QUADRINHOS NAS AMÉRICAS EM PERSPECTIVA TRANSNACIONAL
A verdade sobre os Gracie: A narrativa da introdução do Jiu-Jitsu no Brasil através dos quadrinhos de José Geraldo
A verdade sobre os Gracie:The narrative of Jiu-Jitsu introduction in Brazil through José Geraldo’s comics
A verdade sobre os Gracie: A narrativa da introdução do Jiu-Jitsu no Brasil através dos quadrinhos de José Geraldo
Anos 90, vol. 28, e2021108, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em
Received: 22 February 2021
Accepted: 20 December 2021
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a narrativa de José Geraldo sobre a introdução do Jiu-Jitsu no Brasil em sua revista em quadrinhos A verdade sobre os Gracie. Nossa principal hipótese é que as escolhas de José Geraldo para representar os acontecimentos passados da vida de Carlos Gracie foram essenciais para estabelecer uma visão idealizada sobre o papel da família Gracie na introdução do Jiu-Jitsu no país. Nesse processo, Carlos é descrito como uma criança habilidosa, um adulto valente, um protetor da honra e o principal responsável pela nacionalização do Jiu-Jitsu.
PALAVRAS-CHAVE: Jiu-Jitsu, narrativa, história em quadrinhos.
ABSTRACT: This article aims to analyze the narrative created by José Geraldo about the introduction of Jiu-Jitsu in Brazil in his comic magazine A verdade sobre os Gracie. Our main hypothesis is that José Geraldo’s choices to represent the past events of Carlos Gracie’s life were essential to establish an idealized view about the role of Gracie family on the introduction of Jiu-Jitsu in the country. In this process, Carlos is described as a skillfully children, a brave adult, a protector of honor and the main responsible for the nationalization of Jiu-Jitsu.
KEYWORDS: Jiu-Jitsu, narrative, comics.
Introdução à verdade sobre os Gracie
A verdade sobre os Gracie: drama da vida real foi o título escolhido pelo desenhista José Geraldo Barreto (1924-2014),1 em 1958, para publicar uma história em quadrinhos dedicada a explorar a trajetória de Carlos Gracie (1902-1994)2. Carlos era o patriarca e líder do numeroso clã dos Gracie,3 uma família que construiu um protagonismo no Brasil a partir da prática e difusão do Jiu-Jitsu “brasileiro”, um esporte de combate híbrido, com origens no Japão da era Meiji e introduzido no Brasil pelo exército como política de modernização do início do período republicano (CAIRUS, 2012, p. 8).
A família Gracie possui um passado aristocrático que remonta a imigrantes escoceses que vieram para o Brasil logo depois da Independência, em 1822. Com a República, em 1889, a família entrou para diplomacia para manter o seu status social. Em seguida, foram atraídos para Belém pelas oportunidades de negócios no auge da produção da borracha na região. Foi lá que Carlos Gracie teve contato com o Jiu-Jitsu. (CAIRUS, 2012, p. 16-22). Contudo, nos anos 1930, os Gracies já eram uma família aristocrata decadente que se utilizou do Jiu-Jitsu para impor-se frente às novas demandas sociais do período (CAIRUS, 2020, p. 29).
Em 1958, a família Gracie já possuía status de celebridade esportiva nacional. Desde o início da década de 1950 eles apareciam constantemente como protagonistas nas páginas da Revista Cruzeiro, seja em cursos fotográficos que ensinavam o passo a passo das técnicas de defesa pessoal, em detalhadas matérias jornalísticas sobre as lutas e enfrentamento da família com adversários nacionais e estrangeiros ou, até mesmo, como foliões nos bailes de carnaval dos clubes da alta sociedade carioca.4
Portanto, quando José Geraldo escreveu e desenhou essa história em quadrinhos centrada em Carlos, a fama da família Gracie já os precedia. Talvez por isso o próprio autor tenha encontrado uma maneira de “participar” daquela que seria “a primeira publicação em quadrinhos feita no Brasil a respeito de uma personalidade brasileira” (GRACIE, 2008, p. 24-25). O autor/desenhista aparece como personagem/narrador da história que é representada.
A narrativa começa dizendo que será contada uma história real, inédita e superior a toda ficção. “É a história fabulosa de um garôto paraense, que a custa de um grande caráter e fibra invulgar tornou-se um mito, e é hoje um exemplo para toda juventude brasileira” (BARRETO, 1958, p. 3). Na Figura 1, o desenhista ilustra uma reunião em um escritório entre três pessoas (ele próprio, Carlos Gracie e um espectador). A figura é antecedida pela seguinte descrição em primeira pessoa: “eu militava na imprensa carioca, quando travei conhecimento com os Gracie. A quase mística personalidade de Carlos logo me fascinou...”. Na sequência, o personagem José Geraldo dirige a palavra diretamente para o entrevistado, que responde chamando-o pelo nome e iniciando o relato da sua autobiografia: “José Geraldo, eu penso que tudo isto começou na minha infância...”.
O desenhista José Geraldo resolveu representar a si mesmo em uma reunião, que até pode ter ocorrido na realidade, para marcar sua proximidade e contato com o “mito” que o “fascinou”. Os predicados do entrevistado são destacados ao longo do texto, tais como uma família “admirada internacionalmente”, a “fibra” de Carlos e a tradição familiar de “lutadores titãs”. Apenas por essas estratégias narrativas mobilizadas no início da obra não seria exagero classificá-la no gênero de super-heróis, embora baseada em uma pessoa real.
Ivan Lima Gomes (2016, p. 49-50) destacou que até 1961 havia um movimento de diversos nomes da imprensa e dos quadrinhos (incluindo José Geraldo Barreto) que defendiam a produção nacional, rompendo com os padrões de História em Quadrinhos (HQs) importadas. Até então, vigorava uma grande influência do modelo norte-americano, que alcançara a independência editorial com a publicação, na década de 1930, das primeiras revistas exclusivas de quadrinhos (GOMES, 2021, p. 57). Essas publicações chegaram até as mãos de José Geraldo durante a sua infância e marcaram sua formação enquanto artista (GOMES, 2016, p. 51).
A verdade sobre os Gracie insere-se, portanto, dentro desse movimento de nacionalização das HQs. As estratégias mobilizadas nos desenhos de José Geraldo ajudaram a consolidar uma narrativa mitológica que foi reiterada na biografia de Carlos Gracie escrita por sua filha, Reila Gracie. De uma maneira geral, a autora reproduziu as principais passagens da HQs de José Geraldo, de maneira acrítica, o que deu ainda mais legitimidade para que essa narrativa idealizada fosse apresentada como verdade. De acordo com a autora, aquele seria “o documento mais importante contendo um registro das histórias da infância de Carlos” (GRACIE, 2008. p. 24-25). De certa forma, as escolhas do desenhista nos ajudam a identificar a tentativa de criação de um super-herói brasileiro a partir de características que se desejava reiterar socialmente: do homem branco, habilidoso e honrado.
A proposta desse artigo é explorar essa HQs de José Geraldo e confrontá-la com outras representações sobre o Jiu-Jitsu que circulavam globalmente nas primeiras décadas do século XX. Utilizaremos como fontes complementares algumas tirinhas de jornais, revistas, charges e livros de época de diversos países, tais como Brasil, Estados Unidos, México e França. Ao final do artigo será possível compreender de que forma a narrativa de José Geraldo colaborou para cristalizar uma imagem idealizada de Carlos Gracie que continua a ser reproduzida até os dias de hoje.
Carlos Gracie aprende o Jiu-Jitsu
O Japão experimentou um intenso processo de modernização e abertura para as práticas ocidentais depois da Revolução Meiji, em 1868, o que contribuiu para construção de um nacionalismo oficial e imperialista. Como o Japão não tinha consciência de uma sociedade internacional, em função do prolongado período isolacionista da Era Tokugawa, a política externa japonesa apenas enxergava a conquista ou a derrota. O que se seguiu foi uma sequência de êxitos militares sobre a China (1894-1895), a anexação de Taiwan (1895) e a vitória sobre a Rússia czarista (1904-1905). As vitórias propagandeadas pela imprensa e ensinadas nas escolas passavam a nítida impressão de que a oligarquia conservadora Meiji era uma autêntica representante da nação, e “os japoneses começavam a se imaginar membros dela” (ANDERSON, 2008, p. 144-145).
As vitórias militares despertaram um renovado interesse ocidental sobre o segredo do sucesso dos japoneses. De acordo com o periódico The Boston Daily Globe (14.08.1904, p. 44)5, a rapidez com que os exércitos se movimentavam os colocavam à frente dos pesados exércitos europeus. A disciplina, organização logística e a boa forma física dos soldados baseava-se, de acordo com o jornal, no domínio do Jiu-Jitsu, uma ciência que possibilitava a vitória pessoal sobre os inimigos mais fortes. De uma hora para outra, o “Perigo Amarelo” deixava de ser apenas relacionado à crescente imigração oriental para o ocidente, mas passava a ser, também, uma ameaça à pretensa superioridade racial (branca) ocidental (americana) e aos padrões de masculinidade e valores vitorianos da época (ROUSE, 2015, p. 450).
Foi nesse sentido que o mercado editorial encontrou um amplo segmento de vendas a partir de livros que “desvendavam” os mistérios da forma física dos japoneses e prometiam ensinar todos os segredos dessa arte marcial que fascinava o ocidente. Esse foi o caso dos livros de Harrie Irving Hancock, autor de quatro livros sobre Jiu-Jitsu, publicados em 1904, que despontaram como sucesso editorial vendidos em vários lugares do mundo: Japanese Physical Training; Jiu-jitsu combat tricks; Physical training for women by Japanese methods; Physical training for children by Japanese methods.
Esse último livro, focado no ensino do Jiu-Jitsu para crianças, era especialmente recomendado para os seus instrutores, que seriam os responsáveis pela mediação entre o conteúdo e a prática. Porém, na introdução, o próprio livro já deixava claro que o seu conteúdo era apresentado de maneira tão simples que até mesmo as próprias crianças poderiam instruir-se a si próprias (HANCOCK, 1904d, p. ix). O programa de treinos era pensado para ser adotado ao longo de um ano escolar inteiro e pedia uma dedicação de, ao menos, 20 minutos por dia, três vezes por semana, embora uma dedicação de tempo maior fosse extremamente recomendada (HANCOCK, 1904d, p. xi-xii).
Ainda em 1904 foi criada aquela que talvez tenha sido a primeira Escola de Jiu-Jitsu fundada nos Estados Unidos, The Yabe School of Jiu-Jitsu, localizada na cidade de Rochester, no Estado de Nova York. Sob a liderança de Yae Kichi Yabe, instrutor formado na prestigiosa escola Ten-Shin-Ryu, no Japão, a escola prometia revelar os segredos do Jiu-Jitsu para os norte-americanos. O anúncio publicado em jornais como o The Boston Dayly Globe (17.07.1904) e o Detroit Free Press (06.10.1904)6 prometia que até mesmo crianças de 14 anos poderiam vencer e render homens mais fortes (ROUSE, 2015, p. 461).
No entanto, como havia poucos instrutores habilitados para o ensino do Jiu-Jitsu nos Estados Unidos no início do século XX, era de se esperar que muito desse ensino voltado para crianças acontecesse de maneira autônoma, a partir do acesso aos livros e manuais que começavam a circular neste período. As consequências desse ensino sem supervisão poderiam ser desastrosas e isso não escapou ao olhar crítico da imprensa do período.
O mesmo The Boston Daily Globe (17/09/1905) externou essa preocupação a partir de um cartum publicado em uma edição dominical (Figura 2). A tirinha mostra que o Jiu-Jitsu foi a grande derrota de Willian (uma referência à derrota de Napoleão em Waterloo).
No primeiro quadro o pequeno Willian aparece dormindo com um livro aos seus pés. Em seu sonho, ele emprega técnicas de Jiu-Jitsu em um enfrentamento com um homem adulto, mais alto e mais forte. O adversário, derrotado, oferece ao bravo Willian uma vaga de trabalho milionária como capitão dos piratas. Em seguida, a realidade impõe-se quando Willian resolve provocar outro garoto maior e mais forte do que ele. O garoto acerta um soco no olho de Willian deixando-o com um grande hematoma. Ao chegar em casa a mãe percebe que o filho se meteu em uma briga e resolve puni-lo, usando um sapato para golpeá-lo nas nádegas. Na sequência, é o pai quem leva o filho para o porão da casa para, com o auxílio de um espancador, bater na criança “para o seu próprio bem”.
Um leitor contemporâneo deve experimentar uma alteridade em relação a agressão doméstica desta tirinha. Onde está o humor em relação a violência infantil? Como bem apontou Robert Darnton (1988, p. 106-107), quando não entendemos a piada é exatamente neste ponto que devemos centrar nossa atenção para compreender um sistema de significação que nos é estranho. Nesse caso, o humor está na acepção de que seria possível uma criança aprender Jiu-Jitsu através dos livros; a graça está em imaginar uma técnica que fosse capaz de sobrepujar a força bruta; o chiste está na impossibilidade de conceber que uma criança possa impor uma derrota física aos adultos.
As estratégias de deboche construída pelos norte-americanos em relação aos japoneses eram complexas e depreciativas. Além de considerá-los racial e moralmente inferiores, a própria masculinidade japonesa era questionada com representações de orientais fracos, femininos ou assexuados. Em outras vezes, eles eram apresentados como hipermasculinizados e uma ameaça às mulheres brancas norte-americanas (ROUSE, 2015, p. 456). Essa resistência cultural norte-americana, ao ver a sua predominância física, racial e técnica sendo contestadas a partir de uma arte marcial estrangeira, levava a representações que condenavam o Jiu-Jitsu como diabólico, bárbaro, enganador, incivilizado e “fake” (ROUSE, 2015, p. 463-464). Parece que essa condenação do Jiu-Jitsu também foi estendida de forma sarcástica ao ensino de crianças.
O Jiu-Jitsu para crianças também foi motivo de escárnio na França no mesmo período. Assim como nos Estados Unidos, o Jiu-Jitsu era acompanhado com grande atenção na Europa, inclusive com a publicação de manuais na Inglaterra, França e com edições rapidamente traduzidas para o espanhol e publicadas na Espanha (GARCÍA, 2007).
O desenhista francês Jules Maurice Radiguet (1866-1941) expressou com fina ironia uma charge que sintetiza essa incredulidade em relação à eficiência do Jiu-Jitsu, que tomava conta da sociedade francesa no período. Na Figura 3, o pai chama o filho para aplicar-lhe umas chicotadas. A criança reage utilizando aquilo que seria uma técnica de torção nos dedos que deixa o pai de joelhos, para o desespero da mãe que acompanha a cena ao fundo.7

No caso da revista em quadrinhos A verdade sobre os Gracie, a representação da infância de Carlos mostra uma criança extremamente agitada, intrépida e até mesmo violenta. De acordo com a narrativa construída por José Geraldo, Carlos possuía alguns “superpoderes”: um “famoso pontapé”, que certa vez teria quase matado um cachorro; uma bofetada “arrasadora”, que desmoralizava e causava medo às demais crianças da cidade. Além desses dois recursos extraordinários, o jovem também teria desenvolvido uma notável perícia em arremessar pedras e mangas podres em todos aqueles que o desafiassem, desrespeitassem ou questionassem a sua supremacia e área de influência.
Esses seriam as principais características desta criança até que ocorresse o encontro com Mitsuyo Maeda, também conhecido como Conde Koma. Sabe-se que Mitsuyo Maeda8 chegou em Belém em outubro de 1915 junto com outros companheiros japoneses. Em seguida, a trupe realizou diversas apresentações públicas em teatros da cidade, desafiando lutadores de outras artes marciais e valentões locais. Em 1916, Maeda abriu uma academia e passou a administrar aulas com o auxílio do seu pupilo mais velho, Jacyntho Ferro. Carlos Gracie passou a treinar com ambos por aproximadamente três anos (CAIRUS, 2011, p. 112-113).
A dimensão do contato entre Carlos Gracie e Mitsuyo Maeda é, no entanto, foco de grande polêmica. A narrativa tradicional estabelece uma continuidade de aprendizado que liga Maeda, Carlos e mais tarde Hélio (GRACIE, 2006, 2010). No entanto, há uma extensa bibliografia que sugere que Carlos teve contato com Maeda por períodos muito curtos em função das viagens do japonês, tendo, então, aprendido Jiu-Jitsu, principalmente, com Jacyntho Ferro. Essa mesma bibliografia tem buscado mitigar a centralidade dos Gracies no desenvolvimento do Jiu-Jitsu no Brasil (DRYSDALE, 2020; PEDREIRA, 2015; SERRANO, 2013; SILVA; CORRÊA, 2020).
De qualquer forma, a narrativa de José Geraldo faz menção àquele contato entre Carlos Gracie e Maeda, de maneira idealizada, uma vez que o menino teria assistido “maravilhado a vitória da técnica sobre a força bruta!” (Figura 4). Em seguida, teria sido um dos primeiros a se matricular na nova academia de Mitsuyo Maeda, que mais tarde viria a ser cônsul do Japão.9

O período de aprendizado de Carlos Gracie é mencionado superficialmente. Em seguida, a narrativa acelera-se até o momento em que a família Gracie retorna ao Rio de Janeiro, em 1918 (Figura 5). Diferentemente do ceticismo que envolvia o ensino do Jiu-Jitsu para crianças em outros lugares do mundo, aqui temos a representação da criança prodígio que aprende e domina todas as técnicas rapidamente.

Em um curto período de tempo o Jiu-Jitsu “não tinha mais segredos” para Carlos, que se considerava o melhor aluno do Conde Koma. O mais interessante, no entanto, é que chegando ao Rio de Janeiro ele afasta-se do Jiu-Jitsu para dedicar-se aos estudos. É aqui que a narrativa dá um enorme salto e pula para 1929, quando Carlos esbarra com um antigo amigo e ex-colega da academia de Belém, Donato Pires dos Reis, que o convida para ser seu auxiliar na instrução da polícia militar em Belo Horizonte. Ou seja, passaram-se mais de dez anos sem que Carlos, agora adulto, tivesse dado continuidade aos seus treinamentos.10 Porém, por se tratar de alguém excepcional, isso não o impede de virar instrutor e, decorridos apenas três meses, assumir o cargo permanentemente pelos próximos dois anos (BARRETO, 1958, p. 19-20). Afinal, possuir “superpoderes” é um dos elementos que identificam os super-heróis (COOGAN, 2009, p. 78).
A ascensão de Carlos Gracie
A ascensão de Carlos enquanto lutador de Jiu-Jitsu é representada em A verdade sobre os Gracie a partir de alguns desafios públicos e um enfrentamento de ordem privada (Figuras 6, 7, 8 e 9). Entre os desafios públicos destacam-se: uma disputa contra o instrutor sueco da polícia militar em São Paulo; alguns valentões que queriam “medir força” com Carlos -representados, na figura a seguir, por um italiano -; e a famosa luta contra o campeão japonês de Jiu-Jitsu, Geo Omori, que terminou empatada mesmo com o japonês de braço quebrado. O episódio privado envolve a defesa da honra feminina contra alguns assediadores, na sua maioria portugueses, que termina com a detenção de Carlos por 24 horas em uma delegacia de polícia por agressão.




O primeiro elemento que salta aos olhos é a escolha dos adversários representados por homens de diferentes nacionalidades. A intencionalidade de José Geraldo em ressaltar a supremacia do “herói” brasileiro sobre os demais nos remete ao processo de nacionalização das histórias em quadrinhos, mas também a busca por uma “brasilidade”, em uma redefinição da identidade brasileira utilizando-se dos elementos étnicos como definidores (GOMES, 2016; LESSER, 2015). O segundo elemento de destaque é que nenhuma das lutas aparece como tendo ocorrida por dinheiro, apenas pela vontade de provar a superioridade técnica de Carlos, dentro de uma lógica de defesa da honra e afirmação de um padrão de masculinidade.
A ausência de pagamento merece destaque, uma vez que, desde os séculos XVIII e XIX, era comum, na Inglaterra e mais tarde nos Estados Unidos, a existência de lutas por dinheiro em enfrentamentos públicos de boxe sem luvas. As lutas seguiam os códigos e regramentos de época que refletiam noções comportamentais de cavalheirismo de uma sociedade industrial em franca expansão, a qual hibridizava elementos recreativos com as noções modernas de esporte. Eram nesses confrontos que indivíduos de outras origens étnicas, considerados social e economicamente de um status inferior, tais como irlandeses, negros e judeus, eram arrastados para os ringues em busca de uma oportunidade de lucrar e de lutar em pé de igualdade com os ingleses (GORN, 1986, p. 19-33).
Além disso, a defesa da honra com os padrões vitorianos de cavalheirismo encontrou espaço não apenas na Europa, mas até mesmo no Japão do período Meiji. Como a sociedade japonesa estava se modernizando, o Bushido, o código de honra dos samurais, foi idealizado e transformado em um conceito moderno com ressonâncias das noções europeias de cavalheirismo, que possuíam similaridade nas tradições dos guerreiros samurais (ROUSE, 2015, p. 462).
Foi nesse contexto que o Jigoro Kano, um professor de literatura e faixa preta em Jiu-Jitsu, reagiu, em 1882, à rápida substituição das tradicionais artes marciais no Japão por exercícios militares europeus (MANDELL, 1984, p. 101). Ele operou uma importante modificação no Jiu-Jitsu retirando-lhe os aspectos mais violentos e introduzindo uma filosofia moderna que o transformou em esporte, o Judô. Jigoro Kano abriu a academia Kodokan e tornou-se o responsável pela progressiva institucionalização do Judô como um novo tipo de esporte, mais condizente com as aspirações do mundo moderno. Esse processo foi acompanhado de invenção de tradição que relacionava a cultura do corpo à identidade nacional japonesa (SHUN, 1998, p. 169).
Jigoro Kano teve muitos estudantes que se destacaram em torneios contra outras escolas de Jiu-Jitsu. Alguns assumiram cargos de instrutores na polícia, outros em universidades e também tiveram aqueles que foram enviados para América do Norte para divulgar a nova arte marcial japonesa, em um movimento de diplomacia cultural que não ficou restrito aos membros da Kodokan. Destacaram-se nesse último quesito Yoshiaki Yamashita, que chegou a ser professor do Presidente Roosevelt (SVINTH, 2003; ROUSE, 2015), e Tomita Tsunejiro, que levou consigo para os Estados Unidos Mitsuyo Maeda, que viria a ser, mais tarde, o professor de Carlos Gracie (GREEN; SVINTH, 2003; VIRGÍLIO, 2017).
Mitsuyo Maeda foi um dos principais divulgadores do Jiu-Jitsu que circulou pela América e Europa realizando inúmeras lutas por dinheiro, o que desagradava o código de conduta esperado dos representantes da Kodokan.11 O próprio evento que marcou a estreia de Maeda na cidade de Belém, em outubro de 1915, e provavelmente o evento que marcou a infância de Carlos Gracie referido na seção anterior (Figura 5), oferecia 5.000 francos para aquele que vencesse um dos japoneses que compunha a trupe (CAIRUS, 2011, p. 110). A prática de lutar por dinheiro, portanto, era conhecida e praticada por Carlos Gracie, como atesta sua biografia (GRACIE, 2008, p. 93).
No entanto, José Geraldo opta por representar um cavalheiro que não luta por dinheiro. O personagem Carlos é melhor que os adversários de outras nacionalidades (sueco, italiano e japonês) técnica e moralmente (portugueses). Essas características idealizadas pelo autor, a vitória da técnica sobre a força bruta e a defesa da honra feminina sempre estiveram como elementos-chave da propaganda do Jiu-Jitsu no ocidente. O que não impediu que essas questões fossem representadas ironicamente em tirinhas e charges desde o início do século XX.
Talvez um dos melhores exemplos do deboche que duvidava da vitória da técnica sobre a força bruta tenha sido uma representação do próprio Conde Koma, em sua passagem pela Cidade do México, em 1909. Mitsuyo Maeda desafiou diversos lutadores em exibições realizadas em teatros da capital mexicana. De acordo com o periódico mexicano publicado em inglês, The Mexican Herald12, o que determinava a vitória do japonês não era a sua técnica, mas a sua força (Figura 10). Aqui, o Conde Koma, que propagava que o Jiu-Jitsu possibilitava o fraco vencer o mais forte, é representado como um gigante “fraco” que domina e arremessa o seu adversário ao chão.

O fato de o Jiu-Jitsu ser divulgado como sendo a vitória da técnica sobre a força bruta levantava a questão da prática dessa arte marcial por mulheres. A dúvida recaía sobre a efetividade dessa arte marcial para que as próprias mulheres encontrassem meios para defender-se de agressores/assediadores. A imprensa norte-americana duvidava dessa possibilidade e considerava que o Jiu-Jitsu seria mais efetivo como método de exercício físico, enquanto o boxe e o wrestler seriam mais adequados aos homens brancos ocidentais. Essa caracterização emasculava os japoneses, efeminava o Jiu-Jitsu e criava hierarquias raciais que subestimavam as capacidades dos “pequenos corpos marrons” frente ao poderio e força dos homens brancos (ROUSE, 2015, p. 466-467).
A mesma dúvida parece estar ocorrendo no mesmo período na França, onde apareceram charges irônicas de mulheres que conseguiam subjugar os assediadores torcendo-lhes o nariz (Figura 11). E, para conceber que elas fossem capazes de imporem-se fisicamente em relação aos homens, as representações precisavam masculinizar as mulheres para afirmar “o triunfo do feminismo” (Figura 12).


A questão da defesa da honra também aparece questionada com humor em outra tirinha, intitulada “the love of Lulu and Leander” (Figura 13), publicada em mais de um periódico no mesmo dia.13 Aqui aparece o ciúme e indignação de Leander ao ver a sua noiva, Lulu, muito próxima de Charley, um outro homem que está tendo aulas de Jiu-Jitsu e que se oferece para fazer uma demonstração a Lulu. Na sequência, Leander desafia Charley a tentar aqueles movimentos consigo, separando Lulu e Charley e resguardando a sua honra masculina que estava sendo ameaçada. Ao ser derrotado pela técnica de Charley, o ciumento Leander pede para que o seu braço não seja quebrado. A donzela Lulu, impressionada com a facilidade com que o seu noivo foi derrotado, diz que gostaria de ter mais aulas com Charley para que ela mesmo pudesse usar o Jiu-Jitsu e conter os ímpetos ciumentos de Leander depois do casamento.

As vitórias de Carlos Gracie sobre diferentes adversários estrangeiros (sueco, italiano, japonês e portugueses), representadas na obra A verdade sobre os Gracie, são, portanto, idealizações de pressupostos mais antigos que já estavam associados ao Jiu-Jitsu. Carlos Gracie é construído por José Geraldo enquanto síntese da prevalência da técnica sobre a força bruta e também como um exemplo de conduta masculina, capaz de defender a honra feminina quando necessário, mesmo que tenha que responder criminalmente pelos seus atos.
A vingança de Carlos Gracie e a redenção do Jiu-Jitsu brasileiro
A história em quadrinhos A verdade sobre os Gracie termina com a representação da luta de Carlos contra o capoeirista Samuel. Porém, antes de explorar esse duelo e a consequente construção da narrativa de José Geraldo, é preciso salientar que Carlos tinha conhecimento da famosa luta ocorrida no Pavilhão Internacional Paschoal Segreto, no Rio de Janeiro, em maio de 1909 - o combate que colocou o japonês Sada Miyako e o capoeirista Francisco da Silva “Macaco Velho” Cyríaco no centro de uma disputa narrativa.
A vitória de Cyríaco foi interpretada por alguns como a vitória nacionalista da capoeira em cima do esporte importado, reabilitando a imagem da capoeira como a típica ginástica brasileira (ASSUNÇÃO, 2014, p. 5). Isso porque, com a publicação do novo Código Penal de 11 de outubro de 1890, a capoeira foi criminalizada na República. A sua prática era associada às violências do período eleitoral imperial, portanto, era malvista pelos republicanos (REIS, 1993, p. 226-227).
Além disso, havia um movimento interno nas Forças Armadas brasileiras que buscava a reestruturação das instituições por meio do estudo de modelos de organização e treinamentos físicos estrangeiros. Foi nesse contexto que o Brasil se aproximou da Alemanha, a partir dos “jovens turcos”, e da França, que chegou a enviar uma missão francesa, em 1906, para atuar em São Paulo, sob a coordenação do Coronel Paul Balagny (CANCELLA, 2014, p. 105-106).
Da mesma forma, influenciada pelos êxitos militares dos japoneses sobre os russos, a busca pela modernização levou a Marinha brasileira a olhar para o Jiu-Jitsu e cogitar empregá-lo para o treinamento físico de sua marinhagem. Em 1906, o capitão Santos Porto e o tenente Radler de Aquino traduziram para o português o livro Japanese physical training (1904a), de Harrie Irving Hancock (sob o título Jiu-Jitsu - Educação physica japoneza), mostrando que havia oficiais atentos às novidades estrangeiras (O Malho, 06.01.1906. p. 8). O Rio de Janeiro ressoava, com muita semelhança, o que acontecia no cenário internacional, associando práticas esportivas à modernidade (MELO, 2010, p. 47).
A simples possibilidade de adoção de uma luta oriental pela Marinha brasileira foi alvo de ataques irônicos pela imprensa antes mesmo da chegada do primeiro instrutor de Jiu-Jitsu ao Rio de Janeiro. Ainda em 1908, a revista O Malho14 publicou uma charge que ilustrava um capoeirista acertando uma rasteira em um lutador japonês de Jiu-Jitsu (Figura 14). Entre os espectadores estavam o personagem Zé Povo e o Almirante Alexandrino de Alencar, o Ministro da Marinha. O Ministro diz querer que seus marinheiros fossem “versados em japonezices”, pois seria o Jiu-Jitsu “smart” e “up-to-date” como um exercício de agilidade. O personagem Zé Povo replica dizendo que acima “dessas estrangeirices” estava a capoeira, pois não haveria nada que chegasse perto de uma “rasteira bem passada, mesmo sem chulipa e sardinha ou grampos no alto da synagoga? Veja como o japonez degringola e bate com o costado no tapete!”.
O estranhamento causado pela possibilidade do emprego da arte marcial japonesa pela Marinha brasileira gerou ainda uma publicação irônica da revista Fon Fon15, “noticiando” o inverso, como estratégia de demonstrar o inusitado daquela situação. A revista jocosamente dizia que marinheiros brasileiros haviam chegado ao Japão para aprender Jiu-Jitsu e que haviam empregado a capoeira nos treinamentos, derrubando e deixando os seus instrutores inconscientes. O Ministro da Marinha do Japão, ao ficar sabendo do ocorrido, teria telegrafado para o Almirante Alexandrino de Alencar solicitando a abertura de um curso de “capoeiragem” no Japão (Fon Fon. 11.04.1908, p. 10).
Na realidade, o interesse do Brasil no Japão ultrapassava a questão do emprego do Jiu-Jitsu pela Marinha. Havia uma política de Estado durante o período republicano em busca do “branqueamento” do Brasil, um país que ainda estava lidando com as consequências da escravidão prolongada. Ao mesmo tempo, o Japão tinha uma política emigratória, em função da pobreza da população rural a partir da Revolução Meiji, e também uma política de autodeclaração branca (LESSER, 2015, p. 206-208). Uma vez que os Estados Unidos praticamente proibiram a imigração japonesa em 1907, as políticas de subsídios emigratórios do Estado de São Paulo tornaram o Brasil um destino interessante (NISHIDA, 2018, p. 21).16
Portanto, enquanto os Estados Unidos olhavam internamente o crescimento da comunidade japonesa como um “perigo amarelo”, e buscavam soluções de conservação da raça branca (ROUSE, 2015, p. 452), o Brasil, ao contrário, estreitava as relações diplomáticas com o Japão fazendo associações entre os japoneses, o “branqueamento” da raça e a modernidade. Foi nesse intuito que, em junho de 1908, chegou ao porto de Santos o Kasato Maru, o primeiro navio imigratório japonês trazendo 781 pessoas (LESSER, 2015, p. 208-210).
Como parte dos esforços de aproximação entre os dois países, o Brasil enviou ao Japão o navio de guerra Benjamin Constant, que iniciara uma viagem de circum-navegação em janeiro de 1908.17 Na viagem de retorno vieram três japoneses a bordo, entre eles dois professores de Jiu-Jitsu, Sada Miyako e Ume Kakihara - Sada Miyako protagonizaria, nos meses seguintes, o famoso enfrentamento contra o capoeirista Cyríaco. As fotos publicadas na Revista Careta (RJ)18 mostram os dois professores realizando movimentos de Jiu-Jitsu a bordo do navio de guerra brasileiro Benjamin Constant (Figura 15). De acordo com Cancella, “os asiáticos aproveitaram a viagem para divulgar para tripulação brasileira a prática do Jiu-Jitsu” (CANCELLA, 2015, p. 109).

A Marinha brasileira criou uma aula do “jogo Jiu-Jitsu, sob a direção de um professor japonez” (Relatório da Marinha, de abril de 1909, p. 128). Sada Miyako passou a dar aulas para Marinha ao mesmo tempo que realizava exibições públicas em teatros do Rio de Janeiro, onde desafiava a plateia por 5 libras em ouro para quem aguentasse 3 minutos de luta contra ele (O Paiz. 18/04/1909. p. 10)19.
No início de maio aconteceu a luta entre o capoeirista Cyríaco e Sada Miyako, que acabou com a vitória do primeiro com um rabo de arraia que derrubou o japonês. A tirinha publicada na Revista O Malho (Figura 16) salienta o processo de branqueamento da capoeira (CAIRUS, 2012; REIS, 1993). Nela, é representado o "mulato" que venceu o japonês que vinha ganhando do boxe e da luta romana e vinha fazendo desafios a todos que quisessem subir ao palco. No quadro de baixo é apresentada a figura do Zé Povo, já completamente branco, utilizando a capoeira para questionar o presidente Pena que insiste na adoção do esporte japonês. Por fim, o Zé Povo perde a paciência e dá uma "quengada na synagoga" para "derrubar" o presidente.

Como foi dito anteriormente, alguns interpretaram essa vitória da capoeira como o sucesso do esporte nacional em relação ao esporte estrangeiro. No entanto, existe uma disputa de narrativa sobre o que “realmente aconteceu” no palco naquele dia. Não nos cabe a tarefa de determinar a verdade sobre a luta. Ao contrário, vamos seguir algumas impressões e comentários da época para compreender a leitura que o personagem Carlos Gracie fará a seguir.
Há uma memória vinculada aos praticantes de Jiu-Jitsu que diz que, antes da luta com Cyríaco, “Miyako estendera-lhe esportivamente a mão e, em troca, recebera um violento pontapé no rosto” (GRACIE, 2008, p. 70). Em uma variação dessa história, tem aqueles que afirmam que o chute ocorreu enquanto o japonês estava se curvando, na saudação (DOWNEY, 2002, p. 27)20. No entanto, o próprio Cyríaco afirmou, em entrevista concedida dias depois da luta, que havia saudado o adversário:
O Malho - Você ficou bonito de kimono, Ciríaco!
Ciríaco - Cheguei em frente com ele, dei as minha continença e fiz a primeira ginga, carculei a artura do negrinho, à meiada da perna, isquei com a mão prá espantá tico-tico, o camarada tremeu, eu disse: antão? como é? Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, porque eu imbolá, eu não imbolo. O japonês tremeu, risquei ele por baixo, dei o passo de limpeza gerá, o negrinho atorduou, mexeu, mas não caiu...
O Malho - Sucesso na platéia?
Ciríaco - A rapaziada ai gritaro: “Aí Ciríaco! entra com teu jogo intero!... Eu me queimei e já sabe! Tampei premero, distroci a esquerda, virei a pantana, óia o hôme levando com o “rabo de arraia” na chocolateira. Deu o ar comprimido e foi cumê poeira. Aí eu fiz o manejo de cumprimentação e convidei [p.102] o hôme pró relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por satisfeito. (O Malho (RJ) 15/05/1909. p. 20-21 - grifos nossos).
Por dois momentos, o próprio Cyríaco diz ter feito os cumprimentos de luta, mesmo com uma linguagem típica dos “cafajestes” capoeiras (DIAS, 2000, p. 100-101). Não vamos duvidar da palavra de Cyríaco. No entanto, não quer dizer que não tenha acontecido “algo a mais” naquela luta, que era um “vale-tudo” e não possuía regras ou limites de recursos, fossem quais fossem. De acordo com Inezil Penna Marinho, parece que houve a utilização de um recurso inesperado relatado no testemunho de Sinhozinho21, que assistiu a luta,
Terminada as formalidades iniciais, o juiz deu início à luta. Cyríaco avança para o meio do tablado "peneirando" e, inesperadamente, sem que ninguém pudesse prever, larga uma vastíssima cusparada no rosto do japonês, resultado de muitos minutos de insalivação, e que saiu de seus grossos lábios como se fôsse um jato. O japonês fechou os olhos por uns instante e, quando os abriu, já se encontrava esparramado violentamente no chão; levantou-se atordoado com o inesperado ataque, mas Cyríaco não esperou que êle se refizesse da surpresa: com um rabo de arraia o prostou desacordado. A luta durou menos de um minuto, mas a multidão delirava com o resultado; Cyríaco foi carregado triunfalmente e, por muitos dias, não se falou em outra coisa. (MARINHO, 1945, p. 84-85).
De um jeito ou de outro, com cumprimento ou sem cumprimento, com cuspe ou sem cuspe, a vitória de Cyríaco ultrapassou os limites do episódio e perpetuou-se no tempo, sendo rememorada em versos populares: “O meu amigo Ciríaco; Se acaso fôsse estrangeiro; Naturalmente seria; Conhecido no mundo inteiro” (REGO, 1968, p. 263). No entanto, de acordo com Reila Gracie, quando Carlos ficou sabendo dessa história teria ficado “indignado” e “furioso com o que considerou uma deslealdade” (GRACIE, 2008, p. 70).
Esse pano de fundo está presente como elemento essencial da narrativa de José Geraldo na sua representação sobre a luta entre Carlos Gracie e o capoeirista Samuel. Na história em quadrinhos (Figura 17), o personagem Carlos atribui o êxito de Cyríaco a uma “farsa”, reproduzindo a versão da ausência do cumprimento esportivo. A motivação de Carlos era, portanto, de vingar Sada Miyako dos recursos imorais adotados por Cyríaco, defendendo a honra do Jiu-Jitsu.

O personagem Carlos, como vimos, é a essência do predomínio técnico sobre a força bruta, exemplo de conduta masculina e defensor da honra. Automaticamente o capoeirista Samuel é representado como ardiloso, tal qual Cyríaco. Na caracterização do personagem, Samuel é retratado como “um crioulo fortíssimo e de uma agilidade felina. Eu exigira que ele lutasse vestido, mas logo no primeiro entrechoque sua camisa, que propositalmente era velhíssima, desfez-se em pedaços”.
José Geraldo é ainda mais explícito nas referências aos “recursos inesperados” utilizados pelo adversário em uma luta de “vale-tudo”. Dessa vez, ao invés de uma cusparada no rosto, o capoeirista Samuel aplica uma compressão nos testículos de Carlos, para que ele afrouxe um estrangulamento de “guilhotina” (Figura 18).

Ainda que sentindo muita dor, o personagem Carlos possuía uma “fibra” que o impedia de desistir da luta. Nesse momento, ele recorda-se do japonês Geo-Omori, que mesmo com braço quebrado não desistiu da luta; ele lembra ainda o episódio com Cyríaco e a “desmoralização do Jiu-Jitsu”. A resistência de Carlos é, finalmente, recompensada quando Samuel alivia a pressão e Carlos aplica-lhe uma chave de braço, quebrando-lhe o membro. A luta continua e o personagem Carlos monta no seu adversário aplicando-lhe repetidos golpes do rosto. Perplexos com tanta violência, alguns tentam ligar para polícia, mas são impedidos. O público, então, interrompe a luta, com receio de que Carlos fosse matar o capoeirista, e carrega o vitorioso nos braços. No final, Carlos ainda demonstra esportividade ao cumprimentar o capoeirista Samuel no vestiário depois da luta.
Conclusão
A HQs A verdade sobre os Gracie nos oferece um interessante meio para discutir a idealização de Carlos enquanto o “criador de uma dinastia de campeões” (BARRETO, 1958, p. 32). Jose Geraldo ressalta que o herói terminou a carreira invicto e anuncia a publicação dos próximos números centrados em Hélio e Carlson Gracie, irmão e primogênito de Carlos, respectivamente. No entanto, esses números nunca foram publicados - não sabemos a razão.
A narrativa construída por José Geraldo ajuda a consolidar uma determinada versão sobre a introdução do Jiu-Jitsu no Brasil com o protagonismo dos Gracie nesse processo. Para isso, o desenhista mobilizou uma série de concepções idealizadas sobre o Jiu-Jitsu que circulavam globalmente desde o início do século XX, como visto nas publicações que circularam no Brasil, Estados Unidos, México e França. A caracterização do personagem Carlos é de uma criança talentosa possuidora de “superpoderes”, que supera o seu mestre e transforma-se em um adulto corajoso, defensor da honra e principal responsável pela divulgação do Jiu-Jitsu no país, enfim, um verdadeiro “super-herói”. Nesse processo, ele derrota lutadores de outras nacionalidades e de diferentes artes marciais mostrando, assim, a superioridade técnica que desenvolvera. O ciclo completa-se quando ele vinga o Jiu-Jitsu, derrota a capoeira e consolida o Jiu-Jitsu como esporte nacional, criando aquilo que hoje é conhecido como Jiu-Jitsu “Brasileiro”, na sigla em inglês BJJ (Brazilian Jiu-Jitsu).
Referências
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Notes
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