QUADRINHOS NAS AMÉRICAS EM PERSPECTIVA TRANSNACIONAL
Received: 26 February 2021
Accepted: 20 June 2021
DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.111769
RESUMO: Martha Washington é uma heroína negra de quadrinhos criada em 1990 por Frank Miller e Dave Gibbons. As histórias se passam em uma versão distópica dos EUA, na qual o país está sob o domínio e um governo autoritário e enfrenta uma nova guerra civil. As tramas narram o desenvolvimento físico e moral da personagem, que passa de uma jovem soldado, que só obedecia ordens, a uma grande guerreira revolucionária que liberta os EUA da tirania governamental. Martha é uma personagem que, por meio de sua força de vontade, supera as adversidades e se torna uma grande líder, destinada a levar a liberdade para outras nações e mundos. O foco dos autores é discutir este aspecto de superação individual, considerado algo essencial em narrativas de super-heróis. A obra também é permeada por uma legitimação e valorização de intervenções militares dos EUA em outras nações pautadas na ideia de que isso seria necessário para tornar o mundo livre de tiranos de todos os tipos. Assim, a ideia deste artigo é analisar a forma como os autores construíram um estereótipo positivo de mulher e negra, e ao mesmo tempo difundiram ideias que apóiam a dominação imperialista dos EUA.
PALAVRAS-CHAVE: Martha Washington, Representatividade, Imperialismo, História dos EUA, Quadrinhos.
ABSTRACT: Martha Washington is a black comic book heroin created in 1990 by Frank Miller and Dave Gibbons. The stories take place in a dystopian version of the USA, in which the country is under the rule of an authoritarian government and is facing a new civil war. The plots narrate the character’s physical and moral development, which goes from a young soldier, who only obeyed orders, to a great revolutionary warrior who frees the USA from government tyranny. Martha is a character who, through her willpower, overcomes adversity and becomes a great leader, destined to bring freedom to other nations and worlds. The authors’ focus is to discuss this aspect of individual overcoming, considered essential in superhero narratives. The work is also permeated by a legitimation and valorization of US military interventions in other nations based on the idea that this would be necessary to make the world free of tyrants of all kinds. Thus, the idea of this article is to analyze the way in which the authors constructed a positive stereotype of black women, and at the same time disseminated ideas that support the USA imperialist domination.
KEYWORDS: Martha Washington, Representativeness, Imperialism, USA History, Comics.
Introdução
Martha Washington é uma personagem negra de histórias em quadrinhos, criada por Frank Miller e Dave Gibbons, ambos são artistas muito conhecidos no mercado de quadrinhos esta- dunidense e mundial devido seus trabalhos para a Marvel e DC Comics. As HQs de Martha Washington foram publicadas pela Dark Horse Comics em forma de minisséries e edições especiais esporádicas entre 1990 e 20071. As histórias se passam em uma versão futurista e distópica dos Estados Unidos, entre os anos de 1995 e 2095, marcos temporais que correspondem ao nascimento e morte da personagem.
Frank Miller é um dos mais conhecidos e premiados artistas de quadrinhos dos Estados Unidos. Ele nasceu em 1957, na cidade de Olney, em Maryland. A fama de Miller teve início em maio de 1979, quando ele assumiu os desenhos da revista do personagem Daredevil [Demolidor] na edição de número 158; na época, a HQ era escrita por Roger McKenzie. As vendas da revista estavam baixas e, com a entrada de Miller, aos poucos, a publicação começou a despontar nas vendas. Porém, os roteiros não estavam agradando aos leitores e nem Miller, que, então, convenceu o editor a deixá-lo escrever os roteiros da publicação. Logo, em janeiro de 1981, chegava às bancas de jornal dos EUA a edição 168 de Daredevil, escrita e desenhada por Frank Miller, com o apoio do arte-finalista, Klaus Jason. De acordo com Keith Dallas (2013, p. 29-30), quando Miller assumiu os roteiros da revista, houve uma “revolução” nas aventuras do personagem, que passaram a conter mais cenas de violência, e roteiros mais próximos dos filmes de ação e artes marciais que faziam sucesso no período. O ápice do reconhecimento de Miller, provavelmente, é a “carta branca” que ele recebeu em 1986 da DC Comics para reformular o personagem Batman na minissérie The Dark Knight Return2, que é considerada uma obra de referência nas narrativas do personagem e na indústria de quadrinhos.
Dave Gibbons nasceu em Londres, em 1949, e iniciou sua carreira como desenhista em meados dos anos 1970, realizando diversos trabalhos para publicações independentes e fanzines. Posteriormente, foi empregado pela editora IPC Comics e iniciou uma longa carreira profissional como desenhista e diretor artístico da revista 2000 AD. Nessa publicação, ele criou e ilustrou diversas HQs em parceria com Tom Tully (Harlem Heroes, 1977), Pat Mills (Ro-Busters, ABC Warriors, Judge Dredd, 1977-1979), Gerry Finley-Day (Rogue Trooper, 1981-1982); Alan Moore (Ro-Jaws’ Robo-Tales e Tharg’s Future Shocks, 1980-1982). Apesar de ser um artista reconhecido e requisitado no Reino Unido, Gibbons sempre teve a pretensão de trabalhar para o mercado ame- ricano de quadrinhos. O sonho de Gibbons tornou-se realidade, em 1982, quando foi contratado (juntamente com outros talentos do Reino Unido) pelo editor da DC Comics Len Wein3 (1948-2017). Nos EUA, Gibbons iniciou sua carreira desenhando as HQs do personagem Lanterna Verde, com o qual trabalhou entre os anos 1983 e 1985, inclusive, ilustrou quadrinhos do Superman e Batman, entre outros personagens DC Comics. Em 1986, Gibbons e Alan Moore lançaram seu trabalho de maior sucesso, Watchmen, minissérie em 12 edições publicada entre 1986 e 1987. Nessa HQ, Moore e Gibbons trouxeram ao mundo dos super-heróis uma abordagem adulta e, até certo ponto, mais realista, pois expunham as possíveis consequências físicas, psicológicas, sociais e políticas da existência de vigilantes mascarados e de seres com algum tipo de poder sobre-humano. A série foi muito bem recebida pelo público e pela crítica e tornou-se uma obra de grande relevância na indústria de quadrinhos4 e na carreira de seus autores.
A partir dessa breve exposição biográfica, podemos considerar que Frank Miller e Dave Gibbons são dois artistas com uma longa experiência no mercado de quadrinhos. Com trabalhos de grande sucesso que se tornaram importantes referências para a indústria de quadrinhos dos 1980. Eles se conheceram no começo dos anos 1980, quando Miller foi ao Reino Unido participar de uma convenção de artistas e fãs de quadrinhos. Posteriormente, se reencontraram em 1988 quando Gibbons foi aos Estados Unidos para participar da San Diego Comic-Con5. De acordo com um texto de Gibbons, publicado na edição encadernada de Martha Washington, foi nesse ano que decidiram criar a personagem.
[...] escapamos para tomar umas cervejas e, se me lembro bem, fomos ao zoológico de San Diego - começamos a conversar seriamente sobre fazer algo juntos. Não consigo me lembrar do caminho que nossa discussão tomou, mas fiquei surpreso ao ler as ideias iniciais de Frank, e me vi familiarizado com uma jovem soldado chamada Martha, que estava em uma missão para evitar que um clone evangélico do Elvis destruísse o resto dos Estados Unidos com armas nucleares de seu complexo de bunkers no deserto do Arizona (GIBBONS, 2017, p. 8)6.
Essa versão inicial da HQ não chegou a ser desenvolvida, pois, apesar de ter demonstrado um interesse quase que imediato pela personagem, Gibbons acabou se envolvendo com outros trabalhos e perdeu o interesse pela parceria, por achar que a narrativa poderia tomar um caminho muito obscuro e negativo. Assim, ligou para Miller, disse que desejava abandonar o projeto e explicou suas preocupações. Miller ficou surpreso com essa notícia, porém ouviu os argumentos de seu parceiro e “[...] dentro de meia hora estava sugerindo uma nova direção que poderíamos tomar. Que abordou todas as minhas preocupações com o tom obscuro da obra e me entusiasmou com a ousadia” (GIBBONS, 2017).
Resolvido esse problema inicial, Miller e Gibbons necessitavam de uma editora para publicar sua obra; devido ao sucesso de ambos, se quisessem, poderiam ter publicado sua HQ através de uma das grandes editoras - provavelmente a DC Comics com a qual eles tinham laços empregatícios mais recentes -; entretanto, escolheram lançar Martha Washington pela Dark Horse Comics7. De acordo com uma entrevista de Miller, publicada na versão brasileira da revista Wizard, quando questionado sobre motivo por ter escolhido essa editora, ele deu a seguinte resposta: “Tem a ver com as pessoas e a filosofia. [...] eu queria trabalhar com uma editora jovem. Não queria negociar com dinossauros enferrujados e acho que acabou funcionando bem pros [sic.] dois lados” (MILLER, 1996, p. 53).
Na Dark Horse Comics, Miller e Gibbons se associaram a outros artistas consagrados dos quadrinhos estadunidenses e criaram o selo Legend. De acordo com Gibbons (2017), no início dos anos 1990, a editora havia se tornado um tipo de paraíso para artistas veteranos que ansiavam por criar e publicar seus próprios quadrinhos. A forma como o editor e fundador Mike Richardson tratava e negociava era bem diferente do habitual nas grandes editoras: “[...] Richardson era muito prestativo e acessível, juntamente com a atenção extra que sua pequena linha de títulos poderia oferecer a cada projeto individual” (2017, p. 392). Além de Miller e Gibbons, o selo Legend con- tava com a participação dos seguintes autores: Paul Chadwick, John Byrne, Arthur Adams, Mike Mignola, Geof Darrow, Walt Simonson e Mike Allred8. Todos esses artistas recebiam um trata- mento especial que os fez se sentirem acolhidos e respeitados pela editora, algo que não era sentido nas grandes similares, onde havia uma relação mais impessoal. Todos esses autores envolvidos no selo desejavam fazer quadrinhos que abordassem temas diferentes dos que haviam trabalhado no decorrer de suas carreiras.
Em suma, no final dos anos 1980, Miller e Gibbons eram dois artistas de quadrinhos que tinham um projeto autoral em andamento, mas estavam saturados dos esquemas de produção das grandes companhias, por isso buscavam um meio de publicar seus quadrinhos com maior auto- nomia. Trabalhando para essa editora, Miller e Gibbons adquiriram uma valiosa oportunidade de controlar, não só as narrativas que criavam, mas o tempo de que dispunham para fazer isso.
Quem é Martha Washington?
Aproveitando essa liberdade e tais condições de trabalho, os autores publicaram as aventuras de Martha Washington em forma de minisséries e edições especiais, que foram lançadas sem uma periodicidade determinada. A primeira minissérie Give me Liberty [Dê-me liberdade] foi publicada em quatro partes, entre junho de 1990 e abril de 1991; as duas primeiras saíram em um intervalo de três meses, a terceira demorou quatro meses e a última, depois de cinco meses (posteriormente, foi compilada em um único volume, em 1994). Após essa primeira minissérie, Miller e Gibbons publicaram duas histórias curtas da personagem: Collateral Damage [Danos Colaterais] (1991), State of the Art [Estado da Arte] (1993).
A segunda minissérie Martha Washington Goes to War [Martha Washington Vai à Guerra] foi publicada em cinco partes, entre maio e novembro de 1994, com um intervalo de um ou dois meses entre cada uma (em 1995, a minissérie foi compilada em um único volume). Depois em 1995, publicaram uma edição especial intitulada Happy Birthday Martha Washington [Feliz Aniversário Martha Washington], que comemora o aniversário da personagem. A edição contém três histórias curtas, as primeiras são versões coloridas das HQs Collateral Damage e State of the Art; a terceira é inédita e se chama Insubordination [Insubordinação] (1995); dentro da cronologia da personagem, essas histórias se passam entre os acontecimentos da primeira e segunda minissérie. Em seguida, lançaram outra edição especial chamada Martha Washington: Stranded in Space [Martha Washington: Abandonada no Espaço], história na qual ela encontra o personagem Big Guy. E Martha Washington: Attack of Flesh-Eating Monsters [Martha Washington: Ataque dos Monstros Comedores de Carne], essas duas histórias são prelúdios para a trama que se desenvolve na terceira minissérie. Durante o ano de 1996, não houve nenhuma publicação da personagem.
Ao longo dessas duas minisséries, podemos perceber o início de uma grande transformação na personagem. Martha começa como uma jovem pobre, que vive em um gueto/campo de concentração para negros chamado Cabrini Green, ou apenas Green, sua primeira meta é fugir de lá; ela se envolve num assassinato e acaba conseguindo sair do Green. Para escapar de uma condenação ela se alista no exército, chamado de PAX, torna-se uma soldado eficiente e seguidora de ordens. Ela desvenda uma conspiração para dar um golpe de Estado e ajuda a reunificar os EUA que estão passando por uma segunda Guerra de Secessão. No entanto, Martha acaba descobrindo e se aliando com um grupo subversivo que deseja restaurar a “verdadeira” liberdade e democracia que os EUA haviam perdido. Martha tem sucesso e a partir daí, ela e seu grupo, iniciam uma “guerra” contra o mundo para levar sua liberdade para todos. A segunda minissérie termina com Martha dando a seguinte declaração sobre o mundo que ela pretende construir:
É um trabalho difícil. Não há fim para as pessoas que querem dominar umas às outras. Depois, há a Europa, a Ásia e a África e, pelo que estamos ouvindo, estão em muito pior estado do que a América. Trabalho duro, mas vamos fazer isso. Nós não temos uma bandeira. Nós não temos um nome. Conseguir que essa multidão concorde com qualquer coisa é quase impossível. Tudo o que temos em comum são corações fortes e boas mentes. E um princípio orientador. Liberdade. Uma missão simples: fazer um mundo mais feliz. Fazer um mundo melhor. Eu queria que minha mãe estivesse viva, então eu poderia dizer a ela, tudo se resume a algo. De Cabrini Green para a Amazônia, para todos os lugares suados e sangrentos em que lutei, chorei e matei, tudo isso se soma a algo. Estou aqui para fazer a minha parte para fazer um mundo mais feliz. Um mundo melhor (GIBBONS, 2017, p. 137-138).
Entre dezembro de 1997 e maio de 1998, foi publicada a minissérie em três partes Martha Washington Saves The World [Martha Washington Salva o Mundo] (compilada em um único volume em 1999). Nessa terceira minissérie, os autores apresentaram o próximo passo do desen- volvimento da sociedade utópica à qual a personagem pertence: a conquista e colonização do espaço. O grande inimigo a ser combatido é a inteligência artificial Vênus, que acredita ser uma entidade divina e deseja que todos os seres humanos a adorem e lhe obedeçam. Vênus consegue subjugar facilmente grande parte dos humanos com a instalação de microchips de controle em seus cérebros. Porém, Martha possui uma resistência e determinação que superam a de qualquer outro ser humano. E, após muitos contratempos, a guerreira consegue desativar Vênus; infelizmente, durante o processo, ela destrói todas as fontes de energia elétrica da Terra e mata milhares de pessoas. Mas ao final, a ordem é reestabelecida e Martha parte para sua nova missão, desbravar o espaço. A terceira minissérie termina com essa mulher negra assumindo uma nova identidade: “Meu nome é Martha Washington. Eu sou uma exploradora” (GIBBONS, 1999, p. 110).
Por fim, após nove anos sem publicar nada da personagem, Miller e Gibbons lançaram a edição especial Martha Washington Dies [Martha Washington Morre], em julho de 2007, último capítulo das aventuras da personagem. Em 2009, todas essas obras foram compiladas numa edição encadernada chamada The Life and Times of Martha Washington in the twenty-first century9 [A vida e os tempos de Martha Washington no século vinte e um].
Em uma entrevista de 1994, Frank Miller afirmava que seu objetivo era narrar toda a vida de Martha Washington. Além disso, ele disse que: “Minha esperança para o futuro é publicar uma nova série de Martha Washington todo ano” (MILLER, 1994, p. 2). Esse projeto não se realizou, um dos motivos foi a necessidade que os autores tinham de realizar trabalhos paralelos, financei- ramente mais rentáveis que as HQs da personagem.
Quanto à ideia de narrar toda a vida da personagem, os autores não tinham objetivo de contar de forma detalhada cada dia vivido por Martha, em vez disso eles construíram narrativas que se focam em momentos relevantes da vida da personagem. A primeira minissérie centra-se na infância e na adolescência, dos treze aos dezessete anos de Martha. A segunda, no início da vida adulta da personagem, ela tem por volta de dezenove anos. Na terceira, a personagem tem aproxi- madamente vinte e três anos e depois disso, há um grande salto de tempo, quando os autores nos apresentam a personagem já idosa, prestes a completar cem anos de vida. A trama das três minisséries da personagem mostra o desenvolvimento pessoal e moral de Martha. Portanto, as HQs de Martha Washington concentram-se em duas pontas de sua vida, juventude e velhice. A última fase foi abordada de forma muito superficial em apenas 17 páginas.
Assim, nas HQs de Martha Washington acompanhamos seu desenvolvimento enquanto personagem e heroína. De uma jovem negra pobre e socialmente segregada, para soldado, revolu- cionária e, por fim, exploradora espacial. Também detectamos a mudança no que ela representa: a princípio fragilidade, insegurança e dependência; posteriormente, Martha foi se construindo como uma mulher forte, confiante e independente.
A ideia de Martha como uma guerreira da liberdade está presente desde a capa da primeira edição da personagem, que apresenta o título Give Me Liberty e o subtítulo An American Dream [Um sonho americano] e uma representação gráfica da protagonista que remete à Estátua da Liberdade (Figura 1). A presença das cores da bandeira dos EUA, vermelha, azul e branca, indica um teor patriótico. Outro indício dessa temática é a citação presente na contracapa dessa primeira edição da minissérie I know not what course others may take but - as for me - give liberty or give me death [Eu não sei que rumo os outros podem tomar, mas - quanto a mim - me dê liberdade ou me dê a morte]. O excerto é do famoso discurso de Patrick Henry (1736-1799)10Give me liberty, or give me death!, proferido em 1775. A frase expressa uma disposição ao sacrifício e está envolta em inúmeras interpretações míticas sobre o movimento pela independência do que viria a ser os Estados Unidos. A presença dessa referência nas HQs sugere que a personagem apresenta essa mesma disposição para se sacrificar em nome de sua própria liberdade e de seu país. A liberdade, pelo que se observa, ainda não chegara.

O nome da personagem é o mesmo da esposa de George Washington, a primeira primeira-dama do país. Nas entrevistas que Miller concedeu sobre Martha Washington, ele não explica o motivo da escolha do nome, mas podemos presumir que o autor tenha tentado ironizar a referência histórica atribuindo à sua protagonista o nome de uma mulher branca associada à independência dos EUA, mas que, assim como seu marido, utilizava o trabalho de africanos escravizados em suas propriedades, ressignificando, desse modo, o nome da personagem histórica ao associá-lo a uma personagem negra. Por outro lado, dado o conteúdo patriótico da obra, é provável que Miller quisesse simplesmente homenagear a primeira-dama, colocando como referência para que as novas gerações possivelmente se interessem pela personagem histórica. Essa última hipótese é mais provável, pois em uma entrevista publicada em 1998, Miller manifesta sua insatisfação com trabalhos historiográficos que estavam destacando o fato de que Thomas Jefferson era um pro- prietário de escravos (e chegou a ter filhos com uma escravizada chamada, Sarah “Sally” Hemings [1773-1835]). Para o quadrinista, esse tipo de interpretação é negativa já que “[...] anula todas as suas realizações e sua genialidade. Isso é muito injusto, porque foi o pensamento dele entre outros que levou ao fim da escravidão” (MILLER, 1998, p. 55). Além disso, quando questionado se ele entendia essa tendência como uma tentativa de dar maior complexidade ou de destruir determinada figura histórica, Miller foi taxativo:
Eu acredito que é um desejo destruí-los. Eu acredito que estamos em um momento em que não podemos abraçar, nem temos estômago para tanto, a ideia de que existam seres humanos superiores, indivíduos superiores. Você sabe, estamos em um momento em que as pessoas querem ver espinhas estouradas. Eles não querem ver acne curada. Estou esperando que alguém escreva um livro desagradável sobre Nelson Mandela. Porque geralmente não suportamos ter alguém que nos faça sentir - que alguém era capaz de algo tão bom assim (1998, p. 55).
As falas de Miller indicam sua preocupação com a manutenção de uma interpretação da história voltada para a glorificação de indivíduos que se destacaram por ações ou ideias. E lamenta que os heróis de seu país estejam sendo revisitados e interpretados de forma menos heroica e mítica, substituindo isso por uma interpretação que destaca suas contradições e falhas. Ele defende a necessidade de heróis que sirvam como exemplos e estimulem as pessoas a fazerem algo melhor. Miller acredita que personagens ficcionais podem ser usados para ensinar ou inspirar determinadas noções sobre o que é certo ou errado. Mas seu foco principal não é esse, ele deseja construir narrativas que sejam divertidas e que mostrem a evolução de um determinado personagem, para algo que considera melhor. É basicamente isso que ele faz ao longo das HQs de Martha Washington. No entanto, é possível identificar uma contradição nessas ideias do autor, pois ele defende os heróis canônicos de críticas, mas finda apontando tensões e limites de seus heróis, como é o caso de Martha.
Com base na trajetória ficcional de Martha Washington, podemos defini-la como uma representação de personagem feminina forte e independente. Suas ações, ao longo das narrativas, caracterizam-na como uma guerreira excepcional e com uma grande determinação, que a faz superar todos os obstáculos e inimigos. Entretanto, a personagem apresenta outras características que se relacionam com o espaço que a obra ocupa no mercado convencional de quadrinhos esta- dunidense de meados dos anos 1980 e 199011 que, inclusive, envolvem as relações que ela estabelece com demandas de representatividade de gênero e raça nas HQs.
Representatividade feminina negra em Martha Washington
De modo geral, é possível afirmar que a indústria de quadrinhos estadunidense tem sido um espaço midiático no qual as mulheres não têm um grande protagonismo, seja como personagens ou autoras. Isso ocorre devido a uma condição social de machismo há muito estabelecida, além de se tratar de um meio de comunicação voltado para um público essencialmente masculino, que anseia por se ver representado nas HQs12. De acordo com as pesquisas de Selma Oliveira (2007) e Mike Madrid (2016), as mulheres nas histórias em quadrinhos são frequentemente estereotipadas e representadas em papéis secundários dependentes de figuras masculinas, seja como esposa, namorada, parceira ou uma dama indefesa que precisa ser resgatada. Essa constatação não significa que esse é o único espaço existente para as mulheres nos quadrinhos, há diversos exemplos de publi- cações que apresentam heroínas como protagonistas, por exemplo, a personagem Mulher-Maravilha [Wonder Woman]13 que é a mais conhecida e de maior sucesso nesse meio. Contudo, ela pode ser considerada uma gota d’água em um oceano de heróis masculinos, já que de modo geral, poucas personagens femininas conseguiram o mesmo sucesso e longevidade editorial. Ademais, a personagem inaugurou um modelo representativo de heroínas e super-heroínas nos quadrinhos, o chamado “amazonismo”, que de forma geral é uma reinterpretação do antigo mito das guerreiras amazonas, associado com demandas do movimento feminista. A pesquisadora Selma Oliveira, no livro “Mulher ao quadrado” (2007), afirma que o amazonismo pode ser caracterizado como: “[...] uma expressão extrema da mulher guerreira que considera o patriarcado, assim como os homens, essencialmente opressivo” (p. 121). Esse modelo foi amplamente adotado e modificado na construção de inúmeras super-heroínas.
A historiadora, Jennifer K. Stuller, em seu livro Ink-stained Amazons and Cinematic Warriors (2010), acrescenta algumas informações relevantes relacionadas ao mito das amazonas e sua apropriação e ressignificação nas histórias em quadrinhos. A autora afirma que na antiga Atenas, as amazonas:
[...] representavam a independência e a bravura femininas, o que era tão emocionante quanto ameaçador para as estruturas sociais estabelecidas. A rejeição amazônica de papéis de gênero apropriados exigiu sua derrota, e como um conto preventivo sobre os perigos da transgressão social, o desafio das amazonas na verdade facilitou sua queda mítica (p. 17).
Assim, podemos entender o mito das amazonas como uma narrativa incômoda, mas ao mesmo tempo, atraente. De acordo com a autora, essa parte da atração que as personagens guer- reiras despertam passou a ser usada nas representações de heroínas nos quadrinhos e no cinema, a partir dos anos 1980. Essa representação foi fortemente influenciada pelo “backlash” [pode ser traduzido como reação ou contra-ataque] - termo que autora pegou emprestado da obra homô-nima14 da jornalista e militante feminista, Susan Faludi -, que basicamente designa uma série de ações que tinham como objetivo reverter as poucas vitórias, direitos e espaço que o movimento feminista havia duramente conquistado (como maior liberdade sexual, direito a votar e ter as mesmas condições de trabalho que os homens).
Stuller analisa outro estereótipo de mulher forte e guerreira denominado de Action Babes15, ou seja, mulheres fisicamente fortes, perigosas e sensuais em muitos momentos. No cinema dos anos 1980, esse modelo foi representado pelas protagonistas femininas, Sarah Connor (Linda Hamilton) e Ellen Ripley (Sigourney Weaver), respectivamente das franquias Terminator (Exterminador do Futuro) e Aliens. Para a autora, essas duas personagens indicam certa masculinização das ações e do corpo feminino. Apesar disso, o protagonismo delas nos filmes pode ser entendido como uma visão positiva sobre as mulheres.
Além dessa característica controversa, as mulheres guerreiras no caso específico das histórias em quadrinhos, principalmente nos anos 1990, passaram a ser, gradativamente, representadas de forma hipersexualizada. Novas e antigas heroínas ganharam contornos anatomicamente desproporcionais e exagerados. Essas mulheres, em sua maioria, eram desenhadas com corpos repletos de músculos bem definidos, magras (muitas vezes com cinturas extremamente finas), pernas muito longas, seios e nádegas grandes, entre outros atributos estéticos e anatômicos em geral não condizentes com uma mulher do mundo real. Lutavam alguma arte marcial, portavam armas de fogo e armas brancas, como espadas, facas, adagas etc. Além disso, todas essas mulheres combatiam e ainda combatem o crime seminuas, usando maiôs ou biquínis estilo fio-dental. Esse tipo de modelo foi largamente aplicado em diversas personagens femininas. Na Marvel Comics, destaca-se a ninja Elektra, criada por Frank Miller; na DC Comics a Mulher-Maravilha16 foi reformulada para se encaixar nesse modelo, e a Image Comics (editora iniciante no período) provavelmente foi a empresa que mais usou e abusou desse tipo de representação na personagem Glory17 e em muitas outras (Figura 2).

Para o pesquisador Mike Madrid (2016, p. 287-288), essas mudanças na indústria de qua- drinhos dos EUA são ao mesmo tempo positivas e negativas. Positivas, pois demonstram que esse mercado finalmente estava se abrindo, inclusive, consumindo quadrinhos nos quais as personagens femininas eram mais do que donzelas indefesas ou namoradas dependentes de personagens mas-culinos18. Entretanto, o ponto negativo disso é a representação hipersexualizada dessas heroínas e guerreiras agressivas e sensuais. As características físicas dessas personagens servem para suprir um tipo de fetiche masculino por mulheres fortes e dominadoras, que às vezes remetem a uma tendência sadomasoquista19. Madrid também sugere que esse tipo de heroína só surgiu devido a mudanças nos padrões de comportamento sexual iniciados entre as décadas de 60 e 70 e da relativa popularização de revistas e filmes eróticos (pornográficos) nos anos 80. Essas mudanças tornaram aceitável a existência de heroínas sexualmente ativas - em períodos anteriores, essa característica era atribuída às vilãs que existiam para desafiar a moral e castidade dos heróis, daí a denominação de bad girls [garotas más]. De acordo com Selma Oliveira: “As bad girls viraram uma fórmula certa para as editoras venderem novas revistas, cujas protagonistas sejam gostosas e saiam por aí distribuindo golpes marciais, socos e muitos pontapés” (2007, p. 122).
Aparentemente, a indústria de quadrinhos encontrou um novo estereótipo feminino para agradar e estimular a imaginação de um público consumidor majoritariamente masculino que estava passando pela puberdade, mesmo que tardiamente. Mike Madrid afirma que: “A ironia de toda a situação era que, finalmente, havia mais títulos do que nunca estrelando mulheres, mas eram tão altamente sexualizados que pareciam anular qualquer de seus poderes” (2016, p. 291). Em suma, ao hipersexualizar essas guerreiras, a indústria de entretenimento encontrou um meio de esvaziar de sentido o discurso sobre independência e protagonismo feminino presente no mito das amazonas.
Essa contextualização ajuda a entender parcialmente o que Martha Washington representa. Além dessas questões de representatividade feminina, ela pode ser inserida em discussões sobre a questão da representação de mulheres negras nos quadrinhos. Se a representação de mulheres brancas nos quadrinhos envolve, como vimos, uma grande estereotipação e sexualização, quando se trata de mulheres negras, as representações não são muito diferentes. Porém, as mulheres brancas, desde que existem histórias em quadrinhos (meados do século XIX), tiveram algum tipo de repre- sentação, mesmo que de forma negativa. Já as mulheres negras, durante um bom tempo, foram completamente excluídas desses meios de comunicação. De fato, esse tipo de exclusão e estereoti- pificação não é algo restrito às histórias em quadrinhos, a população negra (independentemente do gênero) foi sistematicamente estigmatizada e marginalizada pelos principais meios de comu- nicação dos EUA. E essa situação foi mudando aos poucos, devido à mobilização e organização desses grupos excluídos20.
De acordo com a pesquisadora, Deborah Elizabeth Whaley21 (2016, p. 16), personagens masculinos negros têm aparecido em papéis secundários esporadicamente nas HQs, desde 1934 com Lothar em Mandrake22; outro exemplo é o personagem Ebony White (1940), parceiro do Spirit23. Posteriormente, surgiram os primeiros protagonistas negros; em 1954, foram publicadas algumas HQs com um personagem chamado Waku24; em 1965, a Dell Comics lançou um perso- nagem chamado Lobo25 e, em 1966, a Marvel Comics lançou as HQs do Black Panther26 [Pantera Negra], provavelmente um dos mais conhecidos personagens negros dos quadrinhos. A partir da década de 1970, houve uma maior proliferação de protagonistas negros; de acordo com Whaley, isso ocorreu devido aos movimentos por direitos civis e pelo fenômeno cinematográfico conhecido como Blaxploitation, que visava produzir filmes voltados para o consumo da população negra dos Estados Unidos. Assim, a indústria de quadrinhos percebeu que havia possibilidade de lucrar com esse público e criou-se o que a autora chama de Blaxplocomics, que “[...] eram compatíveis com esta tendência, e os escritores criaram negros superfortes como Luke Cage e Black Lightning [Raio Negro], uma mistura de intimidador hiper-sexualizado, bruto e musculoso” (WHALEY, 2016, p. 16).
Com relação a essa forma de representação, a pesquisadora Anne Caroline Quiangala afirma que: “O padrão de personagem negro é androcêntrico e inscrito tanto em valores hegemonica- mente construídos como positivos, quanto enclausurados em arquétipos coloniais, por exemplo, de uma masculinidade negra exagerada, abismante e temível” (2017, p. 50). É nessa onda dos anos 70 que surgem as primeiras heroínas negras como; Misty Knight (1975), ex-policial, detetive coadjuvante nas HQs Heroes for Hire, X-men e Deathlok; e Storm [Tempestade] dos X-men (1975). Essas heroínas negras tinham em comum o fato de serem representadas de forma superficial e de ocuparem funções secundárias, ou como ajudantes de heróis ou membros de pouca expressividade dentro de um grupo cheio de homens com muitos poderes. De acordo com Quiangala, a forma como as personagens negras são representadas nos quadrinhos tem como objetivo “[...] transmitir ininterruptamente mensagens que associam Negras a estereótipos sexuais, exóticos, eróticos e metaforicamente bestiais” (2017, p. 27).
Além disso, a autora compara a forma como heroínas brancas e negras são representadas. As primeiras não são definidas por sua raça ou etnicidade, mas por modelos de feminilidade que as apresentam como seres indefesos, submissos e que necessitam ser protegidas ou salvas pelos heróis. Já as personagens negras são representadas a partir de estereótipos do período da escravidão que: “[...] atribui força, resistência e indelicadeza às mulheres Negras, diferente de outras construções de racialidade, salientando a supremacia capitalista patriarcal” (QUIANGALA, 2017, p. 51). A partir disso, Quiangala faz uma breve análise da personagem Martha Washington e afirma que: “A caracterização da mulher Negra como fisicamente forte é uma continuidade da expropriação da feminilidade que impõe um padrão de mulher vitoriana frágil que as mulheres negras, histo- ricamente, como corpo social, não puderam acessar” (2017, p. 73).
No excerto acima, a autora sugere que a forma como Martha foi representada contribui para manter uma visão estereotipada e preconceituosa sobre as mulheres negras, que seriam vistas como desprovidas de feminilidade, uma característica atribuída às mulheres brancas. Do ponto de vista da autora, por mais que as HQs da personagem contribuam para a divulgação de uma imagem que podemos considerar positiva de uma mulher negra, a publicação acaba incorrendo e reforçando velhos estereótipos racistas e machistas.
Complementando essa ideia, a socióloga Patricia Hill Collins (2016, p. 103) afirma que as mulheres negras e as brancas têm sido estereotipadas27. Contudo, as mulheres negras seriam as “mulas” do homem branco e as mulheres brancas os “cachorros”. Essa comparação indica o espaço que essas mulheres têm no mundo patriarcal, umas são o animal de carga usado para o trabalho pesado e as outras o animal de estimação que fica na casa e recebe um tratamento diferenciado, porém ambas compartilham uma situação de desumanização. A autora diz que uma das carac- terísticas das mulheres negras é a “assertividade”, e que esta é considerada a mais perigosa para o status quo. E, por isso, é estereotipada como agressividade.
Por exemplo, mulheres afro-americanas agressivas são ameaçadoras, pois desafiam as defi- nições do patriarcado branco de feminilidade. O ato de ridicularizar mulheres assertivas ao denominá-las de Sapphire28 reflete o esforço de colocar todas as mulheres em seus devidos lugares (QUIANGALA, p. 104).
Collins afirma que um dos objetivos do feminismo negro29 é mudar esses estereótipos. Mas isto não é tão simples, a substituição de estereótipos negativos por positivos, pode ser problemática, “[...] caso a função dos estereótipos como mecanismo para controlar imagens permaneça velada” (2017, p. 103). E complementa essa ideia dizendo que: “Visto por esse prisma, faz pouco sentido, a longo prazo, para as mulheres negras trocarem um conjunto de imagens controladoras por outro, mesmo se, a curto prazo, estereótipos positivos levem a um melhor tratamento” (2017, p. 103). Para resolver o problema de estereótipos, a autora diz que uma das funções do movimento feminista negro é incentivar a valorização e ressignificação destes. Todavia, deve-se ter cuidado ao fazer isso:
Uma coisa é aconselhar mulheres afro-americanas a resistirem ao estereótipo de Sapphire, alterando o seu comportamento para se tornarem mansas, dóceis e estereotipadamente “femininas”. Outra coisa bastante diferente é aconselhar mulheres negras a abraçarem sua assertividade, a valorizarem sua ousadia, e a continuarem a usar essas qualidades para sobre- viverem e transcenderem os ambientes hostis que circunscrevem as vidas de tantas mulheres negras. Ao definir e valorizar a assertividade e outras qualidades “não femininas” como atributos necessários e funcionais da condição feminina afro-americana, a autoavaliação das mulheres negras desafia o conteúdo de imagens controladoras externamente definidas (COLLINS, 2017, p. 104).
Com base nisso, cabe determinar se Martha Washington apenas reproduz um estereótipo de mulher negra agressiva, ou se valoriza a assertividade da personagem. Para tentar responder a essa questão, é necessário saber qual era o objetivo dos autores quando criaram a personagem. Em uma entrevista de 1994 na qual Miller e Gibbons foram questionadas sobre o que eles sabiam “sobre ser um negro empobrecido e mulher?”, Miller deu a seguinte resposta:
Coloque Dave nisso também. Dois caras brancos de classe média, escrevendo sobre uma heroína negra e empobrecida. Eu acho que Martha Washington é um ser humano. Se eu não conseguisse escrever um personagem como esse, tudo que eu escreveria seria uma história chata sobre pessoas como eu. Eu escrevi sobre pessoas que podiam voar, a experiência humana é sentida universalmente emoções que nos unem como pessoas. Eu posso imaginar como certas situações são. Acho que seria extremamente intolerante da minha parte dizer ‘Ah, eu não posso escrever esse personagem, ele é negro e eles pensam diferente. Eles experienciam as coisas diferente’. Tanto quanto, claro, escrever uma mulher, há mistérios ali. Eu não posso rastejar pra dentro da cabeça de uma mulher e ser ela. Eu acho que enquanto há diferenças entre homens e mulheres, ambos são humanos. Ambos sentem vergonha, compaixão, horror e ambos sabem como é superar obstáculos (MILLER, 1994, p. 3).
Dave Gibbons concorda e complementa a resposta de Miller da seguinte maneira:
Bem Frank veio com a personagem, mas é tudo a mesma coisa para mim. O que tentamos fazer foi criar uma personagem que fazia parte do grupo dos oprimidos, por assim dizer. O heroísmo é, vir de uma posição de, se não de fraqueza, algum tipo de desvantagem, e superá-la. Pode parecer que ser negro seja uma desvantagem, e ser uma mulher negra é ainda mais uma desvantagem. Eu quero dizer que isso é um fato. Obviamente, não deveria ser assim, mas isso é um fato. Na minha opinião, o que faz dela particularmente interessante - ela começou com muitas desvantagens. Além de não ter aspirações exatas, ela começou a se afastar ou até mesmo pensar sobre as desvantagens com as quais ela começou. Ela realmente vive sua vida da melhor maneira que pode, que é um heroísmo de um tipo verdadeiramente heroico (GIBBONS, 1994, p. 3).
As falas dos autores indicam que eles têm um certo conhecimento sobre os tipos de desvan- tagens que uma mulher negra pode enfrentar, vivendo em um país com altos índices de racismo e machismo. Eles reconhecem que fazem parte de um grupo social privilegiado e, por isso, não são os mais aptos para contar a história de uma mulher negra empobrecida. Entretanto, eles não veem isso como um impedimento para narrar a história dessa personagem com uma origem tão diversa da deles. Assim, entendem a narrativa que criaram como um exercício de se imaginar no lugar do outro; ademais, é uma tentativa de abordar temas de autossuperação e heroísmo que acreditam ser comum a todos os seres humanos. Divulgar esse suposto “denominador comum” humano é o grande objetivo dos autores. Portanto, é possível inferir que não pretendiam, pelo menos não intencionalmente, reproduzir estereótipos preconceituosos. Além disso, na mesma entrevista, Miller diz que:
Eu tenho consciência da falta de personagens femininas nos quadrinhos e queria fazer a minha parte para apresentá-las. Especificamente no caso de Martha, as primeiras ideias que tive, foram que eu queria um herói americano definitivo. Parte do que é essencialmente americano historicamente é ser capaz de vir de baixo e conseguir algo grande. Como nas histórias de Horatio Alger30. Então eu reconhecidamente empilhei o baralho todo contra ela de todas as maneiras: empobrecida, negra, feminina. Ela tinha todas as marcas contra ela e a virtude da personagem é que ela não se considera uma vítima (MILLER, 1994, p. 3).
A declaração do autor atesta sua preocupação com a ausência de personagens femininas nos quadrinhos. E seu comprometimento com um ideal de superação que ele considera essencial para seu país, e que é uma característica do chamado Sonho Americano (já evidente na capa da primeira edição); que basicamente difunde a ideia de que se as pessoas se esforçarem bastante, em algum momento, talvez depois que morrerem, conseguirão superar sua condição de pobreza. Com relação ao fato de não representar Martha como uma vítima, Miller diz que fez isso porque “Acho que a maneira como nosso país está se afogando em autopiedade agora é improdutiva, des- trutiva e meio repugnante. Hoje em dia todo mundo é uma vítima. É incrível” (MILLER, 1994). Apesar disso, Miller diz que não fez a personagem pensando em transformá-la em um modelo, ele não se responsabiliza e nem procura prever que tipo de identificação seus leitores podem ter com a personagem. Ele deixa claro que:
Minha objeção a modelos reflete minhas crenças pessoais. É isso que estou fazendo. Eu não tenho nenhum interesse em dizer às pessoas como votar, que Deus adorar, nada. Em minhas histórias eu posso apenas refletir minhas próprias crenças, sejam meus personagens heróis ou não. Se houver algum efeito secundário, quando alguém for afetado e tiver vontade de lutar uma boa causa ou algo assim, isso é uma coisa maravilhosa. Mas conscientemente sentar e dizer que você vai instruir as pessoas é contra tudo o que eu acredito, em fantasia e ficção. Na verdade, é um insulto para o leitor. Eu acho que os heróis são uma coisa muito boa. Eu acho que a vida do herói é um protótipo do que uma vida bem dirigida seria. O único lugar que rejeito essa noção de modelo é quando dizem que as fantasias envolvidas são feitas com a intenção de doutrinar. Não é meu trabalho (MILLER, 1994).
Por mais que Miller afirme que seu objetivo como escritor não é doutrinar ou sugerir a seus leitores que sigam determinadas posições políticas, sociais ou morais, fica evidente que ele sempre pretende passar uma mensagem para seu público. Em uma entrevista posterior, ele deixa claro quais são suas intenções com a personagem: “Com Martha, uma das coisas que eu tentei transmitir é que ela tem, através da série, uma mente cada vez mais disciplinada, a ponto de ser quase sobre-humana. Se você a colocasse na prisão por muito tempo como Mandela, sua reação provavelmente seria simi- lar à dele” (MILLER, 1998, p. 53). Ao desenvolvê-la dessa forma, ele quis evidenciar que Martha é uma mulher capaz de se manter sã independentemente do que ocorra com ela, como indica a comparação que ele faz. É interessante destacar como a personagem foi desenvolvendo sua mente disciplinada: no princípio, ela apenas seguia ordens e no desenrolar da trama, vai adquirindo suas próprias convicções, deixando de ser subordinada. A disciplina militar se mantém nela, porém como um elemento que lhe permite se organizar e fazer o que deseja, não é mais como uma faceta de submissão. Em suma, disciplina, nesse caso, tem um sentido de autocontrole.
Martha Washington é uma personagem feminina desenvolvida em um contexto de hiperse- xualização e objetificação de heroínas; entretanto, a personagem não se encaixa exclusivamente nesse modelo, exceto por sua característica de guerreira, ela não pode ser comparada com as amazonas dos anos 90. Em nenhum momento das HQs, Martha foi representada de forma sexualizada. Há alguns poucos instantes em que ela aparece nua, mas só seus seios ficam explicitamente à mostra, essa exposição é coerente com o contexto narrativo e não apresenta nenhuma conotação de teor explicitamente erótico. No restante das narrativas, Martha é desenhada trajando um uniforme militar que pouco mostra as formas de seu corpo. Além disso, as HQs não apresentam nenhuma referência à prática sexual da personagem, não há cenas de ato sexual entre ela e o namorado, com outros homens ou mulheres. Em Give Me Liberty, uma cena indica que ela teve que matar um membro de seu pelotão que tentou violentá-la, entretanto esse momento não é mostrado de forma explicita, é apenas sugerido. De modo geral, Martha é representada de forma não sexualizada, mas isso não quer dizer que ela seja desprovida de desejos, ela simplesmente é uma mulher interes- sada em outras coisas, principalmente, em superar seus limites.
A pesquisadora, Deborah Elizabeth Whaley, em uma breve análise sobre as HQs de Martha Washington, classifica-as de forma extremamente positiva no tocante à representação, mesmo que estereotipada, de uma mulher negra. E reconhece que a narrativa fornece “[...] uma estrutura ideal para pensar sobre a relação entre gênero, negritude e os aspectos violentos e epistemológicos da americanidade ou de construção de nação dos EUA” (2016, p. 20). A autora entende que os quadrinhos de Miller e Gibbons, dentro de suas limitações, promovem uma forma alternativa de patriotismo ao colocar Martha como uma agente de uma nova nação. Ao fazer, estariam contri- buindo para a desconstrução de um modelo antiquado de patriotismo, pautado em um modelo branco e masculino. Para fundamentar suas análises, Whaley trabalha com os conceitos de gênero, negritude e nation making [construção da nação]. Este último é usado para determinar como as representações de personagens negros contribuem ou não para reforçar e divulgar determinadas características presentes na sociedade estadunidense. Nas palavras da autora:
[...] eles podem reificar ideologias que apoiam o excepcionalismo americano e defender a ordem nacional através da realização de identidades patrióticas. A construção de uma nação nos quadrinhos pode ocorrer de várias maneiras, incluindo a estruturação da narrativa e do diálogo do autor e a criação de pistas visuais e sequências de ação pelo artista/colorista/ arte-finalista. A construção de nações também pode assumir formas subversivas, à medida que os personagens passam a representar e atuar em um projeto nacional que é contra-he- gemônico e atende grupos historicamente marginalizados. Em alguns casos, as mulheres negras nos quadrinhos constituem uma mistura de agendas nacionais: elas fazem parte da máquina nacional dos EUA e questionam e enfraquecem esse aparato para fins politicamente progressistas; elas também podem pretender ter uma ‘pátria’ e reivindicar um nacionalismo negro ou africano em oposição à construção de nação dos EUA. Como sujeitos nacionais envolvidos na construção de nações, as personagens femininas negras podem coreografar relações sociais e operações políticas em pequena escala para, nas palavras do personagem de quadrinhos Martha Washington, ‘tecer o tecido de um novo mundo - e uma nova sociedade’ (WHALEY, 2016, p. 16-17).
Com base no conceito de nation making, podemos inferir que Martha Washington é uma história em quadrinhos complexa, que em parte contribui para discutir de forma superficial algu- mas questões raciais e de gênero. Indica uma preocupação de seus autores com o estabelecimento de uma visão positiva sobre a mulher. No entanto, a ideia que os autores têm de que existiria um modelo universal de heroísmo aplicável em diversos personagens, indica as limitações de seu pensamento. Limitação que justifica a ausência de um diálogo maior entre a obra e o movimento negro nos EUA. Há apenas pequenas referências à segregação social e a luta por direitos civis; Whaley, por exemplo, localizou na lápide31 do pai de Martha uma pequena indicação do ano de 1955, ano no qual ocorreram manifestações e boicotes a segregação racial nos ônibus32. Martha Washington, apesar de vir de um grupo segregado em suas batalhas, não manifesta em nenhum momento uma identificação com a comunidade negra ou com a luta de movimentos negros, ainda existentes em seu mundo. Seus grandes compromissos são: em primeiro lugar com sua família, mãe, principalmente; e em segundo lugar com sua nação. Martha não se engaja em nenhum movimento de minorias que visam a construção de uma nação alternativa. Seu engajamento, posterior, é com um movimento pautado em valores liberais, individualistas e tecnológicos que almejam a difusão deste por todas as partes do mundo.
Vale destacar que o período dos anos 1980 e 1990 foi marcado por diversas mudanças no cenário político interno e externo dos EUA. Internamente houve a ascensão de grupos políticos conservadores ligados a uma agenda neoliberal que defendia uma limitação da ação estatal na sociedade, principalmente em relação a políticas de bem-estar social, representados na figura do presidente Ronald Reagan e de seu sucessor George Bush ambos do partido Republicano, no entanto essas políticas tiveram continuidade no governo do Bill Clinton do partido Democrata. No âmbito internacional ocorreu o fim da chamada Guerra Fria, tendo como evento importante a queda do muro de Berlim (1989) e a consequente desagregação da União Soviética (1991) durante o governo de Mikhail Gorbachev33. A partir disso, os EUA entraram em uma nova fase de hege- monia política global, marcada por uma nova empreitada bélica no Oriente Médio na chamada Guerra Golfo (1990-1991), uma clara demonstração de poder do país que havia se tornado a única potência econômica e militar com alcance mundial. E, nesse contexto, Martha pode ser pensada como uma tentativa de elaborar uma nova face, dentro do mundo da ficção, para perpetuação e expansão do imperialismo estadunidense. Sob a liderança de uma mulher negra, que venceu todas as adversidades políticas e sociais, os EUA têm condições de renascer como uma nação grandiosa e levar para o mundo seus ideais de liberdade e democracia.
Martha Washington é evidentemente uma obra importante no que diz respeito à constru- ção de um estereótipo positivo sobre mulheres negras, e mulheres no geral, afinal não é uma obra que reduz a personagem a um papel de submissão, ou de excessiva sexualização ou objetificação.
Sua autoconquistada independência, determinação e força indicam que Martha é de fato uma heroína fora dos padrões vigentes no período em que foi publicada. Porém, não é uma obra que apresenta uma temática comprometida em apresentar discussões mais profundas sobre as relações de gênero e raça nos EUA.
Apesar disso, a obra fornece dados para compreendermos como dois sujeitos brancos de classe média idealizaram uma heroína negra, na qual projetaram suas próprias experiências e opiniões sobre o mundo em que viviam, sendo aceitos por um público leitor diversificado. Além disso, nas narrativas, é possível identificar que os autores, principalmente, Frank Miller, utilizaram-na para difundir e reafirmar algumas ideias sobre liberdade, patriotismo, excepcionalismo, militarismo e o imperialismo estadunidense.
Considerações finais
Em Martha Washington, é evidente que os autores procuraram construir uma nova represen- tação patriótica positiva para o país. Substituíram o tradicional herói branco, de sexo masculino, por uma heroína negra. Martha representa um grupo socialmente excluído que, dentro da narra- tiva, após muito esforço, conseguiu assumir o poder e iniciar um processo de mudança nacional/ internacional. Apesar de representar a comunidade negra e feminina dos EUA, a personagem, ao longo de suas HQs, não manifesta nenhuma identificação com as lutas históricas de negros e mulheres de seu país; sua identificação primordial é com a narrativa mítica de excepcionalidade dos EUA, de seu povo e ideais.
Os quadrinhos de Martha Washington podem ser entendidos como uma nova proposta para o restabelecimento da almejada grandeza nacional. Os EUA só podem voltar a ser uma grande nação se deixarem de lado suas diferenças e ideologias que contribuem para a divisão do país, e se unirem em torno da ideia de liberdade estadunidense. Na visão dos autores, a liberdade é o que diferenciaria o país de outros, é o único conceito capaz de renovar e unir a nação. Martha é uma guerreira da liberdade potencialmente invencível. As constantes lutas e vitórias dela indicam que a única maneira de superar um cenário futuro de pesadelo e caos social é por meio da luta pela liberdade, porém essa luta não deve se restringir ao território dos EUA. Deve ser levada para outras nações e também (quando isso for possível) para outros planetas e dimensões.
O papel dos Estados Unidos, mesmo que nas narrativas o nome do estado-nação tenha sido abolido, é levar a liberdade para os locais mais distantes do mundo e do universo. Martha Washington, uma mulher negra e pobre, é a escolhida para essa missão, ou melhor, a merecedora, já que ela conseguiu tudo isso por meio de seu esforço individual, ela lutou contra todas as adver- sidades e venceu. Ela é o que podemos classificar como uma vencedora. Um exemplo de indivíduo determinado e lutador que, por meio de seus próprios esforços, venceu na vida. Martha Washington é evidentemente uma obra que critica a situação de exclusão social, sexual e racial existente nos EUA, porém isso ocorre por meio da revalorização e ressignificação de ideias míticas da excepcio- nalidade nacional e do poder individual como motor da história. E defende que os Estados Unidos, renovado sob a face de uma guerreira e líder negra, devem seguir com sua política imperialista de difusão de seus valores, pois estes seriam a melhor alternativa para todos.
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Notas
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