Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
Diferentes sentidos da eugenia galtoniana interpretados por Renato Kehl durante a campanha eugênica brasileira
Leonardo Dallacqua de Carvalho
Leonardo Dallacqua de Carvalho
Diferentes sentidos da eugenia galtoniana interpretados por Renato Kehl durante a campanha eugênica brasileira
Different meanings of Galtonian eugenics interpreted by Renato Kehl during the Brazilian eugenic campaign
Anos 90, vol. 28, e2021017, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

RESUMO: O objetivo deste artigo é demonstrar como o conceito de eugenia proposto por Francis Galton transitou por diferentes entendimentos na interpretação do eugenista brasileiro Renato Kehl. Para tanto, trabalhamos com quatro obras a fim de, colocando-as lado a lado e compreendendo seus contextos de produção a partir das leituras de Kehl, analisar como o conceito elaborado por Galton foi reinterpretado pelo eugenista brasileiro em diferentes fases da campanha eugênica. Assim, Eugenia e Medicina Social (1922), Melhoremos e Prolonguemos a vida: a valorização eugênica do homem (1923), Lições de Eugenia (1929) e Aparas eugênicas: Sexo e civilização (1933), constituem as fontes principais desta pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Renato Kehl, Francis Galton, Eugenia, Nação.

ABSTRACT: The purpose of this article is to demonstrate how the concept of eugenics proposed by Francis Galton has passed through different understandings in the interpretation of the Brazilian eugenicist Renato Kehl. To this end, we worked with four works in order, placing them side by side and understanding their contexts of production from Kehl readings, to analyze how the concept elaborated by Galton was reinterpreted by the Brazilian eugenicist in different phases of the eugenic campaign. Thus, Eugenics and Social Medicine (1922), Improve and Prolong Life: the eugenic valorization of man (1923), Lessons from Eugenia (1929) and Eugenic shavings: Sex and civilization (1933), are the main sources of this article.

KEYWORDS: Renato Kehl, Francis Galton, Eugenics, Nation.

Carátula del artículo

ARTIGO

Diferentes sentidos da eugenia galtoniana interpretados por Renato Kehl durante a campanha eugênica brasileira

Different meanings of Galtonian eugenics interpreted by Renato Kehl during the Brazilian eugenic campaign

Leonardo Dallacqua de Carvalho
Universidade Estadual do Maranhão, Brasil
Anos 90, vol. 28, e2021017, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

Received: 20 September 2020

Accepted: 05 June 2021

Introdução

Este artigo dialoga com os estudos de Vanderlei Sebastião de Souza (2011; 2016; 2019) no que diz respeito à trajetória do médico e eugenista brasileiro Renato Kehl (1889-1974) e sua com- preensão sobre eugenia. Como argumenta aquele autor, Kehl transformou a sua visão de eugenia ao longo da atuação no movimento eugênico brasileiro. Isto é, a despeito do seu entendimento de eugenia incialmente estar entrelaçado na relação com o movimento sanitarista e as modalidades “positiva” e “preventiva” de eugenia, “[...] Renato Kehl caracterizou-se pela defesa de uma eugenia mais dura, ao estilo da ‘eugenia negativa’, propondo medidas radicais de controle matrimonial e esterilização” (SOUZA, 2016, p. 96).

O argumento de Souza reavalia alguns pontos do importante estudo acerca da eugenia lati- no-americana, de Nancy Stepan (2005), no que concerne à definição de uma proposta de eugenia mais “suave” em países como México, Argentina e Brasil. Por este ponto de vista, os eugenistas latino-americanos teriam se desvencilhado, de certa forma, de concepções mais “duras” de eugenia como aquelas executadas na Alemanha, Suécia, Estados Unidos e Dinamarca. Para realçar esse argumento, Stepan (2005, p. 76) lembra das palavras do editor britânico da Eugenics Review, K. E Trounson, em 1931, na qual acreditava que os brasileiros interpretariam a palavra eugenia de forma menos restritiva em relação aos ingleses.

A discussão vai ao encontro da tese de Stepan no que diz respeito às distinções entre uma eugenia “soft” ou “hard” dependendo do local de apropriação dessa ciência. Por essa razão que o contexto latino-americano recebe contornos mais plurais, especialmente devido à constituição da sua população e das tradições médico-científicas, como a francesa. Souza (2016), por sua vez, afasta essa rigidez ao estabelecer os diálogos de eugenistas brasileiros com a comunidade eugênica inter- nacional. Tanto Renato Kehl, como o antropólogo brasileiro Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), são expressões de que não houve apenas uma interação “soft” - ou neolamarckista - de eugenia e que estes intelectuais estavam cientes dos debates em que ela era empregada de maneira mais dura. A par dessa discussão, e sem querer esgotá-la, o que propomos é analisar de forma mais siste- mática a reavaliação do conceito de eugenia empregado por Francis Galton (1820-1911) na leitura de Kehl em diferentes momentos da campanha eugênica. A originalidade, assim sendo, constitui em trazer os elementos que endossam a argumentação proposta por Vanderleide Souza ao investigar a trajetória de Kehl. Razão pela qual optamos em comparar de que modo o conceito galtoniano de eugenia foi interpretado por Kehl em diferentes obras durante a sua trajetória no movimento eugenista. As duas primeiras, Eugenia e Medicina Social (1922), Melhoremos e Prolonguemos a vida: a valorização eugênica do homem (1923), estão situadas quando o médico brasileiro esteve alinhado às concepções de medicina social e saneamento. Este momento pode ser resumido com a máxima “Sanear é eugenizar”, expressão que foi popularizada entre os eugenistas ao associar práticas de saneamento e medicina social com eugenia. Aliás, uma concepção que estava de acordo com a euge- nia “positiva” exaltada por Francis Galton. Depois, investigamos os livros Lições de Eugenia (1929) e Aparas eugênicas: Sexo e civilização (1933). Este constitui o momento, como demonstrou Souza (2006), referente às viagens de Kehl à Europa e sua aproximação com o mendelianismo. O contato com a perspectiva mendeliana permitiu uma outra visão dos efeitos biológicos da eugenia. A título de pesquisa, destacamos também o acesso ao seu Fundo Pessoal, localizado no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, no Rio de Janeiro. Também fez parte do processo de análise o Boletim de Eugenia, entre 1929 a 1931.

Demonstraremos como, partindo do conceito de eugenia proposto por Galton, Kehl buscava argumentar que seguia suas orientações, mesmo alterando a perspectiva teórica/metodológica da eugenia proposta pelo cientista inglês. Galton faleceu em 1911 e, no final daquela década, era iniciado o movimento eugênico brasileiro liderado por Kehl. Em diferentes momentos da trajetória do eugenista brasileiro, as orientações de Galton estariam presentes, ora seguidas à risca, ora adaptadas para justificar um novo posicionamento teórico relacionado ao método eugênico.

Como argumenta Roland Barthes (2004, p. 13): “Em qualquer forma literária há a escolha geral de um tom, de um etos, se quiser, e é aí precisamente que o escritor se individualiza clara- mente, porque é aí que ele se engaja”. Essa escolha, pensando na maneira científica na qual Kehl mobiliza seus argumentos para a defesa dos métodos eugênicos em suas obras, responde ao seu engajamento em um estilo de pensamento. A rigor, esse indício se torna mais evidente quando observamos no final da década de 1920 sua adoção à eugenia alinhada à proposta mendeliana. É possível enriquecer a discussão com a tese de Simone Kropf que, a despeito de estar preocupada com o contexto da doença de Chagas e a construção social das doenças, contribui com uma refle- xão teórica que abrange parte das expectativas deste artigo. Segundo a autora (2005, p. 8), “[...] os produtos intelectuais da ciência constituem um sistema de crenças socialmente produzido e sus- tentado”, e, ainda, são “Fruto dos acordos resultantes de um processo coletivo de negociação, no qual os atores se comportam em função dos interesses que os constituem como diferentes grupos sociais [...]” (KROPF, 2005, p. 8).

O engajamento e os acordos resultantes do processo coletivo de negociações permitem considerar de que maneira Kehl realizou diferentes modelos interpretativos de eugenia a partir dos preceitos de Galton. Mais ainda, como negociou seus diferentes usos a fim de sustentar o viés teórico que adotava em dado momento da campanha eugênica.

Fase 1: Uma leitura de Galton rumo à reforma social pela eugenia “positiva”/“preventiva”

Como expomos, o conceito de eugenia estava a reboque da interpretação de Kehl no curso da sua campanha eugenista. Para tanto, é necessário retomar as diferentes fases da sua trajetória para compreender, mais especificamente, de que modo esse conceito foi sendo reelaborado e adaptado em vista de um modelo ideal para o Brasil, segundo a sua visão de ciências e nação. A mudança conceitual envolve a passagem de uma eugenia aliada ao modelo “positivo” e “preventivo”, unido ao saneamento brasileiro e à medicina social, para outro de cunho determinista biológico radi- cal, representado pela eugenia “negativa”, com inspiração em um projeto biopolítico alemão e estadunidense.

Do ponto de vista geral, o conceito de eugenia é sempre definido pela possibilidade de se obter a melhoria moral, intelectual e física dos seres humanos. No entanto, a própria compreensão do conceito, seja pelo método de aplicação para o melhoramento hereditário ou pelo entendimento do que se deveria considerar enquanto características para o aprimoramento humano, passava por diferentes avaliações em tempos e contextos distintos. Esse compõe o processo pelo qual situo Renato Kehl quando maneja a concepção de eugenia.

Isso porque a interpretação eugênica fundada por Kehl nasceu em meio ao contexto da medicina social e do projeto de saneamento brasileiro do final da década de 1910. Em um contexto mais amplo, essa era uma tendência na América Latina, como pode ser observado no Peru, a par- tir do precursor da medicina social no país, o médico e político, Carlos Henrique de Paz Soldán (1885-1972). Portanto, naquele momento, a produção de Kehl estava articulada com as ações do saneamento, de modo que a prática de ambas, para ele, se confundia. Como definia: “Na profilaxia das endemias e epidemias, trabalho básico de proteção sanitária, se assentam as esperanças cientí- ficas seguras do eugenismo” (KEHL, 1922, p. 126). Vamos retomar com mais vagar o período de aproximação entre eugenia, medicina social e saneamento.

A campanha do saneamento do Brasil esteve muito além de um projeto no campo da saúde pública. Era, para seus seguidores, uma forma de recuperar ou fundar a nacionalidade brasileira, razão pela qual as ciências - mais especificamente a medicina - teriam um papel-chave nessa transformação social (LIMA; HOCHMAN, 1996, p. 24). O impacto da campanha sobressaiu o campo médico e adentrou na sociedade por meio das esferas políticas e intelectuais. A imprensa divulgava o estado de abandono dos sertões e vinculava periodicamente artigos e crônicas no tocante à inaptidão da política brasileira em integrar o país. Por sua vez, a pressão nos dirigentes nacionais acarretou na reavaliação do papel do Estado na condução de políticas de saúde pública (idem., p. 37).

Marco importante para a história da eugenia brasileira foi a fundação, em 1918, da Sociedade Eugênica de São Paulo, por Renato Kehl. A data coincide com o desenvolvimento da campanha sanitária no país. Pouco antes, em 1916, o médico paulista Miguel Pereira (1871-1918) denunciava que o Brasil era um “Imenso Hospital”, haja vista a condição doente e desassistida da população. Na mesma época, os médicos Belisário Penna (1868-1939) e Artur Neiva (1880-1943) endossa- vam e comprovavam, por meio do relatório Viagem cientifica: pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás, o alerta de Pereira. Dois anos mais tarde, o próprio Belisário Penna fundaria a Liga Pró-Saneamento do Brasil, um movimento nacionalista-

-reformista que almejava ampliar o papel do Estado e da centralização política-administrativa na saúde pública pela via do saneamento. O médico barbacenense também seria autor, no mesmo ano, de Saneamento do Brasil, livro divulgador de sua tese da “consciência sanitária”. O movimento em torno do saneamento ganhou adeptos na intelectualidade e na política nacional. Ainda em 1918, era possível observar Wenceslau Brás, então Presidente da República, nomeando Penna como Diretor do Serviço de Profilaxia Rural, aderindo ao movimento-reformista e apoiando as transformações preteridas pela Liga Pró-Saneamento, como a criação de postos de profilaxia no Rio de Janeiro (CARVALHO, 2017). Este é o contexto em que Kehl foi montando a sua rede de interlocução. Como menciona Vanderlei de Souza (2019, p. 153-156), Kehl e Penna estreitaram as suas relações intelectuais de modo que o nome do eugenista paulista circulava na Capital Federal e acumulava prestígio junto a seus pares. Além disso, exerceu funções ligadas ao saneamento no Serviço de Profilaxia Rural, em 1919.

A criação da Sociedade Eugênica de São Paulo, primeira sociedade eugênica Sul-americana - com seus 140 médicos associados -, simbolizou o desejo em expandir a propaganda eugenista para a sociedade e médicos-cientistas. A técnica “preventiva” da eugenia, cujo modelo estaria vinculado ao saneamento, acabou representando um grande ensejo para a classe médica, principalmente aquela parcela adepta ao jargão nacionalista e defensora de uma política mais intervencionista na população desassistida.

Haja vista esse aspecto contextual, é possível perceber em Kehl as negociações, estratégias e tentativas de legitimação em um campo científico. Ao mesmo tempo, nota-se a filiação ao conceito galtoniano “positivo”/“preventivo” de eugenia como sustentáculo do seu programa eugênico, espe- cialmente por meio da sua produção intelectual. Assim sendo, a eugenia e o ambiente, entrelaçadas, justificavam a aproximação com o movimento sanitarista. A esse respeito, define Kehl (1922, p. 88-89) ao citar o seu entendimento sobre as propostas de Galton:

Esta, para resolver o problema do aperfeiçoamento da espécie humana, lança mão de meios suasórios, de conselhos baseados nos ensinamentos adquiridos pelos estudos da lei da herança. A Luta pela higiene da raça, não abandona os infelizes à sua dura sorte porque eles não são fracos, por si, mas pela contingência do meio.

O fragmento acima demonstra de que maneira a ciência de Galton entendia os estudos heredi- tários e de que modo a eugenia e o meio contribuiriam para o aperfeiçoamento da espécie humana, tese que Kehl endossaria. Em Eugenia e Medicina Social (p. 203), aproximava a sua concepção de eugenia à boa alimentação e à utilização de calçados para evitar os parasitas para a formação de um “Jeca forte” - imagem criada pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948), um entusiasta da campanha do saneamento e, posteriormente, da eugenia. Na mesma página, encerrava: “Eis aí, meus senhores, o que seja praticar a ciência de Francis Galton.”

A obra Melhoremos e Prolonguemos a vida: a valorização eugênica do homem foi selecionada como fonte de análise não somente pelo seu conteúdo corroborar a nossa hipótese, mas pelo fato de ser, segundo o próprio autor do prefácio, Belisário Penna, considerada uma continuidade de Eugenia e Medicina Social.

Portanto, a eugenia permanece alinhada à medicina social, compreendida como um funda- mento médico preocupado com a relação entre vida social e hereditariedade. Discussões relacio- nadas à educação física, sífilis, tuberculose, prática sexual, sono e animais domésticos pretendiam sinalizar de que modo a eugenia forneceria intepretações para diferentes aspectos do cotidiano, da saúde e do corpo. As relações protagonizadas entre meio e comportamento social evidenciam o aspecto conceitual da eugenia pensada naquele momento por Kehl.

O ponto chamativo, em vista do argumento central, se refere à questão do extermínio dos incapacitados, na qual Kehl sistematicamente afirmava que este não era um preceito pertencente à eugenia galtoniana. Justificava, portanto, que a eugenia não era a “[...] criação de uma inquisição nova com autos de fé contra a gente digna de eliminação”. Segundo ele, este seria um pensamento contrário ao de Galton” (KEHL, 1922, p. 132). Esta explicação vai ao encontro do uso da eugenia como método de regeneração da raça brasileira. Assim como exposto em Lima e Hochman (1996), a ciência, com seus diferentes saberes, era colocada como alternativa para reformar a nação e a população, tanto no que diz respeito aos problemas hereditários enquanto povo, quanto para a resolução dos problemas do dia a dia. Com efeito, este foi um elemento de conexão com diversos projetos de regeneração da população brasileira mencionados nas páginas anteriores, a exemplo da Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Nesse entendimento, a questão conceitual da eugenia “preventiva” e “positiva”, estabele- cendo a relação com a regeneração da raça-nação, utilizava os preceitos de Galton em sua essência reformista. Não significa, porém, o descarte da opção da esterilização, mas a ênfase de que este não seria o “[...] meio único de elevação somática e física da espécie humana, que só será alcançada pelos processos combinados de eugenização (KEHL, 1922, p. 126). Para tanto, Kehl mencionava novamente a proposta de Galton para justificar a possibilidade de uma seleção racional dosada sem medidas extremas. Vejamos:

Galton pretende a seleção racional, o neo-malthusianismo aos doentes, degenerados, amorais e criminosos e a multiplicação das proles fortes, sadias e belas. Não está nos cálculos galtonianos a eugenização ex-abrupto, mas lenta e segura. Evolutiva e não desumana (KEHL, 1922, p. 126).

O conceito de eugenia empregado por Kehl procurou assegurar a aproximação com Galton no sentido mais “positivo” possível, de modo que o problema brasileiro de miscigenação ou degene- ração da raça teria solução na soma da eugenia com diversas práticas médicas. Por esse pretexto que a medicina social e o saneamento formam um conjunto importante para a propaganda eugênica de Kehl. Para os médicos aliados a tal perspectiva, as ciências são as grandes propositoras de trans- formação da sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade deveria obedecer a todas as recomendações dos especialistas. O Estado, por sua vez, deveria assegurar a aplicação de tais medidas.

Fase 2: Uma (re)leitura de Galton rumo à reforma social pela eugenia “negativa”

A historiografia (MUÑOZ, 2015; SOUZA, 2019; STEPAN, 2005) que discute a eugenia bra- sileira e a trajetória do eugenista Renato Kehl demonstra que houve um processo de reinterpretação e aplicação da eugenia no Brasil. A partir dessa vertente historiográfica e da produção intelectual do eugenista brasileiro, discutiremos de que modo há uma releitura da eugenia de Galton por Kehl a fim de justificar a sua nova intepretação. Antes de avançar, é preciso contextualizar essa mudança. O final da década de 1920 marca o distanciamento de Kehl da eugenia reformadora-otimista, concatenada ao movimento sanitarista e à medicina social. A partir de 1928, segundo Souza (2019, p. 190-191), Kehl percebeu em movimentos eugênicos estadunidenses e na Higiene Racial alemã uma outra forma de compreender a eugenia para além da América Latina. Naquele ano, patrocinado pela Casa Bayer, viajou para a Alemanha e visitou diferentes instituições e universidades. A viagem de cinco meses resultou na ampliação das suas redes intelectuais, permitindo se corresponder nos anos seguintes com diversos cientistas estadunidenses e europeus. A despeito do discurso da este- rilização e de outras medidas eugênicas radicais - como o controle matrimonial - fosse cogitado antes mesmo de 1928, foi a partir desse momento que tais medidas ganharam espaço decisivo no seu projeto eugênico.

Nesta etapa trabalhamos com duas produções intelectuais. Em primeiro lugar, Lições de Eugenia (1929), publicada meses após o seu retorno da Alemanha. Considerada sua principal obra, foi marcada justamente por uma nova interpretação fruto da viagem e do intercâmbio com novos cientistas (SOUZA, 2019, p. 216). O livro foi publicado e distribuído às vésperas do Primeiro Congresso de Eugenia (1929), causando controvérsias, aprovações e rejeições por parte da intelec- tualidade brasileira presente no evento. Tal publicação, portanto, é definitiva para a sua mudança de perspectiva eugênica frente à comunidade científica nacional. A segunda fonte, Aparas eugênicas Sexo e Civilização (Novas diretrizes), foi publicada em 1933, intensificando as ideias restritivas de Kehl desenvolvidas no final da década anterior.

Embora o objetivo seja enfatizar a reorganização conceitual que Kehl propõe da concepção e metodologia da eugenia, não há, evidentemente, o completo abandono das políticas sanitárias ou da medicinal social. Estas, na verdade, coexistiram com os novos fundamentos aprendidos em sua passagem pela Europa. Contudo, pensando o enfoque dado ao biológico, elas não eram mais suficientes para responder ao projeto reformista proposto por Kehl. A este respeito, diz: “Não basta aos que exercem a medicina curar os doentes e premunir os sãos dos atentados mórbidos; não satisfaz, completamente, a prática da higiene, da puericultura é indispensável ampliar o esforço regenerador até a hominicultura” (KEHL, 1929, p. 19).

Surge, então, uma preocupação em estabelecer a delimitação entre a eugenia e as demais ciências “auxiliares”, como a medicina social e a higiene. Isto porque, inicialmente, a campanha eugênica de Kehl foi marcada pela reprodução do mantra “sanear é eugenizar”. O próprio euge- nista brasileiro, como observamos anteriormente, endossava o vínculo entre os saberes como prática eugênica. Essa divisa estabelecia o modo como transitava no Brasil e na América Latina a discussão entre eugenia, saneamento e medicina social. Haja vista esta separação, Kehl mencionava que, embora houvesse um ideal de regeneração em todas elas, os pressupostos e propósitos eram diferentes. Para corroborar o argumento, citava os cientistas da “higiene racial” alemã para afirmar que o propósito da eugenia era a higiene da raça, enquanto medicina social e higiene cuidava do indivíduo isolado ou conjuntamente (KEHL, 1929, p. 51).

Em Lições de Eugenia, a presença de um “passado histórico da eugenia” foi constante para justificar uma preocupação qualitativa da hereditariedade humana ao longo do tempo. Como em outras publicações, esclarecia que a preocupação com o aperfeiçoamento humano sempre existiu como um desejo da humanidade, mesmo que essa vontade não possuísse o rigor científico da sua época. Portanto, recuava ao passado grego para sustentar que a prática de Licurgo, em Esparta, de selecionar crianças para a vida militar, era uma demonstração de preocupação eugênica. Também utilizava diálogos de Platão para a mesma finalidade. Na sua argumentação da “história da eugenia”, sustentava que, a partir da Idade Média, essa preocupação foi perdida, reaparecendo, em caráter científico, com Francis Galton no século XIX.

Pensando os diferentes sentidos da eugenia, Lições de Eugenia permite analisar de que maneira o discurso de Kehl reinterpreta o próprio lugar de Galton no seu programa eugênico. Não afirmamos que a influência de Galton diminuiu durante essa reinvenção conceitual, uma vez que era conside- rado o criador e orientador do conceito de eugenia. Contudo, a eugenia havia sido expandida de tal forma, que seus novos pressupostos ultrapassavam os antigos dilemas propostos por Galton e indicavam outros enfrentamentos para o aperfeiçoamento hereditário. Como demonstra Souza, há esforços no convencimento de que um modelo de eugenia radical poderia ser implantado no país. Entre eles, por exemplo, consistiu nas tentativas de convencer que esse modelo estaria adequado ao “sentimento de cristandade” e não desencontrava com as tradições católicas (SOUZA, 2019, p. 220-222). Sem o diálogo com a influente Igreja Católica, Kehl sabia que as chances de projetar uma ciência cujas bases interferiam no controle de vida e morte dificilmente obteria sucesso. Pelo contrário, seria combatida pelas lideranças religiosas (cf. WEGNER; SOUZA, 2013).

No que diz respeito ao lugar de Galton no estado da arte da ciência eugênica daquele momento, segundo Kehl (1929, p. 13), o antropologista italiano G. Sergi, era da opinião de que a “[...] eugenia não constitui criação exclusiva de Galton, porque, sobretudo no último decênio de sua vida, ele pensou em fazer obra complexa, associando-se por isso, a homens eminentes, com eles instituindo estudos em laboratórios especiais”. Este é um ponto fundamental, pois percebe-se que a eugenia foi transformada em um produto científico compartilhado e remodelado para além dos preceitos do seu criador. Galton não perde o prestígio de fundador e permanece importante, historicamente, como precursor das bases científicas. No entanto, os ditames da eugenia não pertenceriam exclu- sivamente ao cientista inglês, mas a toda rede construída em torno da eugenia. De modo que a ciência eugênica poderia avançar no que diz respeito às práticas da eugenia “positiva”, por exem- plo. Para Kehl, as ideias de Galton tiveram sucesso e foram amplificadas para diferentes grupos científicos em diversos países, consolidando uma agenda internacional dos estudos de eugenia. Entre dezenas de laboratórios e cientistas que citava, lembrou, em 1912 - um ano após a morte de Galton -, o Congresso Eugênico de Londres, no qual houve a reunião dos maiores nomes da ciência eugênica à época.

E por que essa ramificação da interpretação eugênica é importante? Porque é a partir daí que Kehl justifica a popularização dos preceitos eugênicos que originou a criação de laboratórios e pesquisas ao redor do mundo. Sendo assim, vários países acabaram despertando interesse para a preservação da hereditariedade e foram adotando as suas próprias medidas e conclusões.

Outro fator relevante deve-se à sua conversão ao mendelianismo. Não podemos esquecer que ciência é convenção, ou seja, “[...] a comunidade científica é, ao mesmo tempo, o lugar e o resultado dessa convenção” (HOCHMAN, 1994, p. 203). Assim, em Lições de Eugenia as explicações rela- cionadas à eugenia e à hereditariedade foram construídas, em grande medida, por meio da lente dos trabalhos redescobertos de Gregor Mendel (1822-1884). Embora Galton, nesse momento, ocupe muito mais a condição de um “busto histórico da eugenia” do que necessariamente um propositor do modelo a ser seguido, a nova interpretação de Kehl não descartava as suas orientações por completo. Isto é, estudos a respeito da Lei da Regressão Filial, Lei do desvio da média, Lei da herança ancestral e a Tabela demonstrativa da hereditariedade das qualidades de uma população (Kehl, 1929, p. 83-88), ainda foram usados como forma de análise. Apesar de utilizar investigações de Galton, Kehl estava à vontade para discutir e criticar os resultados do cientista inglês:

Galton baseou-se em um enorme contingente de dados para formular esta lei, entretanto, não cuidou bem, nem seus sucessores, de distinguir, cuidadosamente, os caracteres hereditários dos caracteres devido ao meio. Este fato diminui nesse particular o valor de seus argumentos estatísticos (KEHL, 1929, p. 86).

Este excerto ajuda a pensarmos como a mudança de orientação para o mendelianismo per- mitia uma revisão por parte de Kehl de algumas conclusões das pesquisas de Galton, uma vez que sublinha as diferenças entre os caracteres hereditários e os do meio. Há divergências também na Lei da herança ancestral, na qual o eugenista brasileiro mencionava que “Esta lei é muito interessante, porém parte de um princípio que hoje está demonstrado ser errôneo, isto é, que os indivíduos herdam, biologicamente, na mesma proporção, de todos os antepassados” (KEHL, 1929, p. 86). Como argumenta Andreza Polizello (2011, p. 8), Galton concluía que as características de um jovem não necessariamente eram fruto do pai ou da mãe. Na verdade, segundo ele, tais características poderiam ser transmitidas de forma latente por meio das gerações e se manifestarem naquele indivíduo. Nesse caso, há uma busca pela revisão da Lei da herança ancestral. Em outra situação, ao falar da hereditariedade mórbida, Kehl explicava que após os trabalhos de Mendel e Galton para o aperfeiçoamento humano, muitos pesquisadores demonstraram interesse pela questão da hereditariedade quando relacionadas aos vícios de conformação e algumas doenças.

Em continuidade ao nosso argumento central, Aparas eugênicas: Sexo e Civilização (Novas diretrizes), publicada por Kehl em 1933, estabelece a permanência da sua mudança conceitual iniciada nos anos finais de 1920. O contexto de sua publicação deve ser ponderado, uma vez que, como menciona Souza (2019, p. 295), a obra surge poucos meses após a sua segunda viagem à Europa. Em uma perspectiva internacional, sabe-se que esse foi o momento da ascensão de Adolf Hitler (1889-1945) na Alemanha, cuja política biológica por um viés da eugenia “negativa” foi colocada em prática em um ritmo acelerado.

Logo no início de Aparas eugênicas, o eugenista brasileiro enfatiza a importância de se pensar a eugenia a partir do ponto de vista biológico. A afirmação confronta aqueles que acreditavam que apenas o aspecto educacional seria o suficiente para o chamado “progresso da hereditariedade” (KEHL, 1933, p. 15). Esta posição contrariava as concepções iniciais da campanha eugênica proposta pelo próprio Kehl, quando endossava que a propaganda e a educação eram as bases dos preceitos galtonianos de eugenia. Devemos insistir que Kehl não excluía a importância da educação e propaganda, mas atribuía um peso menor quando comparada à intervenção no aspecto biológico. A correção a ser estabelecida refere-se ao método ideal para se alcançar a finalidade da eugenia.

Em vista de um aspecto comparativo, é interessante notar a maneira como Kehl mobiliza a bibliografia eugênica antes e depois das suas viagens à Europa e da mudança de orientação técnica-teórica em relação à eugenia. Desse modo, mesmo que encontremos em sua produção intelectual diversos nomes de autores nacionais e internacionais, a figura de Galton sempre margeou o seu programa de eugenia. No entanto, àquela altura, a relevância de Galton estava muito mais ligada à história da eugenia e não necessariamente as suas recomendações orientavam os novos preceitos dos eugenistas, seja de maneira teórica ou prática. A pluralidade de laboratórios e eugenistas inter- nacionais estabelecia diferentes possibilidades de se pensar a hereditariedade e a eugenia. Por esta razão há, dentro dos estudos relacionados à eugenia, disputas sobre a maneira mais adequada de se obter sucesso. A perspectiva mendeliana ou a modalidade da eugenia “negativa” acabava recebendo atenção especial para grupos de cientistas e laboratórios que consideravam esta compreensão mais eficaz. O quadro a seguir (Figura 1), elaborado por Kehl (1933, p. 48-49), ressaltava de que modo entendia os métodos eficazes para o “progresso da hereditariedade” por alternativas eugênicas:


Figura 1
O “progresso da hereditariedade” a partir de medidas eugênicas, segundo Kehl (1933).
Fonte: KEHL, 1933.

O quadro permite destacar a interpretação de medidas eugênicas que beneficiariam, a depender de sua aplicação, o Indivíduo ou a Coletividade. De maneira geral, a proposta estava relacionada ao discurso de integração da sociedade brasileira presente na década de 1930. Sendo assim, a partir da nova perspectiva adotada por Kehl, medidas relativas à educação, filantropia ou religião, embora fossem úteis para o programa eugênico, estariam a serviço do indivíduo. Em outro extremo, a eugenia “negativa” vigorava como alternativa para pensar um país integrado, ou seja, respondendo à coletividade. Não à toa que a intervenção estatal por meio da política eugênica, a esterilização, a segregação e a limitação da natalidade em casos específicos, passam a constituir uma eugenia muito mais próxima àquela pensada pelos mendelianos estadunidenses e europeus do que à mentalidade que marcou a América Latina nas décadas anteriores.

Haja vista a questão conceitual, Kehl propõe uma distinção entre os termos “eugenia” e “eugenismo”. A separação ocorre para delimitar o significado do termo “eugenia” como o controle e as qualidades da hereditariedade. Por sua vez, o “eugenismo” constituiria as práticas auxiliares que favoreciam a eugenia. Em outras palavras, higiene e educação faziam parte do “eugenismo”. A partir dessa explicação, Kehl argumentava que o conceito de eugenia havia sido mal compreendido ou falseado. Há, pela via conceitual, uma tentativa de separar as antigas interpretações das novas. No início da década de 1930, era importante para a própria autoridade do movimento eugenista definir fronteiras em relação a outros projetos de nação em concorrência. A fim de resolver a questão conceitual, o eugenista brasileiro foi buscar em uma comissão realizada em 1904, liderada pelo próprio Galton em conjunto com o seu discípulo Karl Pearson (1857-1936) e outros especialistas, para compreender em definitivo o significado do termo eugenia. Segundo o próprio Kehl, a defi- nição aprovada na comissão foi contrária àquela sugerida por Galton, mas, mesmo assim, acabou sendo aceita pelo pai da eugenia: “O termo ‘Eugenia’ deve ser definido como o estudo dos fatores que, sob controle social, possam melhorar ou prejudicar as qualidades raciais das gerações futuras, quer física, quer mentais” (KEHL, 1933, p. 56, grifo do autor).

A palavra controle, grifada por Kehl, revela a tendência de intervenção na sociedade a partir das técnicas eugênicas. Outro detalhe relevante é que, embora tenha concordado com a definição final, Galton foi vencido na conceituação do termo à luz daquela comissão. Portanto, do seu ponto de vista, não haveria problema se a perspectiva eugênica não fosse exatamente a indicada por Galton, uma vez que até o fundador da eugenia teria legitimado as novas propostas. Em função disso, mais uma vez Kehl investia na explicação de que após a morte de Galton o movimento continuou sua expansão e não era obra exclusiva do seu criador. Por consequência, as suas orientações poderiam sofrer reparos: “Certos pontos, entretanto, defendidos pelo chefe da escola eugênica, são suscetíveis de reparos, como aquele que diz respeito à influência do meio, que não é tão desprezível, no que diz respeito à melhoria da espécie, como se julgou a princípio” (KEHL, 1933, p. 75). O excerto é significativo para compreender o momento de distanciamento da perspectiva neolamarckista e a aceitação do mendelianismo para a eugenia. Conceitualmente, ao dizer que o chefe da escola eugênica poderia ter algumas de suas conclusões reformadas, ele também rearranja e justifica o seu antigo modelo de compreensão da eugenia.

A distinção conceitual, que foi a base para a sua mudança de orientação do método eugênico, continua sendo bem explícita ao longo de Aparas eugênicas. Ao discutir mais especificamente a esterilização, Kehl (1933, p. 166, grifo nosso) foi incisivo ao dizer que “Galton propôs medidas brandas, e até certo ponto, aceitáveis”. Em outras palavras, do seu ponto de vista, há um limite para a aplicação da eugenia de modo brando. As medidas propostas pelo criador da eugenia, então, esbar- ram em uma nova perspectiva no trato com a hereditariedade. Para contrapor o aspecto brando, demonstrava, por meio das referências estrangeiras, que a nova ordem da eugenia necessitava de outro modus operandi. Com um linguajar mais voltado ao mendelianismo, citando “o caráter hereditário dominantes e recessivos”, explicava a partir de autores como Coklin, Fritz Lenz (1887- 1976), Ernst Rüdin (1874-1952) e o psiquiatra brasileiro Cunha Lopes (1891-1973), a necessidade da esterilização não somente para doentes e criminosos, mas para pessoas em condição de miséria (KEHL, 1933, p. 193).

A perspectiva mendeliana também endossou os preconceitos de Kehl, notadamente no que diz respeito aos cruzamentos raciais. Como mencionado, a sua mudança conceitual, no final da década de 1920, alterou a compreensão de que a “raça brasileira” poderia ser recuperada, tese em conformidade com outros projetos de nação, como o da Liga Pró-Saneamento do Brasil ou do Liga Nacionalista, de Olavo Bilac (1865-1918). No entanto, do ponto de vista mendeliano, em que o biológico se sobrepõe ao meio, a condenação se tornava inevitável, de modo que os cruza- mentos raciais eram desaconselhados na ótica eugênica. Dessa forma, os autores citados por Kehl para defender esse ponto também se distanciam daquilo que Galton projetava inicialmente. Em termos de Brasil, foram citados o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), o jornalista e escritor José Veríssimo (1857-1916), o geneticista Salvador Piza Junior (1898-1988) e o jurista e sociólogo Oliveira Vianna (1833-1951). Externamente, apoiava o seu argumento no biólogo norueguês Alfred Mjöen (1860-1939), no médico sueco Herman Lundborg (1868-1943), do Instituto de Biologia Racial de Uppsala, e nos cientistas alemães Rüdin e Lenz. Partindo do mendelianismo, arremata: “O ‘rigorismo mendeliano’ é facilmente defensável e, como verão, reforça o nosso ponto de vista contra tais cruzamentos” (KEHL, 1933, p. 202). Não é de se estranhar o porquê, nesse momento, Kehl estava afinado mais com a perspectiva eugênica de Piza Junior, do que com a do geneticista Octávio Domingues. Segundo Robert Wegner (2017, p. 81), “Esta con- cepção era tributária de uma crença na ausência de unidade da espécie humana e levava à defesa de uma suposta pureza racial.”

Essa reorientação, inclusive trazendo à tona autores brasileiros da passagem do século XIX para o XX, esclarece a sua nova concepção conceitual. Eles eram a chave para a reafirmação da condenação racial a partir de pressupostos e estudos científicos nacionais. Em tempo, a adoção de uma eugenia guiada apenas pelo aspecto biológico revelou um Renato Kehl muito mais próximo aos preconceitos raciais e defensor de um discurso restritivo cujo Estado teria papel fundamental para a execução desse projeto. Evidentemente, não podemos resumir toda a repaginação da sua ciência pelo argumento do preconceito racial. Embora a nova posição científica tenha-o direcionado para tais conclusões, é a adoção do mendelianismo a chave para compreender a sua nova demanda em termos de ciência eugênica. Assim, o conceito de eugenia alicerçado em Galton teria menor importância quando comparado àquele desenvolvido em países como Alemanha e Estados Unidos.

Considerações finais

A discussão que norteou o artigo se refere ao modo como Renato Kehl transformou a sua interpretação conceitual da eugenia em paralelo com aquela proposta por seu criador, Francis Galton. A partir dos estudos historiográficos sobre esse autor, especialmente os de Vanderlei Sebastião de Souza, investigamos como ocorreu o distanciamento conceitual da eugenia de Galton a partir da sua adoção ao mendelianismo no final da década de 1920. Assim sendo, naquele final de década, “[...] Kehl indicava o modelo de eugenia do qual estava se apropriando para construir o seu próprio conceito de eugenia” (SOUZA, 2019, p. 256).

Está claro que não houve um rompimento com o criador da eugenia, mas um reposiciona- mento do seu lugar, tendo em vista os novos rumos que a eugenia tomava nas interpretações de diferentes cientistas. Em outras palavras, as recomendações de Galton não eram suficientes para explicar o novo viés de Kehl ao adotar o mendelianismo e estreitar os laços com eugenistas alemães. Depois de 1920, progressivamente, Galton deixou de ser uma referência central para Kehl e se transformou em um “personagem da história da eugenia”. O cientista inglês, portanto, era parte da memória afetiva da eugenia, uma espécie de patriarca que ainda seria citado, reverenciado e propagado, mas não necessariamente seguido de maneira irrestrita por Kehl e outros eugenistas nacionais e internacionais. Assim, a constituição de um novo conceito de eugenia, o aproximava dos discursos europeus e estadunidenses, mas, consequentemente, o afastava do modelo eugênico idealizado por Galton.

Tal discussão impacta na própria historiografia, sobretudo no debate relacionado ao método eugênico que foi pensado na América Latina e no Brasil. Como aborda Souza, é evidente que a mudança de perspectiva de Kehl no final da década de 1920 trouxe à cena brasileira a discussão em torno de uma eugenia mais restritiva. O mesmo pode ser observado no debate de Pedro Muñoz e a psiquiatria brasileira à luz das pesquisas do psiquiatra Cunha Lopes. Com base na interpretação de Kehl acerca do conceito de eugenia, sustentamos o efeito da sua mudança de orientação a partir da análise das apropriações das teses do fundador da eugenia. Ou seja, existe uma diferença conceitual do programa eugênico antes e depois da sua viagem à Europa. Do mesmo modo, há também uma diferença em como menciona Galton em sua produção intelectual. Esta transformação o ligaria às perspectivas mendelianas enquanto se distanciaria, ao mesmo tempo, da eugenia neolamarc- kista, que marcou a eugenia latino-americana. Ademais, a presente pesquisa endossa a tese de que podemos enxergar na história da eugenia no Brasil uma modalidade mais “dura” e a mobilização de intelectuais para que este método fosse colocado em prática no país.

Supplementary material
Referências
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CARVALHO, Leonardo Dallacqua de. A trajetória de Francis Galton e sua perspectiva eugênica no primeiro trimestral de The Eugenics Review (1909). Fênix: revista de história e estudos culturais, Uberlândia, v. 14, p. 1-18, 2017.
HOCHMAN, Gilberto. A ciência entre a comunidade e o mercado: leituras de Kuhn, Bourdieu, Latour e Knorr-Cetina. In: PORTOCARRERO, Vera (org.). Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contem- porâneas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994.
KEHL, Renato. Aparas eugênicas: sexo e civilização (novas diretrizes). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1933.
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves , 1923.
KEHL, Renato. Lições de eugenia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves , 1929.
KEHL, Renato. Melhoremos e prolonguemos a vida: a valorização eugênica do homem. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves , 1922.
KROPF, Simone Petraglia. Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006.
LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Condenados pela raça, absolvidos pela medicina: o Brasil descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1996.
MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: Sanitarismo e Eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MUÑOZ, Pedro Felipe Neves de. À luz do biológico: psiquiatria, neurologia e eugenia nas relações Brasil-Alemanha (1900-1942). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro. 2015.
POLIZELLO, Andreza. O desenvolvimento das ideias de herança de Francis Galton: 1865-1897. Revista Filosofia e História da Biologia, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 1-17, 2011.
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) - Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro. 2011.
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entre-guerras, Guarapuava/PR: Editora UNICENTRO, 2019.
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, p. 93-110, supl., dez. 2016.
STEPAN, Nancy Lays. A hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ , 2005.
WEGNER, Robert. Dois geneticistas e a miscigenação. Octavio Domingues e Salvador de Toledo Piza no movimento eugenista brasileiro (1929-1933). Varia hist., Minas Gerais, v. 33, n. 61, p. 79-107, 2017.
WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 263-288, 2013.
Notes
Author notes

E-mail:leo.historiafiocruz@gmail.com


Figura 1
O “progresso da hereditariedade” a partir de medidas eugênicas, segundo Kehl (1933).
Fonte: KEHL, 1933.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Scientific article viewer generated from XML JATS by Redalyc