QUADRINHOS NAS AMÉRICAS EM PERSPECTIVA TRANSNACIONAL
Uma Medeia em quadrinhos: mito, recepção da antiguidade e terrorismo na Medeia de Mariana Waechter
A graphic novel Medea: myth, reception of antiquity, and terrorism in Mariana Waechter’s Medeia
Uma Medeia em quadrinhos: mito, recepção da antiguidade e terrorismo na Medeia de Mariana Waechter
Anos 90, vol. 28, e2021103, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em
Received: 02 March 2021
Accepted: 10 June 2021
RESUMO: O artigo propõe analisar a HQ Medeia de Mariana Waechter (2014), demonstrando como a autora constrói em sua obra gráfica uma narrativa para debater o discurso do terrorismo no Brasil na segunda década dos anos 2000, momento em que o país foi sacudido por manifestações de rua. A HQ é analisada a partir da noção de recepção da antiguidade nos quadrinhos, tema cada vez mais explorado pelos estudos da antiguidade. O texto examina como o mito de Medeia vem sendo utilizado durante as últimas décadas para abordar reivindicações sociais. A heroína grega é uma figura plural que engloba temas como a situação social dos estrangeiros, o feminismo e questões de alteridade. A Medeia de Mariana Waechter apropria-se de várias representações do mito para demonstrar como o terrorismo em suas mais variadas expressões totalitárias se consolida no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Medeia, Recepção, Quadrinhos, Mito, Terrorismo.
ABSTRACT: This paper aims to analyze Mariana Waechter’s graphic novel Medeia (2014) and how the artist creates a graphic narrative in order to discuss terrorism discourse in 2010s Brazil, when the country was shaken by street protests. The graphic novel is analyzed through the lens of reception of antiquity in graphic novels, a theme increasingly explored in Classical Studies. The paper examines how the myth of Medea has been recently used to address social issues and how the Greek heroine is a plural figure who encompasses themes such as the social status of foreigners, feminism, and alterity issues. Mariana Waechter’s Medeia uses several representations of the myth to convey the consolidation of terrorism in Brazil in its diverse totalitarian forms.
KEYWORDS: Medea, Reception, Graphic novels, Myth, Terrorism.
The incensed hurt of women continues to find voice via Medea.George Steiner
Medeia: defina ‘terrorismo’...Coletivo Sáfaro
Rosana Lauriola, em um artigo para o respeitado Brill’s Companion to the Reception of Euripides (2015), faz um interessante e extenso levantamento das apropriações do mito de Medeia. Em um exercício de arguta erudição, a pesquisadora apresenta representações da trágica heroína na literatura, pintura, dança, ópera, cinema e, obviamente, no teatro contemporâneo. Por outro lado, Lauriola ignora as adaptações em histórias em quadrinhos (HQs), como a belíssima Médée (2013) de Blandine Le Callet e Nancy Peña, que contava então com seu primeiro volume publicado, entre outras referências, como a personagem Medea do Universo Marvel. O que pode soar como um deslize pode indicar uma postura comum para parte dos pesquisadores do mundo antigo: as HQs não são consideradas “sérias” para a análise de representações da antiguidade.
O que propomos, conscientes da importância das HQs para o estudo das representações sociais, está na intersecção de dois temas, a relação entre Estudos Clássicos e HQs e a recepção do mito grego na contemporaneidade. A ambição de abarcar essas temáticas se dá pela emergência da discussão da recepção dos clássicos a partir de outras linguagens que não as tradicionais.
Os quadrinhos exercem um importante papel na divulgação de temas da antiguidade. Refletir sobre recepção e HQs em relação à história e representação é problematizar construções de passados idealizados de formas ideológicas, de maneiras de formatar o antigo. O conceito de representação a partir da lógica da História Cultural como proposta por Chartier (1990) procura “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 16-17). A interface entre HQs e antigui- dade procura analisar como a linguagem gráfica dos quadrinhos problematiza e reinterpreta os mitos para demandas contemporâneas.
O imaginário da antiguidade forneceu oportunidade de apropriação aos mais variados estilos de quadrinhos, desde as referências a heróis gregos na chamada Golden Age das HQs americanas, entre as décadas de 1930 e 1950, passando pelo clássico Asterix e Obelix, criado pelos franceses René Goscinny e Albert Uderzo no final dos anos 1950, até os famosos universos Marvel e DC e aos quadrinhos educativos e adaptações gráficas da Ilíada, da Odisseia ou de outros textos clássicos.
Nosso objeto é uma adaptação do mito de Medeia desenvolvida pelo Coletivo Sáfaro e pela quadrinista Mariana Waechter na HQ Medeia (2014). O trabalho de Waechter vem se consoli- dando pela linguagem experimental dentro da arte sequencial. Nossa investigação problematiza a seguinte questão: como a Medeia de Waechter se apropria do mito para construir uma narrativa
contemporânea sobre a heroína grega?
Em um momento em que os símbolos da antiguidade estão sendo apropriados por movimen- tos reacionários, como observou Donna Zuckerberg em Not All Dead White Men: Classics and Misogyny in the Digital Age (2018), é importante desenvolver reflexões que problematizem mitos antigos fora de padrões tradicionais e dando voz a abordagens periféricas. Zuckerberg destaca como a antiguidade vem sendo usada para legitimar lógicas reacionárias:
comunidades de extrema direita ideologicamente alinhadas com o Identity Evropa [grupo de supremacia branca dos EUA] têm usado cada vez mais artefatos, textos e figuras históricas evocativas da Grécia e da Roma antigas para emprestar peso cultural à sua visão reacionária de masculinidade branca ideal (ZUCKERBERG, 2018, p. 1, tradução nossa).
Torna-se importante, nesse sentido, analisar uma Medeia em HQ, criada por uma autora e quadrinista brasileira, pois a partir da adaptação podemos observar um contraponto a determi- nadas ideias sobre o que são os clássicos no mundo contemporâneo e atentar para outro tipo de recepção que coloca a heroína em sintonia com setores marginalizados, como imigrantes, e com ideais diferentes de gênero e sexualidade. A Medeia de Mariana Waechter, como demonstraremos, pode ser interpretada como uma heroína marginalizada, que representa anseios de igualdade e discute o terrorismo como um discurso, colocando em evidência lógicas repressoras.
Dividimos o artigo em três partes: 1. Quadrinhos e recepção da antiguidade, em que aborda- mos a recepção da antiguidade nos quadrinhos, tema que vem ganhando cada vez mais importância na área dos Comics Studies; 2. Mito e quadrinhos, em que apresentamos relações entre o mito e as HQs, demonstrando como Medeia é um mito icônico e multifacetado para significados políticos; 3. Uma Medeia terrorista?, em que problematizamos os significados propostos pela Medeia de Mariana Waechter, abordando o tema do terrorismo em relação ao mito da heroína grega.
Quadrinhos e recepção da antiguidade
Nas últimas décadas, o conceito de recepção permitiu aos Estudos Clássicos, uma área acadê- mica consolidada na intersecção entre história, arqueologia, literatura e filologia, um alargamento de suas perspectivas temporais. Considerando que a palavra “clássicos” se refere aqui às civiliza- ções antigas, a noção de recepção passou a abordar a “presença” (Classical Presence) desse passado, de idealizações da antiguidade no contemporâneo.
As várias noções de recepção tornaram-se um dos alicerces teóricos da História Cultural. Peter Burke argumenta duas importantes ideias de recepção que permitem aos historiadores desenvolver uma história da leitura em diferentes contextos, discutindo como ideias produzidas em um conjunto social são recebidas e reformuladas em outros ou também as recepções culturais e trocas entre o que é considerado cultura erudita em relação à cultura popular (BURKE, 2008, p. 99-130). Os quadrinhos, como um tipo de arte de distribuição global, permitem entender como determinadas ideias ou personagens são recebidas em outros contextos1.
Nesse alargamento temporal possibilitado pela recepção, que entrelaça história da leitura e história das ideias, reconfigura-se a noção de “clássicos”. De acordo com Martindale, a recepção no âmbito dos Estudos Clássicos possibilita reconfigurar o alcance desses textos a partir de novas óticas:
A recepção ajudou assim a desafiar a ideia tradicional do que são os “clássicos” [...], desper- tando a reflexão sobre como a disciplina foi constituída, de forma variada e frequentemente em meio a disputas, ao longo de séculos. Não é simplesmente uma questão de examinar o que aconteceu com os clássicos após o que agora chamamos de “antiguidade tardia”, mas de contestar a ideia de que os clássicos são algo fixo, cujos limites podem ser mostrados e cuja natureza essencial nós podemos compreender em seus próprios termos (MARTINDALE, 2006, p. 2, tradução nossa).
Em um sentido amplo, tomamos o conceito de recepção da antiguidade como “as formas pelas quais material grego e romano foi transmitido, traduzido, citado, interpretado, reescrito, reimaginado e representado” (HARDWICK; STRAY, 2008, p. 1, tradução nossa). Em um primeiro momento, a noção de recepção aborda uma ideia, princípio ou conceito do passado recebido no presente, ou seja, recriado e reavaliado dentro de determinado aspecto ideológico. A abordagem do Classical Reception Studies em relação aos quadrinhos é problematizar e investigar como o imaginário da antiguidade, ou seja, seus mitos, suas narrativas e sua história, é utilizado para moldar e configurar dinâmicas contemporâneas.
Em âmbito nacional, é imprescindível atentar para as contribuições de Glaydson José da Silva, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni, que desenvolvem estudos no âmbito da recepção e dos usos do passado. Para os autores, é marcada uma diferença entre esses dois termos e a forma teórica com que ambos têm sido instrumentalizados: “o conceito de usos do passado tem uma perspectiva mais instrumental e específica, recepção tem um sentido mais amplo” (SILVA; FUNARI; GARRAFFONI, 2020, p. 45).
O conceito de texto clássico desenvolve-se em um diálogo do moderno interpretando o antigo, que não poderia ser separado de contextos de recepção. A obra não teria seu significado em sua origem, pois as ideias de passado estão sempre sendo reescritas pelo presente. O clássico nunca está dado em seu significado. Ele é sempre construído, o que implica uma dinâmica ativa na ideia de recepção:
A ideia de recepção, longe do caráter de passividade que comumente lhe é atribuído, rejeita significados absolutos, definitivos, fundamentados em fontes originais decifradas e reproduzidas na posteridade. Ao criticar o caráter estático do clássico, as teorias da recepção apontam para o próprio processo histórico de construção das disciplinas que a ele se dedicam (SILVA; FUNARI; GARRAFFONI, 2020, p. 46).
Podemos destacar que o diálogo entre quadrinhos e antiguidade do ponto de vista da recep- ção teve uma importante guinada desde que a respeitada coleção Classical Presences da Oxford University lançou em 2011 Classics and Comics, editado por George Kovacs e C. W. Marshall. A publicação é um volume extenso de 16 artigos originais abarcando reflexões que muitos especia- listas fingiam não existir: a recepção e a reconfiguração da história da antiguidade, dos clássicos e dos mitos nos quadrinhos. O mérito da publicação era colocar no terreno dos quadrinhos o tema da recepção da antiguidade, que vinha sendo discutido no cinema, na arquitetura e na filosofia2.
Apesar de existirem estudos sobre antiguidade e quadrinhos anteriores à data do livro, como o estudo de Michel Thiébaut, Culture populaire et culture savante: l’Antiquité dans la Bande Dessinée (1998), que é resultado de sua tese de doutorado sobre o tema da antiguidade nos quadrinhos, a publicação de Kovacs e Marshall permitiu que muitas análises que pareciam dispersas pudessem ser revisitadas por uma nova demanda.
Para os autores, apesar de parte dos classicistas serem resistentes aos quadrinhos, existem semelhanças entre o trabalho acadêmico do classicista e o leitor de revistas em quadrinhos (comics), começando pelo fato de que ambos se debruçam sobre um corpus documental específico. O leitor de quadrinhos está constantemente relendo e ressituando um tipo de texto que está em expansão em níveis multimídia e hipertexto, reorganizando uma continuidade. O classicista trabalha com um grupo de textos, comparativamente menor, mas que são também reelaborados a partir de novas premissas teóricas. As revistas em quadrinhos, como um gênero literário, trabalham com o desafio de interpretar um material que está sempre em crescimento, enquanto os historiadores do mundo clássico procuram reatualizar os seus documentos através de novas perspectivas. Outra semelhança é que, assim como Hesíodo dividiu a história dos homens em cinco eras ou idades (idade de ouro, de prata, de bronze, dos herois e dos homens), uma classificação semelhante é indicada para os quadrinhos dos EUA (KOVACS; MARSHALL, 2011, p. 6-7).
Outra importante contribuição, apesar de não compartilhar do mesmo horizonte teórico aqui abordado, e que tem desenvolvido uma relação entre a imagética do texto antigo e uma trans- crição para a linguagem dos quadrinhos é o artigo Tradução por imagens de clássicos da literatura, um retorno à iconografia de PieroBagnariol (2013). O autor procura examinar HQs explorando as possibilidades da iconografia antiga, tentando aproximar as duas linguagens.
Para Kovacs e Marshall, de uma maneira geral, três são as possibilidades de recepção da anti- guidade nos quadrinhos: “(1) referências superficiais e empréstimos cosméticos; (2) apropriações e reconfigurações em que modelos clássicos são deslocados de seu contexto original; e (3) repre- sentações diretas do mundo clássico” (KOVACS; MARSHALL, 2011, p. 15, tradução nossa). O que nos interessa aqui são propriamente as apropriações e reconfigurações dos clássicos, a recepção do mundo antigo não apenas mimetizando uma ideia de história da antiguidade, fazendo com que uma narrativa se passe no passado ou vestindo determinada personagem como uma figura da antiguidade. Embora essas abordagens também se configurem como apropriações legitimas do passado, o que buscamos é uma recriação do mito de Medeia.
O texto de Mariana Waechter não apresenta uma apropriação cosmética da antiguidade. A autora opera uma formatação particular do mito e de sua estrutura, delineando uma forma sutil de abordar Medeia. É o que Kovacs e Marshall descrevem como uma relação de apropriação de temas e metáforas:
Não são somente as personagens do mito e da história que são apropriadas para o meio dos quadrinhos, é claro. Alusões, metáforas e imagens permitem aos escritores tomar emprestados padrões e temas do mundo antigo, independentemente de seus textos reconhecerem explici- tamente essa associação (KOVACS; MARSHALL, 2011, p. 20, tradução nossa).
Na relação entre quadrinhos e antiguidade, atentamos para uma ressignificação sensível do mito antigo pela ótica contemporânea. Ao rastrearmos elementos do mito de Medeia na HQ em análise, mostramos a permanência do mito como um construtor de significados. A interpretação do mito redistribui potências de significados e elabora dinâmicas contestatórias. Mariana Waechter constrói com Medeia não uma mimetização da tragédia homônima, mas uma recriação autoral, na qual a representação de Medeia dialoga com dimensões críticas da sociedade.
Mito e quadrinhos
São muitas as relações possíveis entre mito e quadrinhos. Uma relação explorada pela crítica consiste em apresentar os super-heróis como mitos modernos. Richard Reynolds, em Super Heroes: A Modern Mythology (1992), apresenta conexões entre os super-heróis e questões da modernidade: os heróis perambulam por cidades, exercem seu poder para manter a ordem, alguns têm origens estrangeiras ao lugar que habitam e como contemporâneos possuem relações problemáticas com sua identidade.
Umberto Eco, no famoso artigo O Mito do Superman, ressaltou semelhanças entre o mito na antiguidade e o mito construído na era moderna. Para o autor, ambos representam aspirações coletivas:
A personagem mitológica da estória em quadrinhos encontra-se, pois, nesta singular situação: ela tem que ser um arquétipo, a soma de determinadas aspirações coletivas, e, portanto, deve necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemática que a torne facilmente reconhecível (e é o que acontece com a figura do Superman); mas, como é comerciada no âmbito de uma produção “romanesca” para um público que consome “romances”, deve submeter-se àquele desenvolvimento característico, como vimos, da personagem do romance (ECO, 2008, p. 251).
O mito é primeiramente um discurso, um tipo de texto oral ou escrito que estabelece uma narrativa de caráter fundacional. Em uma definição clássica, Mircea Eliade explica que mito é “uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas” (ELIADE, 1972, p. 23). Assim, pode ser interpretado como um discurso criador, texto fundacional, que geralmente habita a esfera do sagrado, pode abordar um princípio ordenador ou um embate de forças que devem ser equilibradas e como discurso pode ser refundado a partir de novas exigências sociais.
Uma semelhança entre o mito e a linguagem dos quadrinhos é a maneira como ambas as nar- rativas organizam dimensões temporais. O mito como um discurso religioso inaugura um tempo, no qual quem narra sabe o presente, o passado e o futuro. A presença do mito em uma sociedade está em revivê-lo e ritualizá-lo no presente. Os mitos contam o nascer e o fim do mundo, de modo que toda temporalidade é organizada ao revivê-lo (ELIADE, 1992). Os quadrinhos também apresentam aos leitores uma temporalidade que por causa de sua disposição gráfica permite varia- das percepções temporais:
Em todas as outras formas de narrativa que eu conheço, passado, presente e futuro não são mostrados simultaneamente - você está sempre no presente. E o futuro é algo que é possível antecipar, e o passado é algo que você pode recordar. E os quadrinhos são a única forma em que passado, presente e futuro são visíveis simultaneamente. [...] Ao olhar os quadros, se estiver lendo o quadro dois na página dois, à esquerda está o passado e à direita está o futuro. E sua percepção do presente se move através disso (MCCLOUD, 2007, p. 84, tradução nossa).
O que nos interessa aqui não é a mitologização dos super-heróis em nossa cultura, ou as origens mitológicas dos heróis nos quadrinhos, mas entender como o mito clássico é transposto para essa linguagem. O que exploramos é uma configuração do mito na relação entre quadrinhos e antiguidade, ou seja, como o mito é ressignificado em seus processos de recepção, considerando a linguagem gráfica das HQs.
Como discurso, a narrativa mítica é constantemente adaptada a exigências sociais. O que pro- curamos analisar na Medeia de Waechter é como características do mito grego da heroína são utili- zadas para representar reivindicações contemporâneas, as “aspirações coletivas” como colocou Eco.
O mito de Medeia ficou imortalizado na peça homônima de Eurípides, apresentada em Atenas em 431 a.C. A tragédia conta a vida de Medeia, princesa da Cólquida, filha do rei Eates, após ter salvado a vida de Jasão e deixado seu lar para segui-lo. Jasão abandona Medeia em Corinto para buscar o lendário velo de ouro e ao retornar anuncia que se casará com a filha do rei Creonte, a jovem Glauce. As mulheres da cidade compõem o coro da tragédia. Creonte anuncia a Medeia que ela será banida da cidade. Então ela decide se vingar da situação, arma um plano para matar a noiva Glauce e Creonte e destruir Jasão.
Medeia era descrita na antiguidade como uma feiticeira que com seu conhecimento do mundo das ervas podia fabricar venenos e poções. A noiva e seu pai são envenenados com os presentes que Medeia enviou para o casamento. Não contente com as duas mortes, ela segue seu plano de vingança e assassina seus dois filhos com um gládio, uma pequena espada de uma mão. Ao retornar para buscar os filhos, Jasão percebe que ambos foram mortos e amaldiçoa a mãe. Medeia aparece voando na carruagem do sol em direção a Atenas, e Jasão suplica que pelo menos os corpos das crianças sejam devolvidos. A heroína recusa-se a fazer isso, diz a Jasão que ele é o único culpado pela situação e leva consigo os corpos das crianças.
Apesar de a tragédia ter tornado o mito de Medeia conhecido pelo horror do infanticídio, é possível que o famoso desfecho tenha sido uma invenção de Eurípides. Ao escreverem suas tragédias, os poetas reinterpretavam variantes do mito e recriavam os enredos para os cidadãos com proble- máticas da pólis. Os antigos temas presentes nas épicas da Ilíada e da Odisseia e em outros poemas eram reinterpretados para o cidadão do século V a.C. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999).
A tragédia grega não perdeu a força comunicativa como um veículo problematizador de questões políticas. Helene P. Foley salienta que:
A tragédia grega permite uma resposta política a situações extremas e insolúveis sem ser grosseiramente atual. Ambientada em um passado imaginário que oferece poucos detalhes específicos sobre cenário ou descrição física, também é suscetível tanto a alterações de local como a elencos multirraciais (FOLEY, 1999, p. 3, tradução nossa).
Nesse sentido, problematizar o mito de Medeia em quadrinhos é também problematizar uma medida de performance do texto trágico. Como destaca o blog do Coletivo Sáfaro, a HQ partiu da tragédia euripidiana para o estudo do mito em relação ao discurso do terrorismo:
Em 2012, o coletivo Sáfaro, com o apoio do CCJ, realizou Medeia, um processo de investi- gação artística sobre a construção da imagem-conceito de terrorismo no Brasil, tendo como plataforma o texto homônimo de Eurípides. Mariana Waechter acompanhou todo o processo e produziu esta HQ, ampliada e publicada como livro em 2014 (O SÁFARO, 2014).
Como a maioria das heroínas trágicas, Medeia desempenha um papel ambíguo em seu sig- nificado social. Famosa pelo infanticídio, é ao mesmo tempo estrangeira, esposa traída, mulher humilhada em uma lógica social masculina, feiticeira e assassina. Medeia é multifacetada e invoca respeito e repulsa por seus atos. Rosanna Lauriola destaca a pluralidade de Medeia:
A Medeia de Eurípides é uma mulher, uma amante, uma mãe, uma esposa desprezada e mal- tratada, uma donzela ajudante traída, uma bruxa e neta do deus Hélio, uma princesa exótica e um “outro” marginalizado, uma mulher forte capaz de enfrentar homens e também uma vítima dos abusos dos homens e... uma assassina, especificamente, uma mãe infanticida. A Medeia de Eurípides é todas essas “pessoas” e nenhuma delas exclusivamente (LAURIOLA, 2015, p. 377, tradução nossa).
A polifonia de significados não escapa às mais diversas representações e possibilitou que durante a segunda metade do século XX a personagem fizesse eco a muitas reivindicações femi- nistas. Betine van Zyl Smit, no artigo Medea The Feminist (2002), historiciza algumas das inter- pretações recentes e conclui que a figura de Medeia é capaz de aglutinar muitas representações reivindicatórias de grupos periféricos:
São uma elaboração de Medeia como bárbara, uma estrangeira no mundo grego e uma mulher desonrada pelo marido. Obras de arte modernas expandem a aplicação desses temas à exploração de povos e países menos desenvolvidos pelo primeiro mundo e à subjugação e marginalização de povos não brancos por brancos. Mas talvez o tema explorado com mais frequência seja o da subjugação e dominação de mulheres por homens. É nesse último caso que Medeia se tornou um símbolo para mulheres e um ícone do feminismo (SMIT, 2002, p. 102, tradução nossa).
No Brasil, temos importantes adaptações de Medeia que problematizaram questões sociais a partir do texto grego. A pesquisadora Maria Coelho, no artigo Five Medeas: Euripides in Brazil (2013), apresenta cinco recepções de Medeia no Brasil. A primeira é a peça Além do Rio (1961) de Agostinho Olavo, que problematizava uma Medeia de raízes africanas, discutindo temas caros à reflexão do movimento negro brasileiro dos anos 1960. Em 1973, a Rede Globo exibiu a adaptação de Medeia de Oduvaldo Viana Filho no programa Caso Especial - Medéia. A obra contava com a atuação de Fernanda Montenegro e fazia críticas veladas ao regime militar com uma Medeia modernizada e estilizada para os centros urbanos. Na esteira do sucesso de Caso Especial, em 1975, o compositor Chico Buarque e o dramaturgo Paulo Pontes criaram uma versão modificada para o teatro com adaptações do texto de Oduvaldo Viana Filho e inserções musicais, chamada Gota d’Água: uma tragédia carioca (1975), que situava uma Medeia entre temas do carnaval e da malan- dragem carioca. Em 1995, foi apresentada nos palcos brasileiros Des-Medéia (1995) de Denise Stoklos, uma versão desconstruída do mito, abordando sexualidade. Em 2006, foi apresentada a ópera Kseni - A estrangeira, de Jocy de Oliveira, que ressignifica questões de Medeia como bárbara3.
Todas essas montagens trazem um profundo hibridismo entre o texto grego e temas da política nacional, além de importantes e variadas transformações: “essas recepções também ilustram a metamorfose sofrida pela tragédia de Medeia em termos de estilo, formato e por meio das escolhas e ideologias dos autores de cada adaptação” (COELHO, 2013, p. 378, tradução nossa).
A peça Medeia do Coletivo Sáfaro (2012) que embasou parte do projeto da HQ de Mariana Waechter nasceu a partir de discussões sobre terrorismo no Brasil, como argumenta o texto do programa da peça:
MEDEIA, DEFINA “TERRORISMO”... O coletivo Sáfaro abre ao público os materiais do processo MEDEIA, pesquisados nos últi- mos quatro meses. Medéia, de Eurípides, surge na pesquisa do coletivo como um catalisador de imagens, uma plataforma para a elaboração de alegorias do terrorismo. Na tentativa de refletir a construção da imagem do terrorismo no Brasil, seus sujeitos, suas inconsistências e contradições, seus interesses de classe subjacentes, o coletivo apresenta a cada dia uma nova configuração cênica, uma recombinação de materiais pesquisados no processo (O SÁFARO, 2012).
A montagem foi apresentada nos meses de abril e maio de 2012. O texto do programa traz símbolos bélicos, como o design de uma pistola e um projeto de robô, indicando aspectos de uma sociedade de controle (Figuras 1 e 2).
Na concepção de Mariana Waechter, o mito de Medeia é explorado para refletir sobre o dis- curso do terrorismo, em voga no começo da segunda década do século XXI no Brasil. A heroína personifica medos, como estrangeira, bárbara e mulher e, ao mesmo tempo, traz elementos anti- civilizatórios, como o infanticídio, que de forma ambígua também a coloca como terrorista para outra lógica.
Uma Medeia terrorista?
Para responder à nossa indagação sobre como a Medeia de Waechter se apropria do mito para construir uma narrativa contemporânea sobre a heroína grega, estabelecemos dois caminhos possíveis e complementares: o primeiro pela ideia de recepção da antiguidade nos quadrinhos, ou seja, rastrear elementos da narrativa que demonstram a atualização do mito, e o segundo é entender como esse mito é utilizado nas questões problematizadas pela autora na linguagem gráfica.
Como salientamos, a Medeia de Waechter nasceu de uma experiência teatral, a partir da recriação da peça de Eurípides pelo Coletivo Sáfaro. A autora, em uma entrevista para à Revista Monotipia, resume as bases da criação da HQ:
MW: Medeia foi realizada dentro do Sáfaro, e o processo foi um quebra-cabeça a partir do mito grego original do texto teatral de Eurípedes, de referências de diversos artistas contemporâneos e dos ensaios experimentais do grupo. Tudo foi traduzido para uma narrativa própria, relacio- nando o mito ao tema de pesquisa do coletivo: o discurso do terrorismo como possibilidade no Brasil. Na época, esse assunto não estava tão em pauta (WAECHTER, 2014a, p. 13).
Ao examinar o programa da peça, encontramos três indícios temporais da interpretação do mito pelo grupo de atores e dramaturgos do coletivo, momentos que mapeiam o itinerário do mito de Medeia e que servem como organizadores temporais da peça: (1) Lamento - Cólquida: a nobre princesa da Cólquida e sua fuga para Corinto com Jasão; (2) Projeto de Atentado - Corinto: a traição e a vingança de Medeia em Corinto; (3) Visão do Paraíso - Chegada a Atenas: o exílio em Atenas depois do infanticídio.
Decidimos tomar esses três marcos espaço-temporais da peça como possibilidade de inter- pretação da HQ de Waechter, com um diálogo com excertos da tragédia de Eurípides. Contudo, é importante ressaltar que a HQ de Waechter não é uma ilustração da peça do Coletivo Sáfaro. A autora segue um caminho particular, criando uma configuração própria de signos e simbologias. A linguagem da HQ é experimental, e não temos os tradicionais balões que marcam diálogos ou fluxo de pensamento. O que temos é uma coleção de quadros e símbolos que se misturam e que fazem sentido à medida que o leitor conhece o mito de Medeia.
É preciso primeiramente observar o título Medeia, como apresentando na capa da HQ (Figura 3). A autora escolhe uma grafia grega, “Μήδεια”, mantendo o desejo de correspondência com o mito grego e preparando o leitor para a memória cultural do símbolo contestatório e polêmico. Por mais que seja abordado um discurso moderno do terrorismo, as origens gregas são marcadas na fonte desenhada pela autora. Como o título indica, teremos na HQ um eco grego que percorrerá o texto.
As duas primeiras páginas da HQ trazem duas representações que evocam Medeia e que marcam o compasso da Medeia proposta por Waechter (Figura 4). A primeira é uma mulher que remete à antiguidade, uma sacerdotisa saudando com um cálice, escorada em uma coluna antiga. Na página seguinte, a mesma imagem sofre uma transformação. As vestes antigas são cobertas por uma espécie de burca, e o cálice é substituído por um revólver de grosso calibre. O impacto dessas imagens pode dar a entender que as duas carregam consigo a morte: a primeira com veneno e a segunda com uma arma. A primeira corresponde ao mito antigo, enquanto a segunda é uma apropriação moderna do mito com outra linguagem de violência. Nessa dualidade entre Medeia antiga e Medeia moderna é construída a HQ.
O caminho do mito de Medeia na HQ não é o mesmo da tragedia de Eurípides, mas como a peça euripidiana traça o itinerário simbólico dessa Medeia moderna, proposta por Mariana Waechter, passaremos então a analisar alguns pontos desse caminho.
Lamento - Cólquida
a terra bárbara em ruínas, deixada para trás - o corpo do irmão Apsirto esquartejado e oculto - o Rei, vigia da fronteira e do campo de papoulas, procura os pedaços do filho - a sedução de Afrodite - a fuga de Medeia e Jasão - o roubo do velocino - o lamento dos criados (Programa da peça Medeia. O SÁFARO, 2012).
A tragédia de Eurípides principia seu prólogo, versos que antecedem a entrada do coro, com um longo lamento da personagem Nutriz sobre a situação de Medeia. A ama lamenta toda a sorte de infortúnios que a princesa da Cólquida sofre com o marido Jasão, mas termina alertando para o perigo:
Nutriz: eu a conheço e temo que no fígado finque agudo gládio, após entrar silente no aposento ou que mate o tirano e o que se casa e receba depois maior desdita. Ela é terrível: quem seu inimigo se tornar não trará vitória fácil. (EURÍPIDES, 2006, v. 39-45).
A HQ de Mariana Waechter pode ser lida na esteira dessas frases do prólogo. Medeia é uma personagem forte, capaz de qualquer coisa, de tirar a própria vida, de matar o tirano local e o próprio marido. Quem ela escolher como inimigo terá um destino difícil. Ela é a força de uma pessoa só, contra o Estado, a tirania de Creonte, contra a família, no caso, seu marido, e também contra os próprios filhos, que ela ama. Por acabar atentando contra tudo isso, Medeia pode ser considerada uma terrorista? Obviamente, a resposta é mais sensível. A personagem é polifônica, ambígua, aglutina várias vozes, e seus atos têm mais do que uma dimensão.
Waechter procura primeiramente articular em Medeia a herança ritualística da tragédia. A relação entre o sacrifício e as origens da tragédia é explorada nas primeiras páginas, como observa- mos na Figura 5. Mariana Waechter retoma a ritualística do teatro grego com um sacrifício do bode. De acordo com Dabdab Trabulsi, a etimologia de tragoédia, canto dos tragodói, recebeu explicações relacionadas ao animal, como um canto de figuras fantasiadas de bode, canto em um concurso cujo prêmio era um bode e canto que acompanha o sacrifício de um bode (TRABULSI, 2004, p. 142).
No caso da HQ, observamos que o sentimento trágico é marcado por um sacrifício, por um ritual de sangue. A autora não constrói as relações desses sacrifícios mediante uma encenação ritualística, mas um ato de morte, cometido por uma mulher que remete a Medeia como feiticeira, com vestimenta moderna, sem adornos ou correspondência a símbolos da antiguidade. Com o abate do bode, o oferecimento do sangue, o desnudamento da violência, o trágico é alegorizado em uma de seus mais famosos símbolos, o sacrifício.
Ao trazer o bode em relação ao terrorismo, indicado na HQ como um dos alicerces da inter- pretação, a autora coloca ao leitor de forma implícita a questão do “bode expiatório”. A expressão “bode expiatório” descreve um sacrifício no qual um membro do grupo ou comunidade, ou grupos menores dentro da comunidade, recebe a culpa por uma calamidade ou doença. A busca pelo “bode” é uma busca por um culpado, e a morte do bode é a expiação do mal. René Girard explica essa dinâmica em seu livro O Bode Expiatório:
A conjunção perpétua nos mitos de uma vítima altamente culpada e de uma conclusão simultaneamente violenta e libertadora só pode se explicar pela força extrema do mecanismo de bode expiatório. [...] É pensável que uma vítima seja considerada como responsável pelas desgraças públicas, e é bem o que acontece nos mitos, assim como nas perseguições coletivas, mas eis que nos mitos, e nos mitos apenas, esta mesma vítima traz novamente a ordem, a simboliza e até a encarna (GIRARD, 2004, p. 59).
Ao trazer o tema da tragédia, do sacrifício, envolto na morte do bode, a autora demonstra que sua versão de Medeia é consciente do ato de sangue fundador não só de uma ideia de trágico, mas também de um ato terrorista.
Um dos objetivos do terrorismo é identificar, ou seja, criar um culpado e atacá-lo para que o fim desse inimigo traga o ordenamento do mundo. Estabelecer o alvo e destruí-lo é o objetivo do terror. O terrorismo como um modo de pensar cria no escolhido um alvo, alguém que como o bode terá que ser sacrificado. Depois de nos apresentar o sacrifício do bode, a autora nos apresenta o “alvo” (Figura 6).
O terrorismo como uma forma de combate não apresenta as mesmas táticas militares de uma guerra comum. Como nos explicam Gérard Chaliand e Arnaud Blin no livro The History of Terrorism from Antiquity to Al Qaeda, ele tem uma forma peculiar de sitiar o inimigo dentro de seu próprio território:
Seu alvo principal é a mente. Nesse sentido, o terrorismo é a mais violenta forma de guerra psicológica, e seu impacto psicológico é geralmente considerado muito maior do que seus efeitos físicos. Recorrendo a meios frequentemente patéticos, o terrorismo é uma forma de criação de poder na esperança de se apossar de baixo daquilo que o Estado empunha de cima (CHALIAND; BLIN, 2007, p. VIII, tradução nossa).
O que está em jogo é uma força psicológica, já que o ato terrorista possibilita ao mais fraco um atentado contra o poder, permitindo que o sistema seja atacado no símbolo e não propriamente destruído na estrutura.
Medeia pode ser tomada como essa força terrorista desintegradora. Mulher, bárbara, estrangeira humilhada, ela não parece ser forte o suficiente para destruir a estrutura. Todas as suas caracte- rísticas reúnem signos de exclusão, mas na reunião de tais signos a autora constitui um elemento desestabilizador da ordem.
Projeto de Atentado - Corinto
a queda das gêmeas Simplégades - as segundas núpcias de Jasão, a traição - um dia de cão ou 24 h: Creonte expulsa Medeia, exterminadora da ordem hereditária: terrorismo e interrupção das proles (Programa da peça Medeia. O SÁFARO, 2012).
Tomada pelo desejo de vingar sua honra, movida pela fúria pela afronta de Jasão, Medeia traça um plano para destruir seus inimigos e articula qual seria a melhor maneira de matá-los:
Medeia: Conheço inúmeras funestas rotas e não sei qual trilhar primeiro, amigas: ateio fogo à casa conjugal ou no fígado finco agudo gládio pós insinuar-me tácita na câmara? Mas é-me adverso isto: se for pega a penetrar na casa e maquinar, morta serei ludíbrio de meus hostes. Mais forte é a rota reta, para a qual sábia nasci: matá-los com venenos. Que seja assim! (EURÍPIDES, 2006, v. 376-385).
Waechter retrata o desespero de Medeia com um coração apertado por um fio (Figura 7). Não há indícios de que estamos propriamente diante da situação de infidelidade de Jasão. Como não há texto escrito, somos guiados pelas ilustrações. A imagem do coração pressionado é bastante forte em relação ao abandono da princesa da Cólquida.
Na HQ, não é abordado somente o discurso do terrorismo como agente externo invasor e desestabilizador das forças, mas também o “terrorismo midiático” e o “terrorismo de Estado”. Temos a ilustração de um televisor repousando no canto de uma sala (Figura 8).
Em um contexto de reflexão sobre o terror proposto pela HQ, podemos nos indagar sobre o poder da televisão como uma arma, promotora de imagens que disseminam o medo, a partir do momento que produz representações sobre o estrangeiro, sobre as minorias religiosas e sobre aquilo que deseja combater. A própria mídia torna-se um importante veículo para o terrorismo:
O terrorismo tem menos necessidade de vítimas do que de espectadores, dizemos frequente- mente. Mesmo assim, é necessário que o ato adquira um certo nível de intensidade dramática para emergir do oceano de informações. Para se distinguir, o ato terrorista deve então atin- gir uma certa “massa crítica midiática”: em um universo cheio de catástrofes midiatizadas, é necessário cada vez mais mortos para ter espectadores (GAYRAUD; SÉNAT, 2002, p. 30, tradução nossa).
O discurso sobre o terrorismo de Estado, ou seja, como o Estado usa o terror como um método de governo para com ele manter medo e poder em nome da ordem, ganha particular atenção da autora. O tema é bastante caro à América Latina pela existência de uma longa história de ditaduras e regimes de exceção que percorrem o continente. Waechter desenvolveu a montagem de Medeia com o Coletivo Sáfaro no ano de 2012 e a HQ foi lançada em 2014, momento tenso na história nacional por causa das manifestações reivindicatórias que se desenvolveram desde 2013 com as Jornadas de Junho e seguiram com as manifestações que condenavam os altos investimentos estatais na Copa do Mundo da FIFA, além de uma série de arbitrariedades como o despejo de famílias carentes em regiões próximas a estádios.
A imagem da polícia fortemente armada tornou-se cada vez mais comum no contexto da repressão às manifestações das Jornadas de Junho. Em 2013, a cidade de São Paulo foi tomada por milhares de manifestantes que aderiam ao chamado Movimento Passe Livre (MPL), que pedia anulação das tarifas de ônibus em resposta ao aumento de R$ 0,20, que se tornava um insulto mediante a qualidade do serviço oferecido.
Mariana Waechter ilustra o poder repressivo do Estado, representando os policiais armados como se fossem conter uma multidão (Figura 9).
Na esteira das manifestações e das arbitrariedades e agressões policiais, desenvolveu-se a tática de defesa chamada Black Bloc. De acordo com André Takahashi, “o Black Bloc não é uma organização ou coletivo e sim uma ideia, uma tática de autodefesa contra a violência policial, além de forma de protesto estética baseada na depredação dos símbolos do estado e do capitalismo” (TAKAHASHI, 2013). O Black Bloc como tática foi comparado por vários agentes de segurança do Estado ao terrorismo e fomentou parte do debate público no ano de 2013.
Outra denúncia do terrorismo de Estado são as desapropriações efetuadas para higienismo social e suposto embelezamento urbano nas áreas em torno dos estádios da Copa do Mundo (Figura 10).
A HQ mostra como o terrorismo se espalha em uma rede de violências e que o Estado tam- bém utiliza as táticas do terror. Medeia é posta ao mesmo tempo como uma força de subversão e como uma força de resistência. O medo torna-se a maneira de o Estado dialogar, e a ordem fun- ciona apenas como ameaça. Byung-Chul Han, no livro Topologia da Violência, ao reinterpretar Baudrillard, chega a uma conclusão sobre o terror que pode ser aplicada à Medeia de Waechter:
O terrorismo está por toda parte, “em cada um de nós”. Ele usa “aleatoriamente cada ator, cada uma de nós como cúmplice virtual”. Pode ser “percebido por toda parte e intercruzadamente em toda forma de violência, seja violência humana, acidente ou catástrofes. A “violência sol- vente e homogenizante” do global produziria “por toda parte forças heterogêneas, não apenas diferentes, mas antagônicas e irresistíveis” (HAN, 2017, p. 194-195).
A rede de violência espalha-se de maneira sistêmica, tornando a todos vítimas e ao mesmo tempo também terroristas à medida que concordamos com a linguagem do terror.
Visão do Paraíso - Chegada a Atenas
Jabor-Marcola: não há mais prole - Macunaíma no caveirão do Nascimento: na favela há cem mil homens-bomba - terrorismo e desenvolvimento: eu leio Dante na prisão - simulação anti-terrorismo: a dialética do disfarce/trabalhador-terrorista (Programa da peça Medeia. O SÁFARO, 2012).
O final da Medeia de Eurípides é bastante misterioso: a heroína parte para o exílio em Atenas na carruagem do sol, levando o corpo de seus filhos. Ao perceber o ato de Medeia, Jasão diz:
Jasão: Horror, horror, mulher abominável a deus, a mim e a toda a raça humana, que em teus filhos ousaste cravar gládio (a mãe!) e aniquilaste-me improlífero. (EURÍPIDES, 2006, v. 1323-1325).
O final da HQ também usa a ideia da fuga. Medeia exerce sua vingança contra Jasão e Creonte, sem sinais de infanticídio, e a autora retrata a fuga em um avião (Figura 11), uma espécie de correspondência moderna com a carruagem do sol.
O Jasão euripidiano qualifica Medeia como abominável a ele, ou seja, à família, à ideia de que a mulher deveria ter lealdade ao homem não importando a situação, aos deuses e à sociedade, por ter desrespeitado uma lei sagrada ao matar os filhos. A Medeia da HQ de Waechter também é abominável aos homens, à sociedade e aos deuses, não por ser infanticida, mas por ser livre. A personagem desenhada por Waechter atualiza o mito em uma percepção feminista, evocativa de desejo, luta e resistência.
Conclusão
Medeia é uma HQ que alerta para o terrorismo como um discurso que cria violências, vio- lência das imagens ou violência da polícia. Não há estabilidade no texto. Todos os quadros da HQ revelam uma tensão. A autora utilizou o mito de Medeia porque ele aglutina medos explorados pelo discurso do terror, o medo do estrangeiro, da inversão da ordem e da morte.
A antiguidade fornece à autora uma maneira de dialogar com as formas do passado para reconstruir sentido no contemporâneo. A HQ busca uma possibilidade de interpretar Medeia sem mimetizar o texto euripidiano, mas dialogando com potencialidades da tragédia, como indicamos em alguns versos.
O mito antigo e os quadrinhos mostram-se um grande campo de exploração artística para quadrinistas e também para pesquisadores das HQs. Pensar a antiguidade nos quadrinhos possi- bilita entender como os mitos permanecem e se transformam e como as novas dinâmicas modernas se apropriam deles para contar uma versão própria com suas personagens.
Mariana Waechter publicou Medeia em um ponto de inflexão da história nacional. De 2014 até o presente, o discurso do terrorismo intensificou-se no Brasil. Passamos a um discurso de terror contra a corrupção que subverteu a ordem jurídica, criou instabilidades e fez o país novamente flertar com regimes de exceção. O terror como ameaça psicológica nunca esteve tão vivo, mas, infelizmente, um outro “mito” que não o de Medeia subverte a ordem política.
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Notas
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