QUADRINHOS NAS AMÉRICAS EM PERSPECTIVA TRANSNACIONAL
Um artista em trânsito: o local e o global nas histórias em quadrinhos de Sérgio Bonson (1974-2005)
An artist in motion: the local and the global on Sérgio Bonson’s comics stories (1974-2005)
Um artista em trânsito: o local e o global nas histórias em quadrinhos de Sérgio Bonson (1974-2005)
Anos 90, vol. 28, e2021106, 2021
Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva
Received: 01 March 2021
Accepted: 10 October 2021
RESUMO: Este artigo propõe a análise de histórias em quadrinhos a partir de uma perspectiva transnacional. Para tanto, elegemos como objeto de estudo a obra do artista Sérgio Bonson (1949-2005), que atuou em Florianópolis, SC, no período de 1974 a 2005. Desenhista e aquarelista, autor de inúmeras charges e histórias em quadrinhos para jornais e exposições de arte, Bonson desenvolveu contatos e trânsitos no âmbito nacional e internacional. O foco da discussão se volta para dois conjuntos de HQs: um, local, com personagens da cidade e do cotidiano de Florianópolis; outro, global, no qual o próprio artista se apresenta como personagem de uma viagem à França, intitulado Impressions de France. A partir da análise dessas duas séries, repousamos nosso olhar sobre o trânsito do artista entre países da América e da Europa para, em seguida, percebermos as reverberações transnacionais na sua produção, com vistas a identificar, por um lado, articulações entre a dimensão local e um elemento mais amplo, o humor gráfico, que remete a outros tempos e lugares; e, por outro lado, no caso das narrativas com escala de abrangência transnacional, destacar como o local se faz presente por meio da tradução cultural e das experiências próprias ao tempo presente.
PALAVRAS-CHAVE: Sérgio Bonson, Histórias em quadrinhos, Humor, Tradução cultural, História do tempo presente.
ABSTRACT: This paper proposal is to analyze comic books from a transnational perspective. Therefore, we chose as object of study the work of the Sérgio Bonson (1949-2005), an artist who worked in Florianópolis, SC, from 1974 to 2005. Draughtsman and watercolor artist, Bonson was author of numerous cartoons and comic books for newspapers and art exhibitions, he also developed contacts and transits at the national and international levels. The discussion turns on its focus to two sets of comic books: one, local, with characters from the city and the daily life in Florianópolis; and another global one, in which the artist presents himself as a character on a trip to France, entitled Impressions de France. Drawing on the analysis of these two series, we focus our attention on the artist’s transit between countries in America and Europe, and then perceive the transnational reverberations in his production, in order to identifying, on the one hand, articulations between local dimension and a widest element, the graphic humor, which refers to other times and places; on the other hand, in case of narratives with a transnational scale, highlight how the place is present through cultural translation and the experiences of present time.
KEYWORDS: Sérgio Bonson, Comics, Humor, Cultural translation, History of present time.
Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas. (CANCLINI, 1998, p. 339).
Procuro dar meu recado através do humor. Humor pelo humor é sofisticação, é frescura. E nessa eu não tou: meu negócio é pé na cara. E levo o humorismo a sério. (HENFIL, 1971, p. >).
Sérgio Bonson, um artista em trânsito
Sérgio Luiz de Castro Bonson (1949-2005) (Figura 1) foi um artista plástico, caricaturista, chargista e cartunista catarinense, nascido na cidade Florianópolis-SC. Iniciou a sua carreira como chargista no jornal O Estado, no ano de 1974. Nesse momento, o artista capturava as sutilezas do cotidiano da cidade de Florianópolis, por meio de traços que viriam a se modificar no decorrer da sua trajetória artística, a exemplo dos desenhos de personagens que, a princípio, eram pouco estruturados e desconhecidos e que, depois, ganharam formas e identidades. Dentre eles, destacam-se Soiza, Waldirene e Henricão, um político radialista, uma empregada doméstica e um surfista, personagens das histórias em quadrinhos (HQs) que ele elaborou e que compõem as publicações dos livros Waldirene, a AM, de 1987, e Tudo pelo Soizial, de 1990.

Bonson, que se dedicava aos desenhos de humor, passou a trabalhar como chargista no Jornal de Santa Catarina e a atuar como freelancer nos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, entre os anos de 1980 e 1985. Além disso, colaborou com o Diarinho do Litoral, A Semana e algumas edições dos jornais alternativos Bernunça e Afinal. Além das caricaturas, charges e cartuns que elaborou para esses jornais, Bonson possui uma coletânea de charges políticas publicada no livro Bonson sem censura: 10 anos inticando com os reis do nhenhenhén, de 1996, com textos e legendas de Eloy Gallotti, e diversas expressões gráficas de humor publicadas em parceria com André Freitas, Frank Maia e Zé Dassilva, na revista de humor 4-3-3, de 1997.
O termo “expressões gráficas de humor” (CAMPOS; PETRY, 2010) é utilizado para caracterizar o conjunto de desenhos que possuem como objetivo alcançar o humor, mas que se distinguem entre si por suas especificidades, a saber: caricaturas, charges e cartuns - e, no âmbito desse último, as tiras cômicas e as histórias em quadrinhos. A distinção entre caricaturas, charges e cartuns, incluindo as HQs, é apontada por Campos e Petry (2010).
[...] a distinção entre os três gêneros das expressões gráficas de humor reside na composição do que chamamos elementos centrais e categorias de análise. Os primeiros estariam colocados na escolha de representação: sujeito, situação e narrativa. Para a caricatura, o sujeito. No caso da charge, sujeito e situação. No que diz respeito ao cartum, sujeito, situação e narrativa. Quanto às categorias de análise, estas fariam referência ao tempo, à memória e ao discurso. Na caricatura, o discurso seria elaborado com intenção de culto e/ou sátira enquanto na charge e no cartum ele seria fundamentalmente satírico. No que se refere ao tempo e à memória, a dimensão do presente estaria colocada na caricatura e bem delineada na charge, diferentemente do cartum, em que poderia haver também a fusão do presente e passado [...] (CAMPOS; PETRY, 2010, p. 127).
Importa destacar, no entanto, os limites dessa abordagem, a qual está situada especificamente no campo da História. No referido trabalho, o objetivo foi o de investigar o uso das caricaturas, charges e cartuns como fontes de pesquisa para a História (PETRY, 2009), e essas expressões gráficas de humor foram compreendidas como “representações”: “Na medida em que estes gêneros portam discursos sobre tempos e memórias a partir de um amplo universo de signos, constituem-se em representações de realidades e consciências, individuais ou coletivas, presentes no processo histórico.” (CAMPOS; PETRY, 2010, p. 128). Contudo, hoje, o debate acerca do uso dessas imagens, mesmo no campo da História, se situa no campo das Teorias da Imagem, em diálogo com as discussões realizadas na área de História da Arte. Assim, embora os autores reconheçam a potencialidade da imagem e que a mesma não se apresenta como mera ilustração de um texto, por exemplo, neste trabalho o intuito não será o de avançar nessa discussão. Contornando as questões epistemológicas acerca das imagens, elas são recuperadas para apontarmos indícios das relações entre a produção do artista e os elementos local e global na sua trajetória.
Bonson compunha o Grupo de Arte Sete da Ilha, organizado em 2005, do qual também faziam parte: o comunicador e escritor Alexandrino Barreto Neto; o professor, tradutor e escritor Alfredo Gentil Costa; o engenheiro, desenhista e pintor Átila Ramos; o publicitário e artista plástico George Alberto Peixoto; o médico e escritor Mário Gentil Costa (conhecido como Magenco); e o fotógrafo Sérgio Vignes, artistas esses que Bonson encontrava nas manhãs de sábado no calçadão da rua Felipe Schmidt, no centro da capital. Por ocasião do seu falecimento, em 8 de dezembro de 2005, o pintor e tapeceiro Luiz Carlos Albertini passou a integrar o Grupo dos 7, em substituição ao artista. Em 2006, o Grupo realizou uma mostra coletiva em homenagem póstuma a Bonson, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC), com alguns dos seus trabalhos e materiais utilizados por ele.
Em vida, Bonson apresentou a sua obra em exposições: em 2001, “Três Traços numa Ilha”, com charges de temas cotidianos realizadas por ele, Frank Maia e Zé Dassilva; em 2002, com charges publicadas no jornal A Notícia, durante o ano de 2001, juntamente com os colegas de trabalho Sandro Luís Schmidt, Carlos Horn e Frank Maia; já em 2003, realizou uma mostra com sessenta charges sobre questões políticas e sociais publicadas durante o ano de 2002, no mesmo jornal; em 2005, participou do 1.º Ciclo de Exposições do MASC: homenagem a Aldo Nunes e Jorge Ferro, organizado pelo Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), com a mostra Cenas Urbanas, em homenagem a Aldo Nunes, na qual ele pretendia mostrar o contraste entre a cidade moderna e a antiga. Bonson se colocou como contraponto à obra de Aldo Nunes sobre a cidade de Florianópolis, primordial cenário das suas pinturas realizadas em aquarela.
A primeira série de obras elaboradas a partir da inspiração no cenário urbano da capital é tornada pública na exposição Florianópolis 98/99: desenhos de Sérgio de Bonson, realizada no Museu Victor Meirelles, em 1999, com diferentes pontos de vista das ruas de Florianópolis. Essa exposição marca um novo momento artístico de Bonson, dedicado ao experimento e ao aprimoramento dos desenhos sobre a cidade. A partir do ano de 2000, ele passou a investir na sua inserção no mercado das artes catarinense. O investimento coincide com o recrudescimento do setor jornalístico, acompanhado dos baixos recursos pagos por ele aos seus colaboradores, a exemplo de Sérgio Bonson1.
Sendo assim, Bonson iniciou diversas mostras e exposições, incluindo locais que não eram considerados lugares da arte. Foi o caso da mostra itinerante das Cenas Urbanas, que Bonson levou para os restaurantes da cidade e que foi realizada em diferentes ocasiões: em 2000, no restaurante Fratellanza Italiana, localizado na Escadaria da rua Trajano, em Florianópolis-SC, justamente uma das cenas que Bonson mais reapresentou; no Mr. Bife Restaurante, localizado na rua Bocaiúva, também no centro dessa cidade; e no Bar e Restaurante Ponto de Vista, localizado na Estrada Geral da Barra da Lagoa. Em 2001, Bonson também expôs os desenhos sobre a cidade na sua exposição no Aeroporto Internacional Hercílio Luz, um lugar de bastante circulação e, portanto, de visibilidade nacional e internacional para a sua obra. Essas mostras contribuíram para tornar os desenhos e aquarelas de Bonson conhecidos e as suas obras procuradas, principalmente, por pessoas que frequentavam esses locais.
Nessa fase final da sua trajetória profissional, Bonson ainda elaborava histórias em quadrinhos que traziam como personagens centrais aqueles do final da década de 1980, como as de Waldirene, apresentadas na Mostra de Humor promovida pela Prefeitura Municipal de São José, SC, por meio da Secretaria de Educação e Cultura, no Museu Histórico Municipal de São José, em 2004. No ano de 1996, Bonson realizou uma exposição de charges políticas, além do segundo lançamento do livro Bonson sem censura, no Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (FAED-UDESC) e, em 2003, uma mostra intitulada 100 charges políticas e etc..., na Galeria de Arte Meyer Filho.
Bonson realizava as suas criações a partir do universo urbano, e mantinha o desejo de que as suas obras circulassem por ele. Esse desejo está relacionado, principalmente, à manifesta vontade do artista em ser um artífice da cidade e do seu cotidiano. Entre 2017 e 2018, a exposição Bonson revisitado: percursos, no Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC), permitiu recuperar esse aspecto e enfatizar os percursos do artista, tanto em relação à sua trajetória artística quanto em relação à sua produção propriamente dita. Assim, podemos observar que as exposições da obra de Bonson, ocorridas em Florianópolis, SC, foram dedicadas às expressões gráficas de humor e aos desenhos e às aquarelas da cidade, revelando que Bonson conciliava o duplo exercício artístico: a elaboração de desenhos e pinturas, por um lado e, por outro, a de charges e de histórias em quadrinhos.
Já no início da década de 1990, Bonson viajou à França em busca de interlocutores para o desenvolvimento do seu trabalho, bem como para a sua divulgação. A ideia dessa viagem surgiu por ocasião da vinda de um amigo brasileiro ao país, professor de Língua Portuguesa na cidade francesa de Nice, pelo qual Bonson tomou conhecimento da existência de uma cidade ao sul da França com o mesmo nome do seu sobrenome. Dessa forma, entre 1991 e 1992, o artista catarinense viajou para Village de Bonson, recebendo hospedagem franqueada pela Prefeitura da cidade e, a seu convite, em 1992, realizou uma exposição na Mairie de Bonson, com aquarelas feitas a partir de observação do local. Também nesse ano, Bonson fez aquarelas da cidade francesa de Roquesteron, realizando, posteriormente, uma exposição com esses trabalhos somados a uma série de paisagens marinas de Florianópolis, desenvolvidos entre 1991 e 1994, da qual faz parte aquarela da Praia da Guarda do Embaú, município de Paulo Lopes, SC, distante cerca de sessenta quilômetros de Florianópolis.
Na década de 1990, Bonson ainda trabalhava no jornal O Estado e, com o dinheiro que recebera de uma indenização do governo do estado de Santa Catarina, em virtude da perseguição militar na década de 1980, viajou para Nova Iorque a estudos. Lá, ele pôde estar entre os artistas norte-americanos que conhecia por meio das revistas de arte.2 É importante destacar que essa viagem pode ser considerada o indício de uma influência artística na obra de Bonson que, inclusive, é mencionada no texto de apresentação do convite para a exposição Florianópolis 98/99: desenhos de Sérgio de Bonson: “Mesmo sem ter desejado, Bonson pode estar dando a Florianópolis a sua personalidade gráfica, um pouco como fez Steinberg, cartunista e aquarelista como ele, com Nova Iorque” (PETRY, 2011, p. 56). A referência a Saul Steinberg se faz não apenas pela escolha da cidade como objeto de representação, mas pela característica dos seus traços. Mais tarde, em 1995, Bonson teve um projeto de pesquisa aprovado pelo Conselho Britânico que custeou uma viagem sua de estudos a Londres. Um conjunto de correspondências em língua estrangeira, que necessita de estudo mais detalhado, demonstra, ainda, o desejo de trânsito do artista por outras cidades, como Nice e Marseille, na França, nos anos de 1991 e 1993, para aperfeiçoar a sua formação artística.
Historiador formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, em 1972, enquanto artista, Bonson foi um autodidata. Viveu parte considerável da sua vida imerso no intrincado cotidiano da capital catarinense, residente que era do centro da cidade, espaço por onde transitava sempre atento às paisagens, aos corpos e às falas. Segundo o próprio artista, o urbano era a sua fonte de inspiração. Dele vinham os cenários, os personagens e as histórias que apreendia e reapresentava em caricaturas, charges, cartuns, desenhos e aquarelas. O artista, na realidade, sempre teve relação singular com Florianópolis-SC e buscou representar a presentificação dessa cidade e do seu cotidiano. Nos seus desenhos, aquarelas e expressões gráficas de humor, Bonson imprimiu a marca do tempo presente, com os lugares e os acontecimentos que presenciava. Assim, por meio das relações que Bonson estabeleceu com lugares e artistas, é possível perceber o seu trânsito por diferentes meios, seja em busca de oportunidades profissionais, seja em busca de formação e de interlocução artística.
Soiza, Waldirene e Henricão: o local
Um político radialista, uma empregada doméstica e um surfista são os três principais personagens criados por Bonson no decorrer da sua trajetória profissional. Soiza, Waldirene e Henricão apareceram inicialmente em cartuns diários nas páginas do jornal O Estado e, mais tarde, nas histórias em quadrinhos reunidas e publicadas em livros. A complexidade das relações estabelecidas entre eles foi bem elaborada por Bonson para representar o cotidiano da cidade de Florianópolis e as suas relações com o cotidiano de outros lugares, tendo em vista a inserção da capital em uma rota turística.
Para criar Soiza (Figura 2), por exemplo, como um locutor de rádio e político, Bonson afirma que a “inspiração veio dos programas AM, e do César Souza”3. De fato, as histórias em quadrinhos demonstram que há uma referência direta entre Soiza e Souza, a começar pela caracterização do personagem. Embora Soiza não seja propriamente uma caricatura de Souza, ele possui características físicas e de personalidade semelhantes. O topete do seu cabelo e a sua perspicácia política são duas delas. Enquanto César Souza inicia a sua trajetória como comunicador em emissoras de rádio, tornando-se político e, mais tarde, apresentador de programas na televisão, Soiza aparece nas histórias em quadrinhos de Bonson, exclusivamente, como locutor de rádio e político. A relação entre o rádio e a política é fundamental para que as histórias se desenrolem e isso por três motivos: o uso da emissora de rádio como o cenário principal das histórias em quadrinhos, em torno do qual todos os outros se articulam; o rádio enquanto veículo de comunicação é o elemento que leva os acontecimentos da vida pública à esfera do privado; e, por último, é também o rádio que aparece como um instrumento mediador e de poder nas relações estabelecidas entre os personagens.

Compreendemos Soiza como um “sujeito de querer e poder”, que ocupa um lugar próprio, o de locutor e político, e Waldirene como aquela que não tem um lugar próprio em relação a ele (já que ser ouvinte é uma condição determinada pelo “ser locutor”) e que, por isso, se move em um território que não é o seu para assumir o lugar do outro, o daquele que escolhe as músicas a serem tocadas no rádio. Assim, podemos inferir que as atitudes de Soiza se configuram em “estratégias” para ganhar votos e ser eleito, enquanto as atitudes de Waldirene se apresentam como “táticas” para manipular a programação do rádio conforme o seu gosto. Por ocasião das eleições, Waldirene utiliza como tática os pedidos de músicas, enquanto Soiza os atende. Esse jogo de táticas e estratégias, travado na guerra cotidiana entre Soiza e Waldirene, também pode ser percebido entre Waldirene e D. Luci, a sua patroa.
Personagem criada na década de 1980, “Waldirene, a empregada doméstica, é simplesmente a luta de classes e o universo cultural em que ela se dá”, conforme afirma Bonson (2004). Uma análise sobre as histórias em quadrinhos que trazem Waldirene (Figura 3) como personagem principal permite observar as relações de poder e a cultura popular a que Bonson se referia. Ouvinte assídua de Soiza, Waldirene é apresentada por Bonson no ambiente de trabalho, sempre próxima ao rádio. Nas histórias em quadrinhos de Bonson, Waldirene assume o lugar da crítica ao sistema capitalista e, por extensão, às relações de trabalho que são características do caso brasileiro, mas também de outros países. Ela aparece como a empregada doméstica que se contrapõe à ordem estabelecida, mobilizando diferentes recursos para isso, dentre os quais está a consciência de si e do outro. Waldirene se reconhece como a empregada doméstica e reconhece D. Luci como a patroa que a explora. Também se reconhece como fã de Amado Batista e Wando, enquanto reconhece D. Luci como fã de Wando. A partir da consciência de classe e mesmo do gosto musical, Waldirene cria as suas estratégias para driblar a ordem estabelecida.

A condição ideal de trabalho para Waldirene é aquela que permite vingar a exploração de D. Luci e, talvez por isso, ouvir Amado Batista no seu ambiente de trabalho seja imprescindível para que o contrato entre as partes seja firmado. É provocando a patroa por meio das atitudes mais simples e cotidianas que Waldirene inverte a relação de poder. Assim, é possível eleger a música como o elemento chave da leitura sobre as histórias em quadrinhos de Bonson que trazem Waldirene como personagem central, uma vez que ela determina a presença de duas classes sociais opostas: a dominante, associada ao gosto por músicas clássicas e internacionais; e a dominada, ligada ao gosto por músicas populares consideradas bregas. O “brega”, aliás, é um termo que emerge como um estilo musical no Brasil a partir da década de 1960, com a Jovem Guarda (da qual fazia parte a cantora Anabel Frarracchio, conhecida como Waldirene, que talvez tenha inspirado Bonson a nomear sua personagem, já que o nome “Waldirene, a AM” também remete à característica brega da personagem), marcado pelo estigma do mau gosto e do pertencimento à cultura popular.
De qualquer forma, a única estratégia capaz de trazer a patroa para a negociação com Waldirene é a música. Se toda tática é determinada pela ausência de poder, Waldirene faz pequenos movimentos de resistência no seu cotidiano por meio dos quais assume o papel de protagonista e de vencedora das disputas na história. Assim, Bonson investe na perspectiva da contestação de Waldirene, por meio das ações no dia a dia, e realiza a inversão de papéis na luta de classes. Isso, de certo modo, atualiza a sua obra e a coloca no século XXI, quando se vive um regime político democrático, porém no qual os embates de poder se travam talvez não mais de modo tão velado. Dessa forma, é possível compreender Waldirene e D. Luci como personagens que se movimentam estratégica e taticamente na esfera da vida privada. Trocar votos por músicas bregas, xingar, ameaçar, demitir ou não realizar as tarefas domésticas são algumas das ações desses personagens que também fazem uso de “frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas”, como bem lembra Certeau (2004, p. 97).
Outro personagem das histórias em quadrinhos de Bonson que sempre procura burlar a ordem estabelecida é Henricão (Figura 4), conhecido dos leitores das histórias em quadrinhos de Bonson também desde a década de 1980. Ao longo dos anos, o personagem se transformou fisicamente, porém as características da sua personalidade e do seu modo de vida continuaram as mesmas. Filho de D. Luci, Henricão transita entre o ambiente privado e o público, em casa é acomodado e na rua é um surfista interessado na vida boêmia, praia, sexo e drogas. É possível que Bonson tenha criado esse personagem como um estereótipo dos surfistas da Ilha que, naquele período, frequentavam a Praia da Joaquina, bastante conhecida por suas ondas fortes e pelos campeonatos internacionais de surfe.

A caracterização desse personagem é particularmente interessante, pois Bonson faz uso de uma linguagem característica dos surfistas, a língua estrangeira, nesse caso, o inglês. O uso desse idioma entre os surfistas está ligado tanto ao caráter internacional do esporte praticado quanto pela entrada de uma nova cultura na cidade. Trata-se da marca de um tempo, situado precisamente no final da década de 1980, no qual é possível perceber, em Florianópolis, os desdobramentos de uma série de transformações ocorridas entre a década de 1950 e 1970, seja na paisagem da cidade (pelo novo cenário urbano), seja nas práticas do cotidiano (pelos novos personagens). Henricão é um desses novos personagens que surgem no cotidiano híbrido da cidade de Florianópolis e que Bonson procura apreender nas suas histórias em quadrinhos.
O cotidiano, em sua densidade sociocultural e política, é apresentado nas histórias em quadrinhos elaboradas pelo artista, e quaisquer cartografias, por mais incipientes, podem bem indicar isso. Para além dessa materialidade do trabalho de Bonson, fica explicitado nele também as construções identitárias florianopolitanas4, mais visíveis (mas não somente) nos três personagens criados por Sérgio Bonson: Henricão, Soiza e Waldirene, e que podem dizer, também, de narrativas históricas sobre o cotidiano e as urbanidades de outras cidades e sujeitos.
Entre 1974 e 2005, a dimensão local a que nos referimos, de todo a essa parte, “explode”, em função do crescimento demográfico da capital catarinense, pois a população da cidade praticamente triplica nas três décadas do período considerado5. Ao relacionarmos esse crescimento (e as suas transformações) com a obra de Sérgio Bonson, é possível reconhecermos também a projeção de Florianópolis no cenário nacional e internacional, dado o investimento na cidade supostamente turística e cosmopolita e, ainda, ao próprio amadurecimento do artista, que contava com 25 anos em 1974, e com 56 anos em 2005. Nas formações identitárias locais já citadas e reverberadas na incipiente urbanidade da capital catarinense6 - quando comparada às demais - podemos ver traços do artista em trânsito, inserido simultaneamente nas dimensões local e global. As histórias em quadrinhos reuniam crítica e humor para tocar, em alguma medida, as temporalidades, dinâmicas e histórias experienciadas no universo em que se constituíam. A dimensão local que lemos a partir do trânsito do artista pode ser pensada a partir do que explana o filósofo e crítico pós-colonial7, Homi K. Bhabha (1998, p. 199):
A dimensão local de que falo é muito mais perto da temporalidade que da historicidade: é uma forma de vida ao mesmo tempo mais complexa de uma ‘comunidade’, mais simbólica de uma ‘sociedade’, mais conotativa de um ‘país’, menos patriótica das pátrias, mais retórica da razão de estado, mais mitológica de uma ideologia, menos homogênea da hegemonia, menos concentrada da cidade, mais coletiva do ‘sujeito’, mais ligada à psique da civilização e, enfim, mais híbrida no desenvolver as diferenças culturais e identificações [...]. Precisamos de um outro momento de escrita, à altura de manifestar interseções ambivalentes e quiasmáticas de tempo e lugar que constituem a problemática experiência ‘moderna’ da nação ocidental.
Vivendo em Florianópolis, uma cidade visivelmente mais cosmopolita, sobretudo a partir da década de 1990, e habituado com a presença de turistas estrangeiros na cidade, em particular aqueles oriundos dos países que integram o Cone Sul, como a Argentina e, além desses, também norte-americanos e europeus, Bonson percebia nitidamente que a sua cidade estava inserida na chamada cultura global, e foi justamente nesse momento que se pôs em trânsito transnacional, com um olhar apurado que a maturidade o fez alcançar.
Impressões da França: o global
Impressions de France é uma série de quadrinhos elaborada em aquarela por Sérgio Bonson, a partir da sua viagem à França na década de 1990, exposta uma única vez, no ano de 2005, na Aliança Francesa da cidade de Florianópolis. Nesse conjunto inédito de histórias em quadrinhos, o próprio artista é apresentado como o personagem central que protagoniza as impressões sobre o país que visitara e, mais especificamente, sobre a cidade de Paris, reconhecida capital cultural da Europa. Nessa série, temos uma narrativa que mobiliza as imagens em diferentes sequências, tendo em vista que cada quadro ocupa uma folha de desenho, de modo independente, quase como se fosse uma tela. A “montagem”, típica das histórias em quadrinhos, que pressupõe uma ordem, uma seleção, um roteiro, segundo a nossa análise, mostra a preparação de Bonson para a viagem, as suas impressões da França, bem como o seu retorno ao Brasil.
Assim, de início, o personagem aprende expressões no idioma estrangeiro que o próprio artista se dedicava a estudar, haja vista a elaboração dos textos que compõem a série serem redigidos em francês, e que o ajudariam a “se dar bem” lá, tais como “putain”, “espèce de connard”, “salaud”, “dégueulasse”, “pédé” (Figura 5). Destacamos esses elementos textuais, pois sabemos que, no diálogo com as imagens, procuram alcançar o sentido proporcionado pelo autor. No caso de Bonson, um artista dedicado, também, à elaboração de caricaturas e charges, as histórias em quadrinhos seriam marcadas por um aspecto específico: o humor. Se o desejo de riso comporta uma visão de mundo e é compartilhado pelos seus leitores, podemos inferir que esse humor também é datado e carrega noções, sentidos, hábitos e crenças singulares que dizem menos sobre o pensamento do artista e mais sobre a época na qual está inserido. Portanto, o distanciamento do politicamente correto8, que se apresenta nas expressões citadas, parece revelar um sintoma do período em que a série de quadrinhos foi elaborada.

Mais do que isso, situa a produção de histórias em quadrinhos local em um contexto mais amplo, global, à medida que dialoga com a constituição do gênero do qual faz parte, e que tem como um dos princípios de composição “o baixo, material e corporal”, conforme aponta Bakhtin (1987, p. 54): “o substrato material e corporal da imagem grotesca (alimento, vinho, virilidade e órgãos do corpo) adquire um caráter profundamente positivo. O princípio do baixo material e corporal triunfa assim através da exuberância”. Na sua raiz histórica, os desenhos de humor e as outras produções que mobilizam o riso procuravam inverter a hierarquia dos gêneros, sendo textos, imagens que buscavam o choque, o deslocamento de sentidos, como bem destaca Canclini (1998, p. 345):
O humorista, profissional da ressemantização, especialista em deslizamentos de sentidos, aponta aqui que a incerteza ou a continuidade imprevista entre territórios não é uma invenção dos autores de gibis; eles não fazem mais que pôr em evidência uma sociedade na qual as fronteiras podem estar em qualquer parte. Se a história em quadrinhos mistura gêneros artísticos prévios, se consegue que interajam personagens representativas da parte mais estável do mundo - o folclore - com figuras literárias e dos meios massivos, se os introduz em épocas diversas, não faz mais que reproduzir o real, ou, melhor, não faz senão reproduzir as teatralizações da publicidade que nos convencem a comprar aquilo de que não precisamos, as “manifestações” da religião, as “procissões” da política.
No caso das expressões gráficas de humor de Bonson e dessa série de quadrinhos que possui tal característica, o artista captura não apenas os acontecimentos e impressões da viagem, mas também aspectos das mentalidades, dos imaginários e dos pensamentos, por vezes indizíveis, de uma época. Com a virada cultural e, também, linguística no campo das Ciências Humanas, temos a possibilidade de recuperar esses aspectos sensíveis, da ordem do dia, que escapam das grandes narrativas da História, por meio de narrativas “inventadas”. Dessa forma, as histórias em quadrinhos assumem a potência de imagem e de texto, combinados, a fim de “traduzirem”, em alguma medida, a cultura de uma sociedade. Na série Impressões da França temos, ao mesmo tempo, a tradução cultural9 de um contexto global - a França do século XX, em recortes, fragmentos -, mas também de um contexto local - o Brasil, nesse período, a partir do olhar de um sujeito específico, historiador e artista, um homem comum. No trânsito entre esses diferentes lugares, apresenta-se a dimensão transnacional da obra de Bonson.
É com esse olhar em perspectiva que recuperamos elementos da série analisada para destacar que hoje, talvez, a referida série de quadrinhos não encontre o riso dos seus leitores, mas quiçá outros humores, como o de uma crítica contundente a estereótipos, visões, imagens do outro e de si que já não fazem sentido décadas depois da sua produção, no avançar de um novo século, o XXI. Quando Bonson, nas Impressions de France, destaca como lembranças da viagem, da França para o Brasil, um autógrafo de Le Pen ou uma “petite culote” de Isabelle Adjani (Figura 6), por exemplo, ele evoca elementos da política e cultura francesa, retirando-os do seu lugar original para reposicioná-los sob o espectro de uma visão de mundo que desloca a política para a cultura (Le Pen como objeto de desejo) e a cultura para a política (Adjani como objeto de desejo), mostrando uma visão sobre as mulheres e os lugares que ocupam na sociedade.

O tema do humor como uma linguagem que vem trazendo questões de gênero à tona é objeto de estudo no campo das histórias em quadrinhos, a exemplo das pesquisas reunidas no dossiê Mulheres, Humor e Cultura de Massa (REVISTA TEMPO E ARGUMENTO, 2020), e sobre as histórias em quadrinhos de Sérgio Bonson, particularmente Broering (2020, p. 60) afirma, nesse sentido, que
um dos elementos comuns à maioria dessas produções culturais foram a referência às mulheres e aos homossexuais como os principais objetos e imagens do humor, notadamente e consequentemente, os sujeitos e corpos mais passíveis de serem sexualizados e ridicularizados.
Em outro quadrinho da série analisada, as lembranças de viagem, do Brasil para a França, também giram em torno dessa temática. Mais uma vez, a apreensão de uma época e, igualmente, a mobilização de características que, na origem do gênero possibilitam o alcance do humor - a nudez -, são provocados, aqui, por meio do elemento grotesco, da distorção de formas, do desenho do corpo, que carrega memórias e histórias: uma mulher, negra, nua, remetendo ao carnaval (Figura 7). A mulher, como objeto de desejo, reaparece como objeto de humor, de repulsa, por habitar um corpo fora dos padrões de beleza, ao contrário, sob o estereótipo da feiura (Figura 8).


Em outro escopo de análise, vale destacar temas mais transversais aos países que surgem nessa série de histórias em quadrinhos e que podem dizer do trânsito do artista, assim como das mediações culturais, entre o local e o global: o futebol (a bola com a qual Zidane teria marcado um gol contra o Brasil), a presença de personagens norte-americanos no Champ de Mars, com a Torre Eiffel ao fundo, como o Pato Donald (Figura 9) e o Incrível Hulk (Figura 10), além da instalação de uma rede de alimentos americana na cidade europeia, o McDonald’s, se avizinhando, em contraste, ao metrô com arquitetura art nouveau, tipicamente francesa (Figura 11).



Igualmente, na história em quadrinhos (Figura 12) em que Bonson coloca dois cientistas a conversar e um deles diz que fez o cruzamento genético de cepa inglesa com alemã e aparece uma salsicha com um guarda-chuva, há um elemento de trânsito cultural. Boche é um termo utilizado para se referir de modo depreciativo aos alemães e surge a partir da França para a Europa e todo o mundo, tendo sido cunhado durante a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um cientista que apresenta uma “fusão de culturas”, colocando uma salsicha com um guarda-chuva como resultado da relação entre a cultura alemã e a inglesa. Há, nessa imagem, muito de tradução cultural que deve ser frisada, lembrando que o artista é um sul-americano falando de europeus que foram adversários nas guerras mundiais. O texto da referida imagem tem a seguinte redação: “Tiens! J’ai melangé les génes d’un anglish avec ceux d’un boche”. Esse termo, boche, é interessante ter sido acionado pelo Bonson, pois é depreciativo para
um alemão ou uma pessoa de origem alemã. Foi usado pelos franceses e belgas da Primeira Guerra Mundial até bem depois da Segunda. Seu uso, que se tornou raro hoje, pode ser considerado insultante e deve ser aceito apenas dentro de um quadro de citação ou referência histórica. Não deve ser confundido com o seu homônimo, também caiu em desuso: Boche, nome local do açougueiro, que poderia encontrar sua origem pejorativa lá. (EDUCALINGO, 2021).

Portanto, o que mais chama a atenção nas Impressões da França, por Bonson, são os recursos de humor utilizados pelo artista para uma tradução cultural do trânsito entre dois países nas histórias em quadrinhos. Torna-se importante destacar, assim, que esse humor é datado dos anos de 1990, e que contém elementos pejorativos, bastante comuns a esse tipo de linguagem, o que não justifica a sua presença, mas nos auxilia a questioná-la e a interpretá-la. Uma possibilidade de leitura desse humor “sem graça” vem do qualificado livro Humor in America, organizado por Lawrence E. Mintz (1988), no qual, desde a sua introdução, podemos observar:
Tornou-se convencional começar os estudos escolares do humor com duas renúncias: é necessário um pedido de desculpas pelo fato de que o estudo do humor não é, por si só, engraçado, e a atenção é dirigida para a aparente ironia de que embora o humor seja trivial e superficial, o estudo dele é necessariamente significativo e complexo. (MINTZ, 1988, p. vii).10
Por seu turno, o conhecido humorista e escritor Ricardo Araújo Pereira11, que integrou o famoso e extinto grupo de humoristas portugueses chamado Gato Fedorento, tem uma notícia sobre as possibilidades do humor que nos vale conhecer:
O humor é contraditório como o caraças. É agressão mas também pode ser curativo, é crueldade mas também pode ser compaixão, e sobrecarga mas também pode ser alívio, é humilhação mas também pode ser apoteose, é leviandade mas também pode ser sensatez, é faísca mas também pode ser extintor. Todas as considerações sobre humor são incompletas (excepto, talvez, esta) (PEREIRA, 2017, p. 15).
E, mais ainda, já que discutimos aqui a presença e o trânsito de Sérgio Bonson na França, destacamos o comentário acerca do riso e do humor protagonizado por Stéphane Charbonnier, conhecido por Charb, diretor do jornal Charlie Hebdo, pouco antes do seu trágico desaparecimento no atentado terrorista à sede daquela publicação, no início de 2015:
[...] ‘Pode-se rir de tudo, mas...’. Um dono da verdade cheio de autossuficiência que nos autorize a rir de tudo já é insuportável. Não preciso da sua benção para rir daquilo que me dá vontade, mas também não tenho necessariamente vontade de rir de tudo. Gosto de rir do que quero, quando quero. Não somente você me concede uma liberdade que posso ter sozinho, mas, ainda por cima, coloca restrições. Nove em cada dez vezes o imbecil termina a frase com ‘não com qualquer um’. O autor dessa censura acha que demonstra um humor do outro mundo citando a frase que se atribuía a Desproges: ‘pode-se rir de tudo, mas não com qualquer um’. (CHARBONNIER, 2015, p. 11-12).
Como outra expressão da psique humana12, o humor (e o riso) tem sempre uma datação. O humor apontado acima, por três diferentes autores, inclusive e propositalmente, de diferentes nacionalidades (estadunidense, portuguesa e francesa), invoca e se situa em distintas décadas: basicamente todas entre 1980 e 2020. Assim, se a identidade e a transnacionalidade citadas estão presentes na obra de Sérgio Bonson, é compreensível que o humor explicitado na sua obra esteja atravessado por essas temporalidades. E mesmo sendo distintas as formas de humor nas suas temporalidades, em particular, nas que aqui apresentamos, é necessária uma tradução cultural para melhor entendê-las e, também, datá-las. Com isso, afirmamos que é possível rir - e muito - com o humor que se faz presente nos trabalhos de Bonson, de forma geral, mas que é sempre necessário compreendê-los nas suas especificidades e com as devidas ponderações.
Considerações finais
A partir da trajetória profissional de Sérgio Bonson, aqui apresentada, é possível observar que, durante os aproximados trinta anos de sua produção artística, Bonson tomou como inspiração, simultaneamente, as cenas urbanas e os acontecimentos diários de Florianópolis, constituindo-
-se em um importante narrador de histórias por meio da sua obra e, portanto, em um artista da cidade e do cotidiano. Enquanto tal, Bonson se dedicou ao estudo da arte por meio das viagens que realizou, das revistas e livros especializados que adquiriu e dos contatos que estabeleceu com outros artistas da cidade de Florianópolis e, também, de outros lugares. Além disso, o trânsito cultural por outras cidades e países permitiu que a sua obra adquirisse feições do estrangeiro, seja pela técnica e estética empregadas, seja pelos temas das suas expressões gráficas de humor, desenhos e aquarelas e, particularmente, das suas histórias em quadrinhos.
Neste artigo, um primeiro elemento do transnacional se insinua na figura de Sérgio Bonson como um artista em trânsito, pelas exposições e pelas viagens que realizou no decorrer da sua trajetória artística. Isso se reflete na sua produção, especialmente, no que se refere ao conjunto de histórias em quadrinhos que, quando partem de uma temática local (caso de Soiza, Waldirene e Henricão), incorporam assuntos, características globais; e que, quando partem de uma temática global (caso da série Impressions de France), fazem uso do estranhamento de um personagem citadino, local, sobre outra cidade. Assim, identificamos que as expressões linguísticas, o desejo de riso e os objetos do humor são características presentes nas histórias em quadrinhos analisadas.
Trata-se de uma obra ligada às especificidades do local em que é produzida e que possui receptividade entre os seus leitores porque Bonson mobilizava os recursos necessários para se aproximar deles, ou mesmo, para representá-los. É uma obra que também está ligada ao global, pois incorpora elementos de outros tempos, lugares, experiências, como os do próprio artista, para adquirir e alcançar um sentido mais amplo: o de tradução cultural. E, mais do que isso, hoje, uma obra que, assim como o artista, transita entre o local e o global, pois se atualiza no nosso tempo presente justamente pelas questões emblemáticas que apresenta.
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