ARTIGO
Received: 18 August 2020
Accepted: 21 March 2021
DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.100577
RESUMO: Os militantes anarquistas e sua imprensa tiveram um papel importante na organização dos trabalhadores amazonenses na década de 10 do século XX. No seu impresso usaram diversas estratégias para a formação de leitores, especialmente os trabalhadores. Dentre as estratégias utilizaram os poemas. O presente artigo busca explorar os poemas que se materializaram nas páginas da imprensa anarquista, notadamente no jornal A Lucta Social (1914), demonstrando a sua função pedagógica. Para isso, procuramos situar o anarquismo no interior da historiografia amazonense, sua chegada à Amazônia e, por fim, os versos e as estrofes presentes no periódico libertário.
PALAVRAS-CHAVE: Anarquismo, Imprensa, Amazônia.
ABSTRACT: Anarchist militants and their press played an important role in organizing Amazonian workers in the 10s of the 20th century. In their print, they used different strategies to train readers, especially workers. Among the strategies used the poems. This article seeks to explore the poems that materialized in the pages of the anarchist press, notably in the newspaper A Lucta Social (1914), demonstrating their pedagogical function. For this, we tried to situate anarchism within Amazonian historiography, its arrival in the Amazon and, finally, the verses and strophes present in the libertarian periodical.
KEYWORDS: Anarchism, Press, Amazon.
Considerações iniciais
Falar historicamente sobre o anarquismo na Amazônia é um desafio, sobretudo por dois motivos. O primeiro pela ideia constantemente difundida de isolamento e distanciamento da região em relação ao resto do país e do mundo, o que supostamente dificultaria, em grande medida, a circulação de pessoas, ideias e impressos no interior da floresta tropical. O segundo, que não deixa de ser um efeito do primeiro, pela percepção de que na Amazônia não existiriam lideranças capazes de se relacionar com os trabalhadores locais e fomentar um processo de organização de classe com a finalidade de conquistar melhorias no espaço de trabalho e na vida cotidiana.
Esse pensamento, no âmbito da historiografia regional, em especial do início do século XX, tem sido questionado por pesquisas que demonstram exatamente o contrário, ou seja, que a região estava mais próxima do Brasil e do mundo do que se pensava. Contribuíram para evidenciar essas ligações e vínculos da região com o país e o globo os trabalhos de Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro e Maria Luiza Ugarte Pinheiro.1 Para os autores, não se pode omitir que:
Os próprios trabalhadores amazonenses buscaram estabelecer interações supra-regionais durante as primeiras décadas da República Brasileira e, dessa forma, os jornais operários foram veículos importantes dessas interações. Neles há o registro da intensa correspondên- cia mantida entre pessoas e agremiações operárias de norte a sul do país (PINHEIRO, L.; PINHEIRO, M., 2004, p. 12).
É importante sublinhar o papel instituinte dos referidos autores em relação às pesquisas sobre imprensa, trabalho e movimentos sociais na região, pois não mediram esforços para fazer avançar os estudos sobre os trabalhadores na região amazônica. Através da linha Migrações, Trabalho e Movimentos Sociais na Amazônia, no âmbito do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, e dos grupos de pesquisa História Social da Amazônia e Laboratório de História da Imprensa no Amazonas, os autores vêm animando e orientando reflexões sobre os trabalhadores, a imprensa e temas correlatos.2
E é justamente nesse movimento mais amplo que o presente artigo se insere. O tema deste estudo está intimamente ligado à trajetória de reflexões sobre o mundo do trabalho no Amazonas na Primeira República. Tal trajetória caracteriza-se ao mesmo tempo como individual e coletiva3 e tem sido dinamizada pela perspectiva de recuperar personagens e grupos sociais, como os operários, que foram cobertos pelo manto do silêncio ou colocados à margem da história regional. Nesse sentido, ao investigar dimensões da história de setores populares, no caso em tela os mili- tantes anarquistas e sua imprensa, busca-se contribuir para descortinar dinâmicas históricas ainda não exploradas na região, dentre elas os poemas que se materializaram nas páginas da imprensa anar- quista, cujos produtores, em alguns casos, encontravam-se no outro lado do Atlântico, como se verá.
O anarquismo na historiografia amazonense
De antemão é importante deixar claro que a nossa intenção aqui não é a de realizar uma análise crítica e profunda dos estudos regionais e nacionais sobre a temática do anarquismo na historiografia amazonense ou brasileira, mas, sim, apenas de apresentar e situar minimamente o nosso objeto de estudo no conjunto da literatura existente.
Nesse sentido, o anarquismo na Amazônia constitui-se num tema relativamente recente. Na historiografia regional ele apareceu na década de 90, especialmente na pesquisa desenvolvida por Maria Luiza Ugarte Pinheiro, que resultou no livro intitulado A Cidade Sobre os Ombros (1999). Nele, a autora absorveu a referida temática para explicitar as diferenças existentes entre a organização e a ação do movimento organizado dos estivadores, que assumiu uma perspectiva nitidamente reformista, em relação aos ideais defendidos pelos anarquistas.
No início da década seguinte, a dissertação de mestrado de Francisca Deusa Sena da Costa, Quando Viver Ameaça a Ordem Urbana (2000), também captou, notadamente no terceiro capí- tulo do seu trabalho, o tema do anarquismo. A finalidade era demonstrar as disputas entre os socialistas e os anarquistas acerca do Primeiro de Maio, particularmente em torno da memória e do significado atribuídos à data. A autora ainda apontou as comemorações do Primeiro de Maio ocorridas em Manaus, sinalizando as variações de formato e de percurso, que eram orientadas pela perspectiva político-ideológica das lideranças operárias.
A imprensa operária no Amazonas foi alvo de reflexões de Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro em Imprensa e mundos do trabalho na Belle Époque manauara (2003). Nesse processo, o referido autor tratou do anarquismo ao abordar o jornal A Lucta Social, que circulou no Amazonas nos anos de 1914 e 1928. Maria Luiza Ugarte Pinheiro na sua tese de doutorado, Folhas do Norte (2001), também versou sobre o referido impresso anarquista, explicitando os personagens que animavam o periódico e caracterizando o seu formato e conteúdo. Ambos, no ano de 2004, organizaram um livro (de transcrições e fac-símiles) intitulado Imprensa Operária no Amazonas. Na apresentação do livro realizaram uma explanação geral sobre a imprensa operária na região e nela registraram a presença dos anarquistas que “viam na publicação das folhas operárias uma oportunidade ímpar para difundir seus ideais e arregimentar novos parceiros à militância político-sindical” (PINHEIRO, L.; PINHEIRO, M., 2004, p. 13).
Cláudia Amélia Mota Moreira Barros pretendeu em sua dissertação de mestrado, Vozes Operárias: os tipógrafos e a construção da identidade operária amazonense (1891-1914) (2015), entender o universo do trabalho urbano em Manaus por meio da categoria dos tipógrafos. Para isso estabeleceu um quadro do seu mundo vivido e apreendido, investigou a sua composição, as suas estratégias de luta e sobrevivência e traçou os caminhos da construção da sua identidade operária através da imprensa produzida por eles entre o final do século XIX e início do XX. É nesse processo que absorve o tema do anarquismo, em especial na década de 1910, quando então os tipógrafos se envolveram na produção de um impresso que assumiu essa perspectiva.
Num estudo recente e de maior fôlego, Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro voltou a ocupar-se do anarquismo, analisando-o no universo do mundo do trabalho no Amazonas em sua obra Mundos do Trabalho na Cidade da Borracha: trabalhadores, lideranças e greves operárias em Manaus (1880-1930). O autor ainda publicou o Vozes Operárias: fontes para a história do proletariado amazonense (1890-1930), um livro no qual tornou público os registros produzidos pela imprensa operária - artigos, análises de conjuntura, informações de greves, protestos, dentre outros assuntos. Os dois livros foram publicados em 2017.
A tese defendida (no ano de 2018) por Luciano Everton Costa Teles e intitulada Construindo Redes Sociais, Projetos de Identidade e Espaços Políticos: a imprensa operária no Amazonas (1891-1928) lidou com o anarquismo através do jornal A Lucta Social e do seu editor Tércio Miranda. O autor buscou neste trabalho analisar, através das folhas operárias que circularam no Amazonas na Primeira República, como os seus militantes estabeleceram contatos, conexões e interações e, no seio dos circuitos desenhados, elaboraram e fizeram circular projetos de identidade operária que, de forma imbricada, tinham como finalidade a criação de espaços políticos legítimos de mudança social. Nesse quadro, o autor em destaque ocupou-se, num dado momento da tese, em reconstruir as teias de conexões constituídas por Tércio Miranda e seu jornal A Lucta Social com outras regiões do país e do mundo.
Como se pode perceber, os estudos mencionados anteriormente discorreram sobre o anar- quismo como tema correlato, ou seja, ele foi trabalhado e articulado para a compreensão de outro tema, que era central, como a imprensa operária, os tipógrafos, as ações coletivas dos trabalhadores e o mundo do trabalho no Amazonas.
Não obstante, alguns estudos tomaram o anarquismo como tema central de análise. Nessa esteira, Luciano Everton Costa Teles, em artigo intitulado Tércio Miranda: uma liderança anar- quista na Amazônia, 1913-1914 (2017), examinou a trajetória de Tércio Miranda, uma impor- tante liderança anarquista na Amazônia, que atuou de forma intensa na fundação de sindicatos (sobretudo o dos trabalhadores gráficos), na feitura de um jornal denominado de A Lucta Social e na difusão do anarquismo. Por intermédio das suas “expressões individuais” o autor em tela buscou elucidar o contexto histórico do mundo do trabalho no Amazonas. Debruçando-se ainda sobre Tércio Mirando e o impresso A Lucta Social, Teles em A Lucta Social e a Existência de uma Rede Anarquista Regional: Tércio Miranda/AM e Antônio Carvalho/PA, 1914 (2016) procurou demonstrar a existência de uma rede social anarquista, de alcance regional, impulsionada por dois militantes - Tércio Miranda no Amazonas e Antônio Carvalho no Pará - que foram fundamentais na condução do movimento operário nortista na primeira metade da década de 10 do século XX. Os trabalhos por ora mapeados desenvolveram-se a partir de um diálogo profícuo com a historiografia nacional e internacional, que fomentou, inspirou, sustentou e apontou caminhos e reflexões para uma maior compreensão do anarquismo no Brasil e no mundo. Dada à impossibi- lidade de aludir o conjunto da obra, optou-se por selecionar e recortar, desse universo, seis autores que, com suas contribuições teórico-metodológicas, ideias e conteúdos, impactaram fortemente a escrita da história regional sobre o anarquismo.
O primeiro deles é Francisco Foot Hardman e sua obra, considerada clássica, sobre o anar- quismo. Nem Pátria e Nem Patrão (1984) trouxe para a cena histórica a política e a cultura anar- quista no Brasil, abrindo temas e caminhos de análises no Amazonas. Já Regina Horta Duarte em sua dissertação de mestrado intitulada A Imagem Rebelde - a trajetória libertária de Avelino Fóscolo (1988) focalizou aspectos da história de Minas Gerais seguindo os caminhos trilhados por Avelino Fóscolo, um militante anarquista que atuou difundindo o anarquismo em três cidades mineiras - Sabará, Taboleiro Grande e Belo Horizonte - nas duas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras do século XX.
Outro nome importante é Edilene Toledo que, em sua tese de doutorado, O Sindicalismo Revolucionário em São Paulo e na Itália: circulação de ideias e experiências na militância sindical transnacional entre 1890 e o fascismo (2002), examinou o sindicalismo revolucionário e a circulação de suas ideias e práticas através do estudo de três militantes italianos - Alceste de Ambris, Giulio Sorelli e Edmondo Rossoni - que se deslocaram para São Paulo no início do século XX e, nesta localidade, atuaram politicamente, disputando a organização dos trabalhadores com o socialismo, o anarquismo e o fascismo. Cabe sublinhar que Toledo encarou o sindicalismo revolucionário como uma corrente autônoma, não vinculado ao anarquismo, ao contrário de Tiago Bernardon de Olieveira, que é outro autor marcante e que via o sindicalismo revolucionário como uma vertente do anarquismo. Em sua tese, Anarquismo, Sindicatos e Revolução no Brasil, 1906-1936 (2009), além de questionar a ideia do sindicalismo revolucionário como uma corrente autônoma, anali- sou a trajetória do movimento anarquista em sua relação com o movimento operário brasileiro, destacando as estratégias, as concepções e as avaliações desenvolvidas pelos militantes nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal.
De uma forma mais ampla, Cláudio Henrique de Moraes Batalha tem contribuído com as suas reflexões para dilatar as perscrutações acerca do mundo do trabalho no Brasil e, consequentemente, sobre a perspectiva anarquista e as disputas que ocorriam com outras correntes políticas, como, por exemplo, o socialismo e o reformismo. Seus textos materializados em livro, O Movimento Operário na Primeira República (2000), e em artigos, particularmente Os Desafios Atuais da História do Trabalho (2006) e Identidade da Classe Operária no Brasil (1880-1920): atipicidade ou legitimidade (1992), foram relevantes para os estudos locais. Sílvia Regina Ferraz Petersen, assim como o autor referido acima, também impactou a escrita da história no Amazonas com as suas análises sobre o movimento operário gaúcho. Em especial, três artigos, Cruzando Fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira (1995), Ainda o Movimento Operário Como Objeto Historiográfico (1997) e Repensar a História do Trabalho (2016), tornaram-se referências e acabaram norteando as pesquisas sobre os trabalhadores no Norte do país.
No Amazonas, aqueles que se debruçaram sobre o anarquismo utilizaram como documentação histórica a imprensa operária, em especial o jornal A Lucta Social, como ficou visível inclusive nos títulos dos trabalhos sublinhados acima. Sobre o periódico A Lucta Social, este passou a circular na arena jornalística de Manaus em 1914, sua primeira fase. Os personagens que lhe deram vida e as características do referido jornal serão tratados no próximo tópico do artigo.
Utilizado como fonte histórica, privilegiou-se, no jornal A Lucta Social, os artigos e as demais seções, cujas informações e temas acabaram sendo absorvidos no contexto geral da pesquisa, em grande medida, sem uma análise mais profunda do periódico. Ou seja, as informações e os temas foram deslocados do jornal e inseridos, de forma articulada ao objeto de pesquisa, na narrativa histórica construída (DIAS, 1999; COSTA, 2000). A grande questão que gira em torno disso é que o jornal constantemente aparece como objeto morto, isolado e distante das dinâmicas históricas das quais constitui e faz parte (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 256).
Por outro lado, alguns trabalhos (PINHEIRO, 2001; SOUZA, 2005; PINHEIRO, 2014; OLIVEIRA, 2010) trataram o jornal sindicalista revolucionário em tela como força social viva, atuando na composição e na dinâmica da cena histórica da qual faz parte, instituindo perspectivas de comportamento e consciência histórica. Nesse sentido, o estudo da imprensa situa-se no campo da História Social.
Dessa forma, chamamos a atenção para a assertiva de Adelaide Gonçalves acerca do uso da imprensa na pesquisa histórica. Para a autora, ela a coloca como um:
Instrumento de intervenção na vida social em que seu estudo pode se dar como objeto/fonte, uma vez que desaparece a categoria imprensa na forma abstrata para dar lugar ao movimento vivo das ideias, protagonistas e, principalmente, para que emerjam dessa produção de senti- dos, como resultado da operação histórica, sujeitos dotados de consciência determinada na prática social (2001, p. 9).
Como procedimento metodológico, autores como Teles (2018) e Pinheiro (2001), por exemplo, trataram a imprensa nessa perspectiva.
O anarquismo chega à Amazônia: a imprensa anarquista
No Amazonas, o anarquismo, ao que parece, não teve uma presença constante e forte ao longo da Primeira República, como ocorreu, entre outros, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. No referido estado, a perspectiva hegemônica que influenciou as lideranças operárias locais foi o socialismo/reformismo. A emergência do anarquismo, na vertente do sindicalismo revolucionário4, deu-se, como foi visto, com a chegada, nos trópicos, do nosso já conhecido Tércio Miranda, que, seguramente, com seu envolvimento com essa perspectiva e sua experiência de luta anterior (em Portugal), contribuiu sobremaneira para a propagação de tal ideário no Amazonas. Sendo assim, o momento de destaque do anarquismo na região foi entre os anos de 1913 e 1915, que, não coincidentemente, é praticamente o tempo de permanência de Tércio Miranda no Amazonas.
Nosso personagem fez parte do “Grupo Aurora Social”, assim como certamente participou da “União Geral dos Trabalhadores da Região do Norte” de Portugal, organização que emergiu por volta de 1912. Tempos depois, a União se tornou “Federação Sindicalista”. Também partici- pou como liderança na Liga D’Educação Nova, em 1912.5 Os anarquistas em Portugal lutaram - juntamente com republicanos, reformistas e demais setores sociais - para derrubar a Monarquia e implantar uma República, o que ocorreu em 1910. Porém, uma vez instalada, a República assu- miu contornos burgueses, colocando às margens os projetos sócio-políticos dos trabalhadores. Nesse quadro, os anarquistas, que passaram a buscar a superação dos limites impostos por um regime representativo e excludente, viram-se numa situação complicada, sendo alvos de persegui- ções e represálias (TELES, 2018, p. 75-77).
Nesse cenário, Tércio Miranda se deslocou para o Brasil três anos após a implantação da República em Portugal. No Amazonas, em função do seu contato com os portugueses que residiam em Manaus, passou a trabalhar no Jornal do Comércio com “fotogravura e zincografia”. Consoante Pinheiro, Tércio Miranda era alguém “que estava bem informado e na vanguarda da técnica de transposição da fotografia para suporte no jornal, algo até então inédito no Amazonas” (PINHEIRO, 2017, p. 95).

No mundo do trabalho e na arena jornalística amazonense, com a sua experiência anterior de mobilização e luta dentro de parâmetros anarquistas, especificamente na vertente do sindicalismo revolucionário, fundou o jornal A Lucta Social e passou a atuar como liderança local, organizando os trabalhadores em associações, mobilizando-os para a luta social.
Tércio Miranda era uma liderança articulada nacional e internacionalmente. Nacionalmente participou do Congresso Operário Brasileiro de 1913, tornando-se delegado da C.O.B. na região Norte do Brasil. Manteve conexões com lideranças na referida região, em especial com Antônio Carvalho em Belém do Pará (TELES, 2016), e também no Sudeste, com Edgard Leuenroth (TELES, 2018, p. 131-132). Por intermédio dessas ligações, importava e exportava conteúdos impor- tantes para a luta operária, como, por exemplo, informações relacionadas ao movimento operário no Brasil e no mundo (fundações de associações, protestos, greves, conquistas...), “modelos” de interpretação da sociedade e ideias de crítica social.
Sobre a circulação de ideias, através dos militantes e da imprensa operária, Petersen salientou a importância desse movimento. Para a autora, a perspectiva de “cruzar fronteiras” potencializa a percepção das especificidades regionais sem perder de vista as dinâmicas mais globais do processo e da análise histórica. Sobre a imprensa operária, a autora destacou que:
Ainda é possível constatar que alguns aspectos da cultura operária podem ganhar um peso relativo diferente do que decorre de uma análise fragmentada: é o caso da própria importância concedida à imprensa, que provavelmente será redimensionada quando pudermos recompor a rede de sua circulação pelo país (1995, p. 135).
Essa dimensão da imprensa operária, ou seja, a sua rede de circulação, permitiu, a título de ilus-tração, observar o trânsito de ideias, pessoas e experiências na formação e na expansão do movimento operário amazonense (PINHEIRO, 2014; TELES, 2018). Nesse quadro, Tércio Miranda e o jornal A Lucta Social se inserem.

Junto com Tércio Miranda, outros personagens contribuíram para dar vida ao referido perió- dico. Joaquim Azpilicueta era membro da Comissão Administrativa do Sindicato dos Trabalhadores Gráficos. Era espanhol e, assim como Tércio Miranda, deslocou-se para o Amazonas e tornou-se uma importante liderança operária local. Ele era socialista, porém se articulou com diversos setores sociais, dentre eles os anarquistas, com a finalidade de fomentar debates e promover ações coletivas para conquistar direitos sociais.6 Nesse sentido, escreveu artigos para os jornais operários, como o próprio A Lucta Social (1914), O Primeiro de Maio (1928) e Vida Operária (1920). Da mesma forma, colaborou no periódico Union, ligado à colônia espanhola no Amazonas, além de estabelecer contatos com outros países, como a República do Peru (TELES, 2018, p. 81-82).
Antônio Dias Martins, também membro da referida Comissão, participou da diretoria do S.T.G. no Amazonas. Trabalhou como 2º escriturário da Alfândega (no Amazonas e no Ceará). Atuou em conjunto com Tércio Miranda no Sindicato fundado por eles, assim como Ananias Linhares da Silva, que era artista gráfico, e Domingo Batista Guedes.7 Colaboravam ainda no impresso José da Mota Veiga, Carlos Malato, F. Cavalcante e Virgílio de Sá.
Nessa primeira fase, sob a responsabilidade de Tércio Miranda e seus camaradas, foram publicados seis exemplares do jornal, sendo o primeiro lançado no dia 29 de março de 1914 e o último em 1º de novembro do mesmo ano. A proposta de publicação era mensal com distribuição gratuita, porém, seguramente em função das dificuldades financeiras em manter o impresso em circulação, ele passou a ser vendido a um valor de 200 réis a partir do quarto número. Tais dificul- dades expressaram-se nas variações tanto na periodicidade (algumas vezes saiu bimensal) quanto no número de páginas (por exemplo: o primeiro número saiu com nove páginas, o segundo com oito e o quarto com quatro páginas apenas).
Os temas que ganharam as páginas do jornal, em geral, obedecem a uma estrutura discursiva lógica que vai “da estrutura e dinâmica das sociedades, passando pela identificação dos conflitos de classe e formas de organização do trabalho, até a explicação da consciência de classe do operariado, a ampliação de suas lutas e a necessária transformação revolucionária da sociedade”. Tais temas foram distribuídos no jornal, que possuía um formato de 22x30 cm (PINHEIRO, 2001, p. 156-158), e também se materializaram em versos e estrofes. Disso trataremos agora.
Versos e estrofes na imprensa anarquista no Amazonas
O jornal A Lucta Social era um instrumento de defesa e difusão dos ideais anarquistas, especi- ficamente do sindicalismo revolucionário. De caráter pedagógico, tinha como objetivo a propaganda anarquista. Logo que foi lançado na arena jornalística de Manaus, os seus responsáveis assim se dirigiram aos trabalhadores: “Aparece brevemente este jornal, que se destina ao operariado. A sua publicação será eventual e a sua ação será educativa, indicando aos que trabalham o Futuro que a emancipação nos trará, feliz e harmonioso” (A Lucta Social. Manaus, ano I, suplemento ao n. 1, 27/2/1914).
Com esse intuito, o periódico anarquista tratou de temas relacionados ao mundo do trabalho - organização, sindicato, ação direta, salário, greve etc. - em artigos, informativos, cartas, contos8 e também em poemas. Este último tem sido alvo de investigações históricas, como demonstra o trabalho de Claúdia Leal (1999), que tratou justamente da literatura e da propaganda libertária em São Paulo, entre os anos de 1900 a 1916. Recentemente, Bruno Benevides (2019) analisou os textos poéticos de Angelo Bandoni, um anarquista de origem franco-italiana que viveu em São Paulo durante alguns anos de sua vida e que utilizou a poesia, produzida por ele e veiculada na imprensa operária paulistana, como um instrumento estratégico de propaganda libertária. Embora tenha abordado as caricaturas e os contos nos jornais anarquistas de Buenos Aires e Porto Alegre entre 1897 a 1916, cabe destacar o estudo de Caroline Poletto (2011), que procurou tratar dos variados expedientes utilizados pelos periódicos anarquistas para efetivar ações de contestação da sociedade capitalista e de construção de uma nova sociedade. Desse modo, examinou as caricaturas enquanto representações (re-criação de um possível real) e os contos como uma ferramenta oportuna no sen- tido de conscientizar os trabalhadores. Já na sua tese de doutorado (2017), a autora estudou parte do imaginário subversivo propagandeado pela imprensa anarquista e anticlerical da Espanha, da Argentina e do Brasil, entre os anos de 1897 a 1936, focando mais firmemente nas imagens, nos contos e nas poesias.
O que se pretende aqui não é bem realizar um exame minucioso das estruturas internas e literárias dos poemas, mas, sim, compreendê-los em seu contexto histórico e social, em especial salientando a importância concedida a esse gênero literário enquanto dispositivo estratégico para a propaganda libertária. É importante dizer que nos seis exemplares trabalhados, identificamos quatro poemas, os quais vamos tratar aqui. Os poemas apareciam entre a segunda e a quarta página do jornal, sempre no início ou no meio da página. Era de fácil localização.
Ao contrário dos editores dos jornais libertários de São Paulo como o Terra Livre, o La Battaglia e o Avanti, que evitaram publicar poemas em suas páginas em virtude do pouco espaço nos impressos e da ausência de conteúdo combativo nos poemas, como salienta Caroline Poletto (2017, p. 177), em Manaus foram publicados quatro poemas em apenas seis números do A Lucta Social, o que indica que o editor e os colaboradores deste periódico libertário tinham certo interesse em publicá-los, uma vez que a linguagem poética - sonoridade, condensação de ideias, conteúdo social crítico, etc. - contida neles era tida como estratégica para difundir mensagens e sentimentos aos trabalhadores locais.
Os poemas publicados no jornal A Lucta Social obedeciam à norma culta e aos padrões literários da época. No entanto, o seu conteúdo era extremamente combativo, um conteúdo de forte crítica social, sempre apontando para a construção de uma nova sociedade, sem exploração e opressão sociais. Nesses “poemas de protesto” vamos encontrar “comparações, analogias, ironia, sarcasmo, dramaticidade exagerada, dicotomias e maniqueísmos, contraposições de ideias [...] e, por fim, uma sonoridade cuidadosa e agradável...” (POLETTO, 2017, p. 178).
Assim, para Tércio Miranda e seus camaradas, àqueles presentes no S.T.G. e na redação do jornal A Lucta Social, a responsabilidade assumida como lideranças no processo de luta emancipa- tória do operariado amazonense superaria qualquer tentativa de controle e perseguição a que eram submetidos9, pois essa luta possuiria um significado muito maior, de liberdade social e humana. Nessa esteira, caberia aos anarquistas identificar e se contrapor aos ditos inimigos: igreja, estado, militares e burgueses. Embora não se tenha observado na documentação nenhuma menção aos socialistas como inimigos, estes eram criticados à medida que defendiam ações que caminhavam por dentro da ordem vigente, sobretudo no campo da democracia representativa burguesa, mas também quando buscavam organizar o operariado em associações beneficentes e, por fim, na ocasião em que comemoravam o Primeiro de Maio como festa do trabalho.
Sobre os ditos inimigos, foram frequentemente apontados ao longo das edições do jornal A Lucta Social, em especial através de poemas, como esse abaixo:
Vós que tendes a vida torturada
Pelo jugo mordaz da burguezia;
Vós que horrores sofreis dia por dia
Dessa turba cruel, envenenada;
Vós que a razão sentis amordaçada
Pelo grito brutal da tirania,
Tempo é já de abater a covardia
E da turba abafar a gargalhada!...
Levantai-vos do charco apodrecido!
Sejae firmes na grande trajetória,
Reivindicae o tempo já perdido!...
Avante, ó paladinos do crisol,
Que além desvendará nossa vitória,
Através da brancura d’outro Sol!... (ROCHA, Antônio. Avante! A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 4, 1/9/1914).
Interessante notar no poema acima como a burguesia é vista: como uma classe social cruel em relação aos trabalhadores, que os amordaça e os tortura no dia a dia da labuta, o que era percebido como um horror. Porém, continua o poema, era preciso reagir, sair dessa situação e acabar com o regozijo dos exploradores, quebrando a opressão, lutando e construindo outro mundo, melhor e mais humano.
Se olharmos para o conjunto do jornal, verificamos que esse tipo de posição está também presente, como no trecho abaixo:
Enfrentemos o inimigo que nos suga o nosso sangue, colocando-nos no marasmo e desenvol- vendo o nosso cérebro, dando-lhe vida, força e consciência. Apelo justo é este, que diz que é preciso unir as diversas classes, para melhorar as condições de vida de um povo, que sofre não só o pão do espírito, como ainda o pão da vida, necessário ao sustento dos filhos ou para o amparo de uma esposa idolatrada!
Formai esses baluartes, [...] organizai com acerto a nossa união, que o capital tremerá ao receio de ser vencido na luta gigantesca das reivindicações do povo [...]. E tereis ainda contribuído para a luta em favor de uma grandiosa sociedade que tem por lema: Igualdade e Justiça (A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 1, 29/3/1914).
Tal postura não era exclusiva do jornal A Lucta Social. Em outros jornais direcionados aos trabalhadores também atestamos esse tipo de posicionamento, como no jornal Vida Operária (de perspectiva reformista):
O capitalismo, na immensa brutalidade de tudo conquistar tem opprimido victimas indefe- zas e arrastado em turbilhões, pela ambição, - papa e baronetas, e pelo direito da força, reis e exércitos.
O operariado esmagado, martyrisado e asfixiado, pela prepotência sanguinária do capital, ha de saccudir o jugo em que se acha manietado, e proclamar debaixo da ordem aos quatro ventos os seus direitos conspurcados pelo próprio capital.
O capital ha de vêr o pedestal de suas conquistas derruído, e uma nova aurora raiar no campo operario e nelle se erguer o monummento inabalável da Liberdade, em que o mundo será uma única família, embalada nesse dôce lemma Igualdade, Liberdade e Fraternidade, até hontem sonhada e proclamada, porém, calcados pelos pés dos magnatas do capitalismo (O Operariado. Vida Operária. Manaus, ano I, n. 4, 29/2/1920).
E, como foi sublinhado anteriormente, não era somente a burguesia que estava no campo oposto da batalha social. Olhando para o poema em homenagem a Ferrer, elaborado por Salvaterra Júnior (um camarada de luta de Tércio Miranda, quando este estava em Portugal), podemos verificar os outros personagens:
Satánica aliança, ó bando tenebroso! - Reis e militares, padres e burguezia, ‘Scutai a minha voz, cheia de rebeldia, Num rugido de raiva, audaz, desrespeitoso: - Eu sou como Ferrer um grande criminoso, Pois ando a estudar um dia e outro dia, A fórma de acabar com a supremacia Desse vosso poder, antigo, monstruoso!... Eu escarneço as leis e odeio as catedrais; E um dis hei-de fazer co’o fogo do meu peito Ateado pelo amor dos modernos ideais, Um facho a crepitar... num incêndio desfeito, Os cétros, as prisões, fardas e tribunais, Hei-de tomar em pó, em nome do Direito!... (Ferrer. Istoria Simples. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 3, 1/06/1914).
É explícita a condenação feita a qualquer tipo de aliança firmada com os personagens citados no poema, o que só reforça as críticas que se fazem presentes no jornal sobre o regime representativo democrático burguês que se assenta, sobretudo, em alianças realizadas com diversos personagens, entre eles, por exemplo, a própria burguesia. As leis, que ordenam, disciplinam e organizam o funcionamento da sociedade capitalista, devem ser escarnecidas de modo a desmantelar tal sociedade, eliminando prisões, fardas, tribunais e cetros, tornando-os pó e fazendo ressurgir das cinzas, como uma Fênix, uma nova sociedade. Em artigos no jornal A Lucta Social, especialmente naqueles que buscavam realizar análises sobre a situação social dos trabalhadores e as possibilidades de modifi- cá-las, é possível visualizar frases que articulavam tais personagens à exploração dos trabalhadores, como essa a seguir: “A religião é aliada natural do rico... Quem dis Egreja dirá sempre capitalismo [...], adoração, sustento de qualquer classe [...] sanguessugas dos trabalhadores” (A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 6, 1/9/1914).
Havia o esforço, por meio do referido periódico, de construção de uma identidade política operária - identidade se constrói em “relação à”, em oposição ou em referência a alguma coisa ou a alguém (QUEIRÓS, 2012) - em contraposição àqueles que eram vistos como inimigos. Ao lado dessa diferenciação, a instrução emerge como um mecanismo que, para além do conhecimento técnico voltado ao progresso e/ou de ascensão social do operariado, permitiria uma emancipação humana plena. Na visão anarquista, a educação não era somente a libertação dos trabalhadores do jugo do capital, mas também uma libertação humana, simbolizada na metáfora da luz dissipando as trevas, como é possível verificar no poema de Virgílio de Sá publicado no impresso anarquista em 1914:
O insólito bater, da tétrica nortada Nos vitraes da varanda, encanecida de annos, Lembrou a cortezã a canalha esfaimada, Quando se insubordina, a insuflar seus damnos. Temendo, receiosa e em rasgo de excitada, Aos celureos clarões e aos s’tampidos profanos, Uma janella abrio, por onde a trovoada, Lança um feixe de luz, a desmanchar-lhe enganos. - O coração tranquilo, a alma são e pura, - Cheio de amor, justiça e duma grande fé... - Ouve da tempestade, os echos da Razão! - E um peito aquilatado, ao ódio e d’alma impura - Se é escravo da injustiça, eu mesmo, creio até... - Veja - na dôce briza, um grande furacão (O Mêdo da Sombra. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 3, 1/6/1914).
A luz (razão) eliminando as trevas (ignorância) seria condição sine qua non para se estabele- cer uma mudança social profunda. A educação era tida como um instrumento de transformação social e, nesse ínterim, ela era vista pela burguesia como um perigo ao status quo. O poema abaixo faz uma alusão a isso:
Ele é como Jesus bom para as criancinhas A quem dedica amor e mimo fraternal: Confiando o Porvir, o seu sonho ideal, Ao magote infantil daquelas andorinhas!... Não que as creanças são como essas avesinhas Que com muito saber e geito maternal, É preciso ensinar a esvoaçar sosinhas, Do brando e quente ninho, á Vida Racional!... Ele mostra sorrindo o Dever e a Nobreza, E a par da intensa luz clara da ciência Esfolha aos seus olhares, um livro - a Natureza. E como é um eróe nas lutas da consciência, Os biltres do poder, padres e realezas, Na fúria do chacal, matam-no sem clemência!... (Ferrer. Istoria Simples. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 3, 1/06/1914).
O poema foi elaborado em homenagem a Francisco Ferrer, um educador catalão que foi preso e condenado à morte pelo governo espanhol em 1909, por força da sua militância política anarquista e da sua proposta pedagógica de uma escola assentada numa perspectiva de educação integral, na qual buscava agregar ao processo de formação humana os aspectos intelectuais, morais e físicos das crianças. Nesse caminho fundou a Escola Moderna de Barcelona. Sobre a escola, Sílvio Galo salientou que:
Era um local amplo e arejado, com salas bonitas e bem decoradas, espaços múltiplos e pátios externos, para atividades ao ar livre [...] eram frequentes as atividades fora da escola: visitas a fábricas, passeios pela praia para estudar a geografia local e assim por diante (2013, p. 242).
Além disso, na Escola Moderna não havia separação entre meninos e meninas e a ciência seria a base para se compreender o mundo e a sociedade. Através da racionalidade, intentava-se construir um futuro não de exploração social, mas de liberdade humana. Era uma educação emancipató- ria, o que incomodou os setores conservadores da Espanha, sobretudo a Monarquia e o Clero, que agiram para eliminar a Escola Moderna e a sua inovadora proposta pedagógica.
Nessa empreitada, aproveitaram a revolta popular que eclodiu na Espanha entre os dias 26 de julho e 2 de agosto de 1909, que também ficou conhecida como a Semana Trágica (por conta dos saques e dos incêndios de igrejas e conventos), para acusar, prender e condenar à morte, como mentor e líder da revolta, Francisco Ferrer. Ele foi fuzilado na fortaleza de Montjuic, em Barcelona, no dia 13 de outubro de 1909 (GALLO, 2013).
Não obstante, antes de ser assassinado, Ferrer publicou a revista A Escola Renovada (L’École Renovée) e o Boletim da Escola Moderna (ambos publicados em Paris a partir de 1908), os quais foram responsáveis pela proliferação das suas ideias pedagógicas. O próprio fuzilamento de Ferrer foi alvo de protestos em diversas regiões do mundo. Na capital do Amazonas, por exemplo, o jornal Confederação do Trabalho registrou em suas páginas a realização de um meeting em homenagem a Ferrer exatamente no mês seguinte ao da sua morte. Dizia o referido periódico:
Às 4 horas da tarde do mesmo dia já a grande massa popular se agrupava no local designado pela mesma Associação para a realização do meeting. Às 5 horas da tarde avolumando-se a massa popular das sacadas dos palacete do digno cirurgião dentista Guilherme Sombra assomou o sr. Paulino Montenegro Toscano de Britto, presidente da mesma Associação que dissertou com muita felicidade sobre a individualidade de Ferrer. [...] Em seguida foi aclamado o sr. Aspilicueta que assomando a tribuna discorreu brilhantemente sobre o programma de Ferrer profligrando o grande crime que assombrou a todas as nações cultas, sendo delirantemente applaudido (Homenagem a Ferrer. Confederação do Trabalho. Manaus, ano I, n. 2, 28/11/1909).
Com efeito, Francisco Ferrer e seus ideais pedagógicos continuaram vivos nos anos subse- quentes, não deixando o jornal A Lucta Social de defender e propagar em suas matérias e poemas a pedagogia racional e libertária.
Não é à toa que a imprensa anarquista no Amazonas, como também em outras regiões do Brasil, alardeava insistentemente a importância da educação. A educação era tema comum presente nos impressos orientados aos trabalhadores. Como se sabe, o índice de analfabetismo era alto entre eles, forçando a militância a criar mecanismos que pudessem ampliar a sua interlocução (leituras coletivas, conferências e palestras nas associações, discursos em datas festivas etc.). Consoante Bilhão, as dificuldades impostas por essa situação mobilizaram “os redatores na defesa da instrução operária, tema que como seu correlato incentivo à leitura, comparecia reiteradamente na imprensa militante da época” (BILHÃO, 2015, p. 152). No caso dos socialistas, a própria ação para se dilatar a participação dos homens do trabalho no processo eleitoral fez da instrução um instrumento de inserção política, uma vez que a alfabetização se colocava como um dos critérios para o voto nos pleitos da época (TELES, 2014).
Em que pese às diferenças relativas às características e aos objetivos atribuídos à instrução pela militância, em função das correntes ideológicas que a moviam, constantemente ela estava em pauta nos jornais, por força da crença iluminista que apostava na “defesa da educação como arma de emancipação operária” (BILHÃO, 2015, p. 153). Neles apareciam artigos que inclusive reconheciam os esforços realizados por algumas associações, as quais até podiam estar em campos doutrinários opostos, para consolidar junto às suas respectivas categorias um espaço destinado à instrução. O trecho abaixo explicita isso:
Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas A esta associação manifestamos aqui o nosso reconhecimento, pela oferta do relatório sobre o movimento do seu ano social de 1913, que nos foi enviado. Demonstra-nos este documento, uma prova enorme de esforsos empregados, que atravez da sua existência tem tido. A sua biblioteca conta cerca de 5.500 volumes, tendo uma regular frequência, pois, perto de 1.200 volumes fôram consultados naquele ano. Tem tambem uma Escola Proficional, onde já, alguns dos seus associados, com grandes vantagens e aproveitamentos tem concluidos os seus cursos comerciais. Um caso, porém, á ali, contrario ao nosso modo de vêr; é a necessidade da creação de um advogado, para pleitear em juízo, em caso de necessidade, os seus direitos. Na nossa opinião e esta é a opinião da maioria do operariado organisado em todo mundo, não devemos confiar a outros o que só a nós compete fazer. Isto é abdicar de nós mesmos. Num opúsculo de Griffueilhes, ‘Le Action Sindicaliste’, aparece-nos um caso ocorrido na classe caixeiral da França, que serve de exemplo a apresentar, aos seus camaradas daqui. Faziam eles certas, reclamações, pelas vias legaes e pacíficas, servindo-se dos ‘Conseillers Prud’homs’, pois, só conseguiram a satisfação dos seus desejos, quando pela ação direta, fizeram suas imposições (ASSOCIAÇÃO DOS EMPREGADOS NO COMÉRCIO DO AMAZONAS. A Lucta Social. Manaus, ano I, n. 4, 1/9/1914).
Como se pode verificar, o trabalho desenvolvido pela referida associação, cuja presidência em 1913 estava nas mãos de Raymundo Alves Tribuzy, no sentido de implantar um espaço destinado à instrução educacional dos empregados no comércio do Amazonas, foi reconhecido por Tércio Miranda e seus companheiros. Mas não sem críticas, pois esses negavam a colaboração de classes e os canais legais de diálogo existentes nas décadas iniciais do regime republicano (justamente aquilo que a Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas pregava como ação política), propondo e defendendo a ação direta. Não obstante as divergências existentes, a questão da instrução educa- cional ultrapassou fronteiras e foi tratada de forma recorrente no conjunto da imprensa operária.
Considerações finais
É inegável a função pedagógica dos poemas presentes no periódico A Lucta Social, que circulou no Amazonas, em especial no ano de 1914. Tal gênero textual se colocou como uma estratégia para a formação de leitores, especificamente os trabalhadores organizados nas suas associações. Mas não somente nas associações, pois se considerarmos a leitura coletiva, as ideias do sindicalismo revolu- cionário circulavam para além das associações, atingindo um público mais amplo de trabalhadores.
Nos poemas publicados no jornal editado por Tércio Miranda, verificamos os personagens que eram vistos como seus inimigos (militares, igrejas, burgueses...), caracterizados como explora- dores e opressores, responsáveis pela situação de vida e trabalho (baixos salários, extensa jornada de trabalho, péssimas condições de trabalho, entre outros) miseráveis a que eram submetidos os trabalhadores, mas que estes, uma vez se organizando e se unindo, e pautando-se pela ação direta, poderiam vislumbrar dias melhores, construindo uma nova realidade no âmbito de um novo mundo, mais justo e humano.
Há um conjunto de poemas a ser explorado na imprensa operária no Amazonas. O que consta neste pequeno artigo é só um modesto exemplo de como é possível explorá-los e, por meio deles, acessar o mundo do trabalho no Amazonas, perscrutando caminhos, conflitos e alianças entre os setores e as lideranças que disputavam a hegemonia do movimento na região.
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Fontes
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Notas
Author notes
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