RESUMO: Ao debruçar-se sobre as crianças e os adolescentes no mundo do trabalho adulto, a historiografia das infâncias e juventudes vem problematizando as diferentes práticas sociais e culturais que demarcam políticas de disciplinarização e/ou medida de proteção. O século XX foi palco de iniciativas legais que buscaram estabelecer códigos de controle sobre as crianças, famílias e empregadores, produzindo o discurso da “ressocialização a partir do trabalho”. O objetivo deste trabalho é de analisar o cotidiano de meninos no mundo do trabalho em Recife, na década de 1930. Os documentos coletados no decorrer da pesquisa, a exemplo dos periódicos, das legislações e dos processos criminais serão analisados como fontes que (re) produziram práticas discursivas sobre o labor infantil. O artigo coloca questões relevantes em tela, como a violência no mundo laboral e a tentativa de sindicalização do “menor trabalhador”. Voltar-se para a história de meninos e meninas no mundo do trabalho, fez-nos encontrar um universo permeado por (in)justiças praticadas por adultos. Em nome da produção, do lucro e da mais valia, a “força da tabica” foi utilizada para corrigir ou coagir crianças e adolescentes, a violência física e o descuidado, descortinam o cotidiano marcado pela exploração, mas por táticas de sobrevivência e resistência.
PALAVRAS-CHAVE: Crianças, Violências, Código, Imprensa, Trabalho.
ABSTRACT: When looking at children and adolescents in the world of adult work, the historiography of children and youth has been problematizing the different social and cultural practices that demarcate disciplinary policies and/or protection measures. The 20th century was the scene of legal initiatives that sought to establish codes of control over children, families and employers, producing the discourse of “resocialization from work”. The objective of this work is to analyze the daily life of boys in the world of work in Recife, in the 1930s. The periodicals, laws and criminal proceedings will be analyzed on the documentary sources that allowed the production of discursive practices on child labor. The article raises relevant issues, such as violence in the world of work and the attempt to unionize the “minor worker”. Turning to the story of boys and girls in the world of work, made us find a universe permeated by (in)justice practiced by adults. In the name of production, profit and added value, the “strength of tobacco” was used to correct or coerce children and adolescents, physical violence and carelessness reveal the daily life marked by exploitation, but by survival and resistance tactics.
KEYWORDS: Children, Violence, Code, Press, Work.
ARTIGO
“De tabica em punho aplicou-lhe várias bordoadas”: crianças e (in)justiças do mundo do trabalho na década de 1930
"From tabica in hand he applied several strokes": children and (in)justices in the world of work in the 1930s
Received: 29 July 2020
Accepted: 28 February 2021
Esteve hontem, na 2.ª delegacia, o menino Alfredo Bezerra, de 13 annos de idade, quei- xando-se contra o seu patrão, de nome João Felipe da Silva, proprietário de uma quintanda na Avenida Norte. O alludido menor declarou que Felipe da Silva de tabica em punho aplicou-lhe várias bordoadas não continuando a espancá-lo graças a intervenção de alguns fregueses que se achavam ali na ocasião. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 05/12/1931, s.p.).
O caso de Alfredo Bezerra faz-nos analisar a questão do abuso da autoridade dos patrões contra as crianças trabalhadoras. Ao procurar a delegacia, a ação do menino Alfredo Bezerra denunciava que seu patrão usava da violência no convívio das relações de trabalho e sua queixa representou uma forma de resistir ao abuso de autoridade praticada por Felipe da Silva. De acordo com Esmeralda Banco, “[...] em função da pouca idade, talvez tenham sido, entre os trabalhadores aqueles que viveram os exemplos mais exacerbados dessa relação: o poder hierárquico, que clara- mente os transformaram no alvo privilegiado de uma disciplina férrea” (BLANCO, 1991, p. 112).
Em dezoito de junho de 1927, foi divulgado o caso de João Guilherme, que enfrentou o abuso de autoridade e agressão física do seu patrão, quando sob “o regime de palmatória”,
O menor de 15 annos de idade João Guilherme, pela manhã de hontem, compareceu na delegacia de polícia do 3 distrito da Capital e procurando o Comissário de serviço, a fim de apresentar queixa contra José Machado Figueiredo estabelecido com officina de marceneiro à avenida Lima de Castro, n. 1655. O menor que era aprendiz da mesma officina hontem pela manhã, por questões de serviço foi repreendido pelo seu patrão. Este insatisfeito, despediu-o do trabalho dando-lhe diversos bolos de palmatória. De facto, João Guilherme estava com as mãos enchadas, sendo o acusado intimado a comparecer na policia, a fim de se ver processado. (JORNAL DO COMMERCIO, 18/06/1927, p. 3).
Debruçar-se sobre esses casos nos faz discutir os mais variados modos de exclusão social presentes naquelas notas de jornais. A palmatória ou tabica, instrumento de punição física, em que o repressor buscará, por meio da violência, deixar a marca da punição nas mãos do punido e também em sua mente. As mãos de João, de Alfredo, as mãos de “aprendizes”, tão importantes para a condução dos trabalhos por eles realizados, foram violentamente agredidas. No “regime da palmatória”, o punido passa a ser tido como exemplo de alguém que desrespeitou ou desafiou a ordem estabelecida e foi castigado. Esse tipo de penalidade pode ser observado como um castigo que “deve” ficar marcado nas mãos e nas memórias do punido.
A palmatória, como instrumento de punição foi utilizada para corrigir e disciplinar as ações da criança empregadas em sua oficina. Essa ação leva-nos a refletir como foi construído o universo microssocial das crianças no mundo do trabalho, quando o empregador muitas vezes se posicionava como proprietário da oficina e do corpo de seus pequenos empregados. Nesse período, a palmató- ria, era utilizada por pais, mães e até professores com o objetivo de corrigir as faltas dos menores. Ao analisar as agressões sofridas pelas crianças no universo familiar do Recife “moderno”, o historiador Iranilson Buriti Oliveira afirma-nos que “[...] meninos e meninas cresciam amedron- tados pelos instrumentos sadistas, como a palmatória [...] Tanto nas artes de aprender o ‘bê-á-bá’ quanto nas artes de obedecer à autoridade, os filhos e filhas sentiam no corpo as dores trágicas por
um sistema corretivo”. (OLIVEIRA, 2002, p. 139).
O caso de João Guilherme faz-nos discutir o cenário social em que ele se encontrava, quando a exploração do trabalho infantil, em larga escala, era uma situação que caracterizava as socieda- des que vivenciaram o processo de crescimento acelerado da industrialização, quando os menores foram arregimentados para as atividades produtivas. Além de ser agredido fisicamente, João foi dispensado das suas atividades da oficina, mostrando-nos indícios de como eram conflitantes as relações de trabalho entre o empregador e o menor empregado.
Ao voltar-se para a questão da resistência infantil à exploração do trabalho, Margareth Rago fala-nos que frequentemente os jornais operários registravam os maus tratos e as repressões sofri- das pelas crianças, fazendo-nos (RAGO, 1997, p. 130) “[...] supor a existência, frente à violência do mundo adulto, de sua evasão no ato de brincar, de correr, de conversar por entre as máquinas durante o período de trabalho”. Para a historiadora, é “[...] impossível deixar de imaginar como a fábrica deve ter representado para elas um mundo tedioso, repetitivo, monótono, severo e rígido”.
Além de atender a demanda e os interesses dos patrões em pagar uma mão de obra mais barata, as crianças e os jovens ainda contribuíam de forma significativa com a economia familiar operária. Para Rago (1997), a forte pobreza vivida pelas famílias operárias era tão expressiva que o ingresso das crianças e dos jovens no mundo fabril, em muitos casos, era necessário para a manutenção da vida da própria criança.
Além dos maus-tratos por parte dos patrões, as crianças e os adolescentes enfrentavam o pro- blema dos acidentes de trabalho. Os jornais do período também denunciavam acidentes sofridos pelas crianças durante o trabalho. Em novembro de 1931, o Diário de Pernambuco trazia outra notícia de acidente de trabalho envolvendo os pequenos trabalhadores. Manuel Francisco, de treze anos de idade, operário da Usina Mumuripe, durante seu expediente “[...] procurou galgar uma locomotiva daquela usina, fê-lo desastradamente, sendo colhido pelas rodas [...]” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 21/11/1931, p. 13), o que ocasionou o esmagamento do braço direito e outras feridas pelo corpo do adolescente. Manuel foi levado para o Hospital Fernandes Vieira, ficando lá internado.
A notícia do periódico faz-nos problematizar o universo das crianças e dos adolescentes no mundo trabalho adulto, na década de 1930, por sua vez marcado por uma série de perigos, entre eles, o de trabalhar, manusear, máquinas impróprias para idade dessas crianças e desses jovens. As instalações precárias, a insalubridade e as longas jornadas de trabalho são características que marcaram o dia a dia dos chamados menores trabalhadores.
Nesse cenário marcado por constantes denúncias de acidentes de trabalho, os jornais operários travaram uma campanha voltada para que os trabalhadores procurassem a policia ou a autoridade mais próxima para registrar e tomar as devidas providências, atendendo o acidentado nas suas necessidades. Dizia o jornal Vos Operária, em doze de março de 1932, que:
Todos os camaradas trabalhadores que em qualquer caso de acidente no trabalho, qualquer um sem medo de represarias por parte dos patrões, deve imediatamente chamar mais outro como testemunhas, participarem o ocorrido primeiro ao gerente, mestre ou encarregado, e logo em seguida se dirigir à polícia local ou autoridade mais próxima comunicando o fato. (VOZ OPERÁRIA, 12/03/1932, p. 1).
Essa pequena nota evidencia como as organizações dos trabalhadores orientavam os operários no caso de acidente, que também eram considerados caso de polícia. O cuidado com a testemunha, com o registro, com a procura das instâncias especializadas, leva-nos a perceber como as estratégias foram articuladas no sentido de atender os direitos do trabalhador acidentado. A advertência de não ter “medo da represaria do patrão”, leva-nos a perceber que as denúncias podiam gerar desdo- bramentos negativos para os trabalhadores, como perseguições ou até demissões.
Entendemos que diante do “regime da palmatória”, “da tabiaca”, os adolescentes buscavam taticamente resistir à cultura de exploração, materializada na violência física e nos maus-tratos. Analisar as matérias dos jornais possibilitou o encontro com o potencial denunciador das crianças, que ao recorrerem às delegacias buscaram o aparato de segurança frente aos abusos e às explorações vivenciados nos espaços de trabalho. Mas, como setores da sociedade, inclusive o Estado, passaram a lidar com este problema social?
Em meio às denúncias realizadas contra o trabalho infantil, também encontramos registros daqueles que defendiam a “sindicalização dos menores”. Em 28 de dezembro de 1931, o Jornal Norte Proletário trazia um artigo reivindicando a organização sindical dos pequenos trabalhadores. Em uma matéria de capa, o Norte Proletário dizia:
Um dos artigos da Lei 19.770, que golpeia em cheio os organismos syndicais é a que allude a organização dos menores, não permitindo que estes, sem que tenham 18 anos, se filiem às associações trabalhadoras. Sabido como é a existência de numerosos jovens operários nas fábricas, oficinas e nos campos, evidenciando-se este fato nas indústrias de tecelagem além de haver outras emprezas manufatureiras onde o número de meninos, esqueléticas crianças, tome proporções escandalosas, no exclusivo interesse dos senhores industriais, dada desigualdade de salários para trabalho igual, - não compreende, não se justifica uma proibição de todos os princípios da lógica social, pois que aos indementes atingidos nas suas dolorosas condi- ções econômicas e moraes, ninguém pode tirar-lhes um direito indelével, qual o de pôr-se a salvo investidos pela razão e pela justiça. Os menores tem direito à organização. (NORTE PROLETÁRIO, 28/12/1931, p. 1).
Não podemos entender o discurso do Jornal Norte Operário distante de uma análise sobre a Lei 19.770, que foi promulgada em março de 1931, e tinha como objetivo atrelar a organiza- ção sindical ao Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, criado durante o Governo Varguista. Através dessa Lei, os sindicatos não podiam promover ou disseminar nenhum tipo de ideário político, social ou mesmo religioso, fazendo com que se tornasse alvo de muitas críticas por parte daqueles que resistiam ao aparelhamento do sindicato ao governo instituído. A verticalização da estrutura e a falta de autonomia sindical foi reforçada pela Constituição de 1934, que chegou a deslegitimar de modo efetivo os sindicatos considerados “não oficiais”.
Desse modo, observamos que tais mudanças provocaram uma intensa discussão entre os trabalhadores que se organizavam coletivamente através das instituições sindicais. Nesse tabloide, uma série de reportagens foi produzida com a intenção de disseminar a ideia de que os menores trabalhadores possuíam o direito à participação na organização política dos operários.
O caso da sindicalização das crianças e dos jovens estava muito distante da vontade do Estado, uma vez que o Código de Menores de 1927 ditou uma série de normas que proibia o trabalho infanto-juvenil ou buscava controlar a permanência dos chamados menores nos estabelecimentos fabris. De acordo com o Capítulo IX do Código, várias proibições foram estabelecidas. O Artigo 103, inclusive, afirmava que:
Os menores não podem ser admitidos nas usinas, manufaturas, estaleiros, minas, ou qualquer trabalho subterraneo, pedreiras, officinas e suas dependências, de qualquer natureza que sejam, públicas ou privadas, ainda quando esses estabelecimentos tenham caráter profissional ou de beneficência, antes da idade de 14 annos. (CÓDIGO DE MENORES, 1927. Decreto 17.343/A).
O Código ainda criava um sistema de fiscalização, quando os proprietários dos estabelecimentos, os pais, as mães ou os responsáveis poderiam responder um processo judicial se desrespeitassem a Lei. O capítulo destinado ao “trabalho dos menores”, o Artigo 101 afirmava que “[...] é proibido em todo território nacional da República o trabalho de menores de 12 annos” (CÓDIGO DE MENORES, 1927. Decreto 17.343/A). Entre as proibições, destacamos a restrição aos trabalhos de menores em peças teatrais (com exceção das infantis, mediante autorização do órgão fiscalizador), cabarés, circense (acrobata e saltimbanco) ou em qualquer serviço que fosse exercido nas ruas, nas praças ou em qualquer lugar público.
O sociólogo Edson Passetti afirma que, no século XX, “[...] o Estado assume o lugar da igreja como centro da caridade, procurando ofuscar, com sua racionalidade, uma experiência de milênios” (PASSETTI, 1999, p. 25). A partir dessa perspectiva, esse Estado apoiou-se no sistema jurídico, materializado no Código de Menores de 1927, que, por sua vez, representou:
O instrumento jurídico balizador desta continuidade foi, em primeiro lugar, o Código de Menores de 1927, que procurava não só regulamentar o trabalho de crianças e adolescentes, mas também definir a emergência do ‘menor perigoso’ como decorrente da situação de pobreza. (PASSETTI, 1999, p. 25).
A promulgação do Código de Menores, em 1927, foi considerada pelos historiadores contem- porâneos como um marco na trajetória da assistência à infância no País, uma legislação exclusiva que passou a nortear as ações da justiça e da assistência aos meninos e às meninas que viviam em situação de abandono. De acordo com os estudos de Silvia Arend,
O Código de Menores de 1927 é considerado um marco no que tange à legislação infanto-juvenil. Esse ordenamento contempla as discussões que vinham sendo realizadas em nível internacional, sobretudo nos Congressos Pan-americanos da Criança, e na sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX. Segundo esses discursos formulados pelas elites, sob a ótica dos ideários do progresso e da civilização, era preciso ‘salvar’ as crianças e os jovens pobres do Brasil do abandono, do ócio e do vício. É importante observar que, a partir da ins- tituição da primeira legislação menorista, o Poder judiciário torna-se uma peça fundamental na administração da assistência. (AREND, 2010, p. 353).
As reflexões construídas por Arend permitem analisar o lugar do Juizado de Menores na construção do conceito de abandono e na construção das políticas públicas elaboradas no campo da assistência às crianças abandonadas. Ao voltar-se para a questão dos estabelecimentos comerciais e industriais, o Código volta-se para a responsabilidade dos proprietários, afirmando no Artigo 117 que:
Os chefes dos estabelecimentos industriaes e commerciaes, em que são empregados menores de 18 annos como operários ou aprendizes, são obrigados a velar pela manutenção dos bons costumes e da decência pública, bem como da hygiene e segurança dos lugares de trabalho. (CÓDIGO DE MENORES, 1927. Decreto 17.343/A).
A leitura desse Artigo faz-nos observar como a intenção do Código estava relacionada em fazer do mundo do trabalho fabril o espaço onde crianças e adolescentes encontrassem o caminho para a profissionalização. O discurso que valorizava os bons costumes e a decência pública foi construído a partir do ideário normatizador e disciplinador e higienista. Na “escola do trabalho”, os pequenos operários deveriam ser controlados pela ordem. Uma ordem preventiva que buscava garantir a manutenção do ideário do progresso. Segundo o Código, cabia ao patrão, ao proprietário, zelar por esse mundo da fábrica, uma vez que ele também representava o lugar onde essas crianças estavam, longe dos perigos das ruas.
Em três de setembro de 1929, dois anos após a promulgação do Código de Menores, o Jornal Pequeno trazia a notícia de que o Juiz de Menores Mello Mattos, multou cerca de quinhentas fábricas, uma vez que elas desrespeitaram a normatização estabelecida pelo Código. O Jornal Pequeno dizia que:
O Juiz carioca Dr. Mello Mattos publicou em dezembro do anno passado um provimento para execução do Código de Menores na parte relativa ao trabalho fabril, concedendo uma delação de treze meses a respeito de certos dispositivos. Finda a delação o juiz multou cerca de 500 fábricas por infração do mesmo Código, mas, o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão pediu prorrogação até que o Congresso Nacional reformasse certos artigos, que reputava inexeqüíveis. O Juiz Mello Mattos indeferiu o pedido, o reclamante agravou do despacho para o Conselho Supremo da Corte de Appellação, que negou provimento do agravo confirmando unanimemente o acto do Juiz de Menores. Tendo baixado os autos a Cartório no sábado passado, o Dr. Mello Mattos mandou prosseguir na execução do Código de Menores. (JORNAL PEQUENO, 03/09/1929, p. 3).
Esse exemplo aconteceu no Rio de Janeiro, mas recebeu destaque no jornal pernambucano. A reportagem ainda trazia a informação de que dez grandes empresas foram multadas por obrigarem menores abaixo de dezoito anos a trabalharem mais de seis horas por dia, contrariando o Artigo dezoito do Código. Através dessa matéria, percebemos como os proprietários dos estabelecimen- tos fabris resistiram às exigências estabelecidas pela Lei, buscando driblar este dispositivo legal. Mesmo recorrendo aos recursos cabíveis, o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão não conseguiu reverter a decisão do Juiz. Desse modo, a multa e sua divulgação não deixaram de representar a tentativa de consolidar o papel do Código, a partir da atuação direta do juiz que o elaborou.
Contudo, nossa investigação sinaliza que nem sempre a justiça beneficiou os menores traba- lhadores. O Processo Criminal referente à ação de acidente de trabalho da criança João Domingues, que, durante o trabalho, perdeu as funções da mão direita no memento em que exercia suas funções de operário da fábrica de cigarros Jockey Club. João acidentara-se quando prestava ajuda ao chofer da empresa, às sete horas da manhã do dia quatro de junho de 1927. O menor acidentado, represen- tado pelo seu pai Domingos Correia, reivindicava indenização à Companhia de Seguros Ypiranga.
A leitura dos documentos que integram o processo de João nos levou a perceber como a burocracia jurídica beneficiava o proprietário, uma vez que ele já contava com os advogados da seguradora e a estrutura dessa instituição, enquanto o menor operário não tinha recursos para pagar o advogado, tendo que solicitar o apoio do Estado. De acordo com o laudo médico, João poderia ficar curado se recebesse tratamento adequado, mas alertava que o tratamento realizado naquele momento não garantia a cura do menor. A sequela física poderia ser irreversível, fazendo com que João ficasse afastado do trabalho. Conforme o Artigo primeiro da Lei de Acidentes de Trabalho e do Artigo 772 do Código de Processo Civil, sendo atestada judicialmente a lesão, era garantida a indenização por acidente de trabalho e toda a assistência médica para o acidentado.
Para o advogado da Companhia, João tinha sofrido apenas uma simples lesão, não sendo merecedor de uma indenização. Segundo os laudos médicos, o menor tinha se acidentado de forma que podia perder as funções da mão direita. As diferentes versões sobre o fato fizeram gerar um processo bastante conflituoso, quando as partes recorreram por diversas vezes à decisão judicial.
Ao analisarmos os diversos documentos que compõem o processo, percebemos como as relações sociais de trabalho foram construídas a partir das tensões entre o patrão e o operário, tornando-se um desafio para o historiador que se debruça sobre essa tipologia documental. Nesses processos, as mais diferentes versões e visões acerca do acontecido foram registradas quando as falas do réu e da vítima, sendo construídas para legitimar o discurso de acusação e de defesa. De
acordo com os estudos do historiador Sidney Chalhoub,
Ler processos criminais não significa partir em busca ‘do que realmente se passou’ porque esta seria uma expectativa inocente - da mesma forma como é pura inocência objetivar à uti- lização dos processos criminais porque eles ‘mentem’. O importante é estar atento ás ‘coisas’ que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência. (CHALHOUB, 2001, p. 134).
Desse modo, ao analisarmos o processo de João, podemos perceber como foi percorrida a trajetória de um menor operário que recorreu à instituição judiciária para requerer o direito à inde- nização pelo acidente de trabalho, levando-nos a observar que, mesmo ao legitimar o seu pleito, por meio do mecanismo científico - o Laudo Médico confirmou que o acidente comprometia a saúde da criança -, a Justiça não resolveu o caso do menor operário, uma vez que “[...] houve agravo de petição para o gregório Tribunal de Justiça [...]” (JORNAL PEQUENO, 03/09/1929, p. 3), fazendo com que o processo ficasse inconcluso, como fala-nos um dos relatórios arquivados no prontuário de João.
Mas João não estava sozinho. Os jornais da época denunciavam constantemente os acidentes envolvendo os menores nos locais de trabalho. No dia 2 de julho de 1930, o menor Arlindo Bezerra da Silva, empregado na Padaria Rio Branco, localizada no bairro da Torre, acidentou-se. Naquela manhã, a moenda esmagou o braço esquerdo do operário. Segundo matéria do Jornal Pequeno:
Companheiros seus, presenciando o sucedido trataram de prestar-lhe os primeiros curativos, enquanto era chamado a Assistência Pública. Minutos depois foi Arlindo transportado para o Hospital de Pronto Socorro, onde teve logo a devida intervenção cirúrgica [...] Em seguida o menor foi removido ao Hospital Pedro II e foi recolhido à enfermaria de São Francisco. (JORNAL PEQUENO, 03/09/1929, p. 3).
Como podemos perceber, os vários casos anteriores, que envolviam o desaparecimento das crianças, eram resolvidos na polícia, levando-nos a perceber que no Brasil os problemas sociais referentes às crianças e aos jovens que viviam em situação limite se tornavam “casos de polícia”. Com a promulgação do Código de Menores de 1927, esses casos, mesmo sendo recorridos, na pri- meira instância, ao aparato policial, passavam a ser encaminhados para o Juiz de Menores ou para o Juiz de Órfãos.
No Código de Menores de 1927, o espaço destinado à questão da relação entre pais e filhos ou responsáveis, mereceu um capítulo especial e esteve voltado para a preocupação “da inibição do pátrio poder e da remoção da tutela”. Em nome “da honra e da honestidade das famílias”, o discurso do Código foi construído a partir da premissa do controle e da punição de pais, mães ou tutores que desrespeitassem os ditos daquele instrumento normatizador.
Nesse sentido, o papel social do pai, da mãe ou do tutor estava relacionado à garantia de uma assistência econômica, social e psicológica, em que as relações entre pais e filhos passaram a ser pautadas do campo dos sentimentos, quando o lar passou a representar o espaço o qual esses aspectos deveriam ser harmonicamente vivenciados. Ao nos voltarmos para o artigo 31, Capítulo V do Código de Menores de 1927 verificamos que:
Nos casos em que aprovada negligência a incapacidade, o abuso de poder, os maus exemplos, a crueldade, a exploração, a perversidade, ou o crime do pai, da mãe ou do tutor podem com- prometer a saúde, segurança ou moralidade do filho ou do pupilo, a autoridade competente decretará a suspensão ou a perda do pátrio poder ou a destituição da tutela, como no caso couber. (CÓDIGO DE MENORES, 1927. Art.. 31, Capítulo V).
Analisando esse trecho do Código, podemos perceber que o seu discurso dialoga com o novo sentimento de família, quando o Estado, revestido de sua ”autoridade”, passava a ter controle e poder de punição sobre os pais ou responsáveis, que, por sua vez, atendia a manutenção e o fortalecimento do Direito Penal moderno, em que a prevenção e a punição passaram a dialogar de forma efetiva. A partir desse princípio, a proposta do Código buscava estabelecer uma nova lógica social concernente as relações de poder entre o Estado e as famílias, uma vez que este buscava intervir diretamente no campo das relações domésticas, transferindo para si a “autoridade” de decidir sobre a guarda dos filhos ou “pupilos”, caso os pais ou tutores não correspondessem as determinações do Código.
De acordo com os artigos que compõem o Capítulo V do Código, o pai, a mãe ou o tutor seriam “condenados por crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias”, sendo reti- rado o direito do pátrio poder quando houver constatadas as práticas de castigo indevidas contra os filhos, que sejam registradas ações “contra a moral e os bons costumes”, ou que outras práticas que comprometam a segurança e proteção do menor sejam efetivadas. Nesse processo, o juiz de menores ou o tribunal, seriam as autoridades responsáveis para que as medidas fossem tomadas.
Sobre a questão do trabalho infantil e sua relação com a economia familiar, a historiadora Michelle Perrot aponta-nos que o trabalho de crianças e jovens no mundo das fábricas esteve diretamente relacionado com o cenário de pobreza por que estes agentes sociais transitavam, quando a falta de recursos obrigava os pais, as mães ou os responsáveis a empregarem os menores
nas fábricas. De acordo com Perrot,
Mesmo fora da fábrica, a condição dos proletários é regida por uma rigorosa economia familiar. O salário do pai corresponde a parcela principal dos rendimentos, complementado, tão logo seja possível, pela contribuição dos filhos [...] Nessa perspectiva, compreende-se a hostilidade a qualquer restrição ao trabalho infantil. (PERROT, 1991, p. 131).
O Código representou uma tentativa dos grupos sociais e econômicos estabelecidos e do Estado em centralizar e fortalecer sua ingerência sobre as famílias, transferindo para juiz de menores o poder de decidir sobre as questões pertinentes aos destinos dos menores. Para o historiador Jacques Donzelot, (2001. p. 135) “[...] a utilização de uma única codificação, de uma etiologia homogênea, dava ao juiz um instrumento decisivo para abarcar crianças-problema de todos os pontos de vista”.
Analisar o papel do juiz de menores é necessário, uma vez que este passava a assumir a respon- sabilidade de conduzir e deliberar sobre os processos das crianças e dos jovens. Defesa, proteção e assistência formavam o tripé que sustentava a função sociopolítica do juiz de menores. De acordo
com o jurista carioca Lemos Brito,
O papel do juiz de menores na regeneração da infância e adolescência desamparada, pervertida ou criminosa, é importantíssimo, cumprindo-lhe ocupar-se do menor, desde que é apresentado em juízo, até depois que salve da escola preventiva ou reformatória. (BRITTO, 1929, p. 2).
O comentário do jurista leva-nos a perceber que o discurso da regeneração permeou os debates acerca do Código de Menores de 1927. A partir de uma análise do seu discurso, percebemos como a construção da ideia de que, através do Código e da ação efetiva do juiz ou tribunal, crianças e jovens que representasse ameaça ao poder político-econômico instituído pudessem ser recuperadas socialmente. Nesta ótica, na falta de uma proteção dos pais ou tutores, cabia ao juiz de menores a decisão de encaminhá-los para as colônias ou escolas correcionais construídas pelos governos estaduais para abrigar as crianças e os jovens.
Ao voltar-se para a questão dos tutores, o Código de Menores de 1927 passou a confiar ao juiz ou tribunal o direito da remoção da tutela e a indicação de outros responsáveis. Como apon- ta-nos o Artigo 53,
A autoridade judicial pode, a todo tempo, substituir o tutor ou guarda do menor, ex-officio, a requerimento do Ministério Público ou das pessoas às quais aquele for confiado. (CÓDIGO DE MENORES, 1927).
Retirados da guarda dos pais ou tutores, os menores podiam ser conduzidos para as escolas correcionais, também conhecidas como institutos disciplinares, em que eram vivenciadas as práticas de uma educação profissionalizante, nas quais foram ensinadas as práticas agrícolas ou as artes de ofícios, como a carpintaria e marcenaria. De acordo com os estudos de Rizzini, foi nesse contexto que surgiram as primeiras instituições correcionais no Brasil, que eram destinadas a abrigar as crianças e os jovens que viviam na situação de abandono e ou na delinquência. A historiadora Irma Rizzini afirma que:
A extinção da escravatura foi um divisor de águas no que diz respeito ao debate sobre o tra- balho infantil; multiplicam-se, a partir de então, iniciativas privadas e públicas dirigidas ao preparo da criança e do adolescente para o trabalho, na indústria e na agricultura. O debate sobre a teoria de que o trabalho seria a solução para o ‘problema do menor abandonado’ e/ou delinquente começava, na mesma época, a ganhar visibilidade. A experiência da escravidão havia demonstrado que a criança e o jovem trabalhador constituíam-se em mão-de-obra mais dócil, mais barata e com mais facilidade de adaptar-se ao trabalho. Nessa perspectiva, muitas crianças e jovens eram recrutadas nos asilos de caridade, algumas a partir dos 5 anos de idade, sob a alegação de propiciar-lhes uma ocupação considerada mais útil, capaz de combater a vagabundagem e a criminalidade. (RIZZINI, 2004, p. 376).
Desse modo, percebe-se que com o advento da República, houve a preocupação de tornar a criança o “futuro trabalhador”. Para Rizzini (2004), é neste período que os asilos de caridade construídos no período colonial e imperial foram transformados em institutos, escolas profissionais e patronatos agrícolas.
Percebe-se que a História da criança e do adolescente no mundo do trabalho retrata as falas e práticas do mundo adulto, que ao longo do tempo ignorou, e ainda hoje em dia ignora, a possi- bilidade de meninos e meninas vivenciarem a infância, direcionando-os, prematuramente, para o universo das fábricas, das oficinas, do trabalho agrícola e doméstico. As produções analisadas sinalizam que o discurso de educar pelo trabalho se confunde com a prática da exploração do trabalho infantil.
Debruçar-nos sobre o cotidiano dos pequenos trabalhadores nos faz perceber que o dia a dia desses agentes sociais foi permeado por conflitos e tensões. Distantes dos bancos escolares, da moradia digna e dos momentos de lazer, essas crianças e esses adolescentes buscaram sobreviver das mais formas à lógica da produção e muitos deles se tornaram homens e mulheres que supe- raram os desafios impostos pela vida. Problematizar o passado de meninos e meninas no mundo do trabalho adulto nos faz perceber as mais diferentes maneiras de sobrevivência produzida pelas próprias crianças.
Ao recorrer às delegacias, as crianças e/ou os adolescentes, denunciavam as mais diferentes formas de abuso e exploração. O caminho conduzido dos meninos ao aparato policial, sinaliza a referência ao aparato de segurança para resolução dos conflitos gerados no espaço de trabalho. As crianças que protagonizam este artigo são consideradas agentes potenciais, produtoras de uma cultura de sobrevivência, que buscavam resistir taticamente às mais diferentes formas de violências praticadas pelos adultos.
Destacamos, além do potencial dos meninos em recorrer à delegacia, o papel da imprensa policial em reproduzir as denúncias produzidas pelas crianças. As notas policiais também repre- sentam a mudança de setores da sociedade da época em que podemos perceber que a violência fazia parte do cotidiano laboral dos meninos e que tal prática deveria ser denunciada.
Ainda merece atenção a questão da sindicalização do “menor trabalhador”, o que representa uma forma de “proteção” para as crianças e para os adolescentes da época, mesmo com marcas de legitimação do “trabalho infantil”. Importante perceber que só após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, na década de 1990, o Estado passa ser responsável pela garantia do direito à profissionalização do adolescente, reafirmando a total proibição de crianças transitarem pelo universo do trabalho adulto.
Ao historicizar a questão da criança no mundo do trabalho na década de 1930, ressaltamos que, a partir da lógica da “ordem e do progresso”, o Estado passou a criar políticas públicas assisten- cialistas, com o objetivo de formar e disciplinar braços da indústria e da agricultura nacional, sendo o Código de Menores a instrumentalização jurídica para tal regulamentação. Foi neste cenário que emergiu o discurso salvacionista de que era necessário “salvar as crianças”, para que se tornassem, no futuro, cidadãos úteis à nação.
Contudo, a cultura da exploração, o “regime da tabica”, da violência física, marcava as relações sociais entre adultos e crianças. Este artigo faz-nos perceber que, diante do abuso e da exploração, as crianças resistiam e sobreviviam de diferentes formas, buscando denunciar as mais variadas formas de violência. Diante da mão que segurava forte a “tabica”, havia a força da voz denunciadora das crianças.
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