Artigo
Received: 10 May 2021
Accepted: 20 October 2021
DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.111320
RESUMO: A proposta do presente artigo é, em primeiro lugar, descrever os eixos centrais dos Estudos Pós-Coloniais; em segundo, analisar a proposição teórica de Achille Mbembe a respeito do “pós-colonial” em África e suas relações com a Modernidade; e, por fim, discernir as consequências gerais para a construção do conhecimento sobre a História em meio a disputas de narrativas internas e externas ao campo científico relacionadas aos temas que interseccionam raça, classe, gênero e colonialidade.
PALAVRAS-CHAVE: Pós-colonial, história, modernidade, Achille Mbembe.
ABSTRACT: The proposal of this article is, first, to describe the central axes of Postcolonial Studies; second, to analyze Achille Mbembe's theoretical proposition regarding the "postcolonial" in Africa and its relations with modernity; and, finally, to discern the general consequences for the construction of knowledge about History amidst internal and external narrative disputes in the scientific field related to issues that intersect race, class, gender and coloniality.
KEYWORDS: Postcolonial, history, modernity, Achille Mbembe.
INTRODUÇÃO
Por muito tempo, triunfou a noção de Modernidade como a demarcação da autoconsciência europeia de um novo processo que se desenvolve a partir do século XVI, envolvendo a formação do sistema de Estados-Nação, na passagem do Antigo Regime absolutista às repúblicas democráticas representativas e a estruturação do capitalismo (GIDDENS, 1991). Esse processo acarretou novas relações entre indivíduo e sociedade; tradição religiosa e racionalidade econômica; desterritorialização e divisão do trabalho, que alimentaram tanto a consciência de uma crise permanente, bem como expectativas de um futuro aberto a novas realizações através do desenvolvimento científico e tecnológico. Ao lado de uma nova imagem do Homem, da Sociedade e da História, a partir da Razão Iluminista, surgem novos saberes com pretensão à cientificidade, no sentido de mapear e de controlar as novas realidades, problematizar o presente e projetar o futuro, acompanhando uma extensa rede de discursos, práticas e instituições associadas ao governo de populações e territórios (FOUCAULT, 2004) através da qual o Ocidente se reconhece como a morada do Universal em expansão.
Ao mesmo tempo, esse processo acontece de maneira não linear e em meio a contradições. O imprevisível, a violência, a revolução e a contrarrevolução se fazem presentes de tal maneira que as narrativas sobre o desenvolvimento da Modernidade e do Ocidente desde sempre foram disputadas por projetos que se pretendem alternativos, sendo o mais exemplar a crítica marxista sobre o capitalismo, embora ela não tenha escapado totalmente do eurocentrismo e da teleologia histórica iluminista ou de passar, em geral, ao largo da discussão sobre nação, raça e gênero. Mesmo que de maneira alternativa, estes projetos consolidam o apego ao ideal de buscar estritamente a verdade no passado.
Entretanto, à medida que a Modernidade se confirma como nova temporalização histórica, através de rupturas, acelerações e encurtamento do tempo e do espaço, a instabilidade se estabelece de tal modo que o presente já não oferece mais a possibilidade de antecipar o futuro através de prognósticos, e a História, como conhecimento humano, foi sendo despojada de sua suposta capacidade de se realizar como magistra vitae, e, portanto, de projetar o futuro (KOSELLECK, 2006), vindo a alcançar o seu limite máximo de esgotamento com a experiência da Primeira Guerra Mundial, a partir de quando já não consegue mais produzir o conhecimento necessário ao amadurecimento prático para o progresso material e moral das nações e nem as explicações pragmáticas para os acontecimentos (WHITE, 2001).
Desse modo, sem se sustentar mais como um conhecimento supostamente desinteressado, neutro e universal, é que inúmeros esforços de renovação historiográfica tomam curso, a exemplo da História Social, na França, em torno da Revue des Annales e, na Inglaterra, a partir da New Left Review, além da Micro-história, da História do Cotidiano, da História Cultural e da História do Tempo Presente. Nesse cenário, ocorrem, pelo menos, dois movimentos: o primeiro, de aproximação com outros campos de conhecimento, promovendo o empréstimo, a conexão e até mesmo o confisco de temas de pesquisa, temporalidades e metodologias, inaugurando uma história “vista de baixo” ou dos excluídos (PERROT, 2017); e o segundo, de emergência de autorias periféricas.
À produção de narrativas enfocando mulheres, prisioneiros, operários, homossexuais e camponeses como sujeitos históricos interpôs-se o desafio lançado por intelectuais oriundos da periferia do mundo capitalista que reclamavam da ausência de análises comprometidas em centralizar outras espacialidades e outras identidades, para além da Europa e do sujeito “universal” branco, masculino e heteronormativo. É deste segundo movimento que emergem os estudos interessados nas experiências não europeias, afrodiaspóricas, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, pautando a Modernidade como subproduto das experiências coloniais e do tráfico transatlântico desde África. A esse rico movimento de renovação epistemológica convencionou-se atribuir a denominação de Estudos Pós-Coloniais, embora, em seu interior, se relacionem as produções do pensamento social africano e afrodiaspórico, o grupo sul-asiático dos Subaltern Studies, os Estudos Decoloniais latino-americanos, os Estudos Feministas Afroindígenas e as Epistemologias do Sul. Foram eles os responsáveis por sofisticar a Teoria Crítica a partir da adição de três importantes categorias analíticas fundantes das contranarrativas centradas nos conceitos de raça e de gênero, a saber: subalternidade, interseccionalidade e colonialidade.
Dito isso, o presente artigo se desenvolve a partir de três cenários analíticos construídos internacionalmente: o primeiro, o da descrição dos eixos centrais dos Estudos Pós-Coloniais, considerando suas diferenças internas; o segundo, o da revisão da proposição teórica de Achille Mbembe a respeito do “pós-colonial” em África e suas relações com a Modernidade; e, por fim, o terceiro, o de discernir tanto as consequências gerais para a construção do conhecimento sobre a História em meio a disputas de narrativas internas e externas ao campo científico, quanto os desafios para um posicionamento ético-político aliado à polêmica crítica com visões simplificadas dos temas que interseccionam raça, classe, gênero e colonialidade.
O “PÓS-COLONIAL” E SUAS VARIAÇÕES
Convencionou-se datar a fundação dos Estudos Pós-Coloniais com a publicação do livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1978), do palestino radicado nos Estados Unidos, Edward Said. Através da experiência colonial francesa e britânica, o autor concebe o Orientalismo como oposição cultural e política que ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) em contraste com o Oriente (ou Resto do mundo), representado em estereótipos acerca do Outro, avesso do civilizado e ordenado, ao mesmo tempo exótico, sedutor, misterioso, perigoso, selvagem e primitivo. Mais do que um conjunto de fantasias, o Orientalismo é uma forma discursiva e teórica elaborada, composta de imagens, doutrinas, estilo narrativo estético e vocabulário, assente em instituições e práticas de dominação territorial, burocrática, intelectual e comunicativa, que produzem ideológica e materialmente a própria realidade que pretende apenas constatar. Dessa maneira, o Ocidente cria a própria identidade idealizada em contraste com uma visão essencialista, atemporal, a-histórica e inferiorizada de outras sociedades situadas ou não no hemisfério oriental. Assim, com base na oposição West/Rest, o Orientalismo como forma cultural, suporte do imperialismo, serve de argumento para enquadrar o conjunto de experiências de países periféricos e colonizados.
Este é o caso do continente africano, uma das matrizes fundamentais de reflexão sobre o laboratório de práticas coloniais decorrentes do tráfico atlântico de escravizados para as Américas e dos diferentes estilos de colonização e segregação étnico-racial. As obras de intelectuais africanos ou afrodiaspóricos, a exemplo de Aimé Césaire, Frantz Fanon e Amílcar Cabral, entre outros/as,1 localizam a gênese da Modernidade nas experiências do tráfico negreiro e da escravidão negro-africana, aceleradas pelo expansionismo colonial europeu, que fizeram surgir nas Américas e na África os sentidos da dupla consciência, da transição como um estado de permanência, da desterritorialização e do deslocamento, e da reconfiguração dos pertencimentos culturais. Cada um, ao seu modo, fabricando pontes entre as correntes teóricas contemporâneas e os ativistas e teóricos das independências africanas, em diálogo com intelectuais afro-americanos, fundaram um campo de discussões próprio, referência para releituras críticas da Modernidade.
Em paralelo à construção do pensamento social africano e afro-americano, desenvolve-se, na Índia, os Subaltern Studies2, responsáveis por teorizar e popularizar o conceito de subalternidade, fundamental para a crítica dos processos de colonização e dominação europeia pautados a partir do sujeito universal branco-europeu e masculino. Segundo Guha, a “subalternidade foi materializada pelas estruturas de propriedade, institucionalizada pela lei, santificada pela religião e tornada tolerável - e até mesmo desejável - pela tradição” (GUHA, 1983, p. 01). Nesses termos, o historiador indiano sinaliza os sentidos críticos que suas análises assumem em relação ao conceito de tradição nos contextos “pós-coloniais” em que, muitas vezes, ela se constitui como dispositivo que assegura a reprodução das hierarquias sociais, políticas e econômicas fundadas desde o colonialismo.
Nesse mesmo sentido, Gayatri Spivak publica, em 1985, Pode o subalterno falar?, em que revisita os conceitos de “consciência” e “diferença” e expõe as limitações interpretativas daqueles que propunham criticar a tradição intelectual ocidental da Europa e seus regimes de dominação. Defendendo que “algumas das críticas mais radicais vindas do Ocidente hoje é o resultado de um desejo interessado em conservar o sujeito do Ocidente ou o Ocidente como sujeito” (SPIVAK, 1988b, p. 271), Spivak postula que, de fato, considerando os arranjos hierárquicos fundados pela Europa, “o subalterno não pode falar” e inclui a mulher também como uma categoria de subalternização, concebida como um “conceito-metáfora” (SPIVAK, 1988a, p. 215), materialização das relações de dominação fundadas nas ideias de gênero e de raça introduzidas pelos europeus através dos seus processos coloniais.
Ainda na interface crítica entre raça e gênero, emergiu, a partir das revisões e das disputas narrativas no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, o conceito de interseccionalidade3, sistematizado pela estudiosa afro-americana Kimberle Crenshaw (1989). Adotando-o, inicialmente, para referir-se às experiências de subordinação das mulheres negras, Crenshaw (1991) reapresenta-o a partir do debate sobre as políticas de identidade, compreendendo-o como um potente dispositivo de coalizão entre grupos diversos submetidos à dominação capitalista instrumentalizada através do heterossexismo do homem branco ocidental e, assim, numa perspectiva de sua politização, aproxima-o da agenda dos direitos humanos. Pensado como um dispositivo teórico de análise entrecruzada das hierarquias de classe, raça e gênero, tal abordagem, no entanto, já vinha sendo praticada pelas feministas afro-americanas que, no contexto da luta pelos direitos civis, a partir da década de 1960, assumiram proeminente papel na articulação e na condução dos debates envolvendo gênero e sexualidade, sem desprezar o acúmulo analítico da tradição marxista.
Nesse sentido, destacamos Audre Lorde (1984) que, em 1980, já antecipava formulações engendrando diferentes eixos estruturantes das hierarquias sociais, refletindo sobre como as várias diferenças têm sido operadas no capitalismo sempre no sentido de manter a humanidade cindida. Em seus próprios termos, há “grupos que são levados, através de opressões sistematizadas, a ocupar o lugar do inferior desumanizado”, são eles: “pessoas negras e do terceiro mundo, pessoas das classes trabalhadoras, pessoas mais velhas e mulheres” (LORDE, 1984, p. 01). Naquele momento, a sua ousadia teórica certamente foi a de ter apontado para a opressão dentro da própria comunidade negra a partir das diferenças de gênero/sexualidade.
Se feministas afro-americanas, como Angela Davis (2016), por exemplo, representaram um avanço analítico ao ter identificado que a unicidade evocada pelo termo “mulher” não correspondia, em decorrência do racismo, às diferenças radicais entre mulheres brancas e mulheres negras; Lorde (1984), por sua vez, representa outro avanço analítico ao entender que, mesmo dentro da mesma comunidade, por uma questão de heterossexismo, o termo composto “mulher negra” nem sempre é suficiente por também pressupor uma unicidade que exclui as experiências de lesbianidade. O fato é que, desde, pelo menos, Lorde e Davis, já se delineava a formulação analítica de que a subordinação de determinados grupos sociais opera a partir do entrecruzamento de várias diferenças tomadas simultaneamente como ideologia e tecnologia de dominação.
Com a necessidade de compreender os processos de dominação em suas dimensões tanto materiais quanto mentais, o que inclui o patriarcado como um dos meios de realização da dominação ocidental, o conceito de interseccionalidade somou-se a outras categorias analíticas, como a de colonialidade. Lugones, por exemplo, ao adotá-los de modo combinado, justificou, enfatizando que “a lógica dos eixos estruturais mostra o gênero como formado por e formando a colonialidade” (LUGONES, 2008, p. 82). Propondo um feminismo decolonial que desafie epistemologicamente o que ela denomina de “sistema moderno-colonial de gênero”, Lugones acena para a hibridização teórica que concilia os estudos decoloniais e afro-americanos como meio de articular as diferentes ferramentas teóricas a fim de possibilitar o reposicionamento das mulheres de cor como protagonistas na produção analítica contra o patriarcado branco.
Nesse cenário, importa destacar também a produção de feministas mestiças e indígenas, como Gloria Anzaldua, que, embora enunciando a partir dos Estados Unidos, apresentaram análises, assim como as de Lugones, com o desafio de realocar a mulher mestiça como uma voz híbrida. Assumindo-se indígena, espanhola, branca e lésbica, Anzaldua define-se como uma mulher fronteiriça (“I am a borderwoman”), sem país nem raça definidos, e, portanto, de identidade nômade (ANZALDUA, 1987).
Desse modo, assim como os conceitos de subalternidade e de interseccionalidade, a emergência do conceito de colonialidade, no âmbito dos Estudos Decoloniais4 latinoamericanos em adição distintiva ao de colonialismo, foi extremamente fecundo por deslocar a análise da colonização como um passado fixo e ultrapassado, em favor de uma compreensão dos seus processos de presentificação a partir dos efeitos decorrentes do eurocentrismo, concretizado também na forma de dominação intelectual. Originado dos estudos do sociólogo peruano Anibal Quijano (1998), o termo colonialidade apareceu publicado pela primeira vez no periódico Ecuador Debate, a partir do diálogo com os referenciais da Teoria Crítica. Passando, posteriormente, a figurar em inúmeras publicações, o seu emprego foi amplamente estendido às análises das ditas sociedades “pós-coloniais”, emergindo também através de seu uso combinado a outros conceitos, a exemplo das expressões “colonialidade do saber” e “colonialidade do gênero”.
A este conjunto plural de estudos, associam-se, com certa particularidade, as “teorias do Sul”, como um movimento federativo de ideias que pretende potencializar as conexões entre intelectuais do “Sul Global”. Neste recorte, destaca-se o trabalho de Boaventura de Sousa Santos que questiona a universalidade do projeto epistemológico das ciências ocidentais do Norte, combinando as descobertas da ciência com outras formas de conhecimento marginalizados do Sul. No centro do esforço, está o propósito de romper o modelo colonial de produção do conhecimento, enfocando como os “povos do Sul” criaram modernidades alternativas na adaptação e resistência ao capitalismo e ao colonialismo, base para um “cosmopolitismo subalterno”, que o autor enxerga na possibilidade de “um hibridismo entre ocidente e não-ocidente, em que movimentos clássicos de esquerda se aliam a comunidades negras, indígenas, sem-terras e feministas” (ROSA, 2014, p. 47) para forjar uma “ecologia dos saberes” pautada pela relação não hierárquica entre conhecimento científico (do Norte) e o tradicional (do Sul).
As “teorias do Sul” configuram, a seu modo, uma proposta de convergência entre intelectuais enraizados em situações coloniais para uma produção de conhecimento crítico das relações de saber/poder hierárquicas. Contudo, elas não se descolam o suficiente dos Estudos Pós-Coloniais, De(s)coloniais e Subalternos, posto que defendem como unidade analítica os efeitos do colonialismo.
Muito ainda poderia ser dito do conjunto de “escolas”, diante de sua pluralidade teórica, política e estética, bem como de suas controvérsias internas. Não obstante a fragmentação, é possível discernir eixos fundamentais de conexão. Nesse sentido, a definição proposta por Achille Mbembe é uma das mais completas:
O sumo do pensamento pós-colonial não considera a colonização nem como uma estrutura imutável e anistórica, nem como uma entidade abstracta, mas como um processo complexo de invenção de fronteiras e intervalos, de zonas de passagem e espaços intersticiais ou de trânsito. Paralelamente, sustenta que, enquanto força histórica e moderna, uma das suas funções consistia na produção da subalternidade. Nos seus impérios, várias potências coloniais tinham instaurado uma subordinação assente em bases raciais e estatutos jurídicos por vezes diferenciados, mas sempre, e em última instância, inferiorizantes. Em contrapartida, com vista a articular as suas reivindicações à luz da igualdade, muitos sujeitos coloniais procederam à crítica dos erros que a lei da raça e a raça da lei (e a do género e a da sexualidade) tinham contribuído para criar. Logo, o pensamento pós-colonial analisa o trabalho concretizado pela raça bem como as diferenças assentes no género e na sexualidade no imaginário colonial, as suas funções no processo de subjectivação dos subjugados coloniais. Paralelamente, debruça-se sobre a análise dos fenómenos de resistência que marcaram a história colonial, as diversas experiências de emancipação e os seus limites, tal como os povos oprimidos se constituíram sujeitos históricos e influenciaram muito caracteristicamente a constituição de um mundo transnacional e diaspórico. Por fim, incide sobre a forma como os vestígios do passado colonial são actualmente objecto de um trabalho simbólico e prático, bem como as condições segundo as quais esse trabalho produz formas inéditas, híbridas ou cosmopolitas, na via e na política, na cultura e na modernidade (MBEMBE, 2014b, p. 102).
Na atualidade, a produção intelectual do filósofo, historiador e teórico político camaronês Achille Mbembe representa um dos mais importantes legados do pensamento social africano em diálogo com a teoria histórica e sociológica contemporânea. Ao mesmo tempo, é um dos autores que se posiciona de forma mais densa e polêmica em termos (auto)críticos aos Estudos Pós-Coloniais. Por essa razão, na próxima seção, focalizamos como Mbembe situa-se neste campo e, em diálogo com sua produção, evidenciamos suas críticas a certos recortes e imagens simplificadoras que leituras politizadas têm construído como narrativa histórica.
ACHILLE MBEMBE: O “PÓS-COLONIAL” E SUA AUTOCRÍTICA
No ensaio Necropolítica (2016), por meio do qual Mbembe se tornou amplamente conhecido no Brasil, as questões relativas à história, à filosofia e à teoria política se correlacionam de maneira fértil para a reflexão sobre os fenômenos contemporâneos nas “sociedades pós-coloniais”. O cerne do ensaio está em apontar, em um primeiro momento, a insuficiência das teorias modernas da soberania e da democracia para a compreensão da relação entre modernidade e colonialidade nas primeiras ocupações coloniais. A relação entre os conceitos de biopoder, estado de exceção e estado de sítio são os fundamentos para demonstrar esta insuficiência e, em um segundo momento, desenvolver o conceito de necropolítica como fundamento da soberania moderna-colonial e do estudo das formas de ocupação colonial tardo-moderna.
O biopoder é o conceito de partida para esta construção. Caracterizado por Foucault como uma das tecnologias de poder em funcionamento junto à disciplina, a biopolítica definiria um controle da humanidade através do campo biológico, dividindo a população em subgrupos, entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer, através do racismo: “Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado” (MBEMBE, 2016, p. 126). O Estado nazista seria o exemplo mais completo de um Estado que “tornou a gestão, proteção e cultivo coextensivos ao direito soberano de matar” (MBEMBE, 2016, p. 128), combinando o critério biológico ao tema do inimigo político, da organização da guerra e da exposição dos seus cidadãos à morte.
Mbembe comenta, em acréscimo, a argumentação de diversos historiadores sobre as premissas do extermínio nazista ser parte de um longo desenvolvimento de práticas de terror desde a Antiguidade, cujos incrementos fundamentais ocorreram com o imperialismo colonial, com o suplício, com a guilhotina e com os mecanismos técnicos desenvolvidos entre a Revolução Industrial e a Primeira Guerra Mundial, baseados na racionalidade instrumental, produtiva e administrativa, tornando-se facilitado pelos estereótipos racistas e pela tradução dos conflitos sociais do mundo industrial em termos raciais quando as classes trabalhadoras e a pobreza são equiparadas aos “selvagens” do mundo colonial. Nessa abordagem, nem mesmo os modelos políticos que se pretendiam alternativos, como os regimes socialistas, escapariam do processo. Amparado em Paul Gilroy (2002) e Hannah Arendt (2013), Mbembe (2016) atualiza Césaire (1978) e afirma que “a conquista colonial revelou um potencial de violência até então desconhecido. O que se testemunha na Segunda Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente reservados aos ‘selvagens’ pelos povos ‘civilizados’ da Europa” (p. 132).
Como uma “estrutura político-jurídica do campo”, conforme Agamben (2002), o estado de exceção não é uma suspensão do estado de direito, mas um arranjo permanente, cuja origem estaria na colônia, onde a soberania é o exercício de um poder à margem da lei e a “paz” uma “guerra sem fim”. Segundo Mbembe, então:
as colônias são zonas em que guerra e desordem, figuras internas e externas da política, ficam lado a lado ou se alternam. Como tal, as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos - a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da “civilização” [...] da negação racial de qualquer vínculo comum entre o conquistador e o nativo provém a constatação de que as colônias possam ser governadas na ilegalidade absoluta. (MBEMBE, 2016, p. 133).
Assim, ao contrário da soberania como produção de normas para uma sociedade de livres e iguais e da política como projeto de autonomia - acordo coletivo através de comunicação e reconhecimento, e, portanto, em oposição à guerra, conforme propunha Carl Schmitt (2000) - para Mbembe (2016), a soberania se manifesta como o poder de decidir sobre o estado de exceção, “a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (p. 125). Ou seja: a soberania é “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” e a política é o “trabalho da morte” (p. 135). Esta é a base do necropoder, um poder não necessariamente estatal, que apela à exceção, à emergência e à noção ficcional de inimigo (p. 128), cujo modelo de operação remonta à cidade colonial retratada por Fanon (2005).
Como forma contemporânea mais desenvolvida de necropoder, Mbembe elege a ocupação colonial da Palestina. Através dela, o autor relaciona o funcionamento do terror necropolítico à fragmentação territorial, ao acesso proibido e à lógica da reclusão e “exclusão recíproca”, em um conjunto de fronteiras sobrepostas controladas por uma “soberania vertical” (WEIZMAN, 2002) via controle aéreo e do subsolo, que complementa a apropriação dos recursos. A esta “ocupação fragmentada”, “assemelhada ao urbanismo estilhaçado que é característico da modernidade tardia (subúrbios, comunidades fechadas)” (MBEMBE, 2016, p. 137), Mbembe relaciona também as guerras contemporâneas, que não têm como objetivo a conquista-anexação, mas forçar o inimigo à submissão, sem se importar com “danos colaterais” à população civil, fragmentando o território em “direitos de governar incompletos e sobrepostos”, entre “fidelidades plurais, suseranias assimétricas e enclaves” (p. 139).
Para exemplificar esta situação, Mbembe utiliza situações do continente africano, advindas da dificuldade de os Estados garantirem o monopólio sobre a violência e o território, diante da transformação da coerção em mercado, em uma concorrência entre milícias urbanas, exércitos de “senhores de guerra”, segurança privada, movimentos rebeldes e exércitos oficiais. Para compreender esse contexto, o autor recupera a noção de máquinas de guerra (DELEUZE; GUATARI, 1980):
Essas máquinas são constituídas por segmentos de homens armados que se dividem ou se mesclam, dependendo da tarefa e das circunstâncias [...]. Uma máquina de guerra combina uma pluralidade de funções. Tem as características de uma organização política e de uma empresa mercantil. Opera mediante capturas e depredações, e pode até mesmo cunhar seu próprio dinheiro. Para bancar a extração e exportação de recursos naturais localizados no território que controlam, as máquinas de guerra forjam ligações diretas com redes transnacionais [...]. Cada vez mais, a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, mas que controlam territórios bastante distintos; ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias. (MBEMBE, 2016, p. 140-141).
São criadas, então, novas relações entre as máquinas de guerra, a extração de recursos e uma “forma governamental sem precedentes”, que consiste na “gestão de multitudes”:
A extração e o saque dos recursos naturais pelas máquinas de guerra caminham de mãos dadas com tentativas brutais para imobilizar e fixar espacialmente categorias inteiras de pessoas ou, paradoxalmente, para soltá-las, forçando-as a se disseminar por grandes áreas que excedem as fronteiras de um Estado territorial. Enquanto categoria política, as populações são então decompostas entre rebeldes, crianças-soldados, vítimas ou refugiados, civis incapacitados por mutilação ou simplesmente massacrados ao modo dos sacrifícios antigos; enquanto os “sobreviventes”, depois de um êxodo terrível, são confinados a campos e zonas de exceção. (MBEMBE, 2016, p.141).
Dessa maneira, conclui Mbembe, o terror caracteriza tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais tardo-modernos. A ausência de liberdade, a lógica do sacrifício e do martírio e a criação de “mundos de morte” são atualizadas contemporaneamente, submetendo vastas populações ao status de escravidão, migração e confinamento, como “mortos-vivos”.
Apesar das críticas que o consideram reprodutor de um discurso pessimista de África (AMSELLE, 2010), a argumentação de Mbembe em Necropolítica foi recepcionada como uma inovadora perspectiva analítica, com autonomia para o trabalho de conceituação/teorização a partir das realidades ditas “pós-coloniais”. Esta iniciativa de teorização alcança o seu ponto culminante como perspectiva metanarrativa e histórica em Crítica da razão negra (2014a). Nesse livro, ele analisa a transnacionalização da condição negra como momento de constituição da Modernidade que teve, no Atlântico, a sua incubação; e na noção de Raça, a efabulação para nomear como inferiores as humanidades não europeias: “Produzir o negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração [...] também nome de injúria, o símbolo do homem que enfrenta o chicote” (MBEMBE, 2014a, p. 40). Assim, neste capitalismo racial, através do nascimento da sociedade das plantações, da colônia, da escravidão perpétua e do apartheid, se construiu uma estrutura do mundo negro como resolução de um problema econômico e político assentado em trabalho legislativo e discursivo. É no bojo desse processo que, segundo Mbembe, emerge a razão negra:
a razão negra consiste, portanto, num conjunto de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates, cujo objecto é a coisa ou as pessoas “de origem africana” e aquilo que afirmamos ser o seu nome e a sua verdade [...] Composta por múltiplos estratos, esta razão data da Antiguidade [...] Têm consistido, desde sempre, numa actividade primitiva de efabulação. Trata-se, no fundo, de salientar vestígios reais ou comprovados, urdir histórias e constituir imagens. A Idade Moderna é, no entanto, um momento decisivo para a sua formação, devido, por um lado, às narrativas dos viajantes, exploradores, soldados e aventureiros, missionários e colonos e, por outro, à elaboração de uma “ciência colonial”, na qual o “africanismo” é o último patamar. Toda uma gama de intermediários e de instituições, tais como sociedades eruditas, exposições universais, colecções de amadores de “arte primitiva”, colaborou, na devida altura, na constituição desta razão e com a sua transformação em senso comum ou habitus. (2014a, p. 57).
Nessa construção discursiva e prática sobre a versão orientalista de África, Mbembe (2014a) ressalta particularidades, ao localizar suas diferentes camadas, especificamente dois textos principais: a consciência ocidental do Negro, conjunto de discursos e práticas com o objetivo de “fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível, a tal respeito, de desqualificação moral e de instrumentalização prática” (p. 58), procurando responder à questão “Quem é?” este Outro; e a consciência negra do Negro, surgido em resposta ao primeiro texto, “gesto de autodeterminação, modo de presença de si, olhar interior e utopia crítica” (p. 58) que busca resposta às perguntas “Quem sou eu?”, “Serei eu, em boa verdade, quem dizem que eu sou?” (p. 58-59). Enquanto o primeiro texto é um julgamento de identidade, o segundo é uma declaração de identidade, no interior de uma lógica de atribuição-interiorização-inversão que se constrói ao longo da história e a cada momento político e psicológico de autodeterminação do imaginário negro moderno criado em África e na diáspora.
No interior deste processo e do ponto de vista da consciência ocidental do Negro, a razão negra remete a três discussões fundamentais: 1) às disputas sobre a relação entre a racionalidade e a animalidade na definição do Negro; 2) ao desenvolvimento das tecnologias (leis, regulamentos, rituais) para os dispositivos que têm como finalidade submeter a animalidade ao cálculo, situando-a no círculo da exploração; e 3) à fabricação da infravida, que pode ser gasta sem reserva ou cálculo, ou, em seus próprios termos, o trabalho da raça como ritual sacrificial.
Estas três dimensões estão situadas no movimento de atribuição da raça que, como “língua franca da guerra social”, ideologia e tecnologia de governo, historicamente, realizou a política da raça, no sentido de unir o povo contra o estrangeiro, suscitar divisões internas e construir um ideal de humanidade superior. Um ethos racialista, nacionalista e militarista do projeto imperial nacional-colonialista que instaurou uma pedagogia interna e externa do racismo, pressuposta na atuação da burocracia colonial e no falso saber, desconhecimento e efabulação que assumiu como princípio que “o destino da África é o de ser possuída” (MBEMBE, 2014a, p. 128), no cerne do movimento de interiorização da raça na psicologia do europeu e do negro/africano.
Mbembe ressalta, então, os modos de inscrição da colônia no texto da consciência negra do Negro, como descentralização originária entre o eu e o sujeito, perda e dívida, e a construção do movimento de inversão, do se-saber-ele-mesmo e de-se-ter-a-si-mesmo, do apelo à raça no oprimido através do desejo de comunidade nos diversos nacionalismos, dos panafricanismos e da reflexão sobre os sofrimentos psíquicos do racismo e da “alucinação” no sistema colonial. Nesse sentido, duas contribuições teóricas são evocadas: Foucault e as práticas de poder, e Fanon e o racismo a partir da psicologia/percepção do negro em situação colonial. Em acréscimo, Mbembe adiciona a dimensão do imaginário/simulacro, da aparência de verdade na verdade das aparências, sendo a raça concebida como “ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma projecção ideológica cuja função é desviar a atenção de conflitos antigamente entendidos como mais verossímeis - a luta de classes ou a luta de sexos, por exemplo” (2014a, p. 28-29), e como “simultaneamente, ideologia e tecnologia de governo” (2014a , p. 71).
É nessa articulação teórica que Mbembe constrói uma visão fértil e polêmica sobre as continuidades entre o colonial e o “pós-colonial” ao ressaltar não apenas as funções do terror na colônia, mas também as funções alucinatórias da economia emocional da dominação colonial, baseada na regulação das necessidades e no fluxo dos desejos que institui uma economia libidinosa, baseada no consumo e na despesa absoluta. Mbembe confronta, então, a consciência negra do Negro com o que ele denomina de “pequeno segredo” (2014a, p. 179) da dominação colonial: a submissão e a cumplicidade do indígena através do seu desejo. É nesse contexto, então, que emerge o argumento do “pós-colonial” em Mbembe: as sociedades africanas, no período posterior às emancipações, não teriam saído da condição colonial, diante da experiência de regimes de dominação marcados pelo descontrole da violência, pelo domínio sobre a vida e a morte e pela fabricação de simulacros e estereótipos assentes associados às lógicas de extração na esfera econômica e de racialização no campo social (MACEDO, 2016, p. 292).
O que há de inovador nessa perspectiva, e também de polêmico, é a proposta de que a superação do colonialismo e do capitalismo racial passe pela requalificação do movimento de inversão da consciência negra do Negro, através da ultrapassagem do “ressentimento”, da “nevrose da vitimização” e do “desejo de vingança”, uma vez que tanto o Negro como o Branco seriam fantasias naturalizadas da imaginação europeia, que atualizam a política e o trabalho da raça. Em substituição, Mbembe apela para uma forma específica de cosmopolitismo, em apropriação crítica do ideário do pan-africanismo e do discurso da negritude: o Afropolitanismo, forma de conhecimento e atuação de uma intelectualidade autônoma em relação aos jogos de dominação internos e externos baseados nas atualizações da raça e do racismo e atenta ao devir-negro-do-mundo da situação contemporânea, quando, pela institucionalização de um padrão de vida descartável e solúvel e sua imposição generalizada ao mundo inteiro sob os efeitos de relações imperialistas, do neoliberalismo e de políticas securitárias, o nome Negro deixaria de remeter unicamente à “condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo” (2014a, p. 18).
Nesta altura, o pensamento de Mbembe desperta algumas polêmicas, no seu acerto de contas com visões ufanistas, nacionalistas e racialistas sintetizado no ensaio As formas africanas de auto-inscrição (2001). Um dos temas enfrentados é o da escravidão autóctone, ou seja, a relação de sociedades e reinos africanos com a prática da escravidão, antes mesmo da chegada de europeus ou dos árabes muçulmanos. Para ele, haveria, sim, um contraste entre a escravidão concentrada, grosso modo, apenas no sentido econômico, em larga escala, associada a perpetuidade e a estigmas raciais praticadas pelo capitalismo, e as práticas autóctones de escravidão, relacionadas a sentidos mais amplos como pagamento de dívidas, guerras, concubinagem e serviços econômicos que, eventualmente, assumiram aspectos mais “conviviais” e flexíveis em determinados contextos. Contudo, esses fatores, segundo Mbembe, não poderiam ocultar a realidade dos sistemas de dominação internos ao continente, a naturalização da escravidão como prática costumeira, o envolvimento de reinos e autoridades africanas específicas com o tráfico transatlântico e a economia libidinosa e alucinatória do colonialismo em África, com seu poder de sedução sobre desejos e interesses de elites africanas; e é por isso que esses fatores constituem, na verdade, a razão pela qual Mbembe recusa a imagem de uma África isenta de responsabilidade sobre as catástrofes que sobre ela se abatem (2001; 2014a).
CONCLUSÕES
O intenso e articulado trabalho de produção de conhecimento reunido sob o nome de Estudos Pós-Coloniais tem como intuito reescrever a história ocidental nos seus principais eixos, ressignificando, por exemplo, as relações entre emancipação, direitos humanos, civilização, escravidão e colonização que embasam as narrativas hegemônicas sobre os caminhos que conduzem do “tradicional” ao “moderno”, abrindo, assim, oportunidade para a escrita de histórias para além deste marco de referência e de sua reiteração. Em paralelo, essa contranarrativa se conectou, de diversas maneiras, à mobilização de movimentos sociais negros, feministas, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas, e à criação de políticas públicas afirmativas que garantiram ocupação de espaços na sociedade, reconhecimento de identidades e de direitos.5
É possível conceber, nesse sentido, que um conjunto de revisionismos associados a ideologias e a governos radicais de direita sejam, em grande parte, uma reação à saída da História dos trilhos da narrativa convencional do heroísmo ocidental euro-americano. Como exemplos, podemos citar a leitura da geopolítica como guerra cultural entre as civilizações cristã e islâmica; a revitalização de ancestralidades nacionalistas e/ou étnico-raciais brancas contra migrantes “latinos”, árabes e negros; a afirmação dos símbolos e performances de virilidade; e a substituição da ciência por mitologias e teorias da conspiração.
Disputas narrativas a partir do passado, portanto, não é algo novo. Conforme antecipado, é, na verdade, uma prática corriqueiramente praticada no campo das humanidades. Contudo, elas têm extrapolado as balizas de discussão do campo acadêmico e trafegado em uma esfera pública difusa, interconectada e mobilizada para o confronto e para a diluição da ciência em ideologia, lançando desafios éticos e políticos para a afirmação do rigor intelectual do “movimento pós-colonial” como vetor central de reconstrução das narrativas históricas. Em grande parte, isso demanda apoio a movimentos cívicos democráticos e engajamento intelectual na garantia de condições de pesquisa e divulgação científica dos diversos eixos de crítica. De outro, exige também um exercício autocrítico a respeito de tabus e temas polêmicos, cuja visão política em torno da qual se construíram se pretende emancipatória, mas que, a contrapelo, pode contribuir para uma visão romantizada, pronta a ser diluída na ideologia e na manutenção de relações assimétricas e segregadoras.
A influência do relativismo pós-moderno e sua ênfase nas particularidades e na equivalência entre ciência e narrativas alternativas serviram como caminho inicial para questões e saberes marginalizados em um senso de cosmopolitismo não condizente com as categorias marxistas e socialistas de transformação. Contudo, por outro lado, contribuíram para o arrefecimento do horizonte de transformação geral da sociedade e para a competição pelo status da verdade. A ênfase nas particularidades, sem um princípio analítico unificador, arrisca a transformação da interseccionalidade entre gênero, raça e classe em disputas autorreferenciadas sobre qual destes princípios é o mais estruturante das sociedades com base no sofrimento mais legítimo na afirmação de identidades específicas e ganhos setoriais na ordem do capitalismo liberal.
O projeto de movimentos federativos/ecumênicos de ideias, como as teorias do Sul, são ensaios da construção de pontes entre particularismos, através de movimentos coletivos sintonizados em uma linguagem comum, mas ainda carecem de anteparos contra a crítica da conversão da ciência em ideologia, no qual a dominação ocidental transforma-se, sob o olhar dos críticos à direita, em mais uma grande narrativa conspiratória, contra a qual se levantam narrativas concorrentes.
Um dos pontos sensíveis é a construção da ideia do que é o Ocidente e sua exceção. A compreensão sobre o capitalismo-colonialismo a partir do centro hegemônico euro-americano revela nexos históricos e de atualização da dominação; mas, ao mesmo tempo, tende a simplificar como os processos de afirmação culturais, racializadores, racionalizadores e coloniais do Ocidente não dependem eternamente da vinculação com a Europa. A concorrência entre eixos geopolíticos, como a afirmação do Oriente Médio, Rússia e China, exige pensar a mundialização do Ocidente como processo que ganha ares de autonomia e de impessoalidade em relação a enraizamentos específicos (LATOUCHE, 1994).
Em paralelo, a busca de alternativas ao Ocidente, não poucas vezes, conduz à construção de uma imagem mítica desrealizada, como a do continente africano. A imagem de uma África de tradições estáticas e solidárias simplifica o conjunto de transformações e hibridizações dos legados passados, locais e estrangeiros, e seus processos de modernização feitos por diferentes sociedades africanas. Ao mesmo tempo, isenta a reflexão sobre o lugar da África como Ocidente: um Ocidente subalternizado, mas coetâneo e conexo à construção do capitalismo-colonialismo.
A ideia de África como o não-Ocidente, na encruzilhada entre o olhar europeu e as alternativas buscadas nas práticas contra-hegemônicas, como uma “África tipo exportação” para finalidades as mais diversas: desde filosofias de solidariedade até negações da homossexualidade e do feminismo vistos como “contaminações” ocidentais (MOTT, 2005; BAMISILE, 2013) a sociedades que funcionam sem conflitos e de maneira harmônica. Enquanto isso, aumenta-se a distância entre a África imaginada e a África real em transformação. O “paradigma da vitimização”, por exemplo, correlato ao momento de inversão na consciência negra do Negro (MBEMBE, 2014a), aciona as bandeiras de lutas nacionalistas de regimes africanos, bem como o uso de uma imagem política de África para movimentos afrodiaspóricos, em um sentido comum, de defesa de certa narrativa histórica da espoliação em sentido único. A este movimento correspondem também lógicas binárias de afirmação de identidades, próprias das formas de segregação do Novo Mundo e não necessariamente em África ou Ásia (APIAH, 1996; 1998), que enxergam a divisão do mundo de modo binário e maniqueísta, entre brancos e negros ou homens e mulheres ou gays e héteros, em substituição à antiga lógica de oposição entre classes no interior do marxismo.
Contra visões essencialistas das fronteiras étnicas, culturais e políticas, os Estudos Pós-Coloniais têm o desafio de enfrentar a complexidade das diferentes negritudes, branquitudes, mestiçagens, masculinidades, feminilidades, transvestigeneridades e subalternidades, em um princípio de interseccionalidade estruturante, como base para uma revisão das narrativas únicas produzidas à esquerda e à direita, base para construção política de lugares de escuta, coalização, reconhecimento e redistribuição.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
AMSELLE, J.-L. L’Occident décroché: enquête sur les postcolonialismes. Paris: Fayard, 2010.
ANZALDUA, G. Borderlands/La Frontera - the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.
APPIAH, K. A. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
APPIAH, K. A. Patriotas cosmopolitas. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 36, 1998.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
BAMISILE, S. A. À procura de uma ideologia afro-cêntrica: do feminismo ao afro-feminismo. Via Atlântica. São Paulo, v. 1, n. 24, p. 257-279, 2013.
BARBOSA, M. S. A razão africana: breve história do pensamento africano contemporâneo. São Paulo: Todavia, 2020.
CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1978.
CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex. A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum. V. 1989, Issue 1, Article 8, p. 139-167.
CRENSHAW, K. Mapping the margins: interseccionality, identity politics and violence against women of color. Stanford Law Review. v. 43, p. 1241-1299, 1991.
DAVIS, A. Mulheres, raça classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Editions de minuit, 1980.
FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
FOUCAULT, M. Naissance de La biopolitique. Paris: Gallimard, 2004.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GILROY, P. O Atlântico Negro - modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34/UCAM, 2002.
GUHA, R. The Prose of Counterinsurgency. In: GUHA, R. Subaltern Studies II - writings on South Asian History and Society. Delhi: Oxford University Press, 1983. p. 01-40.
HENNING, C. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações. v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015.
KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.
LATOUCHE, S. A ocidentalização do mundo: ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petrópolis: Vozes, 1994.
Lorde, Audre. “Age, Race, Class, and Sex: Women Redefining Difference.” Sister Outsider: Essays and Speeches, Crossing Press, 1984, pp. 114-123.
LUGONES, M. Colonialidad y Género. Tábula Rasa. Bogotá, n. 09, p. 73-101, 2008.
MACEDO, J. R. Intelectuais africanos e estudos pós-coloniais: considerações sobre Paulin Hountondji, VY Mudimbe e Achille Mbembe. OPSIS, v. 16, n. 2, p. 280-298, 2016.
MBEMBE, A. As formas africanas de auto-inscrição. Estudos afro-asiáticos, v. 23, n. 1, p. 171-209, 2001.
MBEMBE, A. Necropolítica. Arte e Ensaios, v. 32, p. 123-151, 2016.
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014a.
MBEMBE, A. Sair da grande noite. Ensaio sobre a África descolonizada. Luanda: Mulemba; Pedago, 2014b.
MOTT, L. Raízes Históricas da Homossexualidade no Atlântico Lusófono Negro. Afro Ásia. n. 33, p. 09-33, 2005.
PERROT, M. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América. Ecuador Debate, n. 44, 1998, p. 227-238.
QUINTERO, P. et al. Uma breve história dos estudos decoloniais. In: CARNEIRO, A. (org.). MASP After all. São Paulo: MASP, 2019. p. 1-12.
ROSA, M. C. Sociologias do Sul: ensaio bibliográfico sobre limites e perspectivas de um campo emergente. Civitas, v. 14, n. 1, p. 43-65, 2014.
SAID, E. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras , 1990.
SCHMITT, C. La dictature. Paris: Seuil, 2000
SPIVAK, G. Subaltern Studies: Deconstructing Historiography. In: SPIVAK, G. In Other Worlds: essays in cultural politics. New York/London: Routhledge, 1988a. p. 197-221.
SPIVAK, G. Can the subaltern speak? In: NELSON, C.; GROSSBERG, L. Marxism and the interpretation of culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988b. p. 271-313.
WEIZMAN, E. The politics of verticality. Open Democracy. 25 abr. 2002. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/en/article_801jsp/. Acesso em: 03 ago. 2022.
WHITE, H. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: USP, 2001.
Notes
Author notes
E-mail:silviana_mariz@unilab.edu.brE-mail:fvasconcelos@unilab.edu.br