RESENHA
Received: 26 June 2021
Accepted: 20 December 2021
Em uma de suas obras, o historiador inglês Peter Burke afirmou que a função do historiador é lembrar a sociedade o que ela quer esquecer (2005). É quase impossível entender o sentido da História se não for assim. O livro de Jurandir Malerba é, justamente, um exemplo da importância do ofício do profissional de História. Autor de várias obras de referência e atualmente professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, produziu uma narrativa acessível ao público muito além dos muros das universidades e das discussões entre especialistas.
A análise trata dos projetos, ideias, planos de Estado e de Nação para o reino, a América portuguesa e, depois, o Brasil, formulados pela elite intelectual originária da Universidade de Coimbra. De forma geral, eram planos que buscavam extrair da América os recursos e os meios necessários para a manutenção da monarquia portuguesa, acuada com os sucedidos na Europa, principalmente, a disputa entre Inglaterra e França por domínios. Foram projetos fundamentados por perspectivas de racionalidade e ilustração, com maior ou menor distanciamento dos valores do absolutismo. Esses e outros conceitos são contextualizados e problematizados na narrativa.
O final do século XVIII e o início do século XIX foram contextos de revoltas importantes na Europa (Revolução Francesa), nas Américas (Independência dos EUA, Revolução Haitiana, Revolução de Maio de 1810) e no Brasil (Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana de 1817, Confederação do Equador etc.). Período também marcado pela necessidade dos países ibéricos, Portugal e Espanha, de tentarem superar a crise de seus Estados ainda modernos, que os havia transformado em potências de menor importância no contexto europeu, pressionadas por Inglaterra e França.
A obra é centrada em alguns dos principais formuladores do Império português e dos inícios do Brasil independente. O mais importante deles, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, recebe atenção especial. Também são destacados intelectuais e políticos influentes nos desígnios do Brasil do século XIX, como Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares; o Bispo José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho; José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu; José Bonifácio de Andrada e Silva, dentre outros personagens que amalgamavam influências e perspectivas distintas em suas formulações e posicionamentos políticos.
O trabalho se utiliza de obras clássicas e dos avanços da pesquisa historiográfica, que torna- ram a historiografia brasileira bastante reconhecida. Também estão presentes autores estrangeiros, brasilianistas, que têm contribuído para a pesquisa na área. O livro apresenta notas indicativas de títulos específicos sobre as questões referidas, que fogem ao objeto da análise. As indicações representam trabalhos recentes e referenciais. Em vários momentos, são reproduzidas fontes ori- ginais disponíveis na internet ou reunidas em publicações acessíveis justamente para permitir a conferência do documento, das referências utilizadas e da análise.
O livro é organizado em três partes: “O Brasil no Império português”, “O Império português no Brasil” e “De colônia portuguesa a Império do Brasil”. Os capítulos são objetivos, curtos, e tratam de temas delineados. Os leitores podem ter uma ideia dos assuntos tratados por alguns dos títulos, como, por exemplo, “A era das reformas”, “Um espectro visível das luzes”, “A condição colonial”, “Império luso-brasileiro, de quem?”, “Era no tempo da guerra”, “Uma Corte nos trópicos”, “Uma questão de classes”, “Independência: passe-partout”, “Corte, conchavos e cizânias” etc. Como os títulos indicam, ao longo do texto são discutidos conceitos e ideias importantes, como “Pacto colonial”, “Ilustração”, “Império Luso-brasileiro”, a “vocação agrícola” do Brasil, dentre outros.
O leitor precisa estar atento que aquele era um tempo em que não havia a ideia de Brasil, no máximo “um imenso Portugal” - nas palavras de Chico Buarque, na música “Fado Tropical” - quando algumas regiões da América portuguesa eram mais alinhadas a Lisboa e não a hegemonia pretendida pelo centro-sul liderado pelo Rio de Janeiro. Essas e outras questões condimentam a leitura. Trata-se do processo de criação do Brasil, do Estado e dos inícios de uma ideia de nação, considerando o caráter conservador do processo de independência do Brasil, fundado na manu- tenção da escravidão/tráfico de escravizados, do latifúndio e da preservação de exclusões, de pri- vilégios e da monarquia. Negros e indígenas escravizados foram excluídos dos projetos de nação, salvo quando considerados mão de obra para a produção da riqueza desfrutada pela elite branca.1
Mesmo sendo um livro a respeito de projetos formulados há mais de duzentos anos, trata de questões que ainda são fundamentais nas discussões sobre a realidade brasileira, como o desejo generalizado de diferenciação social entre os diversos extratos da sociedade, os esforços para obten- ção e manutenção de privilégios - “Você sabe com que está falando!?” - e designações públicas - “doutor”, “excelência”, “madame” - ou esforços para manutenção da importância de certos setores produtivos - “Agro é tech, Agro é pop, Agro é tudo”.
Nas palavras de Malerba (2020, p. 314),
[...] a classe dominante larvalmente portuguesa, feita uma aristocracia rural forjada no tráfico humano e na escravidão, de certo modo foi tomando consciência de si enquanto formulava aqueles planos, sistemas e projetos de Brasil. Formulava-os em seu benefício exclusivo. Sabia que os esteios de seu poder e fausto estavam na terra e na escravidão; foi o projeto dessa classe.
Não foi fácil dar conta de tantas questões de forma rigorosa, erudita e cativante. A clareza e o traço não acadêmico da escrita são fundamentais em tempos de negacionismos diversos e opi- niões sem qualquer conhecimento e, por isso, necessários para a compreensão do que vivemos, das mazelas políticas e da ação de grupos de interesses escusos, disfarçada de moralidades questioná- veis. Fundamental para pensarmos sobre os projetos recentes de Brasil, seja o plano de ampliação de direitos e mais igualdade entre os brasileiros, interrompido por subterfúgios de parte da elite política diante da sua incapacidade de reconquistar o poder democraticamente, sejam as recentes iniciativas de desmonte do Estado brasileiro, de ampliação da desigualdade e exclusão social dos setores menos privilegiados, cada vez mais expostos ao autoritarismo do Estado e de milicianos, com o apoio de setores fundamentalistas, médios e pobres que ruminam falsidades óbvias, sem se aperceberem que tal projeto interessa a outros.
A leitura certamente estimulará a reflexão sobre quais projetos estão sendo formulados no Brasil hoje. Ou, mais importante, a quem esses projetos interessam, a alguns privilegiados - como foram os planos tratados neste livro - ou a maior parte dos brasileiros e das brasileiras.
A obra de Jurandir Malerba é um exemplo da qualidade da produção sobre história realizada por especialistas no Brasil. Há décadas formamos profissionais do mais alto nível nos cursos de graduação e pós-graduação do país. Neste momento é urgente sabermos como não especialistas aprendem história e produzirmos formas de divulgar o resultado do nosso trabalho de maneira mais acessível para toda a população.
Malerba escreve dialogando com os leitores. Pode tornar-se um referencial para que mais pesquisadores e pesquisadoras, fundamentados nos conhecimentos cientificamente formulados, escrevam obras, mantenham canais em redes sociais, produzam materiais audiovisuais, entre outros, que utilizem os meios de divulgação e, mais importante, se comprometam em construir estratégias de diálogo acessível e atrativo ao grande público.
Projetos de Brasil já está disponível na versão e-book. O livro é o primeiro de uma coleção que abordará questões fundadoras do passado brasileiro, e, em breve, será publicada pela editora da FGV. Podemos esperar outras grandes obras para o deleite de interessados e uso de especialistas.
Referências
BURKE, Peter. O que é História cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CARVALHO, José M. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec: Unijuí: Fapesp, 2003.
MALERBA, Jurandir. Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino - da ilustração portuguesa à independência do Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.
Notes
Author notes
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