Artigo

Cicatrizes são documentos em alto-relevo: narrativas sobre os direitos humanos de travestis em prisões gaúchas

Scars are high-relief documents: Narratives about human rights of she-males in prison jails in the Brazilian state of Rio Grande do Sul

Amilton Gustavo da Silva Passos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Fernando Seffner
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Cicatrizes são documentos em alto-relevo: narrativas sobre os direitos humanos de travestis em prisões gaúchas

Anos 90, vol. 28, e20210206, 2021

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

Received: 27 June 2021

Accepted: 04 January 2022

RESUMO: O presente artigo tem como foco o que denominamos como narrativa de vida visceral, que fala de sofrimentos que implicam em marcas corporais e abusos cometidos particularmente em corpos de travestis, e uma narrativa que se faz citando as experiências de sofrimento de outras travestis, fragmentos de uma história compartilhada, mesmo que vivida em tempos diferentes. Tomamos o corpo e suas cicatrizes como um documento histórico que insere, em especial, as travestis em uma cronologia de longa duração e em um coletivo que se reconhece pela situação de sofrimento que padece. As vidas sobre as quais nos debruçamos só tiveram a oportunidade de ter sua história narrada porque os olhos do poder as capturaram. A estratégia de citar, reiterada e coletivamente, a existência recorrente desses sofrimentos e da memória das que pereceram durante o encarceramento produziu uma materialidade enunciativa, sobre a qual nos debruçamos. Portanto, entrevistamos um grupo de pessoas gays, bissexuais, travestis e mulheres transexuais presas entre os anos de 2013 e 2018 em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, e analisamos elementos de suas narrativas à luz, sobretudo, da noção de precariedade butleriana. Percebemos que a instituição prisional gerenciou vidas não percebidas como viáveis, às vezes sequer percebidas como vidas, estando na categoria de vidas precárias que necessitam de cuidados. O processo político que analisamos dialoga com o campo dos direitos humanos.

Palavras-chave: Travestis e transexuais, sistema prisional, precariedade, vulnerabilidade, corpo.

ABSTRACT: This article is one of the outcomes of a research project that followed, from 2013 to 2018, the everyday life of a group of gays, bisexuals, travesti and transwomen in a prison institution at Porto Alegre, Rio Grande do Sul, and analyzed elements of their narratives in light of the notion of precariousness, by Judith Buttler. Our interest here focuses on what we call the visceral narrative of a life, which speaks of suffering that implies bodily marks and abuses committed particularly on travesti’s bodies, and a narrative that is made by quoting the suffering experiences and fragments of a shared history, even if lived in different times. We take the body and its scars as a historical document, which inserts she-males in a long-term chronology and in a collective that is recognized by their shared suffering situation. The lives we dwell on have only had the opportunity to disclose their story because the eyes of power have captured them. The strategy of citing, repeatedly and collectively, the recurring existence of these sufferings and the memory of those who perished during incarceration produced an enunciative materiality, which we focus on. The social movement that created the specific wing for she-males and transsexuals - as well as gay and bisexual people - in the prison institution produced lives not perceived as viable, and sometimes not even perceived as lives, being in the category of precarious lives, in need of care. The political process that we analyzed dialogues with the field of human rights.

Keywords: Travesti and transwomen, prison system, precariousness, vulnerability, body.

Prisões na América Latina e o tratamento penal de pessoas LGBT

O encarceramento, materializado nos mais diversos espaços de reclusão, é um instrumento de punição hegemônico, sobretudo do Ocidente moderno. A partir do século XVI, seu uso como parte do aparato repressor do Estado passou a ser sistemático e institucionalizado como um sistema intrínseco ao funcionamento estatal (FOUCAULT, 2014). É a partir desse período histórico que a máquina prisional aparece como produto do deslocamento da racionalidade punitiva, que passa a se apossar da vida de determinados segmentos populacionais com políticas de extermínio social, não apenas extermínio físico (MBEMBE, 2018).

Na virada do século XVIII para o XIX, considerando a grande influência da reforma penitenciária nos Estados Unidos, a Europa e a América Latina passaram por um processo de revisão de seus sistemas de punição por meio da reclusão. A partir desse período, as prisões se tornaram não apenas uma forma de punição individualizada, mas que teria efeitos somente sobre o corpo físico daquele que é posto em reclusão. O encarceramento permaneceria como uma instituição com requintes de tortura pautada na produção de sofrimento e abandono de um empilhamento de pessoas indesejáveis. Trata-se de um equipamento do Estado que produz um empobrecimento social generalizado, além de estigmatização.

No contexto latino-americano, as prisões já apresentavam uma multiplicidade de configurações institucionais que estabeleciam uma rede de punição integrada. Cadeias da Inquisição, postos policiais e militares, casas religiosas para mulheres, cárceres privados em fazendas e plantações, ilhas e presídios, entre outras formas menos convencionais (AGUIRRE, 2009). Essas instituições prisionais seguiram sendo absolutamente ineficientes em produzir o que em tese prometiam: a suposta correção do detento (CESAR, 2013). Mesmo assim, o estado de insalubridade e violência seguiu sendo uma característica marcante das prisões da América Latina, mesmo após consumadas as independências das colônias e os subsequentes surgimentos de seus respectivos códigos penais.

Não há, portanto, uma descontinuidade radical do modelo penal-carcerário pré-independência no contexto da América Latina. E, segundo Tiago da Silva Cesar, nas paredes e muros de suas decrépitas cadeias, é onde se pode ler as páginas da lenta, gradual e desigual transição dos antigos cárceres de detenção às prisões-modelo dos novos Estados Nação (2013, p. 36).

Embora cada país da América Latina tenha sua própria historiografia das prisões, é possível dizer que há uma homogeneidade regional na manutenção de prerrogativas antigas, mesmo na contemporaneidade. Trata-se de uma estrutura punitiva herdada dos tempos coloniais e mantida vigente em suas características principais (AGUIRRE; SALVATORE, 1996). Características essas como a produção de marginalidade direcionada a determinados segmentos populacionais indesejáveis. A prisão é, assim, parte de um amplo sistema de implementação de formas brutais de exclusão econômica e social.

Um dos efeitos da privação de liberdade nas prisões é o processo de apagamento social. Comumente, trata-se de uma população que é vista como um grupo monolítico, ou seja, como se existisse uma homogeneidade prescritiva compartilhada por todo esse grupo. Esse efeito faz parecer que todas as pessoas privadas de liberdade teriam características similares entre si e, por consequência, teriam as mesmas demandas e carências. Como fruto da visibilidade de grupos considerados dissidentes dessa noção hegemônica das pessoas privadas de liberdade, novas pautas têm ocupado a agenda pública. Questões como maternidade, liberdade sexual e saúde no cárcere, além de alas ou celas especiais para pessoas transgênero nos estabelecimentos penais, ganham evidência no atual debate sobre a política penitenciária na América Latina.

Nesse contexto, a população LGBT, privada de liberdade, se encontra em particular risco de sofrer tortura e maus-tratos, tanto dentro dos sistemas de justiça criminal e juvenil quanto em outros contextos, como em estabelecimentos médicos. Assim, como alegado em 2016 pelo Relator Especial sobre Tortura da Organização das Nações Unidas em sua passagem pelo Brasil, constata-se que o sistema de justiça criminal tende a negligenciar as necessidades específicas de pessoas autodeclaradas como parte da população LGBT (ONU, 2016).

A prisão é uma instituição configurada a partir da mesma matriz de gênero e sexualidade que orienta as normas da nossa sociedade como um todo. Justamente por ser atravessada por esses marcadores, a presença de corpos transgressores dessas normas acaba por expor os conflitos, as brechas, os interstícios, as fissuras e as disjunções das regulações típicas da prisão. Se as sociedades operam formas de regular e de materializar certas normas nos sujeitos, e se elas necessitam ser repetidas frequentemente, citadas e reiteradas, fatalmente ocorrem torções e lapsos no processo (BENTO, 2006; BENEDETTI, 2005). Os poucos estudos que têm se dedicado ao tema das pessoas LGBT privadas de liberdade trazem narrativas que demonstram as formas de violência, tortura e maus tratos vividos por essa população na prisão. Corte de cabelo compulsório, desconsideração do nome social, violência física, assédio e violência sexual são alguns dos exemplos mais recorrentes nessas pesquisas. Tais pesquisas compõem formas de documentação contemporânea da experiência de encarceramento dessa população. Nos perguntamos, porém, como ter acesso à experiência de encarceramento, sobretudo de travestis e transexuais, que passaram pelo sistema prisional no período anterior à recente emergência dessa pauta?

Delas muito se fala, mas a elas pouco se escuta

No ano de 2014 foi publicada a primeira resolução nacional que estabelecia certos padrões mínimos para a custódia de pessoas LGBT1 nas prisões brasileiras. Tratava-se de um documento curto e bastante embrionário, hoje já datado e avaliado como pouco ousado, mas, certamente, paradigmático no contexto emergente da pauta em meados daquele ano. O Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD)2, em conjunto com o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)3, publicaram a Resolução Conjunta nº 1 (BRASIL, 2014) que, em seu texto, apresenta orientações direcionadas para as administrações penitenciárias estaduais. Entre os pontos presentes no documento, está a formalização de que a criação de alas/celas destinadas a agrupar a população de gays, bissexuais, travestis e transexuais seria uma estratégia para reduzir o risco ao qual esse grupo estava - e ainda está - submetido nas prisões. A resolução incorpora um conjunto de categorias da linguagem dos direitos humanos, como gênero, orientação sexual, nome social, vulnerabilidade, bem como cita documentos nacionais e internacionais na matéria, destacando-se aqui os Princípios de Yogyakarta4 (princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero), referência jurídica amplamente endossada pelos movimentos sociais no campo dos direitos sexuais, reprodutivos e de gênero até os dias de hoje.

Acompanhamos ao longo de seis anos a ala destinada à população LGBT na Cadeia Pública de Porto Alegre (antigo Presídio Central de Porto Alegre), no período de 2013 a 2018, em parceria com as atividades ali desenvolvidas por uma organização não governamental que é referência no movimento social dessa população em Porto Alegre. A materialidade enunciativa utilizada para essas análises foi produzida a partir da participação em oficinas realizadas com as pessoas privadas de liberdade, de conversas individuais com os apenados e as apenadas da ala chamada GBT5 e de observação das rotinas no estabelecimento. A observância dos princípios éticos acompanhou as diretivas das autoridades do presídio, e a pesquisa se inseriu dentro do acordo já feito para a atuação da organização não governamental, que fazia acompanhamento das demandas da população da ala. Dessa forma, um conjunto de narrativas foram registradas em diário de campo, posteriormente transcritas, mostradas aos informantes e às informantes, sistematizadas e analisadas.

Os documentos que refletem o cotidiano da vida de pessoas LGBT nas prisões são escassos, não indo além de declarações colhidas em processos e oitivas, sempre muito sumários. Além das raras pesquisas, das normativas que dão algumas pistas, das decisões judiciais e notícias de jornal que relatam episódios específicos em período recente, o que circula de informação sobre essa população aparece frequentemente com requintes caricaturais. São poucas as histórias registradas com a devida imersão e olhar minucioso nas problemáticas acerca do que significa e do que pode implicar ser reconhecido com LGBT em uma instituição de privação de liberdade. Existe um conjunto particular de vulnerabilidades e violências as quais pessoas LGBT estão sujeitas internamente aos muros de uma prisão, sobretudo quando consideramos o encarceramento de travestis e mulheres transexuais. Tivemos a oportunidade de ser interpelados por diversas histórias que pautavam dores, amores, feridas e reinvenções. Era tudo muito vivo, situações pulsantes que falavam de uma realidade muito atual e emergencial. Uma das nossas interlocutoras narra:

Antes da galeria a gente tinha que fazer o que os duques6 queriam. A gente era estuprada, faziam a gente carregar celular no ânus. Essas (travestis) novas que chegaram agora não sabem como era antes nesse lugar (Fernanda7).

Essas mulheres trans e travestis produzem, por meio de uma narrativa visceral, o panorama das formas de violência destinadas a essa população. Mas, além do relato de um conjunto de histórias de si, cada narrativa parece se apoiar e se fortalecer no que há de similar na narrativa de outras e outros. Com o aprofundamento das relações com o ambiente prisional, e particularmente com as internas na galeria GBT, foi-se tornando cada vez mais evidente que, ao falar de seu sofrimento, nossas interlocutoras o faziam citando as experiências das outras, fragmentos de uma história compartilhada, mesmo que vivida em tempos diferentes:

Toda vez que tinha algum problema com as facções eu ficava com muito medo. Eu ficava numa cela com os crimes sexuais. Eles nem mexiam com nós, na verdade, mas quando a gente ficava sabendo que tinha ladaia8 com as facções a gente ficava com medo. A gente sabe que se a cadeia virar nós somos as primeiras. Eles vêm logo atrás da gente pra oprimir, pra bater. Da gente e dos duques (Ana).

Não temos acesso a documentos que ofereçam materialidade para compor uma narrativa da história da experiência, em primeira pessoa, dos GBT que não conhecemos, mas que viveram, ou até morreram, naquelas celas frias de tijolos envelhecidos. Nesse contexto, nos perguntamos se é possível construir o cenário da história de uma existência que não está mais ali. Viver na prisão deixa marcas físicas, emocionais e simbólicas. Se há algo de compartilhado nessas feridas, se existe uma regularidade de violência desferida contra essa população que implica em certo grau de homogeneidade nas marcas deixadas, ler as cicatrizes pode, de alguma forma, dar acesso às vidas que já passaram por ali?

Em 2018 foi publicado o Edital 11/2018 do, até então, Ministério dos Direitos Humanos, que tinha como objeto a contratação de um pesquisador para que fosse realizado o primeiro estudo em escala nacional sobre a situação das pessoas LGBT privadas de liberdade. Para operacionalização do estudo foi visitada ao menos uma unidade prisional em cada Estado da Federação. Nas ocasiões de visita, foram realizadas entrevistas tanto com pessoas LGBT privadas de liberdade, quanto com policiais penais, técnicos e servidores administrativos. De forma complementar, a fim de dar um panorama de fundo generalizável, foram enviados formulários online para todas as unidades prisionais do país, com ótimo percentual de retorno. O estudo apontou uma série de padrões de violações de direitos, conflitualidades e violências comuns na experiência de encarceramento de pessoas LGBT, principalmente no tocante à vida de travestis na prisão, conforme apresentado no documento LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento (BRASIL, 2020). Estabeleceram-se perfis etários, étnico-raciais, tipos criminais mais frequentes, além de comprovar quantitativamente que apenas 40% dos LGBT presos recebem algum tipo de visita, o que coloca essas pessoas como as menos visitadas no sistema prisional, comprovando uma situação de perda de laços familiares e afetivos. Os dados dessa pesquisa em caráter nacional dialogam em sintonia com o que colhemos em nosso trabalho de campo.

Retomamos a afirmação que mais nos chamou a atenção: o encarceramento de travestis e mulheres transexuais apresenta um conjunto quase que de padrões de violência desferida contra elas, conforme o relatório indicado (BRASIL, 2020), e em sintonia com nossas observações. São práticas particularizadas, que tomam como matriz a dissidência dos parâmetros hegemônicos de gênero para se especializar, tornando-as sempre muito eficientes em causar sofrimento. Partindo dessa noção, oferecemos aqui um ensaio sobre como as marcas deixadas pela violência relatada por travestis e transexuais na prisão são, ao mesmo tempo, individuais e coletivas. Argumentamos que há sempre algo de nós no Outro (BUTLER, 2015b), portanto, parte da história do Outro também está em nós. Dessa forma, o eventual aparecimento de um coletivo de travestis e mulheres transexuais, no contexto da Cadeia Pública de Porto Alegre, materializada em uma ala de acolhimento especial a elas permitiu não apenas conhecer suas histórias individuais, mas expôs o que há de coletivo em suas cicatrizes.

Primeiramente, gostaríamos de pensar sobre certas minúcias acerca do aparecimento das travestis nas prisões. Como os corpos das travestis - personagens mais antigas no registro de inclusão no sistema prisional - permaneceram e resistiram à destruição e se fizeram presentes até o ponto em que sua presença fosse inegável e forçasse seu reconhecimento e direito a um local de habitação próprio no sistema, como outros grupos já haviam conquistado. Como os vestígios das travestis que não só estiveram lá, mas que viveram, morreram, sofreram, resistiram e reverberaram suas vozes mudas, às vezes em alto som, mesmo que, por vezes, ninguém as ouvisse. O status de notável é, também, efeito de um somatório do que se diz sobre algo, como o coletivo de travestis que estão agrupadas em um espaço reservado em uma instituição conhecida pelas suas duras sanções para tudo que não está em plena concordância com as normas de gênero e sexualidade. Parece-nos que, de alguma forma, a voz dessas que desafiam as normas em benefício de sua própria existência ecoa a partir dos registros não presentes daqueles a quem não se ouvia.

Ecos do passado, vestígios no presente

Classificar e separar determinado grupo no cárcere instaura uma infinidade de novas regularidades que são produzidas institucionalmente, e que implicam na vida particular dessas pessoas, causando reflexos na vida dos demais. Não há como apontar precisamente o momento anterior na história das prisões em que a primeira travesti pisou, ou assim foi reconhecida, em um lugar como aquele, seja porque a relação entre essa palavra e a pessoa que ela designa ainda não fosse estabelecida, seja porque a materialidade de um corpo travesti ainda estivesse no âmbito do impensável em nossa sociedade, ou simplesmente porque não havia luz sobre suas vozes durante o encarceramento.

Vivemos um momento, que coincidiu com a duração da nossa pesquisa, de forte circulação do tema das pessoas LGBT presas em diversos âmbitos. Diversas matérias jornalísticas, atuação de organizações da sociedade civil, orientações nas esferas estadual e nacional de tratamento penal para essa população, decisões em outros países acerca do tema que circularam na imprensa. Particularmente a ampliação do debate acerca da situação prisional de travestis e transexuais acompanha a crescente visibilidade da atuação política desse grupo, que nas eleições municipais de 2020 experimentou um recorde de candidaturas, e um recorde de candidatas mulheres trans e candidatos homens trans eleitos para as câmaras locais. Esta pauta motivou o posicionamento, em 2019, do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria9. A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) questionou decisões judiciais contraditórias na aplicação da Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação 1/2014 perante ao Supremo Tribunal Federal por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A partir da decisão favorável (em caráter liminar), pessoas transexuais tiveram reconhecido o direito de serem transferidas para unidades prisionais de acordo com sua identidade de gênero, caso desejem. A manifestação do STF nessa matéria ampliou o impacto da Resolução Conjunta nº 1, que teria, até então, apenas carácter orientador. Assim, certamente a atitude de separação dessa população em lugares específicos no cárcere - galerias, alas, celas, setores - tem produzido efeitos de visibilidade. Essas práticas institucionais, quando oficializadas, são documentadas em alguma medida, seja por um ofício interno repassado para a superintendência prisional responsável, ou pela circulação desta informação em meio aos próprios apenados. Quando uma prisão institui esse tipo de reserva de vagas, sobretudo, considerando o atual estado de encarceramento em massa no Brasil, não demora muito até que essa informação vire notícia.

Esse tipo de efeito quase modifica, até mesmo, a estrutura física da prisão, e impacta rotinas que envolvem pessoas bem distantes da população de travestis e transexuais. A vontade de saber sobre a vida das travestis presas incita à fala e à circulação de saberes, infiltrando o que se diz sobre essa população por meio do concreto dos muros. As paredes tornam-se mais porosas. A solidez de uma prisão não é apenas a capacidade de controlar o ir e vir de pessoas, mas também de informações. Um dos carcereiros relatou que, desde a abertura da galeria específica para GBT na cadeia em que trabalhamos, o setor de triagem, que recebe os presos recém ingressantes, incluiu na pergunta “em que galeria você gostaria de ser alojado, e na qual se sentiria seguro”, a opção “galeria reservada a gays, bissexuais e travestis e transexuais”. Alocar cada um em espaço seguro é dever do Estado, que é responsável pela vida da pessoa desde que ela ali ingressa. O carcereiro nos disse, entre risos, que já havia recebido, algumas vezes, em resposta à oferta desta opção, manifestações com variações da frase “sou bandido, sou criminoso, mas não sou puto, o que é isso agora?”. Não saber exatamente o que acontece no cotidiano interno das prisões também é um efeito que se espera dos muros das cadeias. Entretanto, ainda nos parece que há algo de exterior a cada voz de uma travesti presa que ali é ouvida. Se a visibilidade dessas vozes e dessas dores também depende da esfera institucional, política, além da capacidade da circulação da pauta nos espaços de poder, parece haver algo maior que a narrativa individual, algo coletivo, externo ao indivíduo.

No (belíssimo) texto A vida dos homens infames, Foucault (2003) analisa documentos datados dos séculos XVII e XVIII. São documentos que citam determinadas pessoas que viveram no passado: remendões, soldados desertores, vendedoras de roupas de segunda mão, monges, errantes sem trabalho, todos escandalosos ou desprezíveis, enfim, toda sorte de vidas reais em sua banalidade. Foucault descartou de sua investigação memórias, lembranças e personagens da literatura e se debruçou sobre documentos que diziam de pessoas registradas na história por motivo diverso de fama. Trata-se de documentos provenientes de arquivos de internatos, da polícia, das petições ao rei e das cartas régias com ordem de prisão. Um dos argumentos defendidos por Foucault nesse texto é que ele mesmo só teve acesso aos fragmentos das vidas dessas pessoas porque, em algum momento, elas se depararam com o olhar do poder. Nesses arquivos constam, por exemplo, descrições de infrações que relatam situacionalmente a vida daquela pessoa. Nesse caso, a narrativa policial, o decreto do rei, ou qualquer outra forma de operação do poder foi, ao mesmo tempo, o flagelo que recaiu sobre o indivíduo e a luz que resguardou seu lugar na eternidade dos registros históricos.

Fischer (2008) faz uma análise do filme Cidade de Deus, do diretor Fernando Meirelles, em seu texto Quando os meninos de Cidade de Deus nos olham. Dentre os pontos explorados no texto, como a crítica à representação ou ao ser criança em condições de violência, Fischer se aproxima muito sensivelmente dos meninos da Cidade de Deus em sua infâmia. Segundo a autora, esta obra fílmica “põe o foco sobre vidas que, na sociedade brasileira, estão à margem, em muitos casos na condição de subcidadania” (FISCHER, 2008, p. 196). O filme produz uma versão crua de conflitos muitíssimo violentos que estariam confinados a um não-conhecer das camadas hegemônicas da nossa sociedade. Coloca em cena um universo de relações protagonizadas por sujeitos dotados de vidas “pouco importantes”. Muitos moradores de favelas das grandes cidades podem olhar para aquele filme e reconhecer semelhanças com sua própria vida. Portanto, esse filme põe em foco histórias que não circulariam tão amplamente e as entrega por meio de uma narrativa “soco no estômago”, tanto aos espectadores que podem enxergar algo próximo de suas próprias vidas na tela de um cinema ou da TV, como aos que sairão da sala de cinema incrédulos de que situações como as do filme realmente aconteçam no país ou sociedade em que vivem.

Ambos os textos tratam, mesmo que de maneiras diferentes, de como certas histórias, certas existências, aparecem para nós sob condições pautadas na ação do poder. Foucault toma os documentos históricos, enquanto Fischer trabalha a partir dos registros fílmicos (que não deixam de ser, também, documentos). Em ambos os casos, a materialidade enunciativa diz de vidas que talvez não aparecessem sem essa relação ambivalente com o poder. Para tentar responder nossas questões, gostaríamos de pensar um pouco justamente sobre o meio de acesso a essas vidas.

Um documento, como as cartas régias com ordens de prisão ou como uma obra fílmica, possibilita ver um tipo de materialidade enunciativa que pode nos colocar em contato com uma versão, sempre interpelada e atualizada, pelos discursos de uma época, de uma vida ou uma existência. São raros os documentos que, como os infames de Foucault, ou os meninos de Meirelles analisados por Fischer, indiquem os encontros ocorridos há muito entre as travestis presas e o poder. A materialidade enunciativa nesse caso parece ser muito mais efêmera, quase como uma névoa que facilmente se dissipa. Dadas as duras condições de sobrevivência das travestis em privação de liberdade, nos inúmeros relatos de violência, nos boletins policiais, etc., antes da circulação mais notável do tema do encarceramento de LGBT, apenas se intuía sobre a violência vivida por essa população. A visibilidade alcançada pela narrativa das travestis presas hoje permite, por meio de sua fala, que tenhamos acesso à memória das inúmeras que sofreram no passado.

Cada voz de uma travesti presa ouvida hoje carrega em si o acúmulo dos lamentos de tantas outras que, apenas por meio das que hoje têm suas reivindicações ouvidas, podem, também, de alguma forma falar. Poder relatar essas vidas infames tornou-se um importante instrumento político para se fazer ouvir essas vozes. A crueldade que recai sobre as travestis presas é tamanha que talvez a visibilidade dessa pauta dependa fortemente da possibilidade de carregar em si a memória e o relato de tantas outras que sofreram, foram torturadas e mortas. Portanto, ser um registro corporal do sofrimento de outras é um ato político com pelo menos dois efeitos mais imediatos. Primeiramente, expõe para o outro uma dor que demanda resposta. Interroga-nos e nos faz responder, mesmo que essa resposta seja o silêncio. Em termos estritos, não há indiferença na presença da dor. A dor do outro diz sobre nós na medida em que reagimos a ela, seja a reação qual for. Em segundo lugar, abre espaço para a reivindicação dos mortos. Aquelas que caíram perante a violência e que foram deixadas para trás, na voz das que trazem as mesmas marcas da violência no corpo, as que pereceram podem falar, reivindicar, podem demandar pela sua própria memória, como também pelas vidas daquelas que ainda podem usufruir de uma existência viável.

No contexto do encarceramento, sobretudo para as existências subalternas, mesmo dentre as pessoas privadas de liberdade, o corpo presente é, ao mesmo tempo, o patrimônio, o documento, a memória e, sobretudo, um importantíssimo instrumento político. É importante ressaltar que quando nos referimos ao corpo não o estamos reduzindo a um aglomerado de moléculas que podemos delimitar: o corpo é, ao mesmo tempo, a sua materialidade e sua exterioridade, o que inclui, portanto, o Outro. Dessa forma, o aparecimento do corpo no cárcere, sua permanência e sua instrumentalização política, enquanto demanda ou memória, necessita mais do que de si próprio. Como dissemos anteriormente, a criação de alas e celas destinadas para a custódia de travestis e transexuais nas prisões não inaugurou a presença dessa população no cárcere. Elas já estavam lá, entretanto sua presença era mais facilmente silenciada e suas histórias mais facilmente esquecidas, uma vez que estavam dispersas em meio à chamada massa carcerária. O corpo presente das travestis parece se transfigurar em documento apenas na coletividade. A capacidade de demandar a partir da presença parece, portanto, ser uma potência fundamentalmente compartilhada. A fim de abordar o aparecimento do corpo demandante como uma potência fundamentalmente coletiva, pensaremos sob a égide da argumentação apresentada por Judith Butler (2018).

O corpo persiste: o ato político de aparecer e permanecer

Antes que ocorressem agrupamentos notáveis de travestis nas prisões, suficientemente numerosos e fortalecidos para realizar uma demanda institucional que não pudesse ser tão facilmente ignorada, muitas travestis passaram pela prisão. Muitas delas sofreram as mazelas do cotidiano do encarceramento, esse tipo de violência que, inclusive, continua como um fantasma persecutório permanente e onipresente e que assombra as travestis que usufruem dos espaços reservados. O que escutamos na cadeia foram muitas variações em torno de um conteúdo similar:

A gente era obrigada a ter relações com eles [os duques], guardar coisa dentro da gente. Não tinha como dizer não. Os acessos às celas eram abertos antes de fecharem a galeria só para gente.10 (Rebeca).

Do ponto de vista da Lei de Execuções Penais, na esfera federal, e do regimento interno de cada Estado, existe um conjunto de regras que servem de instrumentos para a institucionalização das normas de conduta do interno. Mesmo que nenhum desses textos formais aponte, de forma explícita, para a proibição das existências de travestis nas prisões, a operacionalização de certas regras acaba por recair sobre essa população de forma muito específica. Um exemplo disso é o que diz o estatuto vigente para as prisões do Estado do Paraná (PARANÁ, 1995):

Art. 62 - São consideradas faltas médias:

I. Deixar de acatar as determinações superiores;

II. Imputar falsamente fato ofensivo à administração, funcionário, preso ou internado;

III. Dificultar averiguação, ocultando fato ou coisa relacionada com a falta de outrem;

IV. Manter, na cela, objeto não permitido;

V. Abandonar, sem permissão, o trabalho;

VI. Praticar ato libidinoso, obsceno ou gesto indecoroso; (p. 14, grifos nossos).

Mesmo que diversos estudos apontem que homens cisgêneros e heterossexuais mantêm relações sexuais em contexto de encarceramento, as atenções das práticas de fiscalização voltam-se majoritariamente para as travestis e os homens gays. Sobre os homens heterossexuais, sobretudo os que têm vinculação com tráfico, parece pairar um voto de silêncio mútuo entre os pares e entre os apenados e os agentes de segurança. Assim como na sociedade tomada de modo geral, na prisão também opera um conjunto de práticas que tentam sistematicamente garantir normas que regulam os corpos e os prazeres, e que produzem contornos hegemônicos que orientam as manifestações e performances de gênero. Na prisão, o preço a se pagar pode ser bem maior e vir muito mais prontamente ao ser reconhecido em qualquer lugar de gênero não-hegemônico ou ser apontado como praticante de qualquer sexualidade não-heterossexual. Mesmo que mais recentemente a separação de travestis em espaços reservados possa eventualmente minimizar a violência desferida pelos outros apenados, isso não significa dizer, necessariamente, que o ambiente carcerário se tornou menos cisheteronormativo.

Nos dispusemos a refletir mais sobre as marcas deixadas no corpo, a materialização em carne do sofrimento, esta superfície de disputa que é, ao mesmo tempo, particular e compartilhada. Os corpos das travestis presas não apareciam enquanto sujeitos de direitos, tampouco enquanto existências que podiam usufruir de uma rede de sustentação vital minimamente consolidada. Queremos retornar um pouco para esses vestígios do sofrimento que, de alguma forma, oferecem o relato do passado a todo o tempo retomado e atualizado. Judith Butler, no seu trabalho denominado Corpos em aliança e a política das ruas (2018), levanta uma série de questões sobre o que significa dizer espaço público. Mais especificamente, quais são as relações de poder que pautam a praça pública, sobre os limites da suposta universalidade do acesso a esse espaço, bem como, e este é um tema central para o pensamento que empreendemos aqui, qual é e como se constitui o conjunto de condições que pauta a possibilidade do aparecer. Segundo a autora, dizer que o gênero opera muito mais como um verbo, ao invés de um substantivo, ou seja, que os parâmetros de gênero são, ao mesmo tempo, encenados e produzidos (produzidos pela encenação e produtos de uma repetição performativa que atualiza as especificações de gênero de uma época), é dizer que o gênero é certo tipo de fazer. Os parâmetros de gênero são orientados e, de certa forma, induzidos por normas que exigem que nos tornemos algo interno a um gênero ou outro, respeitando uma matriz binária. Portanto, o que chamamos de gênero é sempre uma negociação com o poder. Justamente por ser um campo de disputa, essas repetições orientadas pelas formas hegemônicas de poder correm o risco de falhar. As representações podem incorrer em falhas em sua execução, que acabam por desfazer ou refazer as linhas prescritas pelas normas de maneiras inesperadas. A falha aqui é entendida como um conjunto de ocorrências que impossibilitam a desejada reiteração da norma, a saber, hesitações, afasias, sustos, equívocos, surpresas, não respostas, enganos, burlas, modos de manifestar erotismo que por vezes “escapam”, atos falhos, etc. Exercer sua versão particular de gênero que, de alguma forma, se distancie dessas prescrições, pode acarretar efeitos, como ser alvo de brutalidade policial, assédio, criminalização, patologização e destruição.

Para avançar no pensamento sobre o aparecimento e sobre a permanência de um corpo no cárcere, gostaríamos de trazer a distinção que a autora faz entre precariedade e vulnerabilidade (BUTLER, 2015a ), na obra intitulada Quadros de guerra. A noção de precariedade diz respeito ao conjunto de condições, sobretudo externas ao indivíduo, que tornam possível reconhecer uma vida como tal. Em outras palavras, trata-se dos termos presentes nas configurações sociais que conferem ao corpo a sustentação suficiente para que sua existência seja, de fato, apreendida enquanto uma vida. Afinal,

o ‘ser’ do corpo ao qual essa ontologia se refere é um ser que está sempre entregue a outros, as normas, as organizações sociais, e políticas que se desenvolvem historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros. (BUTLER, 2015a , p. 15).

A vida é empreendimento sempre precário. Mas experimenta modulações, que são construídas socialmente, penalizando uns, salvando outros. Se pensarmos no contexto prisional, há um escalonamento dos componentes sociais que dão sustentação a certas vidas e não a outras. Pessoas privadas de liberdade já experienciam um prejuízo generalizado que tem efeito na sua reconhecibilidade enquanto vidas. A narrativa do “bandido bom, é bandido morto” é apenas um exemplo de enunciado que expõe que, para parte da sociedade, matar um “bandido” não seria, ou não deveria ser considerado um assassinato. Não deixa de ser interessante perceber que no Brasil tal ditado concorre com outro, que interessa ao tema que pesquisamos, a saber, “prefiro um filho bandido do que um filho viado11”. Particularmente, no que diz respeito à Cadeia Pública de Porto Alegre, um interno que participa do programa de desintoxicação de drogas, ou que vive na ala das pessoas que se declaram evangélicas (AZEVEDO, 2015), é alçado a um patamar de vida viável - vida que tem um futuro que se aposta como promissor no caso dos apenados - quando comparado a alguém que cometeu crimes hediondos (como crimes sexuais ou infanticídio), ou a uma travesti. A expectativa de vida e futuro pode ser apanhada em um detalhe prosaico.

Presenciamos uma cena de libertação de um prisioneiro após a conclusão de seu período de pena. Recolhidos seus pertences, ele atravessou a porta interna de saída, virou-se para os policiais, e disse “tchau”. Um dos policiais respondeu com um “até logo”, em voz baixa. Dialogando acerca do episódio, verificamos que alguns dos que concluem a pena e saem do presídio “merecem” um tchau, pois se estima que ali não retornarão. Já outros são “clientes frequentes”, então a despedida se faz por um “até logo”.

A capacidade de uma existência ser apreendida como vida depende das condições de produção dessa vida perante as normas hegemônicas vigentes em uma sociedade e época. O que será apreendido enquanto vida será apenas a existência coerente com a prescrição normativa do que é uma trajetória de vida vivível. Partindo deste argumento, Judith Butler aponta que toda vida é, em sua concepção, enquanto estatutária das prescrições do que é uma vida, precária. A precariedade é um termo que designa as condições de manutenção do status de uma existência enquanto vida, podendo também ser uma noção que aponta que toda vida está sujeita a perder seu status de vida. Ou seja, nossa existência é apreendida como vida a partir de uma matriz que é externa a nós, nos precede e, mais radicalmente, não temos completa agência em negar, embora possamos com ela negociar (BUTLER, 2015a).

Uma vez dotada de uma vida vivível uma existência efetivamente apreendida enquanto vida, passamos, então, a ser vulneráveis. Estar vulnerável à violência ou à morte é uma condição unicamente possível para existências apreendidas enquanto vida. Uma existência não-vivível, ao desaparecer, não será notada, tampouco chorada, não haverá luto ou comoção pública. Ao dizer, ou escrever em uma notícia de jornal, “a travesti foi assassinada”, a frase, para a maioria das pessoas, não manifesta surpresa, ao contrário, é confirmação de uma vida que, enfim, nunca foi vida viável. Estar vulnerável é um privilégio das existências nas quais se reconhece uma vida de fato, afinal, como dito anteriormente, é apenas de vidas vivíveis que a sociedade se encarrega de sustentar, sendo a vulnerabilidade decorrente do risco de perda dessa vida que se quer preservar. Apenas as existências dotadas de vida são aquelas que podem morrer. As vidas não-vivíveis não morrem, apenas são destruídas ou desaparecem. Em termos formais, uma vida que está vulnerável à morte é, também, precária e pode, mesmo antes de morrer, perder seu status de vida. Ela deixará, assim, de importar o suficiente para ser uma morte que alguém chorará. Um movimento social que cria uma ala específica para travestis e transexuais - e também gays e homens bissexuais - em uma cadeia pública, promove vidas não percebidas como viáveis, sequer percebidas como vidas, à categoria de vidas precárias. A fala da precariedade pode se manifestar, e até será compreendida, provocando algum impacto social e alguma comoção. Ao manter a ala GBT bem organizada, limpa, bem decorada, com um ritmo de atividades coletivas, momentos de estudo, produção de artesanato e, principalmente, ao começar a receber visitas, assistimos, nesses anos da pesquisa, a uma promoção à condição de vidas precárias, que estimulou, por exemplo, a doação de produtos de higiene, diminuindo a vulnerabilidade de quem não podia manter-se limpa ou limpo.

A matriz que codifica as especificações de gênero de uma sociedade e época é, sem sombra de dúvida, um elemento fundamental da distribuição diferencial das condições de uma existência a ser apreendida enquanto vida. Ou seja, uma existência que falha em seguir as prescrições das práticas de gênero é precária e, assim, corre o risco de perder sua reconhecibilidade enquanto vida. Ainda assim, corpos dissidentes das normas de gênero teimam em existir, encontram caminhos tortuosos nas lacunas das prescrições normativas, nas falhas e nas imprecisões das práticas de poder. Algumas pessoas vivem no limite da reconhecibilidade de gênero, o que implica que a própria viabilidade da vida de uma pessoa está em questão, que são as condições de persistência dessas pessoas.

Uma travesti que tivemos a oportunidade de entrevistar relata que, quando esteve na condição de presa, foi encaminhada para uma unidade prisional que não possuía uma cela ou ala reservada para travestis, e então ela diz:

Lá era horrível. A gente fica se sentindo muito sozinha. Imagina, era uma cela cheia de homem. A gente fica com medo porque a gente está sozinha. Eu fiz de tudo para vir pra cá. Foi muito difícil. Tive que lutar muito. Eu pedia pro plantão colocar meu nome lá embaixo e sempre tinha um problema e a minha requisição nunca chegava lá embaixo. Eu só sabia que eu queria sair dali. Daí eu comecei a me cortar. Quando eu apareci com o braço todo cortado, eles tiveram que me levar para a enfermaria pra tratar. Quando eu cheguei lá, eu pedi pelo amor de Deus pra enfermeira e ela levou minha requisição. Só depois disso que eles baixaram minha transferência. (Ana).

Nas prisões do Rio Grande do Sul é comum que a organização interna dos presos apresente o sistema do plantão, representante ou prefeito de cada cela/ala/galeria. Essa figura institucional exerce tanto a gestão quanto o controle do fluxo de comunicação entre os internos e a administração prisional, entre o dentro e o fora. Enquanto o plantão responde à administração prisional pela microgestão dos internos das celas, essa posição também oferece poder de decisão direta sobre o acesso da administração às demandas dos custodiados. A negação institucional de atendimento de uma demanda de sobrevivência forçou, assim, o uso do corpo ferido como uma ferramenta política. Esses ferimentos produzirão marcas que serão carregadas daquele ponto em diante. Que carregarão na carne a história de sofrimento, do que uma pessoa estava disposta a fazer para ter acesso a uma existência viável.

Enquanto ela falava, nossos olhos percorriam as marcas no seu corpo, como se estivéssemos olhando para um texto. Tudo que estava sendo dito aparecia traduzido em cicatrizes, em palavras sem letras, nas linhas em alto-relevo deixadas pela lâmina improvisada de uma escova de dentes lixada em uma pedra qualquer, até obter a formação de uma ponta cortante e contínua. Aquele corpo-documento foi acessado por nós no momento da entrevista. Aquele corpo atua politicamente como um relato permanente e ambulante da dor e escancara que certas existências estão, sim, cotidianamente na iminência da destruição.

As travestis existem há muito mais tempo do que o período recente de visibilidade das pautas direcionadas a essa população. As travestis do passado estavam lá nas celas, sendo submetidas a todo horror de tortura e morte e nada disso importava. Considerando as condições de precariedade de suas existências, não havia na prisão um conjunto de condições que sustentasse suas vidas como vidas de fato. Eram meras existências usadas para sexo e ocultação de material ilícito. Se as travestis hoje possuem uma vida vulnerável, de alguma forma a matriz que regula a reconhecibilidade de suas existências se atualizou. E isso foi fruto de um movimento coletivo, no caso que pesquisamos mediado por uma organização não governamental, que estabeleceu certas conexões entre o dentro da prisão e o fora. De toda forma, vale lembrar que a matriz de reconhecibilidade é fundamentalmente externa ao sujeito e o antecede, o que, de certa forma, implica em dizer que não somos autores soberanos de nossas próprias vidas. Melhor dizendo, se dependemos de uma rede externa a nós para ascendermos desde uma condição de existência descartável para a condição de uma vida, o Outro, o que nos circunda no social pode, ou não, sustentar e efetivamente nos fazer enquanto seres viventes. Não estamos sugerindo uma visão autocentrada de sujeito, como um soberano que poderia, com um ato único, nos reduzir a nada. O Outro também não é um indivíduo, mas uma rede. Afinal, qualquer um de nós, enquanto indivíduo, está sujeito ao Outro. Os sujeitos constantemente citados nas falas das nossas informantes como algozes também experimentam uma situação de precariedade. Mas a matriz cisgênera lhes beneficia naquele ambiente, como de resto na vida em sociedade.

Assim, a condição diferencial de precariedade está, também, diretamente ligada às normas de gênero, ou melhor, às formas com que as prescrições de gênero constituem matrizes de inteligibilidade. A condição de precariedade está ligada à forma com que corpos que praticam uma performance de gênero dissidente das normas estão, por consequência, mais expostos ao risco de assédio, patologização, violência e destruição. As normas de gênero constituem fortes condicionantes dos modos que nossos corpos podem aparecer e permanecer. Aqui surge um ponto sensível e controverso. Diversos agentes atuaram na produção das condições para o surgimento de espaços reservados para travestis no cárcere. As organizações da sociedade civil, os organismos de defesa dos direitos humanos, os veículos de mídia, a organização do coletivo de travestis no interior das prisões, o poder público de forma mais geral e, até mesmo, as administrações prisionais e seus agentes de segurança operaram, cada um à sua maneira, a partir de diferentes discursos, produtivamente para a criação dessas condições (PASSOS, 2019). Mas, mesmo que de formas diferentes, a possibilidade de citar o sofrimento, a tortura e as mortes dessas travestis, sobretudo as nunca ouvidas, torna-se um marco comum em todo esse processo. O aparecimento do corpo da travesti é, ao mesmo tempo, o demandante e o documento vivo que registra o sofrimento de tantas outras. Assim, por mais cruel que possa ser, a capacidade de citar reiterada e coletivamente a existência recorrente desses sofrimentos e da memória das que pereceram durante o encarceramento por meio de seus próprios corpos presentes, produz uma materialidade enunciativa.

Na perspectiva institucional, talvez a relação entre separação de um grupo identificável e a utilidade da criação desse espaço analítico para a gestão prisional tenha falado mais alto que um ideal humanizante do tratamento penal para a população de travestis. Entretanto, ao mesmo tempo em que se desdobrava mais uma prática da ordem da gestão do risco prisional (SEFFNER; PASSOS, 2016), o agrupamento de um número suficientemente notável de travestis em um mesmo espaço produziu o aparecimento desses corpos no cárcere. Trata-se de um aglomerado de corpos que aparecem em coletivo e exigem a fala a partir e por meio de seus corpos. Quando um número suficiente de pessoas aparece, a demanda dos seus corpos em aliança pode passar a ser inegável. Há aqui certa produção sensível de multidão, de construção de espaço público, de estratégias e de políticas de solidariedade.

Quando a prisão organiza o coletivo de travestis no cárcere, potencializa também o efeito demandante daqueles corpos. Pelo menos no caso das travestis presas, acreditamos, inclusive, que esse efeito seja majoritariamente inesperado. Uma irrupção acidental de uma pauta demandante inscrita nos corpos. Ocorreu a reunião de documentos respirantes que, em aliança, tornam visível sua própria existência, passam à condição de sujeitos efetivamente vivos e demandantes. Os infames, aquelas travestis que sofreram e morreram durante toda a história das prisões, falam, e, além disso, são fundamentais na disputa pela manutenção do status de vida que deve ser preservada. Cada travesti nunca ouvida soma sua voz às que hoje conseguem exigir o reconhecimento de suas vidas. De forma geral, os registros de vida e de morte inscritos nesses corpos que aparecem no cárcere são a materialidade enunciativa que torna visíveis as histórias de uma infinidade de travestis e outras dissidências que pareciam esquecidas na história das prisões, particularmente aquelas de gênero e sexualidade. Além disso, constituem, em sua citacionalidade, um elemento central na constituição das redes que sustentam o reconhecimento das vidas desses sujeitos como vidas de fato.

Referências

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PASSOS, Amilton Gustavo da Silva. O dispositivo bicha: gênero e sexualidade como técnicas de controle prisional. Orientador: Fernando Seffner. 2019. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.

SEFFNER, Fernando; PASSOS, Amilton Gustavo da Silva. Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), [s.l.], n. 23, p.140-161, ago. 2016.

Notes

1 Embora atualmente tenhamos o uso recorrente da sigla LGBTQIA+ para designar a diversidade de orientações sexuais, gêneros e corpos, neste artigo optamos pelo uso da sigla da qual se faz referência na legislação nacional e em documentos oficiais sobre a matéria que aqui tratamos, LGBT, indicando lésbicas, gays, bissexuais e travestis e transexuais.
2 Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), criado por meio da Medida Provisória 2216-37 de 31 de agosto de 2001, é um órgão colegiado e integrante da estrutura básica do que na época era o Ministério dos Direitos Humanos, e hoje é o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
3 O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) é o órgão do Departamento Penitenciário Nacional que lida com as políticas de execução penal no Brasil. Maiores informações em: https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp. Acesso em: 21 jan 2021
4 A tradução oficial deste documento para a língua portuguesa está disponível em http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021
5 Gays, bissexuais, travestis e transexuais, considerando que a cadeia pública onde realizamos as observações é uma unidade de ingresso exclusivamente masculino, aqui pensando no biocorpo e na designação dada ao nascer. Desta forma, a categoria das lésbicas não está incluída.
6 Categoria êmica que designa, no contexto das prisões do Rio Grande do Sul, homens acusados ou condenados por crimes sexuais.
7 Nome fictício. Todas as informantes são oriundas de estadia em algum momento na Cadeia Pública de Porto Alegre.
8 Gíria utilizada para designar uma confusão, discussão, briga, problema com a direção da unidade ou entre as moradoras da cela.
9 A íntegra da decisão do STF sobre a custódia de travestis e pessoas transexuais nas prisões pode ser encontrada neste endereço eletrônico: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF527_liminar_26jun2019.pdf (acesso em: 10 jan. 2021)
10 Aqui a informante refere-se ao fato de que não havia privacidade na cela, pois o acesso a ela estava sempre aberto. Dessa forma, foi apenas fechando uma galeria que se tornou possível isolar o acesso. Tal observação é importante pois a maioria de nós conhece a vida prisional via filmes norte-americanos, nos quais cada cela tem uma porta própria, e, com isso, cada apenado, por vezes uma dupla de apenados, desfruta de privacidade. Não é a realidade do sistema carcerário brasileiro, e também não é a realidade da unidade onde fizemos as observações.
11 Adotamos aqui a grafia que, em geral, o ativismo LGBTQIA+ enfatiza, que é com o uso da letra i, e não e, criando um termo adequado aos fins que se propõe.

Author notes

E-mails:fernandoseffner@gmail.com; gustavopassosedu@gmail.com

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