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Os super-heróis das histórias em quadrinhos e sua relação com a ficção científica americana das décadas de 1930 e 1940
Comic book superheroes and their relationship to American science fiction of the 1930s and 1940s
Anos 90, vol. 28, e2021107, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

QUADRINHOS NAS AMÉRICAS EM PERSPECTIVA TRANSNACIONAL


Received: 19 February 2021

Accepted: 10 September 2021

DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.111643

RESUMO: A ficção científica e as histórias em quadrinhos guardam semelhanças e podem inclusive se sobrepor: há ficção científica no formato de história em quadrinhos, mas nem toda história em quadrinhos é uma ficção científica (e vice-versa). A proposta deste artigo é analisar a trajetória de ambas, apontar semelhanças e investigar como a ficção científica americana contribuiu para a criação dos super-heróis nas décadas de 1930 e 1940, que continuam fazendo grande sucesso até hoje, oitenta anos depois. Para tanto, o artigo discute o mercado editorial à época, a criação das pulps e dos comic books e como diversos nomes ligados à ficção científica migraram para as histórias em quadrinhos, levando consigo ideias sobre o gênero. Por fim, o artigo traz também a intersecção inusitada de um grupo de fãs e escritores de ficção científica conhecidos como The Futurians com uma história do Batman.

PALAVRAS-CHAVE: Super-heróis, Histórias em quadrinhos, Ficção científica.

ABSTRACT: Science fiction and comic books share similarities and can even overlap: there is science fiction in the format of comic books, but not all comic books are science fication (and vice versa). The purpose of this article is to analyze both of their trajectories, point out similarities and how American science fiction contributed to the creation of superheroes in the 1930s and 1940s that continue to be a great success today, eighty years later. To this end, it discusses the publishing market at the time, the creation of pulps and comic books and how various names linked to science fiction migrated to comic books, bringing with them ideas about the genre. Finally, the article also mentions the unusual intersection of a group of fans and sci-fi writers known as The Futurians with a Batman story.

KEYWORDS: Superheroes, Comic books, Science fiction.

Introdução

Nos últimos anos, os filmes de super-heróis têm feito enorme sucesso e batido recorde atrás de recorde de público e bilheteria. Para se ter uma ideia, o filme que atualmente ocupa o posto de maior arrecadação da história do cinema é Vingadores: Ultimato, de 2019, que faturou mais de dois bilhões de dólares. O filme, produzido pela Marvel Studios (que foi comprado pela Disney em 2009), é o quarto da franquia dos Vingadores, que reúne diversos super-heróis, como Homem de Ferro, Capitão América e Hulk.

Da onde “surgiram” esses heróis? Este artigo procura apresentar a origem das revistas de histórias em quadrinhos (“HQs”), focando em especial nos super-heróis. A principal hipótese aqui levantada é como a ficção científica, que até então era um gênero novo, contribuiu para essa construção. Assim, o artigo discute as aproximações das histórias em quadrinhos com a ficção científica nas décadas de 1930 e 1940 e aborda, também, a relação de um grupo de fãs/escritores de ficção científica conhecidos como The Futurians com o tema.

Scientifiction e os fãs do novo gênero

Talvez seja melhor começar a contar a história das HQs americanas a partir da história da ficção científica naquele país. Para muitos estudiosos e fãs, a ficção científica americana “nasceu” em 1926, quando Hugo Gernsback lançou a revista pulp Amazing Stories, dedicada ao que ele chamou então de “scientifiction”, contração de scientific fiction. Já havia histórias lidando com as consequências e possibilidades da ciência e da tecnologia para a humanidade, inclusive Gernsback publicou diversas delas em outras revistas que editou, e a própria Amazing trouxe em seus primeiros números textos antigos, de autores consagrados como Júlio Verne e H. G. Wells. A grande contri- buição da nova revista lançada por Gernsback foi criar uma comunidade de leitores e escritores em torno da ficção científica, fazendo, assim, ela se desenvolver enquanto um (novo) gênero literário:

Hugo Gernsback, an immigrant from Luxembourg, had been publishing popular-science mag- azines with science fiction stories in them. In 1926 he mustered his resources (and his courage) and founded Amazing Stories. Soon competitors began to appear, fans and new writers were attracted and a genre was born (GUNN, 2003, p. XVI).

Hugo Gernsback, um imigrante de Luxemburgo, vinha publicando revistas populares de ciência com histórias de ficção científica. Em 1926, ele reuniu seus recursos (e sua coragem) e fundou a Amazing Stories. Logo competidores começaram a aparecer, fãs e novos escritores foram atraídos e um gênero nasceu.1

Ao criar a Amazing Stories, Gernsback fomentou o mercado editorial das pulps voltadas para as histórias de ficção científica e, nos anos seguintes, novos títulos foram lançados, valendo-se do sucesso da Amazing, que em poucos meses atingiu uma circulação de 100.000 exemplares (ASHLEY, 2000). Vale destacar que a Amazing e outras que vieram na sequência fizeram parte do chamado período de ouro das revistas pulps nos Estados Unidos. Calcula-se que em meados da década de 1930, 30 a 40% da população americana letrada lia pulps (CHENG, 2013).

As pulps têm esse nome por conta do material de impressão, woodpulp, um papel mais barato. As revistas impressas em papel de qualidade maior ficaram conhecidas como slicks. Uma pulp padrão media 18 x 25 cm e tinha 128 páginas. Geralmente, cada título explorava um tipo de narrativa: faroeste, horror, detetive, romance… A ligação com as revistas pulps e esse formato moldou a ficção científica de então. Nos primeiros números, a Amazing publicou principalmente histórias não-inéditas, de autores como H. G. Wells, Jules Verne e Edgar Allan Poe. Muitas vezes, elas eram publicadas em partes. Logo, no entanto, escritores das outras pulps passaram a enviar seus originais para Gernsback:

Many contributors to the early sf magazines were experienced pulp writers, not specialists in scientific speculation but adaptable professionals willing to supply the new market with variations on what they had been writing for detective, western or general adventure maga- zines (ATTEBERY, 2003, p. 35).

Muitos colaboradores das primeiras revistas de ficção científica eram escritores experientes das pulps, não especialistas em especulação científica, mas profissionais adaptáveis dispostos a suprir o novo mercado com variações sobre o que eles escreviam para revistas de detetives, faroestes ou de aventuras.

Dessa forma, a ficção científica, enquanto um novo gênero, construía a si própria tanto através da conexão com antigos precursores, quanto com a ligação com os outros gêneros. No editorial do primeiro número da Amazing Stories, Hugo Gernsback explicou o que entendia por “scientifiction”:

By ‘scientifiction’ I mean the Jules Verne, H. G. Wells and Edgar Allan Poe type of story-a charming romance intermingled with scientific fact and prophetic vision... Not only do these amazing tales make tremendously interesting reading-they are always instructive. They supply knowledge... in a very palatable form [...]. New adventures pictured for us in the scientifiction of today are not at all impossible of realization tomorrow [...]. Many great science stories destined to be of historical interest are still to be written [...]. Posterity will point to them as having blazed a new trail, not only in literature and fiction, but progress as well (GERNSBACK, 1926, p. 3).

Por “scientifiction” eu quero dizer o tipo de história de Jules Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe - um romance encantador misturado com o fato científico e visão profética… Não só estes contos incríveis são uma leitura tremendamente interessante - eles são sempre instrutivos. Eles fornecem conhecimento... de uma forma muito agradável [...]. Novas aventuras retratadas para nós na ‘scientifiction’ de hoje não são de todo impossíveis de realização amanhã [...]. Muitas grandes histórias científicas destinadas a ser de interesse histórico ainda devem ser escritas [...]. A posteridade apontará para elas como tendo aberto uma nova trilha, não somente na literatura e na ficção, mas no progresso também.

Gernsback via a “scientifiction” como uma forma de promover a ciência e estimular o pro- gresso. Para ele, não era “apenas” literatura, mas um meio de educar os leitores. O nome criado por Gernsback, scientifiction, não pegou e foi substituído por science fiction, em uso até hoje.

As capas das revistas eram bastante chamativas, e ajudaram a destacar a Amazing Stories entre as dezenas de títulos disponíveis nas prateleiras:


Figura 1 -
Capa da Amazing Stories ilustrando “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells.
Fonte: Amazing Stories (1927).

O artista responsável por elas era Frank R. Paul, que já havia feito algumas ilustrações para Gernsback em suas revistas anteriores. Ele ajudou a formar o imaginário dos leitores a respeito de diversos assuntos:

He [Frank R. Paul] and his successors translated writers’ words into images - spaceships, domed cities, goggle-eyed creatures - that are still being used to represent the future in advertisements, movies and television shows (ATTEBERY, 2003, p. 36).

Ele [Frank R. Paul] e seus sucessores traduziram as palavras dos escritores em imagens - naves espaciais, cidades com cúpulas, criaturas com olhos arregalados - que ainda estão sendo usadas para representar o futuro em anúncios, filmes e programas de televisão.

Voltarei a falar de Frank R. Paul adiante. Vale notar aqui, no entanto, que apenas as capas dessas revistas eram coloridas, pois eram impressas em um papel de maior qualidade. No interior da Amazing Stories e das outras pulps, quando havia ilustrações, elas eram impressas em tinta preta apenas, assim como os textos. Além de contribuir para o desenvolvimento da ficção científica americana, a Amazing Stories foi fundamental também na formação da comunidade de fãs do gênero, o fandom da ficção científica. Gernsback dedicou um espaço da Amazing para uma seção de cartas dos leitores; nele, os leitores enviavam suas opiniões sobre as histórias, principalmente sobre a “ciência” presente nelas e também sobre os comentários dos outros leitores, publicados anteriormente. Foi sendo criada, dessa forma, uma rede, que logo passou a se comunicar diretamente, trocando cartas entre si, já que os endereços dos leitores também eram publicados.

O passo seguinte à troca de cartas entre fãs de maneira individual foi a criação de clubes de correspondência, que rapidamente evoluiu para clubes que promoviam encontros presenciais, geralmente mensais. Eles se multiplicaram na década de 1930 por todo o país e foram um espaço importante não apenas para a discussão da ficção científica, mas também para a sociabilidade dos fãs, criando, assim, uma comunidade. Num primeiro momento, esses clubes partilhavam da visão de Hugo Gernback de que a ficção científica poderia ser um caminho para novas descobertas científicas e tecnológicas. Alguns desses clubes chegaram, inclusive, a conduzir experimentos pró- prios: é o caso do American Interplanetary Society, fundado em 1930 por um grupo de escritores de ficção científica e entusiastas do gênero. O objetivo do grupo era descobrir meios de chegar a outros planetas. Eles conseguiram, em 1933, lançar um foguete que atingiu pouco mais de setenta metros de altitude antes de explodir no ar. O interesse na ciência, no entanto, foi diminuindo com o passar do tempo e os clubes passaram a focar na ficção científica e na própria comunidade, promovendo encontros e conferências.

Os clubes começaram a produzir boletins sobre suas atividades e as primeiras publicações foram lançadas em 1930: “The Comet”, do Science Correspondence Club, e “The Planet”, do New York Scienceers. Ambas tinham como foco a ciência, embora “The Planet” trouxesse também textos sobre a ficção científica. Além dos boletins feitos pelos clubes, os fãs passaram a produzir de maneira individual, também. Essas publicações amadoras foram chamadas de fan magazines e rebatizadas depois de fanzines (já as revistas profissionais eram chamadas de prozines entre os fãs). As técnicas de reprodução das fanzines variavam entre papel carbono, mimeografia e hec- tografia. Na década de 1930, as fanzines se multiplicaram e passaram a tratar principalmente da própria comunidade de fãs de ficção científica, ainda que algumas trouxessem outros interesses também, e eu voltarei a falar de uma dessas fanzines posteriormente. Diversos fãs produtores de fanzines transformaram-se, nos anos seguintes, em escritores e editores de ficção científica - e alguns deles em autores e ilustradores de histórias em quadrinhos.

Comic books e a invenção dos super-heróis

A trajetória das histórias em quadrinhos tem pontos em comum com a da ficção científica e as duas chegam a se misturar algumas vezes, como mostrarei. Tiras em jornais já eram publicadas há bastante tempo, mas foi a partir da década de 1930 que elas começaram a se transformar no que viriam a ser as histórias em quadrinhos. O período, como visto, era favorável para o mercado editorial.

Uma das primeiras tirinhas de ficção científica foi a Buck Rogers in the 25th Century, publicada a partir de 1929 e baseada em um romance serializado na Amazing Stories. Buck é um tenente que vai parar 500 anos no futuro e descobre que os Estados Unidos foram dominados por mongóis. A tira fez muito sucesso e foi adaptada para o cinema e televisão. Além disso, inspirou outras tiras a trazerem histórias, ou ao menos elementos, de ficção científica, aproximando, então, o gênero dessa linguagem.

Em 1934, a Famous Funny, uma tira de humor, lançou uma antologia que reunia suas publi- cações antigas. Foi a primeira publicação no formato que viria a ser o das revistas de histórias em quadrinhos e foi o seu sucesso que gerou o nome pelo qual essas revistas são chamadas até hoje nos Estados Unidos:

It was the success of Famous Funnies that printed the name ‘comic’ book so indelibly on the public’s minds, so that even when publishers turned to non-humorous subjects, including war and horror stories, they remained, rather inappropriately, ‘comic’ books (ASHLEY, 2000, p. 123).

Foi o sucesso de Famous Funnies que imprimiu o nome de comic book (“livro cômico”) de forma tão indelével nas mentes do público, de modo que mesmo quando as editoras se voltaram para assuntos não humorísticos, incluindo histórias de guerra e terror, eles permaneceram, de forma inadequada, “comic books”.

Outros editores passaram a publicar as tiras antigas em formato comic book também e logo histórias inéditas começaram a ser lançadas nesse formato. Uma questão importante é que, com a mudança de suporte (dos jornais para uma publicação própria), os editores assumiram que a faixa etária seria diferente, muito mais jovem, e o conteúdo e publicidade iniciais dessas revistas demonstram isso (GORDON, 1998). Ainda de acordo com Ian Gordon, as pessoas envolvidas na criação das HQs também eram bem jovens: a maior parte dos artistas e escritores tinha entre dezoito e vinte e poucos anos de idade.

O primeiro super-herói a aparecer em uma revista de história em quadrinhos foi o Super- Homem, em 1938, na revista Action Comics, publicada pela Detective Comics (que a partir de 1977 passou a se chamar DC Comics, nome que utiliza até hoje). Sua publicação marca o início do que ficou conhecido como “era de ouro” dos quadrinhos, quando diversos super-heróis foram criados e as revistas de histórias em quadrinhos cresceram em popularidade e vendas:

The Golden Age resulted from a combination of pulp sf tropes with the illustrative qualities of adventure strips, brought together in the figure of the superhero (KAWA, 2009, p. 163).

A era de ouro resultou de uma combinação de tropos da ficção científica das revistas pulp com as qualidades ilustrativas das tiras de aventura, reunidas na figura do super-herói.

O ponto levantado por Abraham Kawa, e que pretendo mostrar neste artigo, foi que a cria- ção dos super-heróis só foi possível devido à aproximação entre histórias em quadrinhos e a ficção científica iniciada com Buck Rogers e continuada nos anos seguintes. O próprio Super-Homem, que deu início aos super-heróis nas HQs, deve muito à ficção científica e ao fandom que foi criado em torno dela. Vamos ver como isso se deu.

O Superman, ou Super-Homem, foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Os dois se conhe- ceram ainda na escola e compartilhavam o interesse pela ficção científica. Tiveram uma fanzine chamada Science Fiction, em que publicaram, em janeiro de 1933, uma história intitulada “The Reign of the Superman” (Figura 2), com texto de Siegel (sob o pseudônimo de Herbert S. Fine) e ilustração de Shuster. Foi a primeira aparição do Super-Homem, mas uma versão bastante diferente da que seria apresentada em 1938.


Figura 2 -
Fanzine com a história “The Reign of the Superman”.
Fonte: Fine (1933, p. 4 e 5).

Na história publicada em 1933, o químico Ernest Smally encontra fragmentos de um cometa, que utiliza para fazer uma poção testada em camundongos. O passo seguinte é testar em um humano e ele atrai Bill Dunn até sua casa com a promessa de oferecer roupas e comida. Após beber a poção sem saber, Dunn desenvolve superpoderes, como “ler” os pensamentos das pessoas e uma visão capaz de enxergar o que está acontecendo em Marte. Assim, ele transforma-se no super-homem e promove o caos a fim de controlar o mundo. Dunn mata Smally quando descobre que o cientista pretendia beber a fórmula e se transformar em um outro super-homem para derrotá-lo. Os poderes que Dunn desenvolveu, no entanto, eram passageiros e ao final da história ele se arrepende de os ter utilizado para “o mal”.

The Reign of the Superman foi publicada no primeiro número da fanzine Science Fiction, editada por Siegel. Ela parecia alinhada aos ideais propagados por Gernsback, ao menos em sua capa, que trazia a seguinte inscrição:

Science must serve Civilization; SCIENCE FICTION shall serve Science! (SIEGEL, 1933, p. 1). A ciência deve servir à Civilização; a FICÇÃO CIENTÍFICA servirá à Ciência!

É curioso, então, que a primeira história em que o Super-Homem aparece traga justamente um mau uso da ciência, feito por um cientista inescrupuloso. Talvez a proposta da história fosse servir como alerta, mas essa era uma abordagem controversa entre os fãs de ficção científica.

Quando o Super-Homem apareceu novamente, cinco anos depois e em uma revista profissio- nal, era de uma maneira bem diferente. Enviado pelo pai ainda neném em uma nave para a Terra porque seu planeta estava morrendo, Clark Kent descobre na juventude que tem força e rapidez incomparáveis, além de pele à prova de balas. Ao contrário da versão de Bill Dunn, Kent decide usar os superpoderes em favor da humanidade:

Early, Clark decided he must turn his titanic strength into channels that would benefit man- kind and so was created… Superman! Champion of the opressed, the physical marvel who had sworn to devote his existence to helping those in need (SIEGEL; SHUSTER, 1938, p. 3).

Logo no início, Clark decidiu que deveria transformar sua força titânica em meios que bene- ficiariam a humanidade e assim foi criado... o Super-Homem! Campeão dos oprimidos, a maravilha física que jurou dedicar sua existência a ajudar os necessitados.

A antiga filiação com a ficção científica aparece já no quadrinho seguinte:

A scientific explanation of Clark Kent’s amazing strenght: Kent had come from a planet whose inhabitants’ physical structure was millions of years advanced of our own. Upon reaching matu- rity, the people of his race became gifted with titanic strength! (SIEGEL; SHUSTER, 1938, p. 3)

Uma explicação científica da incrível força de Clark Kent: Kent veio de um planeta cuja estru- tura física dos habitantes era milhões de anos avançada da nossa. Ao atingir a maturidade, o povo de sua raça tornou-se dotado de uma força titânica!

Dessa forma, os superpoderes de Kent são intrínsecos a ele, diferente de Bill Dunn, vítima dos experimentos de um cientista. A mudança no personagem veio logo depois da publicação da fanzine, segundo Jerry Siegel:

A couple of months after I published this story, it occurred to me that a Superman as a hero rather than a villain might make a great comic strip character in the vein of Tarzan, only more super and sensational than that great character (SIEGEL, 1983, p. 10).

Alguns meses depois de publicar essa história, me ocorreu que um Super-Homem como herói em vez de vilão poderia ser um grande personagem de história em quadrinhos no estilo de Tarzan, só que mais super e sensacional do que aquele grande personagem.

Fazer do Super-Homem um super-herói ao invés de vilão deu certo e, em poucos meses, a revista já vendia milhares de cópias. Siegel e Shuster haviam vendido todos os direitos do Super- Homem para a DC já em 1938, e a empresa decidiu registrar o super-herói como uma marca:

In the hands of a corporation, Superman was more important as a business asset than as a fictional character. Once DC recognized Superman’s status as a commodity, they defined and sold him as a product in all his incarnations. By 1941 Superman was not so much a character who helped sell comic books as a product that comic books sold. (GORDON, 1998, p. 134).

Nas mãos de uma corporação, o Super-Homem era mais importante como um ativo de negó- cios do que como um personagem fictício. Uma vez que a DC reconheceu o status de Super- Homem como uma mercadoria, eles o definiram e venderam como um produto em todas as suas encarnações. Em 1941, o Super-Homem não era tanto um personagem que ajudava a vender histórias em quadrinhos, mas um produto que as histórias em quadrinhos vendiam.

Em 1941, a revista do Super-Homem vendia mais de um milhão de cópias por mês (GORDON, 1998), além de todos os produtos que levavam a marca do “homem de aço”. Isso levou a DC a investir em novos super-heróis, e um deles foi o Batman. Assim como o Superman, também é possível enxergar nele traços da relação com a ficção científica. A edição de novembro de 1939 da Detective Comics traz as origens do Batman. Jurando vingança pela morte dos pais, Bruce Wayne virou um cientista ao mesmo tempo em que treinou seu corpo para a “perfeição”:


Figura 3 -
Quadros mostrando a transformação de Bruce Wayne em Batman.
Fonte: Detective Comics (1939, p. 4).

Diferentemente do Super-Homem, que possui super-poderes de origem extraterrestre, Batman apoia-se em um esforço físico combinado a um conhecimento técnico. Assim, o herói da ficção científica à época, o homem jovem, americano, inventor autodidata2, se une a uma ideia de corpo perigosamente próxima da eugenia.

O mesmo vale para o Capitão América, super-herói da concorrente Timely Comics, e publi- cado pela primeira vez em março de 1941. A explicação de seus poderes parece saída das histórias de ficção científica das pulps à época, pois ele é submetido a uma fórmula, criada por um cientista, que age instantaneamente em seu corpo e mente e ele transforma-se no Capitão América, arma secreta do governo americano para enfrentar os inimigos do eixo:

Initially an example of biological deviance, Rogers is purified by military-industrial technology and attains the heights of “mental and physical ability” exclusively reserved for white men. (WASIELEWSKI, 2009, p. 65).

Inicialmente um exemplo de desvio biológico, Rogers é purificado pela tecnologia militar-industrial e atinge o ápice da “capacidade mental e física” reservada exclusivamente para homens brancos.

O ponto levantado por Marek Wasielewski é de suma importância, pois Capitão América, Batman, Super-homem e outros que viriam na sequência (com algumas poucas exceções) são homens brancos. Conforme Sean Guynes e Martin Lund, as narrativas dos super-heróis contri- buíram para reforçar ideias racistas:

The prominence of the white superhero-and, most commonly, of the white male superhero- in American comic books and in the transmedial adaptation of their narratives throughout the twentieth and into the twenty-first century has transformed the white male body, and the boundaries of morality and justice that it polices and upholds, into a widely circulated visual lexicon of white (male) superiority (LUND; GUYNES, 2019, p. 3).

A proeminência do super-herói branco - e, mais comumente, do super-herói masculino branco - nas histórias em quadrinhos americanas e na adaptação para outras mídias de suas narrativas ao longo do século XX e no século XXI, transformou o corpo masculino branco e as fronteiras de moralidade e justiça que ele policia e defende em um léxico visual amplamente difundido da superioridade branca (masculina).

Para Julian C. Chambliss e William L. Svitavsky (2008), os super-heróis são uma continuidade dos heróis das revistas pulps (incluindo as de ficção científica), que eram sempre homens brancos que tomavam para si a resolução dos problemas sociais.

Uma das poucas exceções foi a Mulher-Maravilha, personagem criada justamente para ten- tar suprir a falta de representatividade feminina. A sugestão veio de William Moulton Marston, psicólogo que trabalhava como consultor para a DC Comics. Sua primeira aparição ocorreu em dezembro de 1941, mas a despeito das intenções de Moulton, ela acabou reforçando estereótipos machistas:

Wonder Woman’s curvaceous body and skimpy yet patriotic, costume were projected from hege- monic depictions of feminine beauty and, despite Marston’s wishes she was perhaps the most misogynistic superhero of them all further reinforcing the gender division. (WASIELEWSKI, 2009, p. 65).

O corpo curvilíneo da Mulher Maravilha e o traje minúsculo, porém patriótico, foram projetados a partir de representações hegemônicas da beleza feminina e, apesar dos desejos de Marston, ela era talvez a super-heroína mais misógina de todos eles, reforçando ainda mais a divisão de gênero.

Além do Capitão América, a Timely Comics publicava outros super-heróis durante a Era de Ouro dos quadrinhos. A editora começou nesse mercado em outubro de 1939, quando lançou a revista Marvel Comics. A capa foi feita por Frank R. Paul, o artista que ilustrou dezenas de capas da Amazing e ajudou a criar um imaginário da ficção científica:


Figura 4 - Capa feita por Frank R. Paul. Fonte: Marvel
Comics (1939).

Além de Paul, outros ilustradores das revistas pulps de ficção científica como John Forte e Jack Binder também trabalharam nas revistas de histórias em quadrinhos. Eles levaram consigo as ideias da ficção científica (que muitas vezes eles mesmos desenvolveram) e ajudaram a construir o imaginário visual do universo dos super-heróis.

A popularidade das histórias em quadrinhos fez com que diversas editoras investissem nelas, e isso envolvia um grande número de pessoas, como lembra Will Eisner:

We have made comic book features pretty much the way Ford made cars… I would write and design the characters, somebody else would pencil them in, somebody else would ink, somebody else would letter (EISNER, 2001, p. 9).

Nós criávamos histórias em quadrinhos da mesma forma que a Ford fazia carros... Eu escrevia e elaborava os personagens, outra pessoa os desenhava, outra pessoa coloria, outra pessoa letreirizava.

Eisner também foi responsável pela criação de um super-herói, The Spirit, publicado pela primeira vez em junho de 1940, no suplemento dominical, que acompanhava diversos jornais. Além dos ilustradores, as editoras das revistas de histórias em quadrinhos contrataram também outros nomes envolvidos com as pulps de ficção científica. Otto Binder, autor de histórias de ficção científica publicadas nas pulps nos anos 1930, passou a escrever roteiros para o Capitão Marvel em 1940 e, posteriormente, para o Super-Homem. Outros autores de ficção científica também migra- ram para as histórias em quadrinhos, como Alfred Bester. Assim como no caso dos ilustradores, os autores também levaram consigo ideias da ficção científica que foram incorporadas às histórias de super-heróis.

Um caso interessante aconteceu com Mort Weisinger, editor das pulps Thrilling Wonder Stories e Startling Stories, publicadas pela Better Publications. Em abril de 1940, a Better Publications lançou uma outra pulp, também editada por Weisinger, intitulada Captain Future, que trazia his- tórias de ficção científica diversas e também sobre o Capitão Futuro, que dava nome à revista. No mês seguinte, de olho nos leitores das histórias em quadrinhos, a editora lançou a Startling Comics, com o Capitão Futuro como personagem dos quadrinhos. A DC Comics ofereceu a Weisinger um cargo de editor, que ele aceitou, e passou a trabalhar nas revistas do Super-Homem.

Assim, se, por um lado, as histórias em quadrinhos se aproximavam da ficção científica em seus temas e em quem estava por trás deles, por outro as editoras das revistas pulps de ficção cien- tífica procuravam atrair os leitores das HQs de super-heróis, que faziam enorme sucesso. Além da Better Publications, outras editoras que já contavam com revistas pulps de ficção científica também entraram no mercado das histórias em quadrinhos. Talvez a principal iniciativa em unir ficção científica e HQs tenha sido da Fiction House; a editora lançou, ao mesmo tempo, Planet Stories, uma pulp de ficção científica, e Planet Comics, revista de histórias em quadrinhos de ficção científica:

What is most interesting about Planet Stories is that it was the first magazine to be launched in conjunction with a comic-book equivalent, Planet Comics. But whereas Planet Stories was quarterly, Planet Comics was monthly […]. It is entirely likely that the income from the comic books supported the pulps. It is just possible that Planet Comics would have provided a link for young readers into the pulps but, in the absence of a survey of readers, I suspect that Planet Stories retained a number of old-time adult readers who still yearned for the early days of sf. (ASHLEY, 2000, p. 152).

O mais interessante sobre Planet Stories é que foi a primeira revista a ser lançada em con- junto com um equivalente de quadrinhos, Planet Comics. Mas enquanto Planet Stories era trimestral, Planet Comics era mensal (...). É muito provável que a receita dos quadrinhos tenha sustentado as pulps. É bem possível que Planet Comics tenha fornecido uma conexão para as pulps para os leitores jovens mas, na ausência de uma pesquisa de leitores, eu suspeito que Planet Stories reteve vários leitores adultos dos velhos tempos que ainda ansiavam pelos primeiros dias da ficção científica.

A Planet Comics publicava histórias de super-heróis em outros planetas, geralmente salvando as donzelas em perigo de monstros alienígenas. A Planet Stories seguia a mesma linha, mas no formato de histórias em quadrinhos e, como apontado por Mike Ashley, tinha vendas muito superiores às das pulps.

E os Futurians?

Como dito anteriormente, na década de 1930, vários clubes de fãs de ficção científica foram criados nos Estados Unidos. Um deles foi o The Futurian Society of New York, meu objeto de estudo. O crítico Brian Attebery destaca a importância dos Futurians (como ficaram conhecidos os membros do grupo) para a ficção científica:

One group, the Futurians, included many of the most important writers in the next genera- tion: Frederik Pohl, Damon Knight, Judith Merril, Cyril Kornbluth, Isaac Asimov and James Blish. Three of those, Blish, Knight and Merril, also became important critics, pointing out logicall flaws in sf stories and praising those writers who embodied scientific ideas in compel- ling narratives. Their efforts, and the willingness of fans to explore new fictional directions, helped transform the genre into something more sophisticated than its pulp beginnings. (ATTEBERY, 2003, p. 38).

Um grupo, os Futurians, incluiu muitos dos escritores mais importantes da próxima geração: Frederik Pohl, Damon Knight, Judith Merril, Cyril Kornbluth, Isaac Asimov e James Blish. Três desses, Blish, Knight e Merril, também se tornaram importantes críticos, apontando todas as falhas nas histórias de ficção científica e elogiando os escritores que encarnavam as ideias científicas em narrativas convincentes. Seus esforços e a disposição dos fãs em explorar novas direções ficcionais ajudaram a transformar o gênero em algo mais sofisticado do que seu começo nas pulps.

Uma característica importante dos Futurians em relação a outros grupos é que eles se transfor- maram em uma espécie de família estendida, inclusive adotando moradias compartilhadas, sendo uma delas conhecida como Ivory Tower. O grupo existiu de 1938 a 1945 e, durante esse período, três Futurians foram editores de revistas pulp de ficção científica, mas elas não tiveram versões em comic books, como foi o caso da Planet Stories, por exemplo. Ainda que nenhum Futurian tenha se envolvido profissionalmente com as revistas de histórias em quadrinhos, eles, assim como os outros fãs de ficção científica, acompanhavam de perto o que estava acontecendo. Em uma fanzine publicada em 10 de março de 1940, o Futurian Robert Lowndes comenta:

SUPERMAN BANNED IN CANADA March 8: The comic strip Superman has been banned from Canada by order of the War Government. This comic strip, written by old-time stf fans Siegel & Schuster, faetures [sic] a super-powerful man from another planet. In a recent strip Superman stopped a war by cap- turing a character who resembled Hitler and another resembling Churchill. Because of the latter fact, Canadian newspapers have been ordered to discontinue the strip. (LOWNDES, 1940, p. 01).

SUPER-HOMEM PROIBIDO NO CANADÁ 8 de março: A história em quadrinhos Super-Homem foi banida do Canadá por ordem do Governo da Guerra. Esta história em quadrinhos, escrita pelos antigos fãs de ficção cientí- fica Siegel & Schuster, apresenta um homem superpoderoso de outro planeta. Em uma tira recente, Super-Homem interrompeu uma guerra ao capturar um personagem que se parecia com Hitler e outro que se parecia com Churchill. Por causa deste último fato, os jornais canadenses foram obrigados a interromper a tiragem.

Os Futurians sempre se interessaram pela relação da política com a ficção; esse foi, inclusive, um dos fatores que levaram à criação do grupo, já que diversos membros acreditavam que a ficção científica deveria ser engajada. Com o passar do tempo e dos turbulentos acontecimentos mundiais, muitas das posições foram revistas, mas para os fãs conservadores da época, a imagem de que os Futurians fossem um grupo de comunistas permaneceu intacta. Um episódio, ocorrido muitos anos após o fim do grupo, ilustra (literalmente!) isso.

Na história intitulada “Asylum of the Futurians!”, publicada na edição de fevereiro de 1971, da revista Batman, o super-herói é chamado por uma mulher para salvar seu marido que está no meio de uma reunião de loucos. Batman espia e vê que o grupo, com exceção do marido da jovem, aprecia uma música tocada com instrumentos imaginários e come uma comida invisível:


Figura 5 -
Batman espiando o grupo.
Fonte: Batman (1971, p. 5).

A líder dos membros, chamados de Futurians, é Michelle:


Figura 6 -
Batman lutando com os Futurians.
Fonte: Batman (1971, p. 11).

A referência ao grupo The Futurian Society of New York é bem evidente e, para aqueles jovens demais para entenderem a alusão, o editor da revista, Julius Schwartz, explica na edição de junho:

Back in the 1930’s a group of rabid science-fiction fans banded together in an Ivory Tower and called themselves The Futurians. When we further tell you that their leader was named (John B.) Michel, you’ll understand the circumstances which inspired us to recall this fandom episode of yesteryear. (SCHWARTZ, 1971, p. 13).

Nos anos 1930, um grupo de lunáticos fãs de ficção científica se uniram em uma torre de marfim e se autodenominaram ‘The Futurians’. Quando lhes dissermos que o nome do seu líder era (John B.) Michel, vocês entenderão as circunstâncias que nos inspiraram a recordar este episódio do fandom do passado.

O editor parece ter uma animosidade grande em relação aos Futurians, mesmo quase três décadas após o fim do grupo. A música e a comida que só os Futurians ouviam e viam servem como metáforas, ainda que seu significado não fique evidente e não haja maiores esclarecimentos posteriores. Uma interpretação possível é que poderia se tratar de uma crítica da direita sobre o que eles considerariam a “sandice” do comunismo, cujas vantagens apenas os Futurians enxergariam. Vale destacar que Julius Schwartz também integrou o fandom da ficção científica nos anos 1930 e 1940. Ele foi um dos organizadores da primeira convenção mundial de ficção científica, em 1939, que ocorreu junto à Feira Mundial de Nova Iorque. Essa convenção foi um palco de disputas entre os fãs à época e envolveu o organizador Sam Moskowitz e outros fãs como Schwartz de um lado e os Futurians de outro. Os organizadores temiam que os Futurians “tumultuassem” o evento com suas pautas políticas e proibiram alguns deles (entre eles John B. Michel) de participar da convenção. Os Futurians revidaram e fizeram uma convenção paralela, na sede do Brooklyn da YCL (Young Communist League - Liga Jovem Comunista). Além disso, distribuíram folhetos na entrada da convenção oficial, acusando os organizadores de antidemocráticos.

Esse ataque aos Futurians na forma de uma história em quadrinhos, publicada tantos anos depois das brigas internas no fandom da ficção científica por conta de posicionamentos políticos, pode sugerir que essa era uma questão ainda latente na década de 1970. Para além do embate entre Schwartz, Michel e os outros Futurians, poderia haver, também, uma disputa narrativa3 em curso. Quando fundaram o grupo, alguns Futurians - como é o caso de Michel - defendiam que a ficção científica deveria buscar um futuro mais justo, uma existência mais utópica. Para outros fãs, o gênero não deveria se envolver com questões políticas e, sim, ser apenas entretenimento, uma literatura escapista. A publicação de Asylum of the Futurians! parece sinalizar, ao menos para aqueles envolvidos com a sua publicação, a vitória de uma forma de contar histórias.

Considerações finais

Ainda que distintas, havia, como procurei mostrar, muitos pontos em comum entre as histórias em quadrinhos e a ficção científica. Nem todo leitor de super-heróis acompanhava as histórias de ficção científica, mas entre os fãs de ficção científica boa parte lia também as HQs, que superaram em muito o número de vendas das pulps de ficção científica.

A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial teve um impacto gigantesco no mercado editorial das pulps de ficção científica:

On 7 December 1941 the Japanese attacked Pearl Harbor, and with that the United States entered the Second World War. Almost immediately wartime restrictions were imposed. The subsequent rationing of paper, ink and metal type, was a disaster for the pulps more than the comics, added to which the number of writers able to meet the demand for material was drastically reduced as they were called to the war effort. Most of the magazines survived 1942 and a few survived 1943, but few made it right through the war. By 1945 there were only 7 magazines compared with the peak of 22 in 1941. (ASHLEY, 2000, p. 164).

Em 7 de dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbor e, com isso, os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial. Quase imediatamente, as restrições de tempo de guerra foram impostas. O subsequente racionamento de papel, tinta e tipos de metal, foi um desastre para as pulps mais do que para os quadrinhos, somado ao qual o número de escritores capazes de atender à demanda de material foi drasticamente reduzido à medida que eram chamados ao esforço de guerra. A maioria das revistas sobreviveu a 1942, e algumas sobreviveram a 1943, mas poucas sobreviveram à guerra. Em 1945, havia apenas sete revistas em comparação com o pico de 22 em 1941.

A ficção científica (bem como outros gêneros literários) foi migrando para o formato dos livros e a chegada dos paperbacks contribuiu para isso. As revistas pulp foram rareando até acabar nos anos seguintes. Já as revistas de histórias em quadrinhos conseguiram sobreviver melhor ao impacto do racionamento de guerra e apesar de momentos de baixa em alguns períodos, continuam em circulação até hoje.

Na década de 1950 a Timely Comics passou a se chamar Atlas Comics e, a partir de 1961, Marvel Comics. E foi na década de 1960, a chamada Era de Prata das histórias em quadrinhos americanas, que a Marvel lançou novos super-heróis que fariam muito sucesso, como o Homem- Aranha. Diferente dos super-heróis da DC da Era de Ouro, os novos heróis da Marvel eram mais críticos em relação à ciência e à tecnologia e ao uso delas:

While DC used sci-fi to exalt the virtues of scientific progress and the certainty of peace through technology, Marvel spoke to the anxieties of the atomic age. (WRIGHT, 2001 apud CASEY, 2009, p. 202).

Enquanto a DC usava a ficção científica para exaltar as virtudes do progresso científico e a certeza da paz por meio da tecnologia, a Marvel falava das ansiedades da era atômica.

Muitos apontam Stan Lee como sendo o responsável por essas mudanças na Marvel. Ele, de fato, foi fundamental para a criação de novos heróis com os quais os leitores pudessem se identificar e que fugissem da dicotomia Bem x Mal. Em relação à ciência, no entanto, cabe ressaltar que a própria ficção científica pós-1945 é bastante diversa daquela produzida antes: as bombas atômicas usadas em Hiroshima e Nagasaki abalaram a crença de muitos fãs e escritores na construção de um futuro melhor por meio da ciência.

Em 1954, o psiquiatra Fredric Wertham publicou o livro Seduction of the Innocent, em que denunciava as histórias em quadrinhos como uma das causas da delinquência juvenil. A publica- ção gerou um grande alarde e, temendo sofrer algum tipo de censura, as editoras se organizaram e criaram um código de condutas, que serviu como uma auto-censura, proibindo coisas como violência excessiva e insinuação sexual. O código, combinado com outros fatores como problemas de distribuição, levou a uma queda no mercado de revistas em histórias em quadrinhos na década de 1960.

As editoras dos super-heróis conseguiram manter eles no radar de interesse principalmente por conta das diversas adaptações que os personagens tiveram para o cinema e televisão nos anos seguintes, o que contribuiu para que suas revistas continuassem circulando. A Marvel e a DC se fixaram como as maiores editoras de histórias em quadrinhos e atualmente faturam bilhões de dólares anualmente, seja com seus super-heróis novos ou aqueles criados nas décadas de 1930 e 1940, precursores de todos os que viriam na sequência e que carregam características da aproximação com a ficção científica da época.

O Futurian Damon Knight, em seu livro de memórias, afirma: “If Hugo Gernsback had stayed home, everything would have been different.” (KNIGHT, 2013, p. 69) [Se Hugo Gernsback tivesse ficado em casa, tudo teria sido diferente.] De fato, a criação da Amazing Stories por Gernsback conduziu a ficção científica nos Estados Unidos por um caminho muito singular. A hipótese defendida neste artigo foi a de que este caminho foi decisivo não apenas para a ficção científica, mas também para os super-heróis das histórias em quadrinhos.

Referências

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WASIELEWSKI, Marek. Golden age comics. In: BOULD, Mark et al. (org.). The Routledge companion to science fiction. New York: Routledge, 2009.

Notes

1 Esta e as demais traduções que aparecem no artigo foram elaboradas pela autora.
2 Em 1993, John Clute cunhou o termo edisonade para descrever as histórias que trazem esse arquétipo. O termo vem de Thomas Edison, figura emblemática no imaginário americano.
3 Agradeço a/ao parecerista A que sugeriu essa hipótese. O conhecimento é sempre construído de forma coletiva, ainda que algumas vezes as partes envolvidas permaneçam anônimas. Às pessoas que dedicam tempo para revisar os textos das/dos colegas para as revistas, o meu muito obrigada.

Author notes

E-mail:bucaseiffert@gmail.com



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