ARTIGO
Received: 03 October 2020
Accepted: 10 May 2021
DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.105086
RESUMO: Neste artigo serão analisados três movimentos que foram organizados pela classe trabalhadora brasileira em momentos diferentes da Primeira República: a formação da Liga Agrícola Industrial de Porto Alegre, fundada em 1889, na transição da monarquia para o regime republicano; o primeiro Partido Comunista do Brasil, criado a partir da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro, em 1919, no auge das mobilizações operárias do período e o Bloco Operário e Camponês, que existiu entre 1927 e 1930, em uma iniciativa que teve a participação decisiva dos militantes comunistas. O objetivo deste texto é recuperar o sentido desses movimentos utilizando o conceito de projeto político para compreender propostas de organização que pensaram uma nova conformação de poder, mas que não se constituíram de forma tradicional (como partidos) em seu modelo organizativo.
PALAVRAS-CHAVE: Projeto político, Movimento operário, Organização operária, Mobilização social, Primeira República Brasileira.
ABSTRACT: In this article, three movements that were organized by the Brazilian working class at different times during the First Republic will be analyzed: the formation of the Liga Agrícola Industrial de Porto Alegre, founded in 1889, in the transition from monarchy to the republican regime; the first Partido Comunista do Brasil, created from the Aliança Anarquista do Rio de Janeiro in 1919, at the height of the workers’ mobilizations of the period; and the Bloco Operário e Camponês, which existed between 1927 and 1930, in an initiative that had the decisive participation of the communist militants. The objective of this text is to recover the meaning of these movements using the concept of political project to understand proposals of organization that thought a new conformation of power, but that were not constituted in a traditional way (as parties) in its organizational model.
KEYWORDS: Political project, Workers movement, Workers organization, Social mobilization, First Brazilian Republic.
Introdução
A história do movimento operário brasileiro tem seu período de estudo privilegiado na Primeira República (1889-1930). Naquela conjuntura, marcada pela implantação de um regime republicano controlado por oligarquias regionais, no qual se destacavam a falta de democracia e de participação popular, os trabalhadores organizados apareceram como construtores de um espaço de mobilização e de pressão contra as classes dominantes. A historiografia destacou o papel dos militantes anarquistas que atuavam nos sindicatos fabris e promoviam atividades culturais visando a emancipação da classe. O estudo do anarquismo com acento na resistência, porém, por vezes considerou secundário o aspecto de construção e de luta pelo poder político nas iniciativas do movimento operário (MARAM, 1979; HARDMAN, 1983; CAMPOS, 1988; LOPREATTO, 2000).
Neste texto serão analisados três movimentos organizados em momentos diferentes da Primeira República: a formação da Liga Agrícola Industrial de Porto Alegre, fundada em 1889; o primeiro Partido Comunista do Brasil, criado a partir da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro, em 1919, e o Bloco Operário e Camponês, que existiu entre 1927 e 1930. Mesmo analisando movimentos tão diversos em termos de métodos, de recorte espacial e de grupos de trabalhadores envolvidos, acredito ser este um esforço válido para observar como, em diferentes momentos, surgiram pro- jetos que buscaram organizar e orientar politicamente a ação da classe trabalhadora na sociedade. Obviamente esses projetos não têm os mesmos objetivos e formatos, até porque apareceram em contextos muito distintos, mesmo assim é possível tratar esses movimentos a partir de uma perspectiva que vá além do caráter de resistência com que tradicionalmente se tem analisado o movimento operário desta época.
A ideia de projeto político no movimento operário
Tratar de projetos políticos no âmbito do movimento operário durante a Primeira República (1889-1930) não é algo simples, pois as organizações mais pujantes e visíveis daquele período eram orientadas pelo anarquismo e pelo sindicalismo revolucionário, que negavam a participação na política institucional. Por sua vez, os militantes socialistas e social-democratas construíram parti- dos políticos efêmeros, que tentavam atuar em um quadro institucionalmente muito excludente dominado pelas oligarquias regionais. Mesmo os militantes comunistas atuaram em um contexto marcado pelo Estado de Sítio e por leis de exceção que dificultaram sua atuação pública. Mesmo assim, é possível (e necessário) falar dos projetos políticos construídos pelos militantes que viveram aquele ciclo histórico.
Entendo por projeto político um plano para ação coletiva na sociedade, com forte tendência estruturadora, que vai além do caráter puramente institucional do poder. Tenho consciência que estou usando esse conceito para designar algo que os sujeitos contemporâneos ao período aqui estudado talvez não designassem dessa forma; mesmo com essa ressalva, a utilização dessa categoria pode ajudar a analisar uma série de fenômenos sem necessária ligação uns com os outros, mas que, em minha opinião, apontam para objetivos semelhantes.
A ideia de projeto político traz outra complicação em relação àquele contexto, pois, quando me refiro a projetos políticos, também faço referência a projetos de poder. Os anarquistas e os sindicalistas revolucionários combatiam a institucionalização do poder, daí terem sido caracterizados como ácratas. Essa característica acentuou-se depois da divisão entre anarquistas e comunistas; estes se distinguiam por pregar a conquista do Estado para realizar seus objetivos revolucionários. Apesar da ênfase liber- tária nos discursos que pregavam a destruição do Estado e no posterior reforço da tese de que algumas atitudes tomadas pelos anarquistas (como o entusiasmo pela Revolução Soviética e a formação de um Partido Comunista em 1919) terem sido considerados equívocos que não comprometeriam o caráter ácrata das mobilizações (RODRIGUES, 1972), são claros os sinais que apontam para o surgimento de projetos políticos que contemplavam a face positiva do poder. Nesse sentido, o projeto político tem um caráter propositivo em relação a estruturas sociais mais amplas, com perspectiva de totalidade, transcendendo aspectos apenas de resistência ou oposição sistemática.
O antropólogo Gilberto Velho, em seu livro Projeto e metamorfose: antropologia das socieda- des complexas, define projeto como uma conduta organizada para atingir finalidades específicas, formuladas em um campo de possibilidades, que teria uma dimensão sociocultural como espaço para a formulação e implementação (VELHO, 1994, p. 40). Para além da concepção antropoló- gica, vale a pena avançar para o sentido histórico da ação da classe trabalhadora e de outros grupos subalternos a partir de proposições formuladas pelo teórico marxista italiano Antônio Gramsci, que se preocupou como poucos com as possibilidades e limites da ação política do proletariado na sociedade capitalista.
Para o comunista sardo, os grupos subalternos são caracterizados pela sua dispersão política; inclusive, essa seria uma das marcas mais relevantes para estudar seu comportamento. Gramsci sugere, porém, que existem diferentes estágios de organização política conforme as diferentes circunstâncias históricas e que o grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais pode ser feito a partir de uma escala de três níveis: o mais elementar, econômico-corporativo, no qual desponta a defesa de interesses mais imediatos de grupos profissionais; o segundo, a partir da defesa de interesses comuns mais abrangentes, onde aparece também a reivindicação de igualdade política e jurídica com as classes dominantes, e um terceiro nível, superior, onde se coloca a questão de um plano político mais amplo:
Essa é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em “partido”, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma com- binação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não num plano corporativo, mas num plano ‘universal’, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subalternos (GRAMSCI, 2000, p. 40-41).
Pode ser entendido o conceito de projeto político, no âmbito do movimento operário, como o tipo organização que atinge patamares mais complexos e socialmente amplos, desenhando-se um projeto de hegemonia política da classe trabalhadora. Poderiam ser entendidos por projetos polí- ticos tanto a fundação de um partido institucional quanto a divulgação de um programa político ou mesmo a formação de uma associação com caráter sindical, quando transcendessem a estrita função de luta econômica. Nesse artigo, vou analisar três projetos que fogem da forma tradicional que imaginamos as organizações políticas, o que pode ajudar a perceber que este conceito serve para formas variadas de associação.
Esse estudo se encontra na intersecção da história social do trabalho, com os pressupostos da história política. Mesmo que exista, muitas vezes, resistência em analisar a história da classe operária a partir de uma perspectiva política, é necessário tratar estes elementos a partir de uma lógica complementar. Como demonstra Diorge Konrad, o historiador que analisa as formas de manutenção e resistência ao poder não privilegia unicamente o fator político institucional, mas todas as formas de poder espraiadas na sociedade. Ao tratar de um tema como ideias e projetos políticos, não há outra saída senão considerar todos esses elementos em conjunto.
Partindo dos elementos da história política e social, é possível reconstruir as alternativas his- tóricas propostas pela classe trabalhadora de forma mais abrangente. Mesmo se tratando de lutas fragmentárias, pouco preservadas pela memória coletiva, seria possível reconstruir este processo; porém “só é possível reconstruí-lo fora de uma leitura localista, ‘regional’ e fragmentária e dentro de uma leitura das lutas sociais e políticas entrelaçadas pelas contradições horizontais e verticais das mesmas” (KONRAD, 2004, p. 9-12). Apesar do estudo de Konrad se dedicar à análise de outro momento histórico, essas colocações servem de exemplo e de advertência à perspectiva que estou aqui apresentando. Neste caso, mesmo estudos com recortes locais não poderiam perder o caráter universal do projeto político, contrários à fragmentação e ao particularismo.
Outro ponto que deve ser ressaltado é que estudar os diversos projetos constituídos pelos operários não é a mesma coisa que estudar suas ideologias. Neste artigo, não é minha intenção analisar, por exemplo, as ideias dos republicanos, anarquistas ou comunistas, mas estudá-las em função de planos e estratégias que foram pensados por militantes que defendiam essas ideias. Isso ajuda a pensar que as ideias e os projetos não são a mesma coisa e estudar um desses aspectos não é o mesmo que assimilá-lo ao outro.
Projetos políticos foram constituídos pela classe trabalhadora desde que ela começou a se organizar. Esses projetos cresceram e se modificaram ao longo dos anos, acompanhando as diferen- tes formas de organização e as diferentes ideias políticas que eram defendidas pelos militantes. A seguir, pretendo mostrar como a lógica de construção desses projetos atuou em diferentes períodos e contextos da Primeira República.
A Liga Agrícola Industrial de Porto Alegre e um projeto político para o “bloco do trabalho” (1889-1892)
Os anos finais do Império foram marcados pela intensificação da campanha abolicionista, com a ampliação da luta dos trabalhadores escravizados por sua liberdade e um apoio crescente à causa da abolição, e pelo aumento da propaganda republicana, com críticas cada vez mais agudas aos partidos da monarquia (Liberal e Conservador), identificados com uma realidade que deveria ser mudada para garantir o progresso da sociedade. Após a Abolição e a Proclamação da República (1888-1889) se abre no Rio Grande do Sul um novo período de mobilização social e política, pois a mudança de regime ensejou uma série de lutas envolvendo o modelo político a ser adotado. O Partido Republicano Riograndense (PRR), de orientação positivista, disputou com diferentes frações a proeminência política sobre o Rio Grande do Sul, em um processo que levou à Guerra Civil contra os federalistas (1893-1895) e à consolidação da liderança de Júlio de Castilhos no cargo de Presidente do Estado, além do domínio político do PRR pelas décadas seguintes da Primeira República.
Nesse contexto, surge o primeiro projeto político estruturado pelos trabalhadores no Rio Grande do Sul, a partir da formação de Ligas Operárias que reuniam um grupo social que Beatriz Loner denominou “bloco do trabalho”. Esse grupo era composto por artesãos, operários e pequenos industriais que se articularam na busca da defesa dos seus interesses em uma sociedade marcada pelo domínio de uma aristocracia rural e pela predominância dos interesses agrários, mas que também sentia os efeitos da expansão do trabalho livre, do aumento da urbanização e do avanço de uma indústria incipiente.
As primeiras tentativas de organização política dos trabalhadores foram feitas dentro do bloco dos interesses do trabalho, acompanhando a situação da sociedade brasileira, que apenas iniciara seu processo de diferenciação urbana. Tendo que dar seus primeiros passos numa sociedade ainda voltada prioritariamente aos interesses rurais e que atendia suas necessidades de produtos manufaturados ou industrializados via importação europeia, é quase natural que o setor do trabalho pensasse em lutar unido para o reconhecimento da importância da indústria nacional. Sucederam-se várias tentativas naqueles primeiros anos, algumas regionais, outras nacionais, mais ou menos articuladas entre si, tentando encontrar formas de partici- pação política e expressão de seus interesses, com variados graus de definição ideológica e articulação interna (LONER, 2010, p. 112).
As primeiras propostas nesse sentido que foram articuladas na capital do Rio Grande do Sul se deram a partir de setembro de 1887, com a criação do Club Artístico Porto-Alegrense. A fundação dessa sociedade se deu na sede da Beneficência Porto-Alegrense, associação caritativa com forte penetração popular na capital da província. A nominata de suas direções contava com membros de profissões diversas, como os tipógrafos Agostinho José Lourenço, o ourives Felippe Jeanselme, o funileiro Affonso José Ferreira da Silva, além de outros como José da Silva Lima e Antônio Baptista de Freitas, indicados apenas como artistas. Da mesma forma, esses mesmos diretores pertenciam a diversas origens étnicas e raciais, havendo operários negros, a exemplo de Francisco Xavier da Costa e Jacintho Gomes Praxedes Filho, como trabalhadores brancos de diferentes origens europeias, como Felix Grivot, João Weirich e Egysto Girolani.1 A fundação do Club Artístico é um marco importante, pois significou um primeiro avanço em uma perspectiva de classe, já que rompia com a lógica dominante naquele momento de criar sociedades de auxílio mútuo que se articulavam a partir de uma profissão ou de uma origem étnica específica. Neste caso, a identidade de “artista”, reunindo um grupo diversificado de trabalhadores, colocava-se como principal fator de amálgama entre esses sujeitos.
O Club não teve uma existência duradoura e foi criada no ano seguinte a Sociedade Beneficente União Operária (SBUO), em junho de 1888. Alguns membros do Club também faziam parte da Sociedade, o que pode significar uma continuidade entre elas. Essa agremiação, no entanto, teria uma existência mais longa e mais importante para o projeto político organizado no seio da classe trabalhadora de Porto Alegre. Já no segundo mês de existência ela contabilizava mais de 200 sócios e seus diretores eram eleitos a partir de uma lógica territorial da cidade, existindo um diretor para o primeiro, segundo e terceiro distrito da capital. No ano seguinte a Sociedade ampliava sua ação beneficente a partir da instalação de aulas noturnas, da fundação de uma biblioteca e da criação de um jornal chamado O Operário.
Em janeiro de 1889, foi fundada a Liga Agrícola Industrial. A LAI era especificamente um organismo de ação política deste “bloco do trabalho”, que já vinha se organizando em bases mutualistas. Como aponta Beatriz Loner, a formação dessa agremiação estava em consonância com a formação de outros Centros Agrícolas e Industriais em Rio Grande e em Pelotas, que tinham como um dos seus principais objetivos lutar contra a “tarifa especial” proposta pelos liberais que facilitava a importação de manufaturados e prejudicava a incipiente indústria nacional (LONER, 2010, p. 127). No caso de Porto Alegre, porém, o caráter de representação política ganhava um acento especial, já que, nas eleições provinciais de dezembro de 1888, a União Operária havia apoiado José Manuel da Silva Só como “candidato das artes” na chapa do Partido Liberal. Uma vez empossado, o candidato não defendeu a bandeira protecionista, mas a plataforma do partido pelo qual havia sido eleito. Esse fato parece ter sido decisivo para a criação de um projeto político próprio (O OPERÁRIO, 1889, p. 1).
Entre os fundadores, se destacam nomes como o industrialista Francisco Herzog, o alferes João José de Brito e o operário Nicolau Tolentino da Soledade. Entre as bandeiras defendidas no ato de fundação da Liga Agrícola Industrial estavam a defesa do protecionismo, da abertura de vias de comunicação, a extensão do direito do voto, o imposto equitativo e a extensão do poli- ciamento (A FEDERAÇÃO, 1890, p. 2). A Liga foi criada com a participação de trabalhadores de São Leopoldo, representando a expansão deste projeto para outro centro urbano próximo da capital. Assim como a SBUO, a LAI também lançaria um jornal O Productor, em agosto daquele ano, publicando edições em português e alemão.
No jornal O Produtor, o programa da Liga Agrícola Industrial seria esmiuçado, no sentido de reforçar a necessidade do protecionismo, entendido como defesa das classes produtoras (industriais, artesãos e operários), defendendo também a necessidade da ampliação da educação, do direito de participação política pela ampliação do direito do voto e da promoção da dignidade e combate ao preconceito contra os trabalhadores, visto que o país recém estava saindo da escravidão. A LAI se colocava como órgão de representação política desse mundo do trabalho, procurando defender seus interesses, o que não era feito pelos partidos monárquicos. Nesse sentido, o mesmo jornal justificava a escolha do republicano Ramiro Fortes Barcellos como candidato da Liga para as Eleições Gerais daquele ano, pois era quem mais se aproximava do programa defendido pela associação (O PRODUTOR, 1889, p. 1-3). Mesmo que a LAI não se vinculasse diretamente aos republicanos, este caminho estava aberto, visto que esses estavam mais aptos para defender os interesses do “bloco do trabalho”.
Com efeito, quando a República foi proclamada, a LAI e a SBUO participam das comemo- rações oficiais e das solenidades em torno do dia 15 de novembro e da comemoração dos 30 dias de Proclamação da República (PACHECO, 2001, p. 99-110). A ocasião demonstrou-se uma ótima oportunidade para ampliar a participação política dos trabalhadores no seio da nova República. Nesse sentido, pode ser entendida, por exemplo, a publicação da proposta de formação de um Partido Socialista, que apareceu no A Federação em fevereiro de 1890, e que provavelmente foi uma iniciativa de membros mais avançados da LAI que acabou não se concretizando (A FEDERAÇÃO, 1890). Essa participação, no entanto, acabou se reduzindo nos meses seguintes ao apoio dado às pautas do PRR, como a participação na campanha contra o Banco Emissor em abril e o apoio dado aos candidatos republicanos nas Eleições Constituintes de setembro de 1890.
Este apoio ao Partido Republicano, se por uma parte possibilitava a abertura de um canal de comunicação aos membros da LAI, que agiam como representantes dos trabalhadores no novo cenário político, também se configurava como uma limitação, pois sacrificava sua autonomia às desventuras da política oficial. Durante o primeiro ano do novo regime, os republicanos se dividiram entre os apoiadores de Júlio de Castilhos e seus dissidentes (como Assis Brasil, Demétrio Ribeiro e Barros Cassal), atingindo diretamente a organização política do mundo do trabalho. Em outubro deste ano surge o Centro Operário, próximo de Cassal e Ribeiro, enquanto em dezembro vai ser fundada a Liga Operária, alinhada a Castilhos (PACHECO, 2001, p. 99-110).
Nas eleições de maio do ano de 1891, para a Constituinte Estadual, o Centro Operário apre- sentou uma chapa própria com nomes de lideranças oriundas da LAI e da SBUO, como Guelfo Zaniratti, Bartholomeu Chana e João Von Held, enquanto a Liga Agrícola Industrial participaria da chapa castilhista com Johannis Steenhagen, um industrial de origem holandesa que desempe- nhava o papel de Presidente da associação. Destes, apenas Steenhagen foi eleito apresentando-se como “candidato dos operários”. As divisões se aprofundam com o Golpe de 3 de novembro de 1891, em que Deodoro da Fonseca fechou o Congresso Nacional, o que deu origem a um movi- mento que depôs Júlio de Castilhos (recém-eleito Presidente do Estado), em que se destacaram a participação de antigos membros da LAI, como Zanirati e Von Held. Como consequência desses acontecimentos, a Liga Agrícola Industrial, assim como o Centro Operário e a Liga Operária, se dispersariam no ano seguinte, vítimas das lutas internas que marcaram a implantação da República no Rio Grande do Sul.
Dessa forma, o projeto político constituído pelo “bloco do trabalho”, para defender os inte- resses de operários, artesãos e pequenos industriais acabou se perdendo em meio às disputas entre as facções políticas que lutavam para controlar os rumos da implantação da República no Rio Grande do Sul. Uma parte desses militantes acabou aderindo a estes projetos representados pelas elites políticas ou então se tornaram parte da burguesia de Porto Alegre, deixando de se identificar como operários. Outros militantes adotariam uma postura crítica ao atrelamento das organizações operárias. Mais tarde, a partir da penetração das ideias social-democratas entre a classe trabalhadora da capital, a experiência da Liga Agrícola Industrial seria um importante ponto de crítica em favor da autonomia das organizações de classe em relação ao Estado e à burguesia.
O Partido Comunista do Brasil de 1919 e o esforço para a construção de uma ampla frente revolucionária (1917-1919)
Durante a década de 1910, os anarquistas haviam conseguido a hegemonia sobre diversos sindicatos nos principais centros industriais do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. Essa hegemonia havia sido conseguida a partir de uma perspectiva que privilegiava a organização e a atuação nos sindicatos em detrimento da construção de partidos institucionais, como faziam os socialistas e social-democratas. Como aponta Tiago Bernardon de Oliveira, os anarquistas adotaram uma série de pressupostos do sindicalismo revolucionário, como defesa da atuação nos sindicatos a partir da neutralidade política para fortalecer sua posição entre os trabalha- dores e afastar a influência dos socialistas, que defendiam a ligação do movimento trabalhista com suas organizações políticas (OLIVEIRA, 2010, p. 177-192). Isso fez com que os anarquistas que atuavam nos sindicatos, articulados a partir da Confederação Operária Brasileira e de Federações locais, reforçassem ao longo do tempo seu discurso de ataque à política institucional e às instâncias de poder na sociedade burguesa, identificando-as como articulação entre o Estado, o Exército, o Clero e a Burguesia.
Depois da deflagração da Primeira Guerra Mundial, em 1914, o movimento operário entrou em uma fase de descenso, por conta da crise econômica que se abateu sobre a economia brasileira. Ao longo dos anos de conflito, se acumularam contradições oriundas do crescimento da indústria nacional (por conta da substituição de importações), da desvalorização dos salários e do aumento da carestia de vida. Essa conjuntura particularmente explosiva desembocou na onda de greves que tiveram lugar no Brasil durante o inverno de 1917. A principal delas foi a Greve Geral de São Paulo, entre julho e agosto daquele ano, que acabou influenciando greves gerais ou generalizadas em Porto Alegre, Curitiba, Recife, Rio de Janeiro e Belém. Para além do cenário de intensa mobilização, também se vivia o período inicial da Revolução Russa, que demonstrava a possibilidade concreta da derrubada de um governo aristocrático por uma revolução proletária.
As Greves de 1917 trouxeram mudanças nas perspectivas políticas dos militantes anarquis- tas e isso pode ser visto na própria condução do movimento. Em São Paulo, onde se destacava a atuação de lideranças como Edgar Leuenroth e Gigi Damiani, formou-se um Centro de Defesa Proletário, que conduziu a greve e negociou as condições da paralisação de diversas categorias com intermediários do patronato e do governo. No Rio Grande do Sul, a Liga de Defesa Popular, onde pontificavam nomes como Polidoro Santos e Henrique Martins, tomou o controle da capital e entabulou negociações diretamente com o governo estadual (LOPREATO, 2000; SILVA JR., 1994).
Esse modelo de ação já se diferencia da atuação sindical, pois projetava o movimento operário para além de seus limites de categoria, exercendo, de fato, o papel de vocalizador das reivindicações populares coletivas diante dos poderes públicos. Esse potencial de organização política se torna mais claro ainda em uma proposta lançada pelo Centro de Defesa Proletário de convocar grupos anarquistas, socialistas e sindicalistas de todo o país para um Congresso Geral da Vanguarda Social do Brasil, a ser realizado em outubro daquele ano e que seria organizado pela Confederação Operária Brasileira (A PLEBE, 1917, p. 2). Além da conjuntura nacional, as notícias que vinham do exterior vão servir para alargar o horizonte revolucionário dos militantes, pois em novembro de 1917 os bolchevistas assumem o poder na Rússia, configurando a vitória da Revolução Proletária. Esse fato vai ter um grande impacto no movimento operário brasileiro nos anos seguintes.
Durante o ano de 1918, começaram a surgir projetos políticos em diferentes partes do Brasil que procuravam refletir tanto esse impacto da Revolução Russa, quanto o avanço das lutas do movimento operário brasileiro: em Maceió, Otávio Brandão fundou a Congregação Libertadora da Terra e do Homem, cujo objetivo era fomentar a revolução agrária; em Porto Alegre, Abílio de Nequete constitui a União Maximalista, para seguir o exemplo dos revolucionários russos, e no Rio de Janeiro foi criada a Aliança Anarquista, objetivando unificar os diferentes grupos libertá- rios em uma perspectiva de defesa da Revolução Social. Este último grupo vai ser o responsável pela Insurreição de 18 de novembro de 1918, no Rio de Janeiro, quando se articulou uma Greve Geral que deveria coincidir com um levantamento militar, para derrubar o Presidente Delfim Moreira e instalar uma República dos Soviets no Brasil. A traição do contato militar deste grupo provocou repressão e desorganização temporária do movimento, mas o empenho em um projeto revolucionário não foi abandonado por parte dos militantes (BANDEIRA, MELO, ANDRADE, 1967; ADDOR, 1986).
O revés da Insurreição Operária no Rio de Janeiro não foi entendido como uma derrota definitiva de um projeto político revolucionário, até mesmo porque durante o mês de novembro também eclodiu na Europa a Revolução Alemã, que era esperada por muitos militantes como um sinal para o início de um movimento revolucionário em escala mundial. Em março de 1919, os membros da Aliança Anarquista fundaram o Partido Comunista do Brasil, com o objetivo de tornar mais orgânicas e aglutinadas as forças que lutavam pela Revolução Social. Imediatamente são remetidas para diversos centros as bases de acordo e um programa incitando a fundação de núcleos deste primeiro PCB em diferentes regiões do país. No programa são apresentados pontos defendidos pela organização como abolição da propriedade privada e socialização dos meios de pro- dução, regulação da produção, trabalho obrigatório, educação racional e liberdade de pensamento. Ao final, quanto aos objetivos e métodos de ação, o mesmo programa defendia a unidade entre os revolucionários, a propaganda de seus princípios e a necessidade de articulação internacional para o desenvolvimento de suas lutas:
Este programa, em síntese, é suscetível de reformas de acordo com a evolução que se operar ao povo, e, para obter sua realização, o partido adota como meio de ação a propaganda falada e escrita a todas as pessoas do Brasil, até estabelecer uma aliança de indivíduos de diversas classes que possam garantir o êxito da transformação que o Partido Comunista do Brasil se propõe a realizar. A ação do Partido consiste na propaganda sistemática, por todo o país, do socialismo integral ou comunismo e na arregimentação e educação do proletariado em geral para a conquista dos poderes públicos - único meio pelo qual poderá realizar seu programa. A propaganda será feita por meio de folhetos, manifestos, comícios, conferências, representações teatrais, etc. e por meio de um semanário que será o órgão oficial do partido (Este periódico se tornará diário quando as circunstâncias permitirem). Fiel aos princípios da Internacional, o Partido Comunista do Brasil manterá relações com todos os seus afins do exterior, com os quais será solidário (PARTIDO COMMUNISTA DO BRAZIL, 1919).2
Este primeiro PCB teve um papel muito importante nas mobilizações operárias na Capital Federal, como as manifestações de 1º de maio daquele ano que atraíram mais de 60 mil pessoas. Nos meses seguintes, surgiu o jornal Spartacus, dirigido por José Oiticica; foi fundada a Liga Comunista Feminina organizada pela militante Elisa Gonçalves; surgiram diversos núcleos comu- nistas em diferentes estados brasileiros e outras organizações já existentes também procuraram se vincular ao nascente PCB. Em junho daquele ano foi realizado no Rio de Janeiro e em Niterói o primeiro Congresso do Partido, que reuniu militantes anarquistas, sindicalistas e aqueles que se identificavam como maximalistas (defensores do bolchevismo). Como orientação, decidiu-se pela chamada de congressos regionais e um novo encontro nacional no final daquele ano (BARTZ, 2014, p. 144-169).
Naquele momento tratava-se de construir uma ampla frente revolucionária, retomando a ideia do Congresso de Vanguardas, hegemonizada pelos anarquistas. Os libertários, nesse momento, se abriram para a influência da Revolução Russa, que mostrava um modelo concreto para a tomada do poder. Nesse sentido, a fundação do PCB de 1919 é um passo muito importante na construção de um projeto político que visava não apenas a destruição do poder oligárquico, mas também contem- plava a face positiva da conquista e da organização do poder político por parte da classe operária. Por esta razão, ao largo dessas tarefas organizativas, também se desenvolvia o trabalho insurre- cional, com o esforço dos militantes para articular uma revolta que deveria ser iniciada em diversos locais simultaneamente a partir da deflagração de uma Greve Geral em São Paulo. Um acidente no local onde eram preparados os explosivos para a ação acabou por revelar os planos dos militantes operários à polícia. A greve foi deflagrada, mas a repressão que se seguiu foi muito intensa, desar- ticulando os planos revolucionários, como recorda Everardo Dias, umas das principais lideranças daquele movimento (DIAS, 1962, p. 90-92).
Mesmo com a repressão dessa Insurreição Operária de São Paulo, o PCB de 1919 teve um papel importante na constituição de um projeto político revolucionário que buscava a unificação dos diferentes grupos e militantes identificados com a Revolução Social, conformando uma frente ampla que contemplava também o trabalho insurrecional. Esse projeto teria um prosseguimento nos anos seguintes, reconfigurando o movimento operário brasileiro a partir de outras perspectivas organizativas, como mostra a fundação do segundo PCB em 1922.
O Bloco Operário e Camponês e a luta pela representação política da classe trabalhadora brasileira (1927-1930)
O Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922, era composto por quadros oriundos majoritariamente das lutas sindicais influenciadas pelo anarquismo. Embora alguns militantes pudessem ser classificados originariamente como livres pensadores, como Abílio de Nequete e Otávio Brandão, ou socialistas, como Cristiano Cordeiro, o peso da influência de militantes oriun- dos das fileiras libertárias que aderiram ao bolchevismo era bastante proeminente. Nesse sentido, vai existir uma lenta adaptação desses militantes a uma nova orientação política, que colocava em pauta questões novas, como a participação na política institucional. Diferente do primeiro PCB, criado como uma frente ampla de militantes revolucionários, o novo partido deveria ser mais bem estruturado e seguir as orientações da Internacional Comunista, que preconizava, entre outras coisas, a participação das suas organizações nas contendas eleitorais, já que a política parlamentar também era um espaço para o fomento à luta de classes.
Além de não ter uma experiência consolidada nas lutas eleitorais, também havia outras difi- culdades para a participação política do PCB, como a estrutura política oligárquica da Primeira República e o Estado de Sítio que se inaugura com a Presidência de Arthur Bernardes, em 1922. Nessa conjuntura, o Partido Comunista terá de construir uma estratégia eleitoral, que vai ser parte fundamental de seu projeto político. Mas, para esta construção, era necessário também seguir as orientações internacionais que vinham da Internacional Comunista, que preconizava para aquele momento a formação de frentes com partidos socialistas e social-democratas, para enfrentar uma fase de estabilização do capitalismo e reação burguesa, que se seguiu ao período revolucionário aberto com a Revolução Russa em 1917 (KAREPOVS, 2006a, p. 34). Foi nesta confluência de diferentes condicionamentos que se constituiu o projeto político do Partido Comunista durante a década de 1920.
Alguns autores sustentaram uma dura crítica à atuação do PCB nesse período, afirmando que este partido, a partir das orientações vindas da Internacional Comunista, havia criado uma estratégia política afastada da realidade brasileira, tendo dificuldade de levar em conta as condições políticas locais (PINHEIRO, 1992). No entanto, a construção do Bloco Operário e Camponês (BOC), principal projeto político dos comunistas na década, mostra que os militantes fizeram uma série de mediações para a constituição dessa proposta. Como afirma Dainis Karepovs, a ideia de um Bloco Operário foi proposta por Trotsky nas eleições francesas de 1922, visando unificar os grupos políticos ligados à classe trabalhadora sob a hegemonia dos militantes comunistas (KAREPOVS, 2006a, p. 37). No Brasil, as primeiras experiências visando a formação de uma aliança por parte dos comunistas foram feitas com a Confederação Sindicalista Cooperativista Brasileira (que os comunistas vagamente podiam identificar com a social-democracia), resultando na abertura de um espaço no jornal O Paíz, do Rio de Janeiro, onde a CSCB tinha uma coluna para divulgar suas ideias. Mesmo que a aliança tenha sido desfeita logo em seguida, serviu para acumular experiência na construção de seu projeto (GOMES, 2005, p. 148-155).
Este aprimoramento viria em 1925, na cidade de Santos, principal porto do país, com uma grande população proletária. O Grupo Comunista de Santos, seguindo as orientações do II Congresso do PCB, decidiu participar do processo eleitoral em seu município. Nesse processo foi criado um Partido Trabalhista, que logo vai ser substituído (para não criar confusões) por uma Coligação Operária. Esse organismo não foi composto apenas por adesões individuais, mas reuniu também organizações sindicais de importantes categorias da cidade, como a Sociedade dos Trabalhadores em Carga e Descarga do Porto de Santos. Mesmo que a Coligação não tenha alcançado um bom desempenho, inclusive pelos problemas com o alistamento eleitoral, essa experiência serviu aos desenvolvimentos posteriores que seguiriam pelos próximos anos (KAREPOVS, 2006b, p. 182-202). Em 1927, com o final do Estado de Sítio, o PCB pode apresentar seu programa publicamente através do jornal A Nação. Além disso, neste momento o partido também lançou o Bloco Operário, com um chamamento visando às eleições para Deputado Federal que iriam ocorrer naquele ano. As negociações para composição do Bloco já vinham sendo feitas desde o ano de 1926, mas a declaração pública buscava delimitar o espaço de uma verdadeira candidatura operária para o par- lamento, para que, pela primeira vez, os trabalhadores se apresentassem como classe nessa disputa. Atenderam ao chamado o Deputado Azevedo Lima, além de agremiações que já possuíam uma afinidade com os comunistas, como o Centro Político Proletário da Gávea e de Niterói.
O Bloco seria fundado nos marcos de uma política de ‘frente única’, a qual tinha por objetivo unificar e juntar os esforços de todos eles, em razão de sua ‘afinidade básica de interesses’, para a disputa eleitoral. Esse grupo teria como base as ideias apresentadas na carta aberta e uma plataforma ali também exposta. Realizada a frente única, pretendiam iniciar o que chamavam de ‘saneamento da política’ (KAREPOVS, 2006a, p. 56).
Mas a frente não era apenas eleitoral, pois o Bloco apresentava um programa muito avançado socialmente que defendia o reconhecimento da URSS, o estabelecimento de um salário mínimo, o máximo de oito horas de trabalho diárias, o direito ao voto feminino, a extensão do ensino obrigatório e ajuda à população rural. Com uma rotina intensa de comícios, o BOC garantiu a eleição de Azevedo Lima para a Câmara de Deputado pelo Distrito Federal e um significativo número de votos para João da Costa Pimenta, candidato que era uma das lideranças do PCB. O resultado foi considerado uma vitória, não apenas pelos sufrágios, mas pela propagação das ideias defendidas pelo Bloco.
Esse panorama de legalidade mudou em agosto daquele ano, quando foi aprovada a chamada “Lei Celerada”, que dava poder ao Governo de fechar qualquer agremiação que cometesse “atos contrários à ordem”. A lei se voltava contra os tenentes revoltosos, mas também contra as organi- zações operárias. Com isso, o PCB caiu novamente na ilegalidade, o que vai incidir diretamente nos rumos de seu projeto político: a partir deste momento, o Bloco Operário vai se transformar na organização de massas dos comunistas, um instrumento para engajar um número cada vez maior de trabalhadores em uma organização em que os trabalhadores podiam apresentar-se publi- camente. O Bloco Operário aprovou seus novos estatutos e passou a se chamar Bloco Operário e Camponês (BOC). Além disso, atendendo ao espírito de frente, esse será também o instrumento para se aproximar da ala esquerda dos tenentes, representada por Luís Carlos Prestes.
Com essas novas orientações surgiram diversos Comitês do BOC, como o Comitê Eleitoral das Mulheres Trabalhadoras, que contava com lideranças como a tecelã Maria Lopes e a escritora Laura da Fonseca e Silva Brandão, defendendo que fossem eleitas “mulheres pobres que saibam defender os interesses das trabalhadoras de todo o Brasil”. Também são formados comitês em diversas localidades, principalmente em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Neste último estado, a Formação do BOC, em fins de 1928, foi um dos fatores responsáveis pela dinamização do movi- mento operário, com um crescimento do número de greves e outras mobilizações durante o ano de 1929 (PEIXOTO, 2006, p. 108-153). A partir de um intenso trabalho de base, dois candidatos do BOC foram eleitos Intendentes (o que corresponderia aos atuais vereadores) do Distrito Federal em fevereiro de 1929, Minervino de Oliveira e Otávio Brandão. Era a primeira vez que os comunistas chegavam ao parlamento. Nesse momento, inclusive, já era discutida a participação do BOC nas eleições presidenciais de 1930, cuja esperança recaia em atrair Luís Carlos Prestes para o Bloco (KAREPOVS, 2006a, p. 71-118).
Nesse período, porém, a Internacional Comunista passava por um processo de reorientação de sua linha política: a partir de 1928, aderindo a uma leitura de que a realidade estava mudando e o capitalismo deixava para trás sua fase de estabilidade, a IC abandonou a orientação de frente única e passou para o enfrentamento de classe contra classe, identificando os social-democratas como inimigos a serem combatidos. Uma das principais críticas feitas aos comunistas brasileiros era justamente sobre o papel do Bloco Operário e Camponês, que “ocultaria” o PCB atrás de sua representação legal. Além disso, os militantes eram acusados, pela sua política de aproximação com Prestes, de ficar a reboque da pequena burguesia.
Essas orientações não chegaram imediatamente ao Brasil, pois também são mediadas pelos processos internos dos militantes nacionais, mas a partir de fins de 1929 esta linha se aplicou com cada vez mais força entre os comunistas brasileiros. Isso ficaria claro em seu I Congresso, realizado em novembro, quando a organização mudou o seu nome para Bloco Operário e Camponês do Brasil (BOCB). Nesse encontro escolheu-se como candidato à presidência o operário marmorista Minervino de Oliveira e também houve uma reorientação na linha política, no sentido de uma radicalização de suas propostas e de sua linguagem. Ao mesmo tempo em que sofria essa pressão externa, à medida que se aproximavam as eleições, a repressão ao movimento operário se intensi- ficou muito, desmantelando a estrutura do Bloco junto aos trabalhadores. Nas eleições de março de 1930, a votação de Oliveira foi menor que os votos dados aos intendentes do Distrito Federal, mostrando a mudança na conjuntura. Logo após as eleições, o Bloco seria dissolvido, por orientação da própria Internacional (KAREPOVS, 2006a, p. 165-195).
O Bloco Operário e Camponês foi a expressão de um projeto político que associava a partici- pação política institucional com o movimento de massas. Não se pode considerar o BOC apenas como uma expressão eleitoral do PCB, já que ele acabou servindo para arregimentar a classe tra- balhadora em uma perspectiva que ia bastante além das eleições. Mesmo que tenha sido dissolvido e desmantelado pela repressão, representou um projeto exitoso em seu objetivo de fazer com que a luta eleitoral também fosse um vetor de mobilização social.
Conclusão
Ao longo deste artigo procurei demonstrar que o conceito de projeto político é válido para o movimento operário durante a Primeira República, significando uma ampliação do conceito da atuação política institucional para projetos que buscavam exercer a hegemonia entre os trabalhado- res, ao mesmo tempo em que contemplavam uma concepção de poder. Está claro que os exemplos que foram aqui analisados não esgotam os projetos constituídos pela classe trabalhadora neste período histórico, mas são bons exemplos de organizações que atuaram a partir de perspectivas não limitadas ao campo institucional. Isso não quer dizer que um partido político não possa ser a expressão de um projeto político, mas os exemplos tomados ao longo do texto ajudam a tornar esse arcabouço mais amplo e podem servir de modelo para pensar ações organizativas a partir de uma perspectiva mais plural.
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