Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
A “noite africana” chegou ao “país das palmeiras”: representações do africano escravizado no poema Martim Cererê
George Leonardo Seabra Coelho
George Leonardo Seabra Coelho
A “noite africana” chegou ao “país das palmeiras”: representações do africano escravizado no poema Martim Cererê
The “african night” arrived in the “país das palmeiras”: representations of the enslaved african in the poem Martim Cererê
Anos 90, vol. 28, e2021201, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

RESUMO: Nesse artigo, discutiremos como Cassiano Ricardo apropriou-se do passado histórico escravocrata brasileiro para compor seu poema Martim Cererê (1927). Para entendermos essa apropriação, realizaremos uma análise comparativa entre as versões desse poema a partir de um problema: o entendimento do papel do negro na formação da identidade nacional e na sociedade. Ao traçar esse caminho, defenderemos a necessidade de dar atenção à relação entre o autor e sua obra levando em conta as concepções de Roger Chartier (2002), assim como pensando o campo literário a partir das posições de Pierre Bourdieu (2012). Veremos que as diferentes representações do negro neste poema foram marcadas pela negatividade e pela distorção de suas características físicas e espirituais. Nesse sentido, este trabalho foi pautado pela perspectiva histórica do texto e na complexidade da obra, o que nos permite compreender as formas negativas de como o africano escravizado foi apropriado nesta obra literária.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, História, Representação.

ABSTRACT: In this article, we will discuss how Cassiano Ricardo appropriated the Brazilian slave historical past to compose his poem Martim Cererê (1927). In order to understand this appropriation, we will conduct a comparative analysis between the versions of this poem based on a question: the understanding of the role of the black in the formation of national identity and society. In tracing this path, we will defend the need to pay attention to the relationship between the author and his work taking into account the conceptions of Roger Chartier (2002), as well as to think about the literary field from the positions of Pierre Bourdieu (2012). We will see that the different representations of black people in this poem were marked by negativity and the distortion of their physical and spiritual characteristics. In this sense, this work was guided by the historical perspective of the text and the complexity of the work and thus we will understand the negative ways in which the enslaved African was appropriated in this literary work.

KEYWORDS: Literature, History, Representation.

Carátula del artículo

RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE

A “noite africana” chegou ao “país das palmeiras”: representações do africano escravizado no poema Martim Cererê

The “african night” arrived in the “país das palmeiras”: representations of the enslaved african in the poem Martim Cererê

George Leonardo Seabra Coelho
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Anos 90, vol. 28, e2021201, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

Received: 28 February 2021

Accepted: 30 July 2021

Introdução

Ao analisar alguns estudos que abordam as relações entre a literatura e a política nas décadas de 1920 e 1930, nos deparamos com a recorrente aproximação entre a literatura verde-amarela e o projeto doutrinário do Estado Novo (VELHO, 1979; LENHARO, 1981; VELLOSO, 1983; ABUD, 1985; CHAUÍ, 2000; MOREIRA, 2001; OLIVEIRA, 2002). Nesses estudos, o pensamento de Cassiano Ricardo representou um dos caminhos possíveis para entender o arcabouço simbólico e ideológico estado-novista. Tal construção simbólica e ideológica teria início com o poema Martim Cererê1 (1927), sendo o ensaio Marcha para Oeste (1940) o resultado político dos enunciados literários. Seguindo essa vertente, as obras poéticas e ensaísticas do autor representaram uma continuidade discursiva que desembocou no Estado Novo.

Não negamos que Cassiano Ricardo atuou na estrutura doutrinária do regime estado-novista, mas partimos do pressuposto de que essas conclusões lineares encobriram o processo de reescrita do M.C. Ressaltamos que o projeto literário do poema representou as disputas internas do campo literário a que o autor pertencia, assim como as disputas simbólicas referentes à identidade racial do brasileiro nas décadas de 1920 e 1930.

Para demonstrar como o poema M.C. pode ser estudado fora da continuidade entre a atuação intelectual do autor e o projeto autoritário do Estado Novo, torna-se necessário propor outra problemática: a elaboração de um conjunto discursivo que se colocava contrário ao racismo eugenista europeu e, ao mesmo tempo, inseriu o africano escravizado na literatura modernista. Esse foi nosso objetivo nesse estudo, isto é, delinear como o discurso racial emergiu no poema M.C. Para analisar historicamente tal projeto discursivo, nos deteremos apenas na apropriação do africano escravizado e na forma como o intelectual destacou o papel do negro na constituição do tipo racial do brasileiro.

Para desenvolver nossa proposta, os conceitos de representação e apropriação desenvolvidos por Roger Chartier (1990) serão fundamentais. Outro conjunto conceitual que subsidiou nosso estudo foi a concepção de campo de Pierre Bourdieu (2008). Para o autor, a construção do significado do discurso deve ser compreendida pela forma como a comunidade literária confere sentido e valor simbólico às produções culturais. Por essa razão, Bourdieu (2012) alerta que o investigador deve estar atento à estrutura do espaço social no qual esses discursos são produzidos e à estrutura da constituição do campo. A partir desses dois autores, apresentaremos algumas possibilidades para percorrer o caminho literário que levou à incorporação do africano escravizado no poema de Cassiano Ricardo. Acreditamos ser possível demonstrar que este intelectual não foi um ideólogo propriamente dito do Estado Novo, mas um escritor defensor de um projeto de identidade nacional que já vinha se desenhando desde a década de 1920, quando a valorização da miscigenação racial era o principal fundamento. No entanto, veremos que esta suposta valorização e a definição do papel do africano escravizado na formação racial do brasileiro foi negativa, pois essa interpretação foi carregada pelo viés de inferiorização do negro.

Para que possamos desenvolver nossa proposta, dividimos este estudo em duas partes. Na primeira seção, intitulada O poema Martim Cererê como fonte histórica: a história particular do texto, faremos uma breve exposição sobre a ressonância dos debates eugênicos no Brasil, o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) na formulação da identidade racial do brasileiro e como essas concepções foram trabalhadas no Modernismo. Nesse tópico, também, apresentaremos as principais características do poema M.C. Essa proposta é de suma importância para entendermos com quais campos o poema interagiu, assim como para o leitor compreender a complexidade de trabalhar com essa obra poética. Na segunda seção, intitulada A “noite africana” chega ao “país das palmeiras”: a incorporação do negro no drama ricardiano, veremos como o autor poetizou a chegada do africano, o fim do Quilombo de Palmares, a morte de Zambi2, o trabalho escravo, a abolição e a situação do negro após a escravidão. Esses pontos serão trabalhados através de uma análise comparativa entre as seis primeiras edições do poema. Esse exercício foi fundamental para demonstrarmos como o poeta reescreveu seu poema e, ao mesmo tempo, reformulou sua visão sobre a participação do negro na formação histórica do brasileiro.

Para que seja possível traçar esse caminho, trataremos das modificações empreendidas por Cassiano Ricardo no poema M.C., no qual se verificou a inclusão e exclusão de enunciados que ressaltam a participação do africano. É importante deixar claro que a abordagem da formação racial do povo brasileiro não foi uma inovação do poeta, pois o debate em torno da formação étnica já estava presente desde a Geração de 1870. Ao apreciar a escrita particular do poema M.C., trabalhamos com a hipótese de que, acima de seu valor para a história da literatura brasileira ou para o estudo da obra em si, este poema enseja ao historiador o status de um importante registro sobre a apropriação das diferentes leituras sobre a formação da nacionalidade brasileira, entre elas, a do processo histórico da escravidão em uma obra de ficção.

O poema Martim Cererê como fonte histórica: a história particular do texto

A segunda metade do século XIX foi marcada pela consolidação dos debates eugenistas no continente europeu. Olhando a partir de uma perspectiva mais ampla, o pensamento eugênico elaborado no velho continente anunciava a existência de raças “superiores” (puras) que deveriam triunfar e raças “inferiores” (mestiças) que deveriam ser dominadas. Essas questões também tiveram repercussão entre intelectuais latino-americanos, que, na maioria dos casos, produziram interpretações eugênicas bastante heterodoxas.

De acordo com Lilia M. Schwarcz (1993), as teorias raciais europeias receberam uma entusiasmada acolhida no Brasil, mas essa receptividade não significou que tenham permanecido tais quais eram discutidas no continente europeu. A autora acentua que nessa negociação, os intelectuais brasileiros atualizaram o que combinava e descartaram “o que de certa forma era problemático para a construção de um argumento racial” coerentes com a sociedade brasileira (SCHWARCZ, 1993, p. 19). Para a autora, essas ideias - em especial a teoria do branqueamento - foram produzidas em diferentes estabelecimentos de ensino e pesquisa, incluindo: Museus Etnográficos Brasileiros, Institutos Históricos e Geográficos, Faculdades de Direito e Faculdades de Medicina. A autora destaca que as diversas teorias advindas desses centros de ensino e pesquisa produziram uma interpretação social sobre a raça, a qual foi útil aos interesses dos grupos que se apropriavam delas. Com base nessas considerações iniciais, nosso intuito é apresentar o campo literário modernista brasileiro como outro espaço de “consumo cultural” das teorias raciais. Para compreender a inserção de Cassiano Ricardo no debate literário modernista paulista é importante lembrar que ele estava residindo desde 1919 em Vacaria, no Rio Grande do Sul. Somente em 1923, o poeta retorna a São Paulo e ingressa na redação do jornal Correio Paulistano, onde conheceu e construiu amizade com Plínio Salgado e Menotti del Picchia, outros dois modernistas ligados à vertente verde-amarela. Apesar de ter iniciado sua carreira literária em 1915, com o livro parnasiano Dentro da noite, somente após 1923 dá os primeiros passos para a revisão em seu comportamento literário. Amilton M. Monteiro (2003) avalia que com a direção da revista Novíssima, entre 1923 e 1927, Cassiano Ricardo aproximou-se das tendências artísticas derivadas da Semana de 22. O ano de 1925 foi considerado como sua estreia modernista com a publicação do livro de poemas Borrões de verde e amarelo. Após publicar Vamos caçar papagaios no ano seguinte, o poeta publicou o M.C. em 1927, considerado por seus críticos como sua obra-prima modernista, a qual estava ligada à vertente verde-amarela.

Estudos dedicados à literatura brasileira do primeiro quartel do século XX concebem que, após as atitudes demolidoras propostas pela Semana de 1922, surgiram produções literárias mais sedimentadas. Nesses anos, vieram a público três obras fundamentais da literatura modernista:

M.C. (1927), de Cassiano Ricardo; Macunaíma (1928), de Mário de Andrade; e Cobra Norato (1931), de Raul Bopp. Para lançarmos mão do poema M.C. como fonte para o estudo histórico, deparamo-nos com três peculiaridades.

Uma primeira singularidade está no fato de ter sido publicada - nove anos após seu lançamento − a sua sexta edição, fato raro no mercado literário, especialmente em se tratando de um poema. Como contraponto deste “sucesso” editorial, somente em 1937 as segundas edições de Macunaíma e Cobra Norato seriam publicadas. Outra faceta do poema M.C. está no fato de o poeta ter feito, a cada edição, alterações profundas em seu texto. Sobre as constantes alterações empreendidas pelo autor, as obras de Jerusa Ferreira (1970), Deila C. Peres (1987) e George L. S. Coelho (2015) são fundamentais para entender as intervenções do poeta. Os autores entendem que, do poema inicial, se chegou a outro texto. Para os autores, isso foi resultado do labor incessante do poeta incapaz de se separar de seu texto, o qual foi se sedimentando ao longo de um caminho que abrange experiências modernistas da década de 1920 até as experiências das vanguardas concretistas dos anos de 1960.

Segundo Coelho (2015), a contínua mutação não pode ser entendida como simples oportunismo do poeta, mas antes deve ser entendida como autonomia artística do autor que procurou adaptar seu poema às mudanças sociais que seu olhar “artístico” percebeu. Uma terceira característica desta obra está no fato de que ele não ser um livro de poemas, e sim um poema único formado por materiais díspares, que pretendeu abranger o país inteiro por meio da narrativa mítica da origem da Nação, onde encontramos a mescla de narrativas indígenas e fatos da historiografia oficial brasileira (MARTINS, 1973; MOREIRA, 2001; VELLOSO, 2010). Cientes destas três peculiaridades, analisaremos, nesse estudo, apenas as seis primeiras edições do poema (1927, 1928, 1929, 1932, 1934 e 1936).

O poema M.C. foi dividido em seis partes. Na primeira seção, encontramos a descrição da terra em eterna desordem, da natureza e dos indígenas. Na segunda parte, o branco foi inserido na narrativa. Essa inserção pretendeu deixar claro que o Brasil necessitava do colonizador para se civilizar. Assim como consagrou poemas sobre o indígena e o branco, Cassiano Ricardo também se dedicou à “terceira raça”, isto é, o negro. Após o encontro harmônico da tríade racial formadora do brasileiro, na quarta seção surgiram os bandeirantes que conquistaram o território. Para resolver o problema da mestiçagem na formação racial do brasileiro, o poeta inseriu o imigrante europeu na quinta parte, o qual foi apresentado como uma quarta raça. Além de narrar a origem étnica, os bandeirantes e o avanço da lavoura sobre o interior, a última parte foi dedicada ao espaço urbano moderno. Com esse desfecho, o poeta estabeleceu os laços entre o passado e o presente.

Para idealizar a composição racial brasileira, Cassiano Ricardo inseriu o indígena, o branco e o negro como as primeiras raças que deram origem à nacionalidade. Segundo Marly Silva da Motta (1992), o Centenário da Independência foi um marco no processo de constituição da identidade racial da Nação, tanto por demarcar os traços de semelhança, quanto por demarcar as diferenças com o europeu. A autora concebe que nas comemorações, a questão racial emergiu como um tema caro para a construção de uma sociedade moderna.

Com o intuito de tentar resolver estes dilemas, o IHGB também cumpriu um importante papel. No que se refere a esse debate no Instituto, Noé F. Sandes (2011) considera que o IHGB buscou organizar e dar sentido à marcha dos acontecimentos históricos com base no estudo das três raças. De acordo com o autor, o IHGB aprofundou o estudo da atuação dos portugueses no período colonial, principalmente a dos administradores e no período da emancipação. Em relação aos indígenas, abriu-se uma polêmica com os indigenistas do século XIX acerca da sua identificação como portadores da identidade nacional. Desta forma, o Instituto defendia a ideia de que “o indígena deveria ser tomado como objeto de pesquisa histórica e etnográfica”, mas, mesmo assim, “atestando a superioridade da raça branca” (SANDES, 2011, p. 96). Quanto aos negros, apenas lamentavam-se “os males oriundos da escravidão, delineando, sob o signo da ausência, a participação do negro em nossa história” (SANDES, 2011, p. 96).

A partir da atuação do IHGB nos debates da formação racial do brasileiro durante esses anos, vemos que prevaleceu a reflexão sobre o papel da miscigenação derivada da imigração europeia e as teses do branqueamento. Apesar dessa visão oficial, era comum surgirem em contos, poesias e danças, certa identificação do brasileiro com a figura do africano e com a positividade da miscigenação racial.

Apesar dessas identificações, El-Dine (2010) considera que foi somente com a publicação de Casa Grande & Senzala (1933) que ocorreu a virada interpretativa sobre a mestiçagem. Não desconsiderando a importância dessa obra, lembremos que antes do célebre livro de Gilberto Freire, a valorização da miscigenação já havia sido abordada pelos reformistas literários da década de 1920. Como afirma Mario Brito (1971), Picchia em artigos publicados no Correio Paulistano em meados da década de 1920 já apontava para a defesa da positividade da pluralidade racial. O autor de Juca Mulato (1917) incorporou todos os povos, proclamando que o novo tipo de homem era resultado da mistura dos sangues, pois acreditava que a raça brasileira não estava plenamente formada.

Mesmo com a pretensão de inserir todos os grupos raciais na formação do tipo brasileiro, Helaine N. Queiroz (2010) defende que a inserção das contribuições dos africanos sofreu o estigma de três séculos de escravidão. Ao contrário do indígena, a escravidão do africano foi legitimada pela Coroa portuguesa e pelo Império luso-brasileiro, por isso não havia motivo para questioná-la. Paralelamente a isso, a escravidão havia acabado apenas há meio século e a população negra se encontrava mais presente na sociedade que os indígenas, condição que deveria demandar uma interpretação mais profunda. Contudo, tal questionamento não ocorreu de forma intensa, especialmente no verde-amarelismo, cuja condição conservadora acabou mascarando o estado de segregação do negro. A condição de escravo e sua submissão não foram questionadas e, sim, tratadas como colaboração, não levando a uma interpretação mais sistematizada.

Mesma opinião é a de Mônica P. Velloso (2010). Segundo essa autora, a questão do reconhecimento da vertente africana no Modernismo não foi posta como meta, visto que a ênfase ao papel exercido pelo africano na formação cultural brasileira foi menor em relação ao indígena e ao branco. De acordo com a autora, no Modernismo a ideia da assimilação do africano foi ambígua, não se tratava de combater o negro como nos Estados Unidos, mas alguns traços específicos de sua cultura. Por essa razão, a questão do reconhecimento da vertente africana na cultura brasileira não foi apresentada como uma das metas fundamentais do movimento. Quando lemos o Manifesto Nhengaçu, os africanos são citados apenas quando se listavam os fatores ou agentes históricos que agiram na formação da nacionalidade.

Imbuído por esses debates, Cassiano Ricardo se apropriou das representações do africano escravizado em seu poema M.C. Veremos, no próximo tópico, como o autor poetizou a chegada do africano escravizado, o fim do Quilombo de Palmares, a morte de Zambi, o trabalho escravo, a abolição e a situação do negro após a escravidão.

A “noite africana” chega ao “país das palmeiras”: a incorporação do negro no drama ricardiano

Apesar da narrativa poética da chegada do africano escravizado estar presente na narrativa em todas as edições do M.C., o autor não dedicou um capítulo para esse acontecimento na versão de 1927. Nas edições de 1928 e 1929, a inserção dessa personagem foi encontrada em dois capítulos: A Uiara lhe disse: vai buscar a Noite... e A Noite veio... então nasceram os gigantes, heróis das três cores. Da edição de 1932 em diante, o poeta renomeou as duas partes com os seguintes títulos: A Uiara lhe disse: vá buscar a Noite; só casarei com aquele que primeiro me trouxer a Noite... e E como o marinheiro lhe houvesse trazido a Noite, a Uiara casou com ele; então... nasceram os gigantes de botas. Vermelhos, pretos e brancos. Que sururucam no mato.... Olhando à primeira vista, essas alterações aparentam questões estéticas, mas o historiador deve ficar atento a uma questão específica; a cautelosa e lenta inserção do africano escravizado no M.C. Na versão de 1927, essa personagem não surge nos títulos dos capítulos. O poeta passou a fazer referência ao africano escravizado a partir das edições de 1928 e 1929, mas utilizando a metáfora da chegada da Noite. Essa personagem foi representada como prenda ou dote ofertado pelo marinheiro para se casar com a Uiara. A referência direta à personagem somente surgiu a partir da edição de 1932, no entanto, o africano escravizado não foi referido como indivíduo - Uiara ou marinheiro -, mas como pretos. O que isso quer dizer? Consideramos que incorporar o africano em pé de igualdade aos outros grupos - brancos e indígenas - era bastante problemático para o poeta, pois a inserção do negro nos debates sobre a formação racial do brasileiro estava carregada pelo silenciamento. Veremos, mais a frente, que essa questão não ficou restrita apenas aos títulos dos capítulos do poema, mas foi um processo contínuo ao longo das edições da obra.

Ao iniciar sua lírica, Cassiano Ricardo recriou o Brasil como “uma terra encantada” chamada “País das Palmeiras” (RICARDO, 1927b, p. 21). Nesta “terra encantada”, vivia a Uiara. Concomitantemente à descrição da terra, um “índio amoroso foi buscar a noite” para se casar com Uiara (RICARDO, 1927b, p. 33). Após longa caminhada, o “jovem guerreiro” recebeu o fruto que continha a noite e, com ele, o conselho de não o abrir. Apesar dos conselhos, o jovem bugre não “resistiu à tentação” e “abriu o fruto” (RICARDO, 1927b, p. 37). Como a noite se perdeu graças à desobediência do “jovem guerreiro”, o “eterno dia” permanecia no “País das Palmeiras” (RICARDO, 1927b, p. 40). Após a falha do bugre, o poeta incorporou o branco no enredo. Ao chegar ao “País das Palmeiras”, o “mareante branco” pretendeu se “casar com a indígena formosa”, então, ela pediu: “vai buscar a noite”. Após o pedido da Uiara, o “marujo partiu [...] e foi buscar a noite” (RICARDO, 1927b, p. 68).

A Imagem 1, que ilustra3 a chegada da “terceira raça”, indica a visão ricardiana sobre a chegada do africano escravizado. Vejamos:


Imagem 1
A noite africana chega ao País das Palmeiras
Fonte: RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Editora Novíssima, 1934. p. 35.

Nessa ilustração, vemos os africanos - um homem e uma mulher - representados como cativos, ambos estão com as mãos atadas, o que os coloca como submissos. A disposição de seus corpos - as pernas exageradamente curtas, com tronco e braços longos - assemelha os africanos escravizados aos primatas, isto é, como seres inferiores ao branco. Podemos considerar que, da mesma forma que o branco ao chegar ao “país das palmeiras” civilizou o indígena, o africano se civilizaria, ou melhor, se humanizaria a partir da escravidão imposta pelo branco.

Apesar da chegada do africano escravizado estar presente desde as versões vintistas (1927, 1928 e 1929), Cassiano Ricardo não poetizou os detalhes de sua chegada. Esses detalhes somente são encontrados nas versões trintistas (1932, 1934 e 1936). Nestas edições, o poeta narra a chegada desses homens, “de dois em dois”, todos “sujos de carvão” (RICARDO, 1936, p. 61). Essa chegada foi narrada no poema “O Navio negreiro”. Neste texto, inserido na versão de 1932, o eu poético canta o desembarque dos

homens cor de graúna que trazia a Noite a bordo do navio negreiro. Chegaram aos bandos. (RICARDO, 1932, p. 45).

Na edição de 1934, esse mesmo texto foi reproduzido com alguns acréscimos. Nessa nova versão, o poeta diz:

Como se cada figura [...] fosse um fetiche Que a treva pintou de piche Marcando-lhe a pele escura A golpes horríveis de açoite. (RICARDO, 1934, p, 46-50).

Na versão de 1936, o poeta novamente incorpora outros versos. Nessa edição, os africanos escravizados desceram “cada qual mais resmungão [...] Uns se rindo, outros chorando” (RICARDO, 1936, p. 61). O poeta retoma a narrativa da chegada do africano escravizado no poema intitulado “História pra criança”, onde o eu poético relembra que a “noite africana [...] chegou amarrada/ no porão do navio/com os seus Orixás” (RICARDO, 1936, p. 69). Ainda nesta versão, o poeta aprofunda a descrição ficcional da chegada. Para o poeta,

Oxalá já chegou pra dançar na macumba; que veio Xangô! que a sua mucama cabinda ou macúa chegô. Chegou amarrada, tremendo de frio. (RICARDO, 1936, p. 66-67).

A descrição estética e cultural do africano escravizado também pode ser lida no poema Noite na terra inserido nesta versão. No texto, vemos descer homens de:

Cabelo pixaim. Falando em mandiga e candonga. [...] pois cada preto era mais preto que a pituna, asa de corvo ou de graúna [...] E trouxe o jongo soturno como um grito noturno... E Exu pra dançar na festança da sua chegança. E bugigangas e calungas [...] E uma porção de assombração no coração. [...] e o coisa ruim. (RICARDO, 1936, p. 63-64).

Após a leitura desses excertos, vemos como o poeta constrói determinadas representações sobre a chegada do africano escravizado, as quais são elaboradas ao longo das versões do M.C. Uma primeira representação que chama nossa atenção foi a associação dos africanos aos animais ou elementos naturais, seja na forma como descem dos navios negreiros - aos “bandos” ou ilustrados como primatas - seja na forma de descrever a cor da pele - como “graúna”, “corvo” ou “pituna”. Consideramos que essa estratégia de poetizar a chegada do africano ao “País das palmeiras” através dessas metáforas teve um efeito negativo, pois retirou as caraterísticas humanas dos africanos e os aproximou aos elementos da natureza.

Outra forma de descrever a chegada do africano escravizado foi através do detalhamento de suas características físicas: “cabelo pixaim”, “mais preto que pituna” ou “graúna” e “venta larga e pé chato” (RICARDO, 1927b, p. 103). Consideramos que estas formas de representar o africano foram apropriações dos debates eugenistas do período. Essas estratégias foram utilizadas como recursos de diferenciação entre a aparência física do africano, do mareante branco e do indígena vermelho. Além de caracterizar o africano como um ser mais próximo da natureza, o poeta também utiliza versos que inferiorizam a cor da pele, pois os africanos “pareciam estar sujos” (RICARDO, 1932, p. 45). O poeta também representa o africano escravizado como preguiçoso, uma vez que desciam “cada qual mais resmungão” (RICARDO, 1936, p. 61).

Juntamente ao tom jocoso, o autor nos traz outra forma de representar a chegada do africano escravizado. No M.C., o africano foi posto como “fetiche” ou “ouro preto” (RICARDO, 1936, p. 70). Nessa obra, encontramos a associação do africano escravizado como presente ou dote para se casar com Uiara, isto é, uma mercadoria dada pelo branco para conseguir o que pretende: primeiro se casar com a Uiara, para, depois, adquirir riqueza nas lavouras ou nas minas de ouro. Novamente o africano perdeu a condição humana e foi representado como objeto, animal, natureza ou mercadoria.

Cassiano Ricardo também se apropriou de elementos da cultura africana para construir sua versão poética do fato histórico. O eu poético descreve a chegada dos africanos com seus elementos religiosos, entre eles “Orixás”, “calungas”, “Exum” e “Xangô”. Apesar de reconhecer as matrizes religiosas africanas, o poeta associa essas divindades e entidades espirituais com “o coisa ruim”, ou seja, uma forma de o cristianismo popular se referir ao demônio e, concomitantemente, ao inferno. Mesmo que pretendesse ressaltar os elementos da religiosidade africana, o poeta não se afastou de sua visão racista e preconceituosa. Esse ponto de vista também pode ser percebido com outras referências, entre elas, o fato de os africanos descerem com seus “amuletos” e “manipansos” (RICARDO, 1934, p. 46-50), assim como com a “mandiga”, a “candonga”, a “assombração”, o “soturno” e o “feitiço”, todos eles relacionados com a tristeza do coração. Todo esse vocabulário foi associado à tristeza do africano, a qual somente acaba quando ele se torna cristão.

Juntamente às formas de representação destacadas anteriormente, o poeta também buscou chamar a atenção para o sofrimento do africano desembarcando dos navios negreiros. Os africanos chegaram “chorando”, marcados com “golpes [...] de açoite”, amarrados “no porão do navio” e “tremendo de frio” (RICARDO, 1936, p. 70). De qualquer modo, apesar de demarcar o sofrimento, foi notório que o poeta pretendeu relativizar essa dor em benefício da suposta fusão racial, pois o africano veio como “carvão para a oficina das raças” (RICARDO, 1934, p. 48). Mesmo levando em conta o viés preconceituoso e de minimização do sofrimento, uma questão merece destaque: Cassiano Ricardo ampliou a poetização da chegada do africano escravizado ao longo das reedições do poema M.C.

Ao longo do poema, encontramos outras formas de inserir o africano escravizado na formação do brasileiro. Com o intuito de realçar essa contribuição, o poeta apropriou-se da figura do Zambi. No poema “A morte de Zambi”, texto presente desde a primeira edição, o eu poético narra as ações do “chefe dos negros”, que na “verde moldura do mato/riscou-se a carvão a República/ negra” (RICARDO, 1927b, p. 104). Nesse texto, o autor poetizou o fim trágico do Quilombo de Palmares sob a perspectiva de Zambi. Vejamos:

E o chefe dos negros falou; lutamos há quase cem anos. Chegou o momento do grande castigo! E eu prefiro morrer [...] Apaguem aquelas cinco gotas de luz que devem ser cinco bátegas do suor que vertemos nos canaviais nos cafezais; que devem ser cinco lágrimas de tantas lágrimas que choramos sob o látego infame dos capitães do mato; [...] Oh crucificador da minha raça. Cruz de estrelas que o branco me plantou na encruzilhada do destino foi quando Zambi se arrojou pela escarpa, sangrando. (RICARDO, 1927b, p. 104-106).

Na versão de 1928, Cassiano Ricardo inseriu um trecho que merece ser destacado. Nesses novos versos, o poeta conta que Zambi “na sua renúncia de bárbaro/o herói negro atirou-se de cima do morro” (RICARDO, 1928, p. 27). Na versão de 1934, Cassiano Ricardo insere novos versos que, também, merecem ser transcritos aqui.

Apaguem aquelas cinco chagas de luz que devem ser cinco gotas do suor de agonia que os negros pingaram pra amassar terra dura no cabo da enxada, de noite e de dia; pra regar canaviais pra dar tudo o que o branco queria... que devem ser cinco lágrimas inda trêmulas, brancas, do pranto sem fim que choramos com perdão pra são-cristo enrolados de dor no chicote que estralava nas mãos do feitor (RICARDO, 1934, p. 133-134).

Ao poetizar a morte de Zambi e colocar o branco como o “crucificador” dos africanos, o poeta rememora o sofrimento dos escravizados. Para tanto, o eu poético ressaltou as “tantas lágrimas que choramos/sob o látego infame/ dos capitães do mato”, a dor do “chicote que estralava nas mãos do feitor” e o “suor e agonia” no trabalho de “noite e de dia” para “dar tudo o que o branco/queria”. Ao narrar de forma poética e ficcional o fim do Quilombo dos Palmares, o poeta considerou este fato como um “grande castigo” que os negros “souberam sentir”. Neste poema, Zambi foi posto como o chefe dos negros que preferiu morrer a ser novamente escravizado. Ao poetizar sua morte, o autor construiu uma cena, onde o líder dos escravizados, “se arrojou pela escarpa, sangrando” e, na sua “renúncia de bárbaro [...] atirou-se de cima do morro”. Após a reencenação deste fato, Cassiano Ricardo introduziu um “negro quimbundo” que conta “às crianças/que não houve tragédia mais triste no mundo!” (RICARDO, 1927b, p. 106).

Além da poetização do fim do Quilombo de Palmares, o poeta nos trouxe o drama da escravidão no poema “Mãe-preta”, onde foi cantada a situação de exploração e castigos físicos pelas quais os africanos passavam. O eu poético lamenta que parou “o bate-pé dos pretos no terreiro”, pois “havia uma voz de choro/dentro da noite brasileira” (RICARDO, 1927b, p.71-72). O poeta pergunta; “Quem é que está gritando por socorro?” (RICARDO, 1927b, p. 72). Esse sofrimento poetizado foi fruto das “folhas do canavial” que “cortam como navalhas;/por isso ao passar por elas/o vento grita de dor...” (RICARDO, 1927b, p. 72).

Além dessa insinuação, o poeta apresentou outro tipo de exploração da mulher negra escravizada. No poema “Mãe-preta”, o autor inseriu a africana escravizada colocando o “ioiozinho” para dormir (RICARDO, 1927b, p. 71). Alguns trechos do poema “A morte de Zambi” também fizeram referências a essa situação, pois, ao fugirem, as africanas escravizadas deixaram para trás os “cinco pingos de leite/que as nossas mães pretas verteram/amamentando as primeiras crianças/ por amor do Senhor” (RICARDO, 1927b, p. 106). Em outros versos, a questão da exploração da mulher africana foi mais explícita. Neles, o autor deixou indícios de que o filho do senhor teria o início da vida sexual com ama-de-leite escrava, vejamos:

Cada criança ainda em botão Chupava ao peito de carvão de uma ama escrava a alva espuma de um luar gostoso tão gostoso que o pequerrucho resmungava pisca-piscando os dois olhinhos de topázio cheios de gozo. (RICARDO, 1927b, p. 71).

Além de inserir os escravizados no trabalho nas lavouras e as escravas como amas-de-leite, o poeta narrou a participação dos africanos escravizados nas Bandeiras Paulistas. No poema Negro, bom trombeteiro, inserido a partir da versão de 1934, Cassiano Ricardo narrou a história do “negro trombeteiro” que chegou num navio “carreando negros da Angola” (RICARDO, 1934, p. 99). Esse trombeteiro “entrou no mato [...] pra amansar o coração do sertão”, e

Quando branco gosta de índia preto bom faz feitiço e arranja isso; quando corisca negro bom faz benzedura negro cristão reza um são cristo; quando a onça preta da noite desce negro bom toca trombeta pra espantar o seu agouro... pro sertão adormecer... e pra branco achar ouro. [...] quando ouve a sua trombeta o sertão fica manso... [...] Negro bom toca trombeta pra afugentar o pirata! pra espantar o ladrão de ouro! pra amansar pesadelo! [...] O sertão ficava quieto... Havia qualquer coisa de inenarravelmente humano no grito do africano. (RICARDO, 1934, p. 99-103).

Ao compor a narrativa ficcional do fim do Quilombo dos Palmares, das práticas laborais nas fazendas, da atividade das amas-de-leite e das ações dos escravizados nas Bandeiras paulistas, o poeta ressaltou o sofrimento desses sujeitos ao longo de séculos. Mesmo reconhecendo o sofrimento do africano, o poeta não deixou de exaltar suas contribuições laborais, seja “nos canaviais”, “nos cafezais” ou cuidando dos filhos do senhor, seja nos grupos que adentraram o sertão em busca de ouro. Para o poeta, a força de trabalho foi a grande contribuição do africano escravizado. Na concepção ricardiana, o “negro bom” - útil para a formação do tipo brasileiro - foi aquele que obedeceu, trabalhou, cuidou do “ioiozinho”, espantou feitiço e fez “benzedura”, mas os africanos escravizados com seus Orixás que fugiram das lavouras e fundaram as “repúblicas negras” são preteridos, representando apenas um acontecimento marcado pela derrota.

Outra questão interessante neste poema foi a apropriação de fatos históricos, os quais serviram como moldura para esboçar uma espécie de “redenção” - sob a ótica ricardiana - do branco em relação à escravidão africana. No poema, a redenção do branco para com o africano escravizado foi necessária, pois “os escravos/já haviam dado o seu sangue/para amassar o barro e o seu/braço para fundar a lavoura/e a sua bravura para amansar o gentio” (RICARDO, 1927b, p. 122/123).

No entanto, essa “redenção” somente foi concretizada quando o

orador preto fez um discurso dizendo que o branco foi buscar o carvão de outra raça para o forno vermelho da sua oficina selvagem. (RICARDO, 1927b, p. 122-123).

E, em razão disso, no dia 13 de maio:

A capela de São Benedito Ficou toda enfeitada de flores. A alegria foi tanta que ainda hoje a antiga escrava conta às crianças, tontas de surpresa, a história longa e enfeitiçada do orador preto do poeta baiano e da princesa que ficou santa/(D. Isabel com certeza). (RICARDO, 1927b, p. 123).

Apesar da apropriação do “orador negro”, do “poeta baiano” e da “princesa que ficou santa” para poetizar a redenção em relação ao africano, todos os versos que traziam esses personagens históricos foram excluídos de todas as versões trintistas. Consideramos que esta intervenção demonstrou o rompimento com a valorização da princesa Isabel como a principal responsável pela redenção, ou seja, o distanciamento com o grande símbolo exaltado pelos abolicionistas republicanos. Defendemos que essas estratégias utilizadas pelo poeta provocaram o distanciamento das referências republicanas, em especial as representações históricas construídas pelo IHGB.

No que concerne às apropriações de símbolos republicanos no poema, o autor apropria-se dos quilombos com conotações políticas nas edições de 1927 e 1928, dizendo que na “verde moldura do mato/riscou-se a carvão a República negra” (RICARDO, 1927b, p. 104). Essa associação foi retirada da versão de 1929. Acreditamos que a exclusão da “República negra” também foi provocada pelas crises do regime republicano que vinha se arrastando, a qual desembocou no “Movimento de 30”. A crise republicana como contrapartida da retirada da “República negra” - e dos heróis abolicionistas - não pode ser entendida como mera equivalência, pois consideramos que o autor incorporou as tensões políticas da crise do sistema republicano no campo literário. Esta incorporação dos debates políticos no campo literário pode ser exemplificada de outras formas, entre elas, o retorno à menção da “República negra” nas versões de 1934 e 1936, isto é, justamente no momento em que os debates sobre a Constituição em 1934 e a proximidade das eleições em 1938 tomavam corpo.

Outra questão interessante no M.C. foi a apropriação do negro no período pós-escravidão. Essa referência pode ser percebida no poema “Borrões de tinta preta” inserido na versão de 1928. Esse poema relatou o caso da “preta velha manquitola” lavadora de roupas que quando “saia de casa / pra entregar roupa lavada / moleques de todo o bairro / judiavam dela, davam risada” (RICARDO, 1928, p. 106-107). Essa situação de escárnio - derivado da situação física da senhora - somente teve fim quando “a preta deu um tropeção. / Caminhão passou por cima” e os “meninos não dão mais risada” (RICARDO, 1928, p. 107).

Também se passando no período pós-abolição, o poema “Auto 13.333” relatou o caso do preto velho que “ficou turtuviado com a […] avenida. / Quase morreu atropelado / por um automóvel” (RICARDO, 1929, p. 115). A cidade “baralha” a vista e, por isso, o preto velho “arrependeu-se […] de ter vindo à cidade” e “começou a chorar de saudade do cafezal” (RICARDO, 1929, p. 115). E, por esse arrependimento, o “preto velho”:

Sentiu no coração um alvoroço por se lembrar do sinhô moço. Começou a chorar de saudade do cafezal muito parelho borrifando de vermelho. [...] - Ah! Que “sodade” da fazenda! Minha fazenda sem automove. (RICARDO, 1929, p. 115).

Esse texto soou como representação da expulsão dos negros da fazenda após a abolição e sua não adaptação ao meio urbano, pois o “preto velho” foi atropelado e sente saudade da fazenda. No poema Sangue africano, presente a partir da edição de 1932, o eu poético narrou a história do “Pai João”, personagem que chorava à beira de uma fogueira e lamentava a “saudade africana” (RICARDO, 1932, p. 96). Nesse processo de rememoração ocorrido no período pós-abolição, o eu poético recordou:

Lá fora, no terreiro da fazenda, a dança trágica e noctâmbula dos pretos, de sarabanda em bamboleios e perna bamba, no resmungo sem fim, do bumbo ou do urucungo no arrasta-pé grosseiro e fúnebre do samba que retumba na noite lúgubre que descamba: é o choro surdo e entrecortado do batuque, no bate-pé que enche de assombro o próprio chão... [...] Oh meu Pai João, eu sei de toda a tua história. Quando o navio alçou o pano ao vento da África, algemaram-te as mãos em cadeias de chumbo; e, no porão, olhando os astros, noite em fora, [...] Tu tens razão... tu tens razão. Não há nada que mais me oprima ou me machuque o coração de brasileiro, oh meu Pai João, do que ouvir, pela noite negra, que foi sempre a doce mãe dos pretos sem história. (RICARDO, 1932, p. 96-98).

Na versão de 1932, surgiu um poema que se repetiu na edição de 1936 sem modificações; seu título foi Prequeté. Esse poema narrou a história da criança negra chamada “José Prequeté” (RICARDO, 1932, p. 127). A história dessa criança foi marcada pela submissão e desigualdade social, pois a criança negra morava com a avó na casa de uma senhora branca e rica. Segundo o eu poético, a criança negra “quase morr[ia] de alegria” quando o “filho da sinhá” retornava da cidade com vários brinquedos (RICARDO, 1932, p. 127). Ao final do texto, vemos o tom crítico dessa situação e lemos:

E a vovó preta que mora com o casal há muitos anos [...] fica pensando no destino dos moleques que não tem onça pra brincar nem cavalinho pra montar porque são pretos [...] ela também é uma criança que ficou triste... (RICARDO, 1932, p. 129).

Ao poetizar o período pós-abolicionista, vemos a “velha manquitola”, o “preto velho”, o “Pai-João” e o “José Prequeté”. Essas personagens são arquétipos da situação do escravo liberto. No caso da mulher, elas se inseriram ao ofertar sua mão de obra nos trabalhos domésticos, lavadora de roupas ou cuidadora de filhos dos patrões brancos. No caso dos velhos, consagrados no “preto velho” e no “Pai-João”, possivelmente dois recém-libertados, eles não conseguiram se inserir na nova situação, o que lhe restava era lamentar e rememorar os tempos nas fazendas. Já a criança negra, ela ficou marcada pelo “José Prequeté”, onde representava a desigualdade socioeconômica que marcará toda a juventude negra brasileira até os dias de hoje.

Apesar dos excelentes estudos realizados por Ferreira (1970), Martins (1973), Peres (1987), Moreira (2001) e Velloso (2010), entendemos que a inovação em nossa abordagem sobre o poema M.C. está na análise das mudanças na representação do negro expostas nas versões analisadas neste estudo. Outra novidade em nossa análise está no fato de que esse processo de apropriação representou a visão de mundo do poeta sobre a participação do africano na formação da sociedade brasileira. Também expôs o processo de construção da obra em si e, da mesma forma, apresentou as nuances do próprio campo literário modernista brasileiro4. Ainda sobre a questão comparativa entre as seis primeiras edições do poema M.C.5, vale lembrar que as três primeiras edições publicadas na década de 1920 foram editadas no momento em que o verde-amarelismo estava consolidado. Já na década de 1930, quando as outras três edições foram publicadas, esse grupo de escritores já havia se fragmentado em grupos políticos rivais - o Integralismo, liderado por Plínio Salgado, e o Movimento Bandeira, liderado por Picchia e Cassiano Ricardo.

Considerações finais

Vemos em nossa análise algumas questões relevantes. Mesmo mantendo o suposto encontro harmônico e inserindo vocabulários da religiosidade e da musicalidade africana, a contribuição do africano escravizado permaneceu restrita ao trabalho. De forma mais direta, mesmo pretendendo ressaltar os elementos da cultura africana, o poeta não se afastou de sua visão racista e preconceituosa. Consideramos que a tentativa de incorporar o africano em pé de igualdade aos outros grupos - brancos e indígenas - não foi alcançada pelo poeta. Defendemos que as formas de inserção do negro foram guiadas pela visão de mundo do próprio poeta, a qual estava carregada de tons racistas. Entendemos, ainda, que a estratégia de poetizar a chegada do africano ao “País das palmeiras” - através das metáforas apresentadas neste estudo - teve um efeito negativo, pois retirou as caraterísticas humanas dos africanos e os aproximou aos elementos da natureza ou, pior, os associou a simples mercadorias. Como visto na discussão apresentada neste estudo, a pretensa representação equilibrada entre os três grupos raciais - branco, índio e negro - não ocorreu de forma efetiva, ao contrário, as diferentes representações do negro foram sempre marcadas pela negatividade e pela distorção de suas características físicas e espirituais.

De qualquer modo, apesar de marcar o sofrimento, o poeta buscou relativizar essa dor em benefício da suposta fusão racial. Mesmo levando em conta o viés preconceituoso e de minimização do sofrimento, uma questão merece destaque: Cassiano Ricardo ampliou a poetização da participação do africano escravizado ao longo das reedições do poema M.C. De qualquer forma, vemos a tentativa de compor uma narrativa mítico-histórica mais miscigenada que a das três edições publicadas na década de 1920. Percebemos que o não questionamento da situação do africano e sua condição conservadora marcaram a segregação do negro, prevalecendo a negação e/ou o disfarce de sua situação de exclusão. No M.C., o que se definiu como contribuição da terceira raça expressou tais aspectos, pois o africano foi relacionado estritamente ao trabalho. Suas contribuições laborais foram diferenciadas de acordo com o gênero: as mulheres colaboraram como amas de leite e no trabalho doméstico; os homens, com o trabalho nas lavouras.

As comparações entre as versões vintistas e trintistas do M.C. nos permitiram observar que determinadas concepções raciais guiaram a elaboração do poema. Por outro lado, o poeta apropriou-se de elementos históricos para compor o M.C. Frente aos apontamentos apresentados neste texto, podemos considerar que, a partir da perspectiva de Paul Ricoeur (2000), compreendemos a relevância de se entender a capacidade da metáfora em gerar novos significados. Sendo assim, também reconhecemos as possibilidades oferecidas pela perspectiva da ação metafórica na análise histórica do poema M.C. As teses do filósofo francês também nos possibilitam perceber que o poema M.C. - enquanto metáfora do passado - torna-se uma estratégia de Cassiano Ricardo, quer dizer, o poeta narra o passado histórico brasileiro por meio da poesia para defender suas posições sobre a contribuição do negro na formação racial do brasileiro, a qual reproduziu a visão racista de seu tempo.

Com base nas considerações de Paul Ricoeur, o poema M.C. pode ser entendido como “imitação da imitação”, ou seja, essa obra pode ser uma imitação da História através da poética; um exemplo de uma metáfora da História. O primeiro desses traços tem o mesmo papel do mythos na criação poética, ou melhor, a subordinação da léxis ao mythos põe a metáfora a serviço do “dizer”, do “poematizar”, que se exerce ao longo de todo esse poema. Revela-se, assim, uma tensão, no próprio âmago da mímesis, entre a submissão ao real - a ação humana - e o trabalho criador que é a própria poesia. A leitura desse poema enquanto tentativa de narrar o fato histórico é enriquecida à luz da teoria ricoeuriana, pois essa obra reflete a noção de transgressão de sentido. Ao ser analisada a partir de seu uso para definir o seu desvio, essa obra narrou literariamente as ações humanas tornando-se uma narrativa histórica do passado brasileiro e, assim, o autor uniu em seu discurso a poética e a história para representar o passado e narrar o tempo vivido, onde, ressaltamos, o africano escravizado foi destituído de suas qualidades humanas.

Como visto, realizamos uma análise comparativa entre as versões desse poema a partir de um problema: o entendimento do papel do negro na formação da identidade nacional e na sociedade. A partir dessa análise, conseguimos destacar qual o mito que foi fortalecido por meio da metáfora central do poema M.C., no caso, o mito da formação da população brasileira por meio da junção das diferentes raças sem que houvesse uma hierarquização entre elas. No entanto, não foi isso que aconteceu, uma vez que o poeta concebeu a formação da nacionalidade dentro de uma hierarquia bastante rígida: branco-comando, índio-natureza e negro-submissão.

Supplementary material
Referências
ABUD, Kátia Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições (a construção de um símbolo paulista: o bandeirante). 342 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985.
BOURDIEU, Pierre. A economia e as trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 189 p.
BOURDIEU, Pierre. O sociólogo e o historiador. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. 134 p.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. São Paulo: Edição Saraiva, 1971.
CHAUÍ, Marilena. O mito fundador e sociedade autoritária. Disponível em: http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/brasil_mitofundador_e_sociedade_autoritaria_marilena_chaui.pdf. Acesso em: 5 abr. 2015.
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
COELHO, George Leonardo Seabra. O bandeirante que caminha no tempo: apropriações do poema “Martim Cererê” e o pensamento político de Cassiano Ricardo. 346 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015.
COELHO, George Leonardo Seabra. Consumo cultural do pensamento vasconceliano na literatura modernista brasileira: intercâmbios intelectuais na constituição do discurso da raça latino-americana na década de 1920. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 025, 2018, p. 183-221. Disponível em: https://doi.org/10.46752/ anphlac.025.2018.2954. Acesso em: 25 jul. 2021.
EL-DINE, Lorena Ribeiro Zem. Raça, história e política em Alfredo Ellis Jr. e Cassiano Ricardo. 151 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Espírito Santo: Centro de Ciências Humanas e Naturais, Vitória, 2010.
FERREIRA, Jerusa Pires. Notícias de Martim Cererê de Cassiano Ricardo. São Paulo: Quatro Artes Editora, 1970. 158 p.
LENHARO, Acir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. Campinas: Editora da Unicamp, 1981. 105 p.
MARTINS, Wilson. O modernismo. 4. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
MONTEIRO, Amilton Maciel. Cassiano: fragmentos para uma biografia. São José dos Campos: Univap, 2003. 424 p.
MOREIRA, Luiza Franco. Meninos, poetas e heróis: aspectos de Cassiano Ricardo do modernismo ao Estado Novo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo , 2001.
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da independência. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 1992.
OLIVEIRA, Vera Lúcia de. Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro. São Paulo: Editora UNESP; Blumenau: FURB, 2002. 342 p.
PERES, Deila Conceição (coord.). Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1987. 409 p.
QUEIROZ, Helaine Nolasco. Verdeamarelo/Anta e Antropofagia: narrativas da identidade. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2010. p. 248.
RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Editora José Olympio, 1936.
RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Editorial Hélios LTDA, 1929.
RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Editorial Hélios LTDA , 1927b.
RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Editorial Hélios LTDA , 1928.
RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1932.
RICARDO, Cassiano. O Curupira e o Carão. São Paulo: Editora Hélio, 1927a.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. 500 p.
SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a monarquia e a república. Goiânia: Editora UFG, 2011.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 287 p.
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e Campesinato. São Paulo: Difel, 1976. 261 p.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Mito da originalidade brasileira: a trajetória intelectual de Cassiano Ricardo (dos anos 20 ao Estado Novo). 1983. 191 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1983.
VELLOSO, Mônica. História e Modernismo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.
Notes
Notas
1 Doravante M.C.
2 Sabemos que o nome do líder de Palmares é amplamente consagrado como Zumbi, enquanto Zambi está associado a uma das entidades das religiões de matriz africana. Como veremos ao longo deste estudo, esses dois nomes são associados ao líder do Quilombo de Palmares.
3 Essa ilustração foi assinada por Di Cavalcanti. Nas seis versões analisadas apenas as edições de 1928 e 1934 são ilustradas com desenhos de Di Cavalcante. O que difere nas duas ilustrações são as cores. Na edição de 1928 as imagens estão na cor verde e na edição de 1934 as imagens estão na cor vermelha.
4 Entendemos a importância de desenvolver outros estudos comparativos entre o poema M.C. e outras obras modernistas que abordam questões similares, entre elas, Toda América (1926), de Ronald de Carvalho, Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, Cobra Norato (1931), de Raul Bopp.
5 Sobre a análise do contexto histórico em que cada edição foi publicada e como estas diferentes temporalidades refletiram nas alterações do poema, ver: COELHO, G. L. S.O bandeirante que caminha no tempo: apropriações do poema “Martim Cererê” e o pensamento político de Cassiano Ricardo. 2015. 346 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015.
Author notes

E-mail:george.coelho@hotmail.com


Imagem 1
A noite africana chega ao País das Palmeiras
Fonte: RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. São Paulo: Editora Novíssima, 1934. p. 35.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Scientific article viewer generated from XML JATS by Redalyc