mouro” ou “judeus da nação”. Entre os séculos 17 e 18, registra-se outro significado, inteiramente político, quando a “nação” passou a ser entendida como diferentes grupos humanos unidos em torno do príncipe, ou melhor, submetidos a um governo e suas leis. Antes da Revolução Francesa, coexis- tiam os dois significados para nação, a antiga concepção étnica e a nova, notadamente política. A última acepção era pertinente aos estados absolutistas, pois viabilizava a inclusão de súditos de várias etnias e regiões. A noção política viabilizava o funcionamento dos impérios e dos estados multiétnicos. Assim, Nação e Estado se confundiam, pois era o conjunto de gente sob o controle das mesmas leis e governo. O terceiro significado de “nação” reúne o antigo sentido (étnico) e o mais recente (político). A partir do início do século XIX, raça e etnicidade foram convertidas em fundamento de legitimidade política, e o Estado adotou a voz da Nação para fortalecer a sua soberania. O terceiro sentido ainda atrelava a soberania do Estado à homogeneidade étnica e racial, ou melhor, o Estado multiétnico era incapaz de sustentar a autoridade do príncipe. As possíveis disputas entre etnias ou entre raças comprometiam a soberania do monarca (CHIARAMONTE, 2004, p. 27-57; RAMINELLI, 2010).

No mundo hispânico, durante o reinado de Carlos III, o sistema de intendências, para além da intervenção econômica, planejava uma forte unidade política, composta pela Espanha e suas Índias. A Gran España representava o Cuerpo Unido de Nación e era, supostamente, resposta às ameaças representadas pela Marinha britânica e Revolução Americana. Como antídoto antir- revolucionário, os ministros almejavam impulsionar a homogeneidade interna, recorrendo à administração transatlântica e à defesa do império (PIETSCHMANN, 1996, p. 302). No entanto, o domínio espanhol produziu um mosaico de sentimentos grupais, como as rivalidades entre crioulos e peninsulares, entre rio-platenses e peruanos. Todos eram católicos, espanhóis, mas defendiam a patria chica. Viviam apartados em territórios distantes e sem dispor de sistema de comunicação eficiente. Importante para difundir revoltas nas colônias britânicas, a imprensa não tinha a mesma eficiência entre os crioulos. A fragmentação de identidades era ainda impulsionada na metrópole, pois, para os peninsulares, a América não estava contida na Espanha. A partir da década de 1770, “colônias”, ou “estabelecimentos”, indicavam uma sociedade apartada, com estatuto político infe- rior ao da Espanha peninsular (GUERRA, 2003, p. 49).

No entanto, havia vozes dissidentes, embora fossem raras. Em 1792, o jesuíta Juan Pablo Viscardo defendia o Novo Mundo como Pátria dos espanhóis americanos e denunciava os trezentos anos de opressão espanhola. Embora rebelde, essa geração não era revolucionária e buscava resti- tuir o status quo perdido com as reformas. Assim, Viscardo destacava o direito de representação política e a liberdade comercial. Aliás, o jesuíta peruano considerava que o controle metropoli- tano sobre o comércio os impedia de participar do mercado mundial, inviabilizava a sua inclusão entre as “nações iluminadas do mundo”. Ademais, a Espanha ameaçava o direito do cidadão, a sua liberdade, propriedade e segurança individual. Impedia, enfim, os crioulos de criar uma sociedade civil ou desenvolver sua cultura política. Para restituir a harmonia entre súditos e o rei, Viscardo contava com os índios e entendia a revolta de Tupac Amaru como movimento impor- tante contra as reformas. Enfim, ele não pretendia promover a independência, mas a restauração dos valores de Castela, da cultura antiga do mundo indígena e do projeto de Garcilarso de Vega de comunidade multirracial (PAGDEN, 1990, p. 117-132).

Em Lisboa, o sacerdote José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, natural do Brasil, publicou o Ensaio Economico sobre o Comércio de Portugal e suas colônias (1794). Empregava o termo colônia como espaço apartado do reino e com forte caráter econômico. O comércio português era dinamizado pela contribuição dos produtos provenientes do ultramar, impulsionado pelas madeiras para construção naval; resgate de escravos da Costa da África; ouro, açúcar e tabaco pro- venientes do Brasil; salitre, panos de algodão proveniente das Índias e comercializados na Costa da África e no Brasil. Para o futuro Bispo de Olinda, a metrópole deveria defender as colônias, fazer “justos sacrifícios” e, em contrapartida, as colônias deveriam restringir o seu comércio diretamente com a metrópole. Estavam também impedidas de ter fábricas, principalmente de algodão, linho e lã, deveriam se vestir com as manufaturas da metrópole: “[...] quanto os interesses e as utilidades da Pátria mais se enlaçarem com os das Colônias suas filhas, tanto ela será mais rica; e quanto ela dever mais as Colônias, tanto ela será mais feliz, e viverá mais segura [...]” (COUTINHO, 1794, p. 108). Em suma, as colônias deviam se submeter às diretrizes metropolitanas, mãe e filhas gera- riam as condições para pleno desenvolvimento do comércio e fortalecimento político de Portugal. Nessa mesma conjuntura, em 1797, frente da Secretaria de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho também defendeu medidas para consolidar os laços entre Brasil e Portugal. Em tempos instáveis, pregava a harmonia entre as províncias do império lusitano como estratégia para neutralizar as forças revolucionárias. Apesar da instabilidade con- juntural, os domínios do monarca português na Europa formavam a capital e o centro de vastas possessões. Sem o ultramar, “reduzido a si só”, Portugal logo se tornaria província da Espanha. A harmoniosa relação entre Portugal e seu ultramar era tema fulcral para o governo português. Desde os primeiros reis, segundo D. Rodrigo, o ultramar constituía províncias da monarquia, dispondo das mesmas honras e privilégios. Eram províncias reunidas por um mesmo sistema

administrativo, destinado a zelar pela mútua e recíproca defesa da monarquia.

“[...] todas sujeitas aos mesmos usos, e costumes, é este inviolável e sacrossanto princípio de unidade, primeira base da monarquia que se deve conservar com o maior ciúme, a fim de que o Português nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente português, e não se lembre senão da glória e grandeza a que tem a fortuna de pertencer [...]” (COUTINHO, 1993, p. 49).

Concebia, então, um único sistema administrativo centralizado em Lisboa, promotor dos mesmos usos e costumes, honras e privilégios, composto por províncias e não por colônias. Na memória sobre os melhoramentos do ultramar, Sousa Coutinho empregou poucas vezes o termo “colônia”, e quando o fez mencionou suas potencialidades econômicas. Entretanto, D. Rodrigo não enfatizou, como Azeredo Coutinho, os laços comerciais como promotores da unidade.A sacrossanta unidade da monarquia permitia que seus súditos, radicados nas mais dis- tantes paragens, se julgassem somente portugueses. Seus escritos pretendiam apaziguar os descon- tentamentos provocados por um sistema tributário nem sempre eficiente e justo. Sousa Coutinho considerava que a monarquia portuguesa promovia a união entre filhas e mãe. O secretário ainda propunha reforma fiscal e a inclusão de jovens brasileiros formados em Coimbra nos vários níveis da administração (MAXWELL, 1978, p. 254; RAMINELLI, 2010). Em 1797, o secretário não anteviu o problema das raças como entrave à formação da “nação”. Por certo, D. Rodrigo concebia a nação portuguesa como união promovida pelo monarca, unidade submetida às mesmas leis e governo. No mundo luso-brasileiro, a diversidade racial como impedimento seria abordado muito mais tarde, na década de 1820, pouco antes da independência. (RAMINELLI, 2010, p. 415-433).

As reformas e as revoltas evidenciaram as tentativas de subordinação do ultramar às metrópoles. As reformas criaram economias distintas e interdependentes, incentivando a produção de matérias primas nas zonas periféricas dos impérios. As colônias, sua produção e tributos, fortaleciam a soberania régia e a formação das nações europeias. Elas ainda cercearam a autonomia política dessas localidades e centralizaram o comando imperial nas metrópoles. Entretanto, as reformas incitaram o divórcio entre os soberanos e seus súditos ultramarinos, enquanto as revoltas fortaleceram cisões entre europeus e não europeus, impulsionaram a ideia de raça e as diferenças entre cidadãos e não cidadãos (FRADERA, 2018, p. 1-52). Assim, no seio das colônias, temendo o descontrole das revoltas, as elites coloniais se afastavam paulatinamente das populações mestiças, indígenas e negras.

Essa ruptura foi intensificada pelas revoltas no mundo hispânico analisadas acima, mas vale mencionar a revolução do Haiti como marco fundamental do afastamento entre as populações europeias e não europeias. Gerava-se aí mais uma distinção entre metrópoles e colônias nos âmbi- tos social e racial, embora seus desdobramentos se tornassem mais nítidos nas primeiras décadas do século 19. As metrópoles se destacaram como brancas, não somente na perspectiva racial como também cultural, enquanto as colônias/províncias se caracterizam pela pluralidade de raças e culturas, marcada pela hierarquia entre descendentes de europeus e não-europeus, pelo comando político e econômico dos primeiros sobre os segundos. Enfim, entre as metrópoles, a valorização da unidade étnica, da Nação, paulatinamente suplantava o caráter compósito e multiétnico das antigas monarquias.

Supplementary material
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Notes
Notes
1 AHU, Rio de Janeiro, avulsos, doc. 443 e 447; AHU, São Paulo, avulsos, doc. 115; AHU, Bahia, avulsos, 1260. Para Colônia de Caiena, ver: AHU, Maranhão, doc. 1262; Colônia do Suriname, AHU, Pará, avulsos, doc. 6234
2 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Bahia, Coleção Castro Almeida, documento (doc.) 347. Ainda sobre colônias fran- cesas, ver: AHU, Brasil Limites, caixa 1, doc. 1; AHU, Maranhão, doc. 1262, entre outras referências.
3 AHU, Pará, avulsos, doc. 3876, 4197, 4229, 5135, 5693 e 6367. AHU, Ultramar, avulsos, doc. 520. Infelizmente não encontrei estudos sobre os intendentes gerais das colônias, tampouco do Ministério da Repartição das Colônias.
4 AHU, Pará, avulsos, doc. 8578.
5 AHU, Maranhão, avulsos, doc. 8816.
6 AHU, Bahia, avulsos, doc. 15590.
7 Sobre o assunto, ver: AHU, Ultramar, doc. 1059, 1107, 1115, 1163, 1246 e 1417, entre outros.
8 AHU, Bahia, avulsos, doc. 18971.
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