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Mercados e Feiras livres da Paulicéia e seus trabalhadores
Free markets and fairs of Paulicéia and its workers
Anos 90, vol. 28, e2021502, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

RESENHA


Received: 12 December 2020

Accepted: 20 August 2021

DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.104194

Quem eram os caipiras e quais os significados de ser um, na São Paulo, de fins do século XIX e inícios do século XX? Esse é ponto de partida do historiador Francis Manzoni para a consistente pesquisa de mestrado em História (UNESP) que resultou no livro Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867-1933). Ao nos conduzir por uma São Paulo diferente daquela dos imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas lavouras de café, o autor nos apresenta uma gama variada de personagens e costumes que teimavam em resistir aos delírios da burguesia paulista pela (re)construção de uma metrópole moderna e europeizada.

Investigando as relações sociais presentes nos mercados e feiras livres da São Paulo, Manzoni opera na intersecção de campos como a História Social do Trabalho e a História Urbana, dialogando com uma série de estudos que foram realizados nos últimos anos sobre a importância das Praças de Mercado para as principais cidades brasileiras, e que tiveram como preocupação a compreensão das relações, conflitos e tensões sociais que tiveram nas Praças de Mercado o seu núcleo irradiador. Dentre esses estudos temos, por exemplo, o livro publicado por Martins (2010) sobre a Praça de Mercado de Campinas, em que o autor identifica e analisa as múltiplas faces e finalidades dos mer- cados na cidade do interior paulista, assim como os significados das articulações sociais, econômicas e culturais dos frequentadores daqueles espaços. Outra publicação é o livro de Richard Graham (2010) sobre as relações formadas, e vivenciadas, pelos trabalhadores e trabalhadoras do comércio de gêneros empenhados em alimentar a cidade de São Salvador, na Bahia. Cabe destacar também o livro de Juliana Barreto Farias (2015), sobre a forte presença de africanas nas Minas na Praça de Mercado do Rio de Janeiro, em que a autora iluminou uma série de estratégias de sobrevivências de trabalhadoras escravizadas e livres, assim como as dinâmicas sociais vivenciadas na Praça de Mercado da maior cidade brasileira.

Observando serem as Praças de Mercado e as feiras livres espaços que reuniam significativa parcela da população, em seu livro, Francis Manzoni busca compreender qual era a participação dos diferentes tipos de trabalhadores e trabalhadoras, nacionais e estrangeiros, na complexa tarefa de abastecer a população de São Paulo com gêneros alimentícios dos mais variados. Preocupado com aspectos pouco explorados em estudos clássicos sobre a São Paulo do período, condicionada a valorizar o trabalhador estrangeiro e o processo imigratório como responsáveis pela modernização e desenvolvimento urbano paulistano, o autor utiliza-se dos pressupostos da História Social de matriz inglesa, baseando-se particularmente nas reflexões do historiador Edward P. Thompson, para construir um intrigante mosaico que nos permite visualizar quem eram, bem como identificarmos os locais de moradia e trabalho daqueles que se dedicavam a produzir, transportar e comercializar os produtos consumidos diariamente pela população de São Paulo.

No texto introdutório à publicação o autor anuncia a seus leitores que buscará ao longo do texto abordar “algumas dimensões da experiência de imigrantes e brasileiros nativos pobres” (p. 11), contribuindo o enriquecimento de perspectivas que colaboram na compreensão das experiên- cias de homens e mulheres em seus cotidianos, seja em seus locais de trabalho, em suas moradias, ou mesmo nas formas de lutas mais variadas em benefício da manutenção de suas sobrevivências.

Buscando recuperar a historicidade do termo “caipira”, Manzoni realiza um diálogo consis- tente e crítico a análises homogeneizadoras que desqualificavam esses sujeitos, ora os associando ao isolamento e à autossuficiência, ora tomando as representações da literatura e da música popular

que desqualificava o protagonismo dos caipiras no processo de desenvolvimento da metrópole.

No primeiro, dos três capítulos em que o livro está organizado, Francis Manzoni realiza um detalhado mapeamento dos locais de moradia e de produção de gêneros alimentícios desses traba- lhadores. Sob o olhar atento do autor, somos conduzidos por várzeas, sítios e chácaras nos arredores do centro de São Paulo, acompanhando intensos embates travados entre os sujeitos envolvidos nos diversos trabalhos ligados à produção de gêneros alimentícios e os investidores ligados aos setores de construção, que “percebiam o espaço urbano como páginas em branco para seus projetos de urbanização, como objeto de especulação imobiliária e fonte de renda” (p. 32).

No segundo capítulo, Manzoni investiga os perfis socioculturais dos trabalhadores e traba- lhadoras envolvidos no comércio de gêneros em São Paulo na transição para o novecentos. Seja nas praças e ruas da metrópole, seja nas Praças de Mercado e em seu entorno, o autor nos permite acompanhar esse cotidiano de lutas e de desafios enfrentados pelos trabalhadores no comércio de gêneros da terra. Ao iluminar os esforços incisivos do poder municipal na tentativa de regulamen- tação das atividades ligadas à venda desses gêneros, Manzoni nos indica como se dava o funciona- mento desse que era um comércio fundamental para a manutenção diária da cidade. Elaborando um rico panorama sobre o modo com que se tentou organizar a prática de comércio de gêneros alimentícios em São Paulo, o autor nos apresenta os entraves criados a partir da inauguração da nova Praça de Mercado da cidade, em 1933, especialmente para os trabalhadores mais pobres que foram submetidos a maior controle e aumento nas taxas de ocupação das bancas e compartimentos para instalação de seus comércios. Esse processo de organização com elevados custos de locação, argumenta o autor, aliado à adoção de normas rígidas para o trabalho desses comerciantes na nova Praça de Mercado, instrumentalizou a tentativa de exclusão dos trabalhadores mais pobres, que lançaram mão de recursos informais, como a ocupação de praças públicas e das ruas das regiões centrais, nas proximidades da nova Praça de Mercado, colocando-se à margem dos pressupostos de ordenamento urbano.

O tenso cotidiano dos comerciantes de gêneros alimentícios é fio condutor do terceiro capí- tulo, nele o autor acompanha as relações tumultuadas entre os próprios comerciantes, ou ainda entre os agentes do poder público, como fiscais dos órgãos de Higiene e Saúde Pública, na tenta- tiva de ordenar o comércio, ou de reprimir as tentativas de trabalho tidas como clandestinas. Ao acompanharmos a ação dos fiscais, o autor nos permite perceber uma série de ações por parte dos trabalhadores na tentativa de resistir a taxação de produtos e ao pagamento de impostos para a realização desse comercio. Além de estratégias utilizadas por grupos de trabalhadores na intenção de obter maiores lucros eliminando a concorrência apresentada pelos comerciantes caipiras, ou seja, os trabalhadores que eram identificados pela municipalidade como pequenos comerciantes, que na maioria das vezes vendiam o excedente de suas produções agrícolas.

Lançando mão de um conjunto variado de fontes, Manzoni mobiliza escritos de memoria- listas, fotografias, mapas, relatórios oficiais emitidos pelo poder municipal, além da legislação que regulava a atuação dos trabalhadores envolvidos no comércio de gêneros alimentícios, de modo a estabelecer conexões pautadas em ricas análises teóricas sobre a atuação desses caipiras. Sua sensibilidade particularmente apurada nos permite acessar uma série de saberes populares, como o conhecimento dos ervanários, que eram amplamente utilizados pela população de São Paulo, e reforçavam a forte presença de traços da “cultura caipira” (p. 90-91) na metrópole que se pretendia moderna e civilizada.

Selecionando fotografias e mapas que nos introduzem ao cotidiano desses trabalhadores, Manzoni articula essas imagens a textos que produzem um painel diversificado sobre quem eram os vendedores ambulantes de vassoura, de galinhas e verduras, dando rosto a engraxates, cesteiros e carregadores, nos introduzindo na sonoridade de verdureiras e tantos outros trabalhadores e trabalhadoras que, além de enfrentar a dura rotina de trabalho, ainda tinham que correr dos fiscais dos órgãos municipais, mobilizar recursos para o pagamento de multas e impostos e, em muitas situações expostas pelo autor, articular argumentos para tentar obter a liberação de mercadorias apreendias.

O grande mérito de Francis Manzoni em Mercados e feiras livres em São Paulo (1867-1933) está na abordagem lúcida permeada por rigor metodológico e pesquisa empírica, em texto envolvente capaz de transportar os leitores, sejam eles paulistanos ou paulistas, como de qualquer lugar, para o dia a dia de uma cidade em transformação frenética, sob a égide de progresso e modernização arbitrariamente excludente, em que os seus moradores, comerciantes e trabalhadores lutavam pela defesa de seus costumes e práticas sociais fundamentais para suas sobrevivências.

Referências

FARIAS, Juliana Barreto. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830- 1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Cidade, 2015.

GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MARTINS, Valter. Mercados urbanos, transformações na cidade: abastecimento e cotidiano em Campinas (1859-1908). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

Author notes

E-mail:vitorleandro@id.uff.br



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