Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


Da crítica social à biotipologia: contribuições para uma história da criminologia no Rio de Janeiro da década de 1930
From social critics to biotipology: contributions on history of criminology in Rio de Janeiro during the 1930s
Anos 90, vol. 28, e2021011, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

ARTIGO


Received: 04 September 2019

Accepted: 03 January 2020

DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.93484

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a história e o estatuto científico da criminologia no Rio de Janeiro dos anos 1930. A partir da investigação dos discursos e dos debates protagonizados por membros da Sociedade Brasileira de Criminologia, busca-se compreender os significados atribuídos por aquela comunidade argumentativa à “ciência do crime”, sobretudo no que se referia às causas do fenômeno criminoso, bem como seu papel no reordenamento social. Conclui-se que, naquele contexto, a criminologia era tida como um saber em construção, um campo para o qual convergiam disciplinas variadas, considerado fundamental na tarefa civilizacional de explicar e combater o crime.

PALAVRAS-CHAVE: História da criminologia, Rio de Janeiro, Década de 1930, Intelectualidade.

ABSTRACT: This paper aims at analyzing the history and scientific status of criminology in Rio de Janeiro in the 1930s. From the investigation of the discourses and debates carried out by members of the Brazilian Society of Criminology, we try to understand the meanings attributed by that argumentative community to the “science of crime”, especially with regard to the root causes of the criminal phenomenon, as well as its role in social reordering. It was concluded that, in that context, criminology was seen as some knowledge in construction, a field to which various disciplines converged and one that is considered fundamental in the civilizational task of explaining and fighting against crime.

KEYWORDS: History of Criminology, Rio de Janeiro, 1930s, Intellectuality.

Introdução

Há 14 anos, o sociólogo Marcos César Alvarez argumentou, de forma provocativa e acer- tada, que a história da criminologia1 no Brasil, uma ciência humana de grande atratividade para o público em geral na contemporaneidade, com muita participação em vários ramos da indústria do entretenimento, ainda estava por ser feita (ALVAREZ, 2005, p. 72). Passado esse tempo, algumas incursões analíticas avançaram a partir do campo da história, em especial da história intelectual e das ciências, tanto nacional como internacionalmente. No entanto, ainda há muito a ser inves- tigado e compreendido. Com este artigo, procuro iluminar aspectos que considero relevantes em um momento chave da conformação, institucionalização e validação cultural e intelectual, da criminologia como uma ciência, na fronteira do direito penal, do pensamento social e das ciências biopsicológicas. Trata-se da década de 1930, momento denso e complexo de debates sobre o reor- denamento do arcabouço penal do país.

Inicialmente, contudo, é necessário entender como a historiografia brasileira tratou do assunto, bem como esclarecer os aportes que podem contribuir para outra interpretação da história e do lugar desta ciência no Brasil nos anos 1930. Em muitos trabalhos, assume-se o pressuposto interpre- tativo de que a intelectualidade criminológica do período, composta principalmente por médicos e juristas, estaria unicamente a serviço da dominação de classe e da ordem burguesa. A inspiração de certa leitura de Foucault nos estudos brasileiros sobre a história da criminologia é evidente e, em linhas gerais, somou-se a perspectivas marxistas de cunhos economicistas. Para alguns estudiosos, a criminologia enquanto ciência, nos anos 1930, instituiu-se, unicamente, como um elemento sustentador da ordem social, justificadora das desigualdades, da exclusão social, assim como aporte para o controle da pobreza e do mundo do trabalho. Assim, nascida como pseudociência burguesa na Europa, sua história no Brasil seria de tropeços, com fraca racionalidade e um discurso unívoco, autoritário e biodeterminista. Nesse último aspecto, tal caráter cumpriria a função ideológica de ocultar as razões políticas, sociais e econômicas que estavam na base da criminalidade (RAUTER, 2003, p. 38; TÓRTIMA, 2002, p. 182; NEDER, 1995)2.

São significativamente problemáticos o pouco aprofundamento empírico e a tímida imersão contextual que fundamentam essas interpretações. A imersão contextual a partir dos discursos, posicionamentos e debates vigentes na comunidade argumentativa criminológica do Rio de Janeiro dos anos 1930, por sua vez, permite perceber os autores/atores no empenho de construção intelectual e institucional de uma ciência do crime, veiculando, em algumas ocasiões, ideias de caráter repressivo, autoritário, pautadas em reducionismo biológico, mas também ideias de cunho progressista para seu tempo, muitas vezes críticas aos rumos da política varguista às vésperas do golpe do Estado Novo, ou mesmo pluralistas na explicação das causas do crime e críticas ao sistema penal. É importante, nesse sentido, atentar para esses intelectuais nas suas proposições e projetos enunciados, seus interesses, subjetividades e sensibilidades, bem como seus posicionamentos diante do processo político do período. Em poucas palavras, privilegia-se, aqui, a polifonia de uma dada comunidade argumentativa participante do debate público3.

Para entender esses posicionamentos, que estão na base intelectual e institucional de construção dessa ciência no Brasil, optou-se pela investigação do debate no interior de um microcosmo intelectual específico, a Sociedade Brasileira de Criminologia, fundada em 1933. Para tal, acompa- nhamos as intervenções publicadas no seu periódico oficial, a Revista de Direito Penal4, assim como obras de alguns de seus membros, fundamentais para o exame intertextual e acompanhamentos dos tópicos principais em debate no que se refere aos significados atribuídos à moderna ciência do crime. Como é bem sabido, periódicos representam a materialização de sociabilidades intelectuais, microclimas com movimentos de ideias, espaços de práticas sociais e “de produção de sentido” (ALTAMIRANO, 2008, p. 9-27). No caso em tela, chamamos de comunidade argumentativa criminológica aquela dedicada a debater a questão criminal e as propostas de uma ciência com este escopo, formada, essencialmente, por juristas e médicos de relevo e sistemática atuação no aparelho estatal no Distrito Federal, produtores, validadores e divulgadores dos saberes e conceitos que, nos seus entendimentos, contribuiriam para compor a moderna ciência criminológica.

Criminologia como crítica política e social

A compreensão dos anos 1930 no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular, tem sido cada vez mais enriquecida pela injunção de enfoques historiográficos plurais, assentados na nova história política, na história social da cultura, do trabalho, nova história cultural, estudos da imaginação social e das ciências do período, história econômica, entre outros, que vêm trazendo luz para várias dimensões do período. Em linhas gerais, esses novos estudos, sobretudo os que seguem chaves teórico-metodológicas da nova história política, vêm ressaltando a diversidade de projetos de modernização em disputa no início da década, por novas arquiteturas político-institucionais implementadas pelo governo varguista, assim como as marcas mais profundas de continuidades, tendo por referência a experiência republicana anterior. De um ponto de vista macro, assistiu-se à construção paulatina de uma estruturação política e social com moldes corporativos e antiliberais, incorporadora do trabalhador urbano, concomitante e relacionada à hegemonização de uma perspectiva nacional-desenvolvimentista (GOMES, 2012; FERREIRA; DELGADO, 2011), com maior ímpeto a partir de 1937, com o Estado Novo.

No âmbito dos debates intelectuais, predominou o léxico da luta contra o atraso representado pela experiência da “República Velha” e ganhou corpo uma cultura política autoritária, a qual, ainda que não inteiramente marcada pelo consenso, propugnava a ordenação da vida social pelas mãos de um Estado forte, organizador, disciplinador e regulador (sobretudo a partir de 1937), personalizado preferencialmente na figura do líder articulador das massas (JASMIN, 2007). Esse Estado forte, centralizado e antiliberal, mas, em tese, democrático, era uma “democracia social” pautada por certas noções de proteção e justiça, com a pujança da gramática do consenso e da unidade (GOMES, 2002).

Esse processo de construção de uma nova engenharia estatal demandava o intercurso do saber técnico e da ciência como ferramentas fundamentais para a construção do estado nacional. Não à toa, os anos 1930 são comumente interpretados como um período de fortalecimento e autonomização da burocracia estatal e como um discurso estimulador de um tecnicismo desmo- bilizador e anti-ideológico (SILVA, 2008).

Nesse contexto, em especial, no início da década de 1930, a criminologia entra no rol das ciências que podem contribuir com diagnósticos e soluções adequadas a um problema específico da realidade nacional, o crime, dando contornos de objetividade para a reforma da ordem jurídica do país. Essa nova ciência figurava entre as ciências humanas que poderiam subsidiar a decisão política no setor agudo de incertezas, que era a criminalidade, atuando sobre a sociedade civil com cada vez maior inclusão nas instituições estatais (KALUSZYNSKI, 2002, p. 42-42). Não por acaso, é um momento significativo de constituição de espaços para debates penais e criminológi- cos com respaldo estatal. Essa geração de intelectuais criminólogos, como alguns se intitulavam, compartilhavam alguns valores e “quadros interpretativos e pragmáticos” (DUTRA, 2005, p. 35), a saber: a centralidade do Estado e seus técnicos, os quais se incluíam na tarefa de organização da vida social com a crença de que a mesma vida social, assim como a vida política, podia ser lida e encaminhada cientificamente; e, fundamentalmente, a comunhão com a chamada “ideologia da defesa social”, marcada, entre outros aspectos, pela preeminência do coletivo sobre o individual em se tratando de lei penal (RENNEVILLE, 2003, p. 232).

Nessa chave, uma verdadeira criminologia deveria chegar às reais causas do crime e aos expe- dientes possíveis para recuperação e tratamento daqueles que infringiam a lei penal. Tal fato está na base da justificativa da existência da Sociedade Brasileira de Criminologia (SBC), sociabilidade intelectual que teve origem no Conselho Brasileiro de Higiene Social, entidade criada por juristas, sob liderança de Roberto Lyra, promotor que teve grande projeção nas décadas subsequentes, com objetivo de lutar contra as recorrentes absolvições de homens que matavam mulheres por suposto motivo “passional” (BLAY, 2003, p. 110). A SBC teve como membros fundadores Antônio Eugênio Magarinos Torres (juiz), Mario Bulhões Pedreiras (advogado), Narcélio Queiroz (juiz) e Heitor Pereira Carrilho (psiquiatra)5.

Segundo seu primeiro presidente, Magarinos Torres, jurista de posições progressistas e crítico atento aos rumos que o governo Vargas ia tomando em meados dos anos 1930, em meio à efervescência e à polarização em um momento pós-constituinte (TORRES, 1935, p. 34-35), a criminologia deveria compor uma grande área de saberes, formada por três disciplinas: direito penal (principal), psiquiatria e medicina pública (TORRES, 1933, p. 4). Nesse sentido, ela só poderia ser produzida no “consórcio” de médicos e juristas. Por outro lado, sua finalidade primacial seria a difusão de conhecimentos sobre o fenômeno criminal com vistas à iluminação do “povo brasi- leiro” (NOTÍCIAS, 1939, p. 2). Outrossim, a criminologia e sua entidade, a SBC, teriam o papel de contribuir para a “cruzada de educação e cultura” do povo e de proposições legislativas para o parlamento. Ela deveria se constituir em uma ciência aplicada, cujo escopo seria a “existência social do indivíduo” e a construção de ferramentas para o Estado defender os “interesses supremos da sociedade de ordem e harmonia”. No entanto, para Torres, defender a ordem e a harmonia social não representava somente manter o status quo, como veremos.

Mais do que isso, para juristas progressistas como Magarinos Torres, a criminologia estaria na base da construção de uma cultura não violenta, que rechaçasse do seu horizonte práticas como a pena de morte, a guerra, os excessos policiais e “exibições públicas de brutalidade”, e o grande exemplo nesse sentido, para o juiz, eram as lutas de boxe (SESSÃO DA SBC, 1935, p. 55). Por outro lado, sua produção, consolidação, institucionalização e disseminação só seriam possíveis num regime democrático. Aqui, Torres e outros intelectuais criminólogos desse contexto, como Bertho Condé - advogado que atuou intensamente como jornalista em São Paulo, ao longo dos anos 1920, virou advogado da Associação Brasileira de Imprensa e, na redemocratização após o Estado Novo, elegeu-se deputado pelo Partido Trabalhista Brasileiro de São Paulo, atuando na constituinte -, definem que os maiores exemplos de regimes avessos a reflexões criminológicas produtivas, estimuladoras das liberdades e de uma cultura não violenta, eram Alemanha e Itália, regimes rotulados por esses intelectuais como “autoritários” ou “totalitários” (TORRES, 1936, p. 291; CONDÉ, 1933, p. 10).

Evaristo de Morais, uma das figuras mais conhecidas da SBC, também desenvolveu, nas suas intervenções, concepções mais amplas do que seria a ciência criminológica. Morais, debatendo sobre os Estados Unidos (EUA) e sua criminalidade, propôs uma criminologia que compreendesse os aspectos morais, culturais e econômicos de dada realidade social. Nos EUA, por exemplo, a base da criminalidade residia na xenofobia, no moralismo hipócrita e cristão (“a onipotência que atribuem à bíblia”), na violência contra os trabalhadores, no racismo e na corrupção policial. Disso, para ele, os estudos criminológicos naquele país deveriam se ocupar não somente de medir corpos e cabeças de presos, em um lombrosianismo anacrônico (MORAIS; LYRA; PENNA e COSTA, 1935, p. 15). Magarinos Torres, também ao analisar a realidade norte-americana, convencia-se de que as desigualdades sociais deveriam constar no rol das investigações criminológicas. Para ele, os Estados Unidos, com seus “gângsteres”, “trustes industriais”, “cadeiras elétricas” e imensa força policial, eram o lugar no mundo onde a criminalidade mais crescia. Isso porque as reflexões criminológicas produzidas ali não atentavam para a desigualdade, mas, sim, para o “cultivo moral e educativo do povo” (SESSÃO DA SBC, 1935, p. 58). Morais e Torres comungavam noções muito presentes em formulações criminológicas de médicos da década de 1910, como Emil Kraepelin (1912) e José Ingenieros (1913). Para estes, o crime era uma “enfermidade social” decorrente de inadaptações do indivíduo ao seu meio social.

Já Roberto Lyra, embora fosse entusiasta da repressão criminal norte-americana, em mea- dos nos anos 1930, dizia-se defensor de uma criminologia “socialista” (LYRA, 1935, p. 42). Uma criminologia focada nas desigualdades sociais, na acumulação de propriedade e na derrocada da ideia de que a riqueza das nações seria um agente moralizador e, portanto, diminuidor dos índices criminais. Lyra, adepto das estatísticas criminais como ferramenta importante para a ciência criminológica, consagrou, nas proposições propaladas em meados dos anos 1930, uma criminologia que alocava nos “estratos sociais mais baixos” a maior parte dos criminosos por razões de “miséria moral e material”, aspectos sociais que favoreciam a produção de indivíduos anormais física e mentalmente, portanto, propensos ao crime (Cancelli, 2001, p. 54). Para ele, uma criminologia de base socialista e sociológica (quase sinônimos no seu pensamento) traria reflexões necessárias sobre a realidade nacional, com o objetivo de transformar o meio social, atacando as injustiças, fator predominante de produção da violência. Sua tese de 1933, Economia e crime, publicado na RDP em 1935, colocava todas essas questões, ressaltando as “condições nefastas da distribuição da riqueza, do vício econômico da sociedade capitalista” (LYRA, 1935, p. 185-189). Portanto, pre- conizava uma criminologia que, não descuidando de questões biológicas e psicológicas, encarasse cientificamente os fatores sociais e econômicos na etiologia da criminalidade.

Para Lyra, o maior expoente da defesa de uma criminologia sociológica/socialista era Afrânio Peixoto. Sem dúvidas, no interior desta comunidade intelectual, Peixoto, médico, literato, histo- riador, enfim, um “polígrafo” (SILVA, 2014, p. 22), apresentava concepções particulares sobre o que definiria a criminologia. Peixoto esteve à frente de um dos mais importantes empreendimen- tos da cultura criminológica do Rio de Janeiro dos anos 1930. Como professor de medicina legal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, foi designado para iniciar um curso de criminologia como “extensão universitária” em 1931, curso que ocorreu nos dois anos seguintes. O objetivo do curso era “apresentar aos alunos noções essenciais da moderna criminologia” (PEIXOTO, 1931, p. 23). E o que compunha essa “moderna criminologia” seriam saberes vindos da medicina legal, e, assim, Peixoto se filiava diretamente à tradição de pensamento criminológico construído por Nina Rodrigues. Nesse bojo, importavam os conhecimentos psicanalíticos, fundamentais para a reestruturação da justiça criminal. Não à toa, as aulas de “psicologia do judiciário” foram dadas por Júlio Porto-Carrero, médico referência no “método freudiano”. Unidos ao que Peixoto deno- minava de “criminografia”, parte da criminologia voltada para o estudo da reincidência criminal com base na ciência da identificação, incluía aulas que ficaram a cargo de Leonídio Ribeiro.

Ao que parece, o curso teve êxitos significativos, com a inscrição de quinhentos alunos, como estudantes de direito e medicina, advogados, juízes, psiquiatras, médicos legistas etc. (RAMOS, 1937, p. 188-201; CORREIO DA MANHÃ, 1932, p. 2). O curso era também frequentado “por distintas senhoritas da nossa elite social e cultural”, que “acorriam para ouvir as palavras autorizadas nos mais eminentes criminólogos brasileiros” (CORREIO DA MANHÃ, 1933, p. 8).

Poucos anos depois, no seu compêndio sobre o assunto, Peixoto alargou significativamente o escopo da criminologia como ciência. Acreditava ser ela uma “vasta ciência”, voltada para a hercúlea tarefa de estudar e desvendar causas do crime e a produção de sujeitos criminosos. Ele considerava algumas ciências auxiliares importantes, como “terapêutica criminal”, a “penalogia”, e a prevenção, cunhada de “política criminal”. Peixoto entendia que a criminologia tinha três dimensões essenciais: o estudo biológico dos indivíduos, sua hereditariedade e genética, mesclando ciências como endo- crinologia e biotipologia; o estudo da mente, principalmente na sua face inconsciente a partir da psicanálise (“psicologia profunda de Freud”), mas também da consciência, com a psiquiatria; e o estudo sociológico dos aspectos que estariam na base das causas da criminalidade, com bastante ênfase no problema educacional.

Este último ponto era fundamental na sua acepção da ciência criminológica. Haveria, nas suas palavras, uma relatividade sociológica e cultural do crime, uma variabilidade das suas mani- festações no espaço e no tempo, ou seja, o crime não seria, como pensava a antropologia criminal ou o positivismo, um “fato da natureza”, mas algo absolutamente mutável e contingente. Desse modo, Peixoto se inspirava decisivamente nas reflexões criminológicas do início da década de 1910 do médico e também polígrafo argentino José Ingenieros (1913). Não à toa que boa parte do foco do estudo do crime deveria recair na sociedade, no “entorno social”, uma vez que, no seu entendimento, “se existe realmente o indivíduo, ele não pode existir sem sociedade, que o precedeu e continuará sem ele”. Nesse sentido, o capitalismo, com sua concentração de propriedade, sua má “repartição dos bens”, seus “vícios e desorganizações”, produtor principal de um meio social propício à proliferação da degeneração (“um estado de menor resistência orgânica e, portanto, social, que facilita reações antissociais”), deveria ser objeto da criminologia. A miséria produzia crimes contra a propriedade; a riqueza excessiva produzia crimes contra os costumes; a pouca valorização civil e econômica da mulher produzia prostituição (PEIXOTO, 1933, p. 38, 207 e 205).

De maneira bem evidente, Peixoto, nas suas argumentações, traduzia um conceito complexo de “ambiente” - o qual também deveria compor o rol de interesses de uma ampla ciência criminológica. O “ambiente” envolvia elementos como criação, educação, alimentação, costumes, emprego, cultura, questões sanitárias etc. Dessa forma, temas como o porte de armas eram questões absolutamente da alçada criminológica (PEIXOTO, 1933, p. 17). De uma maneira geral, nas suas formulações, Peixoto tendia a unificar os saberes científicos e enciclopédicos em prol de um “nacio- nalismo civilizador”, com o Estado como agente civilizador central, pautado pela necessidade de superação do “atraso” brasileiro por meio, sobretudo, da educação e da higiene (EDLER, 2012, p. 125-127), mas também da criminologia. O que não significa que Peixoto aceitasse proposições revolucionárias igualitaristas. No geral, na comunidade de intelectuais com inserção criminológica em tela, é evidente a força dos discursos anticomunistas, parte comum do discurso oficial varguista e dos seus artífices, além de intelectuais católicos e integralistas (DUTRA, 2012, p. 73-77).

Por outro lado, mas não em absoluta oposição, alguns criminólogos, prioritariamente de formação médica, apostaram em aporte mais biopsicológico para a construção de uma verdadeira ciência criminológica.

Criminologia constitucionalista: biotipologia, endocrinologia e psicanálise

Para Leonídio Ribeiro, Waldemar Berardinelli, José Mendonça e Gualter Lutz, cada qual a seu modo, a base da ciência do crime deveria repousar no constitucionalismo biotipológico. Consideravam a biotipologia como a mais nova ciência, não somente com potenciais explicativos para a conduta criminosa, na qual poderiam repousar os fundamentos de cientificidade da cri- minologia, mas para orientar a governança, a organização da vida social e política. A biotipologia foi, sem dúvidas, um idioma importante do período entre guerras, refletindo, entre outras coisas, as ansiedades em “exercer um rol predictivo sobre as sociedades humanas” (VALLEJO, 2007, p. 209). Assim como a eugenia, e em articulações próximas, ela teve coloridos variados nos diferentes contextos nacionais do período: na Itália fascista, ganhou contornos de inteligibilidade biológica total, necessária para a produção do “homem novo”; num léxico foucaultiano, uma genuína “estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 2008). No México e nos Estados Unidos, a biotipologia foi tida como uma ciência ambiental, apropriada como crítica à defesa da mestiçagem. No Brasil, Oliveira Vianna, em debates com Roquette Pinto, considerava o enfoque biotipológico como fundamental para reestruturar, em moldes mais científicos, a antropologia e, assim, caracterizar adequadamente o povo brasileiro. Não prescindindo dos estudos raciais, para Vianna, a biotipologia permitia conhecer melhor as origens dos “temperamentos nacionais mais instáveis” (VIANNA, 1933; SOUZA, 2011, p. 200).

Médicos como Rocha Vaz, professor de Clínica Propedêutica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ) e diretor do Gabinete de Biotipologia da mesma faculdade, defendia o estudo dos “tipos morfológicos” da população brasileira e das conexões entre as características biopsíquicas e comportamentais de grupos populacionais, com o intuito de prever possíveis futuros criminosos ( VIMIEIRO-GOMES, 2012). No entanto, maior expressividade dessa concepção para a ciência criminológica pode ser encontrada nas intervenções de Leonídio Ribeiro, responsável por desenvolver uma criminologia biotipologicamente informada no Laboratório de Antropologia Criminal da capital federal.

Para Ribeiro, a biotipologia era o estudo total da constituição (união dos fatores físicos, anatômicos e funcionais do ser humano), do temperamento (decorrente da constituição, qualidades afetivas), da personalidade (modo de ser) e do caráter (expressão social da personalidade). Unindo hereditariedade, anatomia, fisiologia e psicologia, a biotipologia deveria ser base da medicina legal, da psiquiatria e da criminologia (RIBEIRO, 1933, p. 17-21), sobretudo pelo maior desen- volvimento da endocrinologia, a “menina dos olhos” dessa concepção de ciência criminológica. Ela deveria ser uma ciência empírica, buscando seu material nas delegacias de polícia, penitenciárias e manicômios judiciários, fundando verdadeiras “clínicas criminológicas” nesses espaços. Ribeiro centra sua intervenção no estudo biotipológico e endocrínico do “homossexualismo masculino”, da “criminalidade de negros e mulatos” e do “problema da infância”. Vejamos o primeiro ponto, maior responsável pela notoriedade das intervenções de Ribeiro na comunidade intelectual, onde ficam bem refletidos seus ideais sobre a criminologia.

Ao longo de suas pesquisas, analisando homens homossexuais detidos pela polícia e com a leitura dos referenciais mais modernos do assunto, como o médico espanhol Gregório Maranón, Ribeiro demarcou o homossexualismo como uma anormalidade biológica (de origem orgânica, endocrinológica) que, potencialmente, poderia produzir criminalidade, ou seja, um problema biológico que se transformava em problema social, cuja resolução só poderia passar pelo intercurso de criminologia biologicamente embasada, apesar de não considerar as práticas homossexuais em si crimes. Seu estudo científico e criminológico era uma obra de “ciência e humanidade” (RIBEIRO, 1938, p. 28), pois somente uma criminologia assim embasada poderia ajudar a resolver esse e outros problemas nacionais, produzindo “medidas de segurança pública” (RIBEIRO, 1935, p. 150).

Embora Magarinos Torres não tivesse uma compreensão constitucional e biotipológica restrita da ciência criminológica, ele via nos trabalhos de Ribeiro um cientificismo (“experimenta- lismo”) importante, algo que atingiu reconhecimento internacional, ganhando Ribeiro o “Prêmio Lombroso”, maior reconhecimento criminológico da Itália. No entanto, a prática de examinar homens homossexuais detidos foi contestada como uma “violência”, como ilegal, pelo advogado Mario Bulhões Pedreiras (RIBEIRO, 1936, p. 60). As relações de Ribeiro e Pedreiras eram de dis- senso não somente naquela ocasião. Poucos anos antes, o advogado já havia questionado a “mística das impressões digitais” defendida por Ribeiro, não aceitando a “verdade” da prova datiloscópica (PRANDO, 2013, p. 127).

Na mesma linha de Ribeiro, estavam as assertivas de Waldemar Berardinelli, livre docente da FMRJ. Para ele, da “biotipologia humana” decorria, “naturalmente”, a “biotipologia criminal”, a saber, o “estudo morfofisiopsicológico do homem delinquente”, base científica necessária da criminologia. Ela produzia a “criminogenia”, ou seja, o método de perscrutamento do “modo como se processou o crime dentro da trama orgânica do indivíduo” (BERARDINELLI; MENDONÇA, 1933, p. 121). Era na própria constituição daquele que rompia o contrato social que poderiam ser encontradas as raízes do seu crime (BERARDINELLI; MENDONÇA, 1933, p. 39). O enfoque biotipológico, diretriz do moderno saber criminológico, para esses autores, opunha-se às aborda- gens sociológicas ou antropológicas do crime. Somente ele serviria à prática policial, penitenciária e psiquiátrica, razão precípua da existência da criminologia. Apenas sua compreensão, ao mesmo tempo endocrínica e psicológica, poderia ajudar a prevenir a criminalidade, mas também tornaria possível a regeneração de indivíduos criminosos.

Alguns profissionais do direito também faziam profissão de fé de uma criminologia cons- titucional. Eugênio Machado, advogado e membro da SBC, defendia as ideias de médicos como Nicola Pende (Itália) e Ernest Kretschmer (Alemanha), para os quais, na sua leitura, a maioria dos delinquentes tinham significativas “anomalias morfofisiopsicológicas”, com raízes em defeitos glandulares. Nesse sentido, para ele e outros, como o jurista penitenciarista e membro da SBC, José Lemos de Brito, somente o estudo da constituição endócrina poderia fomentar punições e tratamentos com cientificidade criminológica (MACHADO, 1936, p. 205; BRITO, 1934, p. 225).

Por sua vez, Jurandyr Amarante, advogado, escritor e membro da SBC, ao debater a temática da pena de morte, pungente entre 1934 e 1939, defendia uma criminologia médica, biológica e psicologicamente embasada no auxílio do direito penal (AMARANTE, 1938). Só assim seria refutada do horizonte intelectual a violência da pena de morte e a incorrigibilidade como possível condição humana. Todo esse campo de saber criminológico, contudo, na sua percepção, estava em construção, ainda marcado por muitas incompletudes, que pouco a pouco iam sendo supridas (AMARANTE, 1938, p. 174). Ademais, vale salientar que Amarante compreendia uma ciência criminológica efetivamente de acordo com a “alma nacional”, marcada pelo “sentimentalismo”, pela “bondade”, “perdão”, “respeito à vida”, “mais coração que mente”, que deveria também levar em conta os aspectos sociológicos da criminalidade, pois toda sociedade seria corresponsável para produção e gestão dos comportamentos criminosos de seus membros. Para ele, o espraiamento social de conhecimentos criminológicos com base científica se fazia ainda mais importante em um momento em que o nazismo e o fascismo apontavam para a escolha entre a “clareira iluminada da civilização e da cultura” ou os “estagnados campos de concentração onde imperam soberanos” (AMARANTE, 1938, p. 126-128 e 131). Não é demais supor que tal crítica também se dirigia ao autoritarismo e fechamento de regime no Brasil.

Outro autor/ator cada vez mais importante deste debate era Gualter Lutz (filho de Adolpho Lutz), membro da SBC, professor de medicina legal da Universidade do Brasil e médico-legista da polícia. Para ele, a criminologia, inexoravelmente, tinha bases psiquiátricas. Isso queria dizer que todos os conhecimentos biotipológicos e constitucionais advinham da também chamada “medicina mental”, mais especificamente das formulações do psiquiatra alemão Ernest Kretschmer (LUTZ, 1936). Para Lutz, a criminologia científica, ancorada em Kretschmer, deveria mostrar como a conduta criminal estava ou não “arraigada” na personalidade dos criminosos, ou seja, o saber criminológico deveria aprofundar as relações entre constituições/personalidades e conduta criminal. Figuras de relevo do mundo político, como Hitler, Stalin e Mussolini, podiam servir de exemplos modelares para a definição de “personalidades psicopáticas” de interesse criminológico (LUTZ, 1936, p. 41).

Uma fundamentação psicanalítica para a ciência criminológica também era relativamente recorrente nesse contexto de debate. Tratava-se, contudo, de uma psicanálise constitucionalmente embasada. A defesa de uma criminologia orientada pela psicanálise, de maior expressão e influência junto à intelligentsia criminológica do Rio de Janeiro, contou com o psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero, professor de medicina legal da Universidade de Direito do Rio de Janeiro. Porto-Carrero teve considerável espaço de enunciação na SBC, dando palestras e escrevendo na RDP. Para ele, a psicanálise trazia princípios de inteligibilidade para o comportamento criminoso e para o reor- denamento da vida social, que não eram encontrados em nenhum outro saber, sendo a principal ciência explicadora dos comportamentos criminosos. Vinha, de fato, de uma tradição de psiquiatras como Juliano Moreira, Henrique Roxo, Antônio Austregésilo e Afrânio Peixoto, com atuação no Rio de Janeiro no período entre guerras, que incorporavam as assunções psicanalíticas às suas agendas higiênicas, eugênicas e clínicas. Desta forma, só a psicanálise alçaria a criminolo- gia à condição de ciência reveladora das condições sociais e afetivas geradoras da criminalidade. Estas nada mais eram do que reações primitivas em indivíduos que, socialmente, receberam “pedagogia” insuficiente para refrear impulsos destrutivos. Ademais, tais criminosos, no geral, desejavam a pena. Assim, havia a ineficácia dos sistemas penais e o aumento crescente do problema da reincidência criminal (PORTO-CARRERO, 1932, p. 16-35; 1938, p. 285-290).

Afrânio Peixoto e Arthur Ramos, nos anos 1930, também viam com bons olhos as contri- buições da psicanálise para a construção de uma ciência criminológica. Era um saber que poderia guiar a criminologia na busca dos múltiplos fatores sociais (pobreza, alcoolismo) e humanos (edu- cação problemática e desorganização familiar) que causavam o crime (RAMOS, 1937, p. 179). Para Arthur Ramos, em particular, a influência precisa de cada um destes fatores no crime só poderia ser vislumbrada por uma criminologia orientada psicanaliticamente (RAMOS, 1937, p. 185). Por sua vez, entre alguns juristas, a psicanálise como tijolo que comporia a ciência criminológica também era bem vista. Os mais enfáticos a respeito eram Magarinos Torres, José Lemos de Brito, Mario Bulhões Pedreiras e Evaristo de Morais, todos admiradores das ideias de Porto-Carrero. Evaristo de Morais, por exemplo, ressaltou o quanto a psicanálise trazia ao direito penal e à criminologia (MORAIS, 1938, p. 115).

Por outro lado, tal abordagem criminológica tinha críticos entre médicos que participavam deste debate criminológico. O psiquiatra positivista Jefferson de Lemos via uma criminologia calcada nos “jogos dos hormônicos” ou mesmo no “freudismo” como absurda. No seu lugar, nada melhor do que uma ciência criminológica pautada pelo “enciclopedismo sintético” (LEMOS, 1939, p. 67-68). Para Lemos, a criminologia era (ou deveria ser) uma ciência unicamente voltada para a proteção social, na acepção comtiana da “conservação da ordem”. Tinha por incumbência, então, desvendar as leis naturais do crime. Para ele, independentemente do que diriam os marxis- tas, propugnadores de uma “doutrina sociológica artificial”, “fantasiosa, ou mesmo os fascistas e nazistas”, expressão de claro retrocesso civilizacional, a verdade do mundo residia numa única ciência social: a “sociocracia”, ou o “império da humanidade”, único caminho possível a partir do qual poderia ser construída uma ciência criminológica verdadeira (LEMOS, 1939, p. 47-48).

Considerações finais

Com os posicionamentos, argumentos e debates apresentados, dificilmente seria possível enquadrar esta comunidade argumentativa criminológica no rol de uma maior e abrangente cultura política autoritária. Juristas como Magarinos Torres, Evaristo de Morais e Roberto Lyra e, entre os médicos, somente - pelo que pudemos investigar - Afrânio Peixoto identificavam as desigual- dades e a exclusão social como elementos fundamentais de reflexão criminológica. Eles tinham uma ideia de ciência que atingia a sociedade, esclarecendo e educando totalmente de acordo com a perspectiva da “vulgarização científica”, ou seja, a busca pela construção de uma “mentalidade coletiva científica”, cuja finalidade estratégica, no caso específico da criminologia, era adentrar o parlamento, instância político-administrativa vista como fundamental para a democracia por Magarinos Torres e Evaristo de Morais, só para citar dois exemplos. Entretanto, pode-se afirmar que, para os juristas, grosso modo, era consenso que o conjunto disciplinar que compunha o campo da criminologia, ainda que importante para a compreensão e transformação da sociedade, nunca deveria passar do estatuto de “ciências auxiliares” ao direito penal.

Após o Estado Novo, a SBC perdeu autonomia com a marginalização de figuras como Magarinos Torres e Bertho Condé. Por outro lado, há indícios de apoio ao novo regime, em certo momento caracterizado como uma “nova forma toda brasileira” (NOTÍCIAS, 1939, p. 315). Figuras como Roberto Lyra, cuja imagem, em meados nos anos 1930, era de um defensor de uma “criminologia socialista”, e que assumiria a SBC e sua revista nos anos 1940, ganharam relevo, galgando um lugar na comissão revisora que elaborou o novo Código Penal brasileiro (1940). Isso, entretanto, não sepultou vozes contestatórias, como a do promotor Carlos Sussekind, que via, em 1939, o processo claro e objetivo de perda de autonomia do judiciário, muito em razão dos atos do Supremo Tribunal Federal (MENDONÇA, 1939, p. 9).

Como vimos, não havia um estatuto único para a criminologia. Naquele momento, menos do que a visão de uma ciência acabada, mas em construção, a criminologia era tida como um campo de conhecimento para o qual convergiam disciplinas variadas, com suas racionalidades próprias, num ecumenismo epistemológico estimulado e bem visto por médicos e juristas, além de fundamental na tarefa civilizacional de explicar e combater o fenômeno criminoso. Nesse sentido, Afrânio Peixoto entendia que a criminologia não poderia ter presunções de “ciência positiva”, pois, ao contrário, era uma “ciência conjuntural” (PEIXOTO, p. 205). Não há dúvidas de que as inserções de Peixoto no debate tiveram relevância fundamental no seu tempo, possuindo valor para que o olhar do historiador percebesse o quanto o campo de debates e a definição de uma ciência criminológica estavam abertos.

Por outro lado, é importante destacar o relevo da biotipologia para alguns atores/autores, pois era vista como ciência que potencialmente resolveria vários problemas, não somente crimes, tanto que outros intelectuais, não médicos, associavam a biotipologia à composição de uma interpretação de mundo mais realista. Mais ainda, o aporte biotipológico/endocrinológico ofe- recia mais que respostas, oferecia esperança, um horizonte (utópico) de resolução científica do problema criminal. Desconsiderar intervenções e articulações de ideias nas suas particularidades contextuais é fazer imergir os atores e suas racionalizações sobre a realidade e o tempo vivido em grandes esquemas explicativos. Tais esquemas não dão conta da polifonia de uma comunidade argumentativa como esta.

Por fim, vale ressaltar que traçar a história dos discursos e debates criminológicos no con- texto em tela permite visualizar outros ângulos da intelectualidade e da cultura política e jurí- dica no Rio de Janeiro dos anos 1930. Interessante perceber a maneira particular e arguta como esta intelectualidade criminológica específica percebia os temas e a atmosfera política do seu tempo, tanto em termos nacionais quanto internacionais. Isso confirma assunção bem definida na historiografia dos discursos criminológicos acerca do quanto o campo de reflexão e construção dos saberes criminológicos constituem, necessariamente, espaços de debate político. Afinal, o crime, na sua historicidade, é uma questão política (KAMINSKI, 2017, p. 187). É interessante ressaltar isso em vista da emergência de discursos neurocientíficos acerca do “comportamento criminoso”, os quais, na contemporaneidade, tendem a ganhar os corações da política e da opinião pública. Nesse processo, a complexidade dos problemas sociais acaba por ficar em segundo plano. A história entra aí com potencial para compreender a economia discursiva, mostrando as problemáticas, os pormenores, as polifonias, as incertezas, as continuidades e descontinuidades na construção das ciências humanas.

Referências

ALMEIDA, Miguel O. de. A vulgarização do saber. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1931.

ALTAMIRANO, Carlos. Introducción General. In: ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz Editores, 2008. p. 9-27.

ALVAREZ, Marcos. O homem delinquente e o social naturalizado: apontamentos para uma história da crimi- nologia no Brasil. Teoria e Pesquisa, São Carlos, v. 47, p. 71-92, 2005.

AMARANTE, Jurandyr. Pena de Morte. Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, 1938.

BECKER, Peter; WETZELL, Richard F. (ed.). Criminals and their scientists: the history of criminology in inter- national perspective. Whashington, DC: Cambridge University Press, 2006.

BERARDINELLI, Waldermar; MENDONÇA, José I. de. Biotipologia Criminal. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1933.

BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 88-113, 2003.

BRITO, José. A propósito da pena de morte (comunicação à Sociedade Brasileira de Criminologia). Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. V, p. 251-258, jun. 1934.

CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei (1889-1930). Brasília, DF: Editora UNB, 2001.

CONDÉ, Bertho. Detalhes. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. I, fasc. 1, p. 10-11, abr. 1933.

CONDÉ, Bertho. Sobre a pena de morte. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. IV, p. 248-257, jan./fev./ mar. 1934.

CORREIO DA MANHÃ. Periódico Microfilmado. Setor de Publicações Periódicas da Biblioteca Nacional. 25 set. 1932. p. 4.

CORREIO DA MANHÃ. Periódico Microfilmado. Setor de Publicações Periódicas da Biblioteca Nacional. 18 jul. 1933. p. 3.

DUTRA, Eliana. História e culturas políticas - definições, usos, genealogias. Varia História, Belo Horizonte, n. 28, p. 13-28, 2002.

DUTRA, Eliana. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 1930. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

EDLER, Flávio. Afrânio Peixoto: una cruzada civilizadora por la nación posible. Revista Biomédica, Yucatan, v. 23, p. 119-128, 2012.

FERLA, Luiz. Feios, sujos e malvados sob medida: do crime ao trabalho, a utopia médica do biodeterminismo em São Paulo (1920-1945). São Paulo: Alameda, 2009.

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977.

GOMES, Ângela de Castro. Autoritarismo e corporativismo no Brasil. In: FONSECA, Pedro Cezar (org.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora Unesp, 2012. p. 69-72.

GOMES, Ângela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

INGENIEROS, José. Criminologia. Buenos Aires: Daniel Jorro, 1913.

JASMIN, Marcelo. Mímesis e recepção: encontros transatlânticos do pensamento autoritário brasileiro da década de 1930. In: FERES JUNIOR, João; JASMIN, Marcelo (org.). História dos conceitos: diálogos transa- tlânticos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; Ed. Loyola; IUPERJ, 2007. p. 229-239.

KALUSZYNSKI, Martine. La Republique à l’épreuve du crime: la construction du crime comme objet politique 1880-1920. Paris: LGDJ, 2002.

KAMINSKI, Dan. A improvável autonomia da criminologia. Uma visada histórica e metodológica. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 170-190, maio/ago. 2017.

KRAEPELIN, Emil. Clinical Psychiatry. New York: The Macmillan Company, 1912.

LEMOS, Jefferson de. A Escola de Antropologia Criminal e a Pena de Morte à luz da ciência social. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XXIV, Fasc. 1, p. 41-70, jan. 1939.

LUTZ, Gualter Adolfo. Bases Psiquiátricas da Criminologia. Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano VII, v. 1 e 2, 1936, p. 15-43.

LYRA, Roberto. Pobres e Ricos em Direito Penal (Continuação). A Propósito da These “Economia e Crime”. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. IX, Fasc. III, jun. 1935, p. 185-189.

LYRA, Roberto. Pobres e Ricos em Direito Penal (Continuação). Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. IX, p. 39-50, abr./maio 1935.

MACHADO, Eugenio. A Escola Endocrinológica Constitucionalista e a Escola Antropológica no Direito Penal. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, anno IV, Fasc. II, p. 197-211, maio 1936.

MENDONÇA, Carlos S. Crônica Forense do DF. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XXIV, Fasc. I, p. 5-10, jan. 1939.

MORAIS, Evaristo. A Psicanálise e o Direito Penal. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XX, Fasc. III, mar. 1938.

MORAIS, Evaristo; LYRA, Roberto; PENNA E COSTA, Pedro Paulo. Doutrina. Controvérsia. Sobre a Criminali- dade Hauptman. Debate ocorrido na SBC. Revista de Direito Penal, v. IX, p. 12-20, abr./maio 1935.

MUCCHIELLI, Laurent. Naissance de la criminologie. In: MUCCHIELLI, Laurent (org.). Histoire de la Criminologie Francaise. Paris: Editions L’Harmattan, 1994. p. 7-18.

NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1995.

--------, -.NOTÍCIAS. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XXIV, Fasc. I, p. 1-4, jan. 1939.

PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. México: Siglo Veinteuno Editores, 1983.

PEDREIRA, Mario B. Características do Direito Penal Contemporâneo. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. I, Fasc. 1, p. 240-252, 1933.

PEDREIRA, Mario B. Conceito de Legítima Defesa Subjetiva. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. IX, p. 34-39, abr./maio 1935.

PEIXOTO, Afrânio. Criminologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara , 1933.

PEIXOTO, Afrânio. Programa da Cadeira de Criminologia. 3ª Secção do Curso de Doutorado na Universidade do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1931.

PORTO-CARRERO, Júlio Pires. Criminologia e Psicanálise. Rio de Janeiro: Flores & Mano, 1932.

PORTO-CARRERO, Júlio Pires. Sobre a pena e o direito de punir. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XX, Fasc. III, p. 285-290, mar. 1938.

PRANDO, Camila. O saber, os juristas e o controle penal: o debate doutrinário da Revista de Direito Penal (1933-1940) e a construção da legitimidade pela defesa social. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

RAFTER, Nicole. The Criminal Brain: Understanding Biological Theories of Crime. New York: University Press, 2008.

RAMOS, Arthur. Loucura e Crime. Questões de psiquiatria, medicina forense e psicologia social. Porto Alegre: Globo, 1937.

RAUTER, Cristina. Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan , 2003.

RENNEVILLE, Marc. Crime et folie: dues siècles d’ enquêtes médicales et judiciaires. Paris: Fayard, 2003.

RIBEIRO, Leonídio. Homossexualismo e Endocrinologia. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. IX, Fasc. III, p. 136-151, jun. 1935.

RIBEIRO, Leonídio. Homossexualismo e Endocrinologia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1938.

RIBEIRO, Leonídio. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara, 1933.

RIBEIRO, Leonídio. O Papel da Medicina na Prevenção do Crime. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, ano IV, v. XIII, Fasc. I, p. 55-61, abr. 1936.

SAMPAIO, João Borges. Novo aspecto da colaboração do educador na obra de regeneração do sentenciado. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. IX, Fasc. III, p. 159-167, jun. 1935.

--------, -.SESSÃO DA SBC de 27 de abril de 1935. Revista Brasileira de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XI, p. 52-59, abr./maio 1935. p. 54.

SILVA, Renata. As Ciências de Afrânio Peixoto: Higiene, Psiquiatria e Medicina Legal (1892-1935). Tese (Dou- torado em História das Ciências e da Saúde) - Fiocruz, Rio de Janeiro, 2014.

SILVA, Ricardo. Liberalismo e Democracia na Sociologia Política de Oliveira Vianna. Sociologias, Porto Alegre, ano 10, n. 20, p. 238-269, 2008. p. 265-266.

TORRES, Magarinos. A condenação à morte de Violette Noziére. Intervenção de Henry Bordeauy. Crítica. Revista de Direito Penal, v. VIII, p. 29-38, jan. 1935.

TORRES, Magarinos. A velha e a nova Ciência. Palestra realizada no dia 15 de abril de 1936 no Grêmio Literário Paula Freitas. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XIII, Fasc. III, p. 289-293, jun. 1936.

TORRES, Magarinos. Editorial. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. XIII, p. 1-3, abr. 1936.

TORRES, Magarinos. Introdução. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, v. 1, Fasc. 1, p. 3-9, abr. 1933.

TÓRTIMA, Pedro. Crime e Castigo para além do Equador. Belo Horizonte: Inédita, 2002.

VALLEJO, Gustavo. Males y Remedios de la ciudad moderna: perspectivas ambientales de la eugenesia argentina de entreguerras. Asclepio, Madrid, v. LIX, n. 1, p. 203-238, jan./jun. 2007.

VIANNA, Oliveira. Raça e Assimilação. Rio de Janeiro: Companhia Nacional, 1934.

VIMIEIRO-GOMES, Ana. A emergência da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o temperamento do brasileiro na década de 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 3, p. 705-719, set./dez. 2012.

WETZELL, Richard F. (ed.). Crime and Criminal Justice in Modern Germany. New York; Oxford: Berghahn, 2014.

Notas

1 Numa acepção bem ampla, trata-se de uma ciência, um conjunto de saberes sistematizados ou, em uma leitura foucaul- tiana (FOUCAULT, 1995, p. 235-238), uma “prática discursiva” que busca explicações para o que socioculturalmente se entende como crime, suas causas, possíveis prevenções e modelos punitivos. Não é uma ciência com autonomia discipli- nar, nem com núcleo duro programático, tendo o direito penal um papel de dominância a seu respeito (KAMINSKI, 2017).
2 Intepretações nacionais que seguem os cânones da visada histórica dos principais representantes da Criminologia Crítica dos anos 1980, por exemplo: Pavarini (1983). Não se trata aqui de uma problematização da Criminologia Crítica, com efeito, desveladora da cultura punitivista, da natureza do estado penal neoliberal e do hegemonismo penal dos discursos periculistas, mas da sua maneira de reconstruir a história da criminologia, em outras palavras, seus usos da história.
3 Alguns estudos brasileiros, de maneiras diversas, já vêm apontando nesse caminho (FERLA, 2009). No plano interna- cional, a literatura nessa linha é quantitativa e qualitativamente mais consolidada (BECKER; WETZELL, 2006; WETZELL, 2014; RENNEVILLE, 2003; MUCCHIELLE, 1994; RAFTER, 2008).
4 Nos anos 1940, passou a chamar-se Revista Brasileira de Criminologia e, depois, Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal.
5 Sobre a SBC e seu periódico, conferir também Prando (2013) e Dias e Masô (2018).

Author notes

E-mail: allisterdias@hotmail.com.



Buscar:
Ir a la Página
IR
Scientific article viewer generated from XML JATS by