ARTIGO
Received: 10 October 2020
Accepted: 12 July 2021
DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.105278
RESUMO: Ao longo de várias décadas, diversos intelectuais brasileiros dedicaram-se aos estudos sobre as tradições populares. Durante muito tempo, os trabalhos desses intelectuais ajudaram a idealizar a produção popular, imobilizando-a numa temporalidade e espacialidade que a deixaram deslocada do mundo no qual estava inserida, sendo sempre associada à ideia de passado. No entanto, algumas mudanças ocorridas em meados do século XX modificaram os sentidos atribuídos à cultura popular, que passou a ser significada não apenas a partir da perspectiva da tradição, mas de outros elementos que a associaram a novas temporalidades. O objetivo deste artigo é refletir, a partir da análise de um conjunto documental, como jornais e documentos governamentais, sobre a historicidade dos sentidos atribuídos à cultura popular na década de 1970, ou seja, analisar como um objeto construído predominantemente na ideia de passado (de imobilidade e permanência) pôde se integrar a uma temporalidade moderna.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular, Temporalidades, Ceará.
ABSTRACT: Over several decades, several Brazilian intellectuals have dedicated themselves to studies on popular traditions. For a long time, the work of these intellectuals helped to idealize popular production, immobilizing it in a temporality and spatial space that were moved to the world in which they were introduced, always associated with the idea of the past. However, some changes that occurred in the middle of the 20th century modified the meanings attributed to popular culture, which became significant and not only from the perspective of tradition, but other elements that associate them with new times. The aim of this article is to reflect, from the analysis of a set of documents, such a newspapers and government documents on the historicity of the meanings attributed to popular culture in the 1970s, and to analyze how an object created predominantly in the idea of the past (of immobility and permanence) that is displayed as a modern temporality.
KEYWORDS: Popular culture, Temporality, Ceará.
Introdução
Em 1952, Waldery Uchôa1 deu início à publicação do Anuário do Ceará, atividade que permaneceu até 1963, quando foi interrompida, não se sabe por que motivos. Passados oito anos, outros dois jornalistas, Dorian Sampaio2 e Lustosa da Costa3, retomaram a edição da publicação, que foi um importante documento sobre o Ceará numa nova ordem nacional4 que se estabelecia naquele momento e num período economicamente importante para o estado. Numa das apre- sentações, Lustosa da Costa e Dorian Sampaio afirmavam que a retomada da publicação tinha como objetivo projetar a imagem do estado diante do novo quadro de desenvolvimento da região Nordeste (SAMPAIO, 1977/1978).
Nas primeiras edições organizadas por Waldery Uchôa, o Anuário disponibilizava ao seu leitor uma unidade que respondia a questões como “o que é o Ceará?” e “o que é ser cearense?”. Textos e poemas de autores renomados como Thomaz Pompeu Sobrinho (O Ceará: aspectos fisiográficos), Filgueiras Lima ( Jangadeiros cearenses) e Paula Ney (Fortaleza) tinham por objetivo definir as feições territoriais do estado, fixando os acidentes geográficos, apresentando o potencial da fauna e da flora, tratando da sua formação histórica. Portanto, o Anuário tinha como propósito indicar o patrimônio histórico, cultural e geográfico cearense.
No que se refere à cultura, percebemos que nas edições das décadas de 1950 e 1960 não havia qualquer referência à cultura popular5, mas nas décadas seguintes a situação se modificou. Não só os termos folclore e artesanato começaram a aparecer, como aparecem com destaque e mais frequência, reservando-se um número de páginas significativo para tratar do assunto. Os ideais de pureza e autenticidade atribuídos ao folclore desde o século XIX são apresentados como algo que dá sentido a essas práticas, mas outras características vão sendo associadas a elas.
Na década de 1970, os termos artesanato e folclore, compreendidos como expressão cultural do povo, começaram a aparecer nas páginas dos Anuários como se fossem coisas diferentes. Ao longo das publicações, eles aparecem separadamente, compondo dois subitens que a princípio não pare- cem relacionados. Outro aspecto interessante é que o artesanato estava claramente relacionado ao aspecto econômico, àquilo que podia ser comercializado, que estava integrado à lógica do mercado.
É como se o folclore estivesse associado mais ao aspecto cultural, à tradição, àquilo que seria a autêntica cultura cearense. Não que o valor cultural não estivesse associado ao artesanato - aqui analisado sob a ótica do Anuário - mas a sua representação era feita sob a perspectiva da merca- doria, de um item que compunha um setor importante da economia cearense.
Em várias partes dos Anuários do Ceará identificamos passagens que confirmam que na década de 1970 novas temporalidades estavam sendo associadas ao folclore e ao artesanato. Na citação a seguir, o volume de 1973 propõe um uso do artesanato que difere do discurso romântico dos folcloristas6 que definiam e classificavam o popular até aquele momento, ao afirmar não ver heresia na aculturação benéfica por meio da cultura pop advinda dos centros urbanos:
A Empresa Cearense de Turismo - EMCETUR, em sincronia com Secretarias do Governo, já vêm atuando neste sentido, pelo estímulo às feiras de arte e já permitindo a plena expansão da atividade em seu Centro de Turismo, receptiva às inovações e acréscimos de outras influências extrarregionais, por exemplo o artesanato “pop”, proveniente dos “hippies” que, muito embora não se confunda com a criação puramente regional, enseja uma harmoniosa convivência do regional com o universal [...]. Deixar que no seio da elaboração cultural do povo cearense se manifeste em sua pureza e ingenuidade a influências “pop” não constitui heresia cultural, porém um reconhecimento de uma aculturação benéfica que se processa entre uma geração e um contexto com o qual encontra pontos de contato e, vez por outra, com ele se identifica [grifo nosso] (SAMPAIO; COSTA, 1973, p. 67, grifo nosso).
Ora, um dos principais argumentos defendidos pelos folcloristas era o da pureza. Quanto mais distante o povo estivesse dos centros urbanos, melhor, pois mais pura e autêntica seria a sua produção cultural, e isso era o elemento mais defendido pelos folcloristas para atribuir valor a essa produção.
O livro de Néstor Garcia Canclini, intitulado Culturas Híbridas, analisa o impacto que a modernidade teve na América Latina tomando como ponto de partida a diversidade cultural pre- sente na região, refletindo sobre a complexa relação entre as culturas tradicionais e a modernidade. Sua discussão sobre a modernidade vai de encontro a muitos trabalhos que insistem na ideia de que a modernização provocaria o desaparecimento da cultura popular. Para ele, as últimas décadas do século XX acompanharam o crescimento e a transformação da produção popular a partir do momento em que ela começou a interagir com as forças da modernidade.
Canclini não pensa a relação entre tradição e modernidade como um par de opostos, mas como algo que se complementa. “Nem a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais é ficar de fora da modernidade” (CANCLINI, 2011, p. 239). O conceito de hibridismo utilizado pelo autor ajuda a desconstruir aquele que talvez tenha sido o principal argumento dos folcloristas - o de desaparecimento7 - que prevaleceu por quase todo o século XX e a identificar as múltiplas temporalidades desse objeto de estudo.
O objetivo deste artigo é refletir sobre a historicidade dos sentidos atribuídos à cultura popular que começam a mudar a partir da década de 1970, quando novas temporalidades surgem a partir do processo de atribuição de valor econômico à cultura popular. Ou seja, queremos analisar como um objeto construído predominantemente na ideia de passado (de imobilidade e permanência) pôde se integrar a uma temporalidade moderna, que valoriza o movimento.
É relevante pensar sobre a historicidade de algo que foi visto sempre como expressão da tradi- ção (como resíduo do passado, relacionado a uma temporalidade pré-moderna), mas que, a partir do período que será aqui estudado, tece novas relações com o capitalismo, um sistema econômico que tem por característica a aceleração do tempo e, consequentemente, um distanciamento com o passado.
Neste texto, analisaremos, além dos Anuários do Ceará, outros documentos governamentais que evidenciam a mudança de compreensão por parte de órgãos oficiais, instituições públicas, gestores no que se refere a este assunto. Os Anuários, por exemplo, apresentavam a cultura popular sob uma perspectiva simbólica, mas reforçavam a sua importância econômica. Textos como Ação do BNB na área do turismo (1973), Estudos conjunturais do turismo no Nordeste (1976), Perspectivas de desenvolvimento do nordeste até 1980 (1971), escritos para essa publicação, são alguns dos docu- mentos que nos permitirão analisar a associação do artesanato à noção de desenvolvimento.
O recorte é a década 1970, mas precisaremos retornar à década de 1960 por entender que a
partir deste período alguns movimentos já começam a explicar essa mudança de sentido.
A atividade turística no Brasil começou a se profissionalizar a partir da criação da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) em 1966. O Decreto-lei n.º 55, de 18 de novembro de 1966, criou o Conselho Nacional de Turismo e a EMBRATUR, fazendo do turismo uma política de estado, atividade que provocou mudanças significativas na forma como se compreendia as tradi- ções populares.
Cabia a ela regulamentar o setor turístico brasileiro com base na Política Nacional de Turismo e promover o Brasil como destino turístico no exterior. A empresa surgiu como parte de uma política estatal que visava não apenas ao incentivo fiscal à iniciativa privada, mas a uma séria campanha de adesão ao programa de integração nacional.
Segundo Bianca Freire-Medeiros e Celso Castro, o início dos anos 1960 ficaram marcados por amplo debate na esfera internacional sobre o papel que a atividade turística poderia ter como impulsionadora das chamadas economias periféricas. Na conferência realizada pelas Nações Unidas em 1963 sobre viagens e turismo internacional, foi explicitamente recomendado que países mais pobres voltassem a atenção para o turismo enquanto meio de desenvolvimento (FREIRE- MEDEIROS; CASTRO, 2013).
Na década de 1970, o Ceará se integrou a essa política nacional de turismo através das ações desenvolvidas pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), que definiu esta atividade como uma das possibilidades de impulsionar o desenvolvimento dos estados da região. Isso era fruto de uma política que se dava a nível federal desde a década de 1950, de incluir o Nordeste num circuito econômico mais amplo, e o investimento no artesanato era parte constitutiva desse projeto governamental.
O “popular” nos documentos governamentais e na imprensa
Com a criação de órgãos como o Banco do Nordeste do Brasil - BNB (1952) e a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE (1959), o Governo Federal começou a inserir o Nordeste na lógica de desenvolvimento capitalista e a ver na produção popular uma possibilidade de gerar renda a partir do investimento na produção artesanal. Aliado a isso, o surgimento de uma atividade econômica promissora - o turismo - também influenciou na inserção das tradições populares num circuito econômico.
No trabalho realizado pelo Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE), intitulado Aspectos econômicos do artesanato nordestino, publicado em 1958, ficava evidente o inte- resse do governo em promover o artesanato justamente para ocupar as populações que viviam em áreas críticas e possibilitar a geração de uma renda extra:
A Lei 1.649, de 19/07/52, que autorizou a criação do Banco do Nordeste do Brasil S. A., ao definir as atividades financiáveis pela Instituição incluiu “desenvolvimento e criação de indús- trias, inclusive artesanais e domésticas, que aproveitem matérias primas locais que ocupem com maior produtividade as populações ou que sejam essenciais à elevação dos seus níveis de consumo essencial, no Polígono das Secas”. [...] O presente trabalho é o resultado de pesquisas realizadas em quase todos os pontos de concentração do artesanato nordestino, com o objetivo de estudar aspectos econômicos das atividades artesanais, avaliar sua importância em termos de renda e de emprego, examinar problemas de mercado, de matérias primas e estudar as possibilidades de desenvolvimento (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 1958, p. 7-8).
O Ceará ganhou destaque significativo na publicação e, por várias vezes, foi ressaltado como o estado que encontrou o maior volume de emprego em atividade de caráter artesanal e a maior diversidade de produtos. Esse estudo foi um estímulo para que os governadores cearenses pudessem pensar uma política específica para a área. Como banco fundado para promover o desenvolvimento do Nordeste, o BNB foi a principal instituição a fomentar o artesanato regional, mas o que se per- cebeu ao longo das décadas seguintes - principalmente a de 1970 - é que a atividade foi ganhando força nacional, sendo inserida numa política de Estado que extrapolou a região.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em fins da década de 1960 e início da de 1970, sob a direção de Renato Soeiro,8 estava revendo as questões relacionadas ao patrimônio que estavam postas - e de certa forma naturalizadas - desde a criação do órgão. Apesar de ter dado continuidade a alguns projetos da antiga gestão, Soeiro teve que enfrentar os novos desafios sociais que se impunham à instituição naquele momento. O crescimento urbano, a desigualdade regional, o advento do turismo, a industrialização e o surgimento de questões relacionadas à preservação e defesa do meio ambiente eram alguns dos temas que se apresentavam ao novo diretor. Mas uma das mais importantes e discutidas mudanças de orientação do órgão foi o entendimento de que preservação patrimonial e desenvolvimento econômico não eram incom- patíveis (SABINO, 2012).
Em 1970 e 1971, dois eventos foram realizados pelo Ministério da Educação e Cultura, o I e o II Encontro de Governadores de Estado, Secretários Estaduais de Cultura, Prefeitos de Municípios Interessados, Presidentes e Representantes de Instituições Culturais, dos quais o Ceará participou. Os eventos produziram dois importantes documentos com as novas diretrizes do IPHAN a partir daquele momento: o Compromisso de Brasília e o Compromisso de Salvador. Os dois encontros detiveram-se em três temáticas fundamentais: a indústria do turismo, a preservação dos bens de valor natural e a integração de estados e municípios nas ações de preservação.
César Cals, que governou o Ceará de 1971 a 1975, tinha uma política pautada num projeto desenvolvimentista para o estado, tentando definir metas e estratégias voltadas para a realidade local. O plano do governador de inserir a cultura no circuito comercial estava em consonância com discussões que aconteciam em âmbito nacional e internacional.
Em várias edições do Anuário do Ceará dos anos 1970, foram apresentadas as potencialidades econômicas do artesanato, como a possibilidade de ser uma alternativa aos colapsos econômicos causados pela seca, ou pela inflação, que reduziam o poder aquisitivo das populações. No tópico intitulado Artesanato como possibilidade econômica, afirmava-se:
Muito embora o ameacem fatores tais como: a concorrência dos produtos industriais, vindos de outros centros - sapatos, artigos de alumínio, entre outros - a industrialização de certos produtos antes artesanais, destruindo o seu caráter de objeto único, a par da modificação de traços culturais do que decorre a diminuição do consumo de artigos tradicionais; ainda as melhores ofertas de trabalho nos setores agrícola e comercial, além do colapso econômico gerado pela seca ou, lentamente, pela inflação, que reduz o poder aquisitivo das populações, desponta ainda o artesanato cearense como um campo propício a um maior aproveitamento do poder criador do povo, além de constituir uma possível fonte geradora de maiores divisas e empregos, desde que se dê ao artesanato um tratamento adequado (SAMPAIO; COSTA, 1973, p. 63).
O tratamento adequado dado pelo governo federal foi incluir o artesanato nos planos de sua política econômica. Em 1978, começou a ser elaborado o Plano Nacional de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), criado pelo decreto 80.098/77 e subordinado ao Ministério do Trabalho. De acordo com Osvaldo Dela Giustina, Secretário de Planejamento da Secretaria Geral do Ministério, o PNDA tinha dois objetivos principais: o primeiro, social, era integrar os milhões de artesãos brasileiros que viviam à margem da comunidade do trabalho, sem meios de prover sua arte e viver dignamente; e o segundo, econômico, desenvolver uma atividade econômica que exigia baixo custo de investimento. Segundo ele, a soma desses dois aspectos resultava numa forma de ampliar
o mercado de emprego com poucos recursos, aumentando a renda pessoal dos trabalhadores. Mas
o mais importante era ocupar a população (O POVO, 1978a).
A Comissão Consultiva do Artesanato, responsável pelo PNDA, era formada por represen- tantes dos Ministérios do Trabalho, da Educação e Cultura, da Fazenda, do Interior, Indústria e Comércio, EMBRATUR, Instituto Nacional de Colonização Agrária (INCRA), Serviço Social da Indústria (SESI) e Serviço Social do Comércio (SESC). Seu objetivo era realizar estudos que contribuíssem para a caracterização da atividade artesanal. A ideia era credenciar nos estados órgãos e instituições que identificassem produtos e produtores, propiciando a concessão de alguns benefícios aos artesãos, como isenção de tributos, direitos e assistência previdenciária e carteira de trabalho. Outro objetivo do PNDA era a criação de centros de comercialização onde os artesãos pudessem vender seus produtos sem a necessidade de intermediários (O POVO, 1978b).
Em outubro de 1978, foi firmado um convênio no valor de Cr$ 8 milhões e 700 mil entre o Ministério do Trabalho e os governos do Ceará, Piauí, Maranhão, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais e São Paulo para a implantação do PNDA. No Ceará, seriam aplicados recursos da ordem de Cz$ 400 mil voltados para o treinamento de pessoas em gerência de cooperativas e núcleos artesanais, atualização do cadastro e mapeamento geográfico da ativi- dade, entre outras ações. Além do convênio, o governo federal criou um decreto determinando ao Conselho Monetário Nacional a aprovação do estudo de inclusão do artesanato na relação de créditos especiais dos bancos oficiais e, com o tempo, da rede bancária particular (PINTO, 1978). Outro aspecto problematizado no último documento citado foi o fato de ele fazer referência ao desenvolvimento econômico apenas do artesanato. Fazemos essa observação porque nos Anuários havia uma distinção clara entre artesanato e folclore. No Anuário de 1971, por exemplo, enquanto o folclore aparece no item “cultura”, o artesanato é apresentado no item que trata da Secretaria de Indústria e Comércio do Estado, ou seja, os sentidos atribuídos a esses dois elementos são diferentes. É importante lembrar novamente: o valor cultural não estava dissociado do artesanato, até porque essa vinculação era fundamental para atribuir valor ao produto, mas essa importância cul- tural não parecia ser a característica mais importante desses materiais, e, sim, a sua receptividade
no mercado nacional e internacional.
Podemos afirmar que não só os jornalistas responsáveis pela edição do Anuário do Ceará faziam uma diferenciação entre folclore e artesanato, mas o próprio Estado. Um documento pro- duzido pelo BNB confirma nossa hipótese:
As atividades folclóricas e artesanais no Nordeste são bastante numerosas e típicas da região. Com respeito às primeiras, entretanto, vem-se se notando que algumas tendem a desaparecer manifestando-se apenas em poucas cidades disseminadas pela área. Em relação ao artesanato, alguma assistência tem sido prestada pela SUDENE, que o trata como atividade econômica válida, que pode solucionar, embora parcialmente, o problema do excedente de mão-de-obra disponível no Nordeste. Todavia, no que se refere ao folclore, somente iniciativas isoladas, de algumas entidades que se ocupam do turismo, têm sido adotadas para sua preservação, sendo possível até que algumas manifestações tenham mesmo desaparecido (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 1971, p. 51).
A diferença aqui se estabelece pelo fato de o artesanato se enquadrar, de forma mais prag- mática, no circuito de produção e circulação da mercadoria, enquanto o folclore fica de fora ou à margem desse sistema por conta de sua significação mais simbólica do que econômica.
Segundo Sylvia Porto Alegre, o termo artesanato inexistia até certo momento no vocabulá- rio popular e passou a ser utilizado para definir um tipo específico de produção voltada para um mercado externo à própria comunidade produtora (PORTO ALEGRE, 1994). O que podemos concluir é que o emprego do vocábulo nos documentos aqui analisados, como os anuários, por exemplo, está diretamente relacionado ao surgimento de uma demanda que atribuía valor econô- mico a essa produção cultural.
Não podemos deixar de mencionar aqui a importância que teve o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) nessa guinada de sentidos sobre o popular no Brasil. A ideia de criação do Centro teria surgido em 1975, após uma conversa entre Aloísio Magalhães e o então Ministro da Indústria e do Comércio, Severo Gomes. Após a discussão, os dois teriam chegado à conclusão de que era preciso tomar conhecimento da identidade do produto nacional, e, para tal, era preciso conhecer seus indicadores e referências culturais que deveriam ser catalogadas e sistematizadas (SABINO, 2012).
Em 1.º de junho de 1975, um grupo de trabalho foi formado para averiguar a possibilidade de criação de um órgão (que viria a ser o CNRC) com a missão de estabelecer “um sistema referen- cial básico a ser empregado na descrição e na análise da dinâmica cultural brasileira”. O objetivo do Centro era a identificação do produto brasileiro, que consistiria não apenas de uma pesquisa isolada sobre o objeto em si, mas de uma pesquisa sobre as referências culturais desse objeto: o seu processo de produção, consumo e comercialização (SABINO, 2021).
Essa abordagem inovadora feita pelo CNRC em seus projetos teria sido um ponto de partida das discussões das novas concepções de patrimônio no Brasil, tornando-se, em fins da década de 1970, uma alternativa às políticas patrimoniais adotadas pelo IPHAN. O mais inovador do projeto foi o fato de as comunidades passarem a ser entendidas como um elemento importante na construção do conhecimento da expressão cultural pesquisada.
Por volta do mesmo ano de 1975, surgia no Ceará o que mais adiante receberia o nome de Centro de Referência Cultural do Ceará (CERES). O Centro, que funcionou até 1990, consti- tuiu-se numa experiência pioneira no Ceará, não só de pesquisas que abordavam o popular sob nova perspectiva, mas de registro audiovisual da cultura popular cearense.
Em outubro de 1975, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará deu início às atividades do Projeto de cadastramento, pesquisa e registro audiovisual do artesanato,9 cuja missão inicial era documentar o artesanato em sua forma tradicional e seus processos de elaboração a fim de se pre- servar a memória da cultura popular produzida até aquele momento. Os objetivos do projeto eram:
1. Registrar a situação do artesanato cearense nos seus múltiplos aspectos, de forma a se obter um amplo repertório de informações técnicas sobre: processos produtivos, condições de tra- balho, gestual, organização do trabalho, transporte, técnicas, comercialização e mercado; 2. quantificar a população ocupada na atividade; 3. identificar o artesão e os grupos artesanais existentes nas microrregiões do Estado; 4. registrar de forma imperecível, através de filmagens, fotografias, gravação em fita cassete e desenho, o objetivo artesanal, o instrumento utilizado, as etapas de produção, o gestual, o próprio artesão e seu habitat.10
O Projeto Artesanato foi executado pela Secretaria de Cultura por intermédio da Casa de Cultura Raimundo Cela e inicialmente cumpriu a tarefa de inventariar o popular por meio de viagens realizadas a vários municípios do Ceará, onde diversos tipos de artesanato foram registrados em fotografias, e os seus autores cadastrados e entrevistados. O plano de trabalho das equipes que faziam parte do Projeto consistia previamente de uma pesquisa bibliográfica sobre artesanato; depois do trabalho de campo, onde eram aplicados os questionários e realizados os registros audiovisuais, e, por fim, da avaliação do trabalho de campo (NOGUEIRA, 2010, p. 449).
O interesse da Secretaria de Cultura no cadastramento do artesanato cearense não se justificava apenas por uma questão identitária, de preservar os símbolos da cultura cearense, mas pela importância econômica e social que a atividade representava naquele momento. Conhecer a situação do artesanato cearense possibilitaria ao governo definir, de forma mais direcionada, os investimentos nessa atividade que garantia renda mínima aos homens e mulheres do campo, amenizando um dos grandes problemas da época, o êxodo rural. A importância da atividade artesanal como fonte de absorção de mão de obra e de geração de renda aparece como um dos elementos que justificam o Projeto Artesanato.
Contexto apresentado até aqui nos ajuda a entender que o sistema de classificação da cultura se modifica com o passar do tempo, pois o valor simbólico atribuído a uma prática cultural é histó- rico. Ora, se o sentido que o Estado e a sociedade dão às tradições populares muda, é preciso mudar também o vocábulo ou o sentido do vocábulo que dá significado a essas tradições. A palavra folclore tinha forte apelo ao passado, à tradição, que não foi descartado, pois continuou recorrente o seu uso nos materiais que tratavam do popular; mas havia uma parte dessa produção - a cerâmica, a renda, o couro - que se integrava a um circuito comercial nacional e internacional que dava uma nova dimensão ao popular. Nesse caso, o termo artesanato parecia carregar outra temporalidade, que sinalizava em direção ao futuro, definindo novos horizontes de expectativa.
Pensando a questão sob a perspectiva de análise de Reinhart Koselleck (2006), essa nova dinâmica da cultura popular expressava uma relação de tensão e movimento entre espaços de experiência e horizontes de expectativa. No momento em que a cultura popular era integrada ao circuito comercial, por exemplo, o que se percebia era um tempo novo, na medida em que as expectativas passavam a se distanciar cada vez mais das experiências feitas até então. Se as expe- riências do movimento folclorista sempre defenderam a imutabilidade das tradições populares, a dimensão material analisada aqui rompe com esse espaço de experiência e cria novos horizontes de expectativa, como a comercialização do artesanato e a transformação do folclore em espetáculo de entretenimento.
Koselleck nos ajuda a pensar a fluidez das temporalidades presentes nos sentidos atribuídos ao popular, que algumas vezes se enquadrava num tempo moderno, preocupado com o futuro; noutras num tempo antigo, em que a preocupação com o passado ganhava relevância em relação às demais temporalidades.
O turismo e a ressignificação da cultura
No dia 27 de junho de 1971, o jornal Gazeta de Notícias publicou um artigo de Antônio Ferreira Neto intitulado Turismo, uma nova chance para a cultura? O autor avaliava que o desen- volvimento do turismo no Ceará podia ser a oportunidade para que setores como a cultura, que sempre receberam pouca atenção do poder público, pudessem ser dinamizados:
Um ponto de partida já existe para motivar os interessados, a descoberta de que a vitalização da cultura é necessária ao desenvolvimento do turismo. Há uma motivação de ordem prática a exigir um cuidado especial para as atividades culturais porque se acredita no sucesso de um empreendimento de natureza econômica apontado como um dos novos caminhos do Nordeste. [...] Não é por acaso que o turismo descobre a cultura. O grau de interdependência entre as duas atividades é enorme. Explorada convenientemente, a cultura trará rendimentos turísticos inestimáveis. Resta, apenas, encarar a questão de frente e oferecer à vida cultural do Estado as condições indispensáveis à sua dinamização. E esta é a grande oportunidade porque a cultura passa a ser vista como investimento necessário ao êxito de um novo setor na economia nordestina (FERREIRA NETO, 1971).
Segundo o documento, a vitalização da cultura justificava-se por ser um elemento importante para o desenvolvimento da atividade turística. A motivação para exigir investimento do poder público nesse setor era de ordem prática. Nesse momento, turismo e cultura estavam diretamente associados, sendo o turismo a razão do investimento na cultura e a cultura um atrativo que trazia rendimento ao turismo praticado no Ceará. Sob essa perspectiva, a cultura tornava-se um pro- duto a ser explorado economicamente. Antônio Ferreira Neto ainda fez suas observações sobre a utilidade da cultura popular:
Quando se olha para a cultura popular, o campo é imenso. O folclore e o artesanato merecem atenção especial. Particularmente o artesanato que poderia oferecer condições econômicas bem melhores aos que nele trabalham se houvesse racionalidade em sua exploração. O fol- clore e o artesanato oferecem possibilidades as mais amplas de desenvolvimento cultural. Centros de estudo de cultura popular poderiam apresentar excelentes resultados em termos de afirmação intelectual do Ceará. Os fenômenos folclóricos das diversas regiões do Estado, principalmente do Cariri, poderiam ser estudados mais profundamente, gerando uma grande fonte de interesse para o Ceará que, sem qualquer dúvida, resultaria em benefício da atividade turística (FERREIRA NETO, 1971).
Aqui, mais uma vez, vemos o caráter funcional atribuído à cultura. O folclore e o artesanato mereciam atenção especial não porque eram importantes para a constituição da identidade, como pensavam os folcloristas, e sim porque poderiam resultar em benefícios para a atividade turística. No entanto, percebe-se que o valor atribuído não era somente o econômico, mas o cultural também, na medida em que a promoção da cultura popular também poderia ser um meio de afirmação intelectual do Ceará.
O entendimento que o autor da matéria faz do assunto estava em consonância com a política de turismo que se fortalecia no início dos anos 1970, e que justificava, do ponto de vista econômico, o aumento dos gastos do Estado com o patrimônio cultural. Era preciso criar atrativos para os turistas. Além dos atrativos naturais, eles teriam as manifestações culturais populares que, dotadas de certo valor simbólico, se tornavam mercadoria valorizada.
O incentivo e o crescimento do turismo não eram uma particularidade nacional. Na década de 1960, ele entrou definitivamente na agenda internacional, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) passou a enfatizá-lo como atividade de promoção, desenvolvimento e sustento do patrimônio cultural. Inúmeras reuniões e conferências foram realizadas com o intuito de fomentar o desenvolvimento dessa atividade econômica. Em 1963, foi realizada em Roma a Conferência das Nações Unidas sobre Viagens Internacionais e Turismo; o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas instituiu o ano de 1967 como o Ano do Turismo Internacional seguindo recomendação de estudo realizado pela União Internacional de Organizações Oficiais de Turismo; também em 1967 foi realizada a 4ª Reunião da Comissão Técnica de Fomento do Turismo; e no mesmo ano aconteceu a Reunião dos Chefes de Estado, em Punta Del Este, no Uruguai. Todos esses encontros colocavam em voga a possibilidade de aproveitamento turístico do patrimônio de cada país (LEAL, 2008).
A expectativa construída em torno do turismo influenciou o aumento dos investimentos em atividades turísticas no Ceará, que se intensificaram no início dos anos 1970. É desse período, por exemplo, a criação da Empresa Cearense de Turismo (EMCETUR) e o Plano de Incentivo ao Turismo, do governador César Cals, que governou o estado de 1971 a 1975 (NOBRE, 1979).
Sobre a importância atribuída ao turismo, o documento Perspectivas de desenvolvimento do turismo no Nordeste afirmava:
A importância do turismo e o papel por ele desempenhado já são reconhecidos mundialmente, tanto assim que o seu planejamento vem sendo preocupação de algumas nações, integrando os seus planos globais de desenvolvimento. Tendo em vista essas considerações, o Banco do Nordeste do Brasil realizou um estudo das perspectivas do turismo para a região, cujos resul- tados compõem o presente volume (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 1971, p. 13).
O mesmo documento deixava clara a razão do investimento na área cultural e a influência que o setor turístico tinha de intervir nas ações desenvolvidas no setor, cabendo a ele, inclusive, o poder de proteger e promover certas atividades:
Como é sabido, as atividades folclóricas e artesanais cumprem importante papel na indústria do turismo, sendo consideradas como fazendo parte das principais atrações que se pode oferecer ao visitante, estranho aos hábitos da região. Desse modo, cumpre aos organismos estaduais que se ocupam do turismo, preservar, promover o ressurgimento e desenvolver as atividades folclóricas e artesanais, através da fixação de datas para realização de festejos e feiras, respectivamente, bem como da coordenação dessas manifestações de arte (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 1971, p. 13).
A relação entre folclore e turismo tratada no documento citado anteriormente apresen- tava uma tendência constante tanto nos discursos dos órgãos que investiam no turismo quanto naqueles que defendiam o folclore. Na fala que proferiu na abertura do I Simpósio sobre Folclore e Turismo Cultural, realizado de 23 a 28 de agosto de 1970 em São Paulo, Renato Almeida, então diretor-executivo da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), reforçou a importância do binômio turismo-folclore ao justificar a importância que os acervos tradicionais tinham na formação do conjunto de bens culturais de maior significado e valor.
Em 1972, a Revista Brasileira de Folclore (RBF) divulgou na seção “documentário” a con- tribuição da CDFB para o Programa Nacional de Turismo e Folclore, elaborado em parceria com a EMBRATUR na Reunião Oficial de Turismo que aconteceu em Brasília em junho do mesmo ano. Nas orientações apresentadas pela Campanha, havia uma defesa do folclore como atrativo turístico, ganhando destaque os folguedos e o artesanato (SOARES, 2010).
A partir do que foi exposto, percebemos um estreitamento das relações entre cultura e turismo longo da década de 1970, o que nos leva a crer que as políticas de turismo contribuíram para o processo, já apontado anteriormente, de “valorização”11 da cultura popular, que consistiu na apropriação da cultura popular por diversos agentes - idealizada como autêntica expressão da cultura cearense - e na sua incorporação à lógica mercantil também por meio da comercialização como lembrança turística. Dessa forma, a política de turismo pensada para a região idealizou a produção cultural das populações sertanejas e litorâneas e a apresentou nas feiras e nos museus como autêntica expressão cultural.
Para Renato Ortiz (2003, p. 87), a implantação de uma política sistemática para o turismo representou um passo importante no processo de mercantilização da cultura popular: “Não é por acaso que as Casas de Cultura Popular, sobretudo no Nordeste, se encontram sempre associadas às grandes empresas de turismo, que procuram explorar as atividades folclóricas e os produtos artesanais”.
Néstor Garcia Canclini (2011, p. 207) nos ajuda a entender como a cultura popular, num dado momento, passou a ser mais evidenciada. De acordo com o autor, uma das armadilhas que dificultam a apreensão e a problematização do popular é o fato de ele ser considerado como uma característica a priori, seja por razões éticas ou políticas. “Quem vai discutir a forma de ser do povo ou duvidar de sua existência?”. Para Canclini, ao longo do tempo, a cultura popular foi sendo teatralizada a partir de operações científicas e políticas que a colocavam em cena. Segundo ele, três correntes são protagonistas dessa teatralização: o folclore, as indústrias culturais e o populismo político. Entre elas, a forma de evidenciar o popular não se dá da mesma forma.
O folclore coloca a cultura popular em cena ,definindo-a como tradição, como resíduo do passado que precisava ser preservado pela possível ameaça de extinção; a indústria cultural incluiu as tradições populares nos circuitos massivos de comunicação pela necessidade que o mercado tinha de atingir certos grupos sociais que, ou não se integravam totalmente à modernidade, ou estavam integrados, mas ainda viam como relevante a permanência de certas tradições; e o populismo político, que utilizava o popular como forma de fortalecer sua hegemonia e sua legitimidade por meio da ideia do nacional-popular (CHAUÍ, 1994).
Entendemos que o período que vai do final do século XIX até a década de 1940 foi marcado pela predominância da corrente folclórica, ao contrário do momento seguinte. A visibilidade que a cultura popular vai ganhando ao longo dos anos 1960 e 1970 está relacionada ao fato de essas três correntes mencionadas por Canclini estarem, talvez pela primeira vez, atuando ao mesmo tempo. Além da corrente folclórica, que permanecia como campo de estudo, o populismo político e a indústria cultural entraram em cena. É a concomitância dessas correntes que marca o ponto de virada da ressignificação do popular.
Ao propor discutir essa valorização no período aqui analisado, não estamos querendo dizer que antes essa mesma cultura não fosse valorizada. No final do século XIX e início do século XX, as tradições populares eram valorizadas à maneira da época, e defini-las como parte constitutiva da nacionalidade brasileira era uma forma de fazer isso. O que acontece é que nas décadas aqui pesquisadas se percebe uma espécie de supervalorização, ou melhor, uma maior exposição do popular, resultado das ações do Estado, que desenvolve certas políticas públicas a partir de um contexto histórico específico.
Exemplo dessa cultura popular ressignificada é o trecho de uma pequena nota publicada na revista Veja, intitulada A mão do povo, falando sobre a inauguração do Museu de Arte e Cultura Populares do Ceará em 1973.
Até vinte anos atrás, teria sido sobretudo prova de mau gosto interessar-se por tais objetos. Nos últimos tempos, porém, eles subiram notavelmente de status. Dentro de vitrinas de acrílico, numerados, etiquetados, obedientes à rigorosa parafernália da museologia, eles estão há duas semanas, no novo Museu de Arte e Cultura Popular de Fortaleza, Ceará. [...] É a redesco- berta da arte popular do Nordeste - junto com os leilões que se encarregaram de difundir a dramática força contida nos ex-votos e com os turistas que compram em massa as cerâmicas folclorizantes da cidade de pernambucana de Caruaru (VEJA, 1973, p. 90).
O trecho é curto, mas possibilita fazermos algumas reflexões. Por que a cultura popular mudou de status? Porque houve um deslocamento desses objetos, que foram realocados dentro de vitrines de museus, em feiras e centros culturais, operações que atribuíram um novo significado a essas tradições. A opinião do autor do texto não era unânime, mas a sua posição diante da cultura popular expressava certo entendimento que uma parcela da população fazia das tradições populares. É claro que, para os folcloristas, se interessar pelo povo não era prova de mau gosto, pelo contrário, mas talvez, para muitos, o sentido atribuído ao popular estivesse carregado de um sentido negativo.
Considerações finais
Podemos concluir do que foi exposto que as tradições populares, a partir dos anos 1960, passaram a fazer parte de outra dinâmica, colocando em xeque as características do popular definidas pelos folcloristas até aquele momento. Se antes o popular estava associado apenas ao passado, ele passou a ser relacionado ao presente e ao futuro também. Se hoje o valor econômico e a comercialização da produção cultural aparecem como algo natural, algo dado, é preciso entender que o que vivemos atualmente é resultado de uma construção de sentido que se inicia em meados do século XX.
No nosso entendimento, o que diferencia esse momento analisado dos anteriores é que as dimensões simbólicas, políticas e materiais da cultura popular farão parte de uma relação de complementaridade e retroalimentação, onde cada dimensão contribui para a existência da outra. Por exemplo, o Estado, por meio de suas políticas, atribui significado a certas práticas culturais; ao mesmo tempo em que os referentes simbólicos dessas práticas alimentam a indústria turística, que é de interesse para o Estado, porque possibilita o aumento do erário público pela arrecadação fiscal gerada pela atividade; enfim, há uma integração de interesses que contribui para essa maior visibilidade do popular.
Na perspectiva de Canclini, a cultura popular seria, nesse momento, um elemento híbrido, na medida em que a hibridação é a combinação de processos socioculturais que existiam de forma separada gerando novas estruturas, objetos e práticas. É isso que a interação entre tradição e moder- nidade vai possibilitar: novas formas de apreensão da cultura popular, mas também novas formas de os produtores dessa cultura se colocarem diante da modernidade.
Em pesquisa realizada sobre a produção artesanal na América Latina em 1984, Néstor Garcia Canclini constatou que os artesãos dos catorze países pesquisados representavam 6% da população geral e 18% da população economicamente ativa. As deficiências da exploração agrária e o empo- brecimento dos produtos do campo impulsionaram muitas pessoas a procurar no artesanato o aumento de sua renda, o que justificou o aumento da produção artesanal na América Latina (2011).
No Peru, a maior concentração de artesãos não estava nas áreas rurais, mas na cidade de Lima, com 29%. O México compartilhava sua imensa produção industrial com um intenso apoio à produção artesanal, a maior do continente, com seis milhões de produtores. Os exemplos são suficientes para percebermos como, na segunda metade do século XX, as dinâmicas de produção e circulação das tradições populares eram variadas, apesar de ainda existir um forte e apelativo discurso que insiste na ideia de sua imobilidade.
Canclini afirma que houve um crescimento em alguns ramos da cultura popular nesse período porque os Estados latino-americanos aumentaram o apoio à produção por meio de crédi- tos a artesãos, bolsas de auxílio, subsídios e à comercialização e difusão, através de museus, livros, salas de espetáculos e circuitos de vendas. O objetivo dessas ações era a criação de empregos, a diminuição do êxodo rural, a definição de um novo atrativo turístico e até mesmo a solidificação de um patrimônio nacional que parecia transcender as divisões entre classes e etnias. Podemos concluir, portanto, que a relação entre tradição e modernidade não era uma via de mão única, e que o surgimento de uma significava o desaparecimento da outra.
Nesse cenário, a cultura popular, pela primeira vez, estava associada a uma nova temporali- dade. Se para os folcloristas ela expressava uma relação inquestionável com o passado, dentro dessa nova dinâmica que discutimos aqui - em que o popular se torna mercadoria e indicador social, por exemplo - a relação que se estabelece é com o futuro, mas sem romper os vínculos com o passado.
Referências
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Notas de fim
Author notes
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