DOSSIE
TRABALHO E POBREZA NO CENTRO DE SÃO PAULO: AS MULHERES NO CIRCUITO INFERIOR DO BRÁS
Work and poverty in the center of São Paulo: women in the lower circuit of Brás
Trabajo y pobreza en el centro de São Saulo: mujeres en el circuito inferior de Brás
TRABALHO E POBREZA NO CENTRO DE SÃO PAULO: AS MULHERES NO CIRCUITO INFERIOR DO BRÁS
GEOPAUTA, vol. 3, núm. 2, pp. 7-16, 2019
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Recepção: 05 Novembro 2019
Aprovação: 30 Novembro 2019
Resumo: Este trabalho é uma tentativa de aproximação do entendimento do mundo do trabalho e da situação de pobreza de muitas mulheres no circuito inferior da economia urbana do comércio popular de roupas do Brás, centro de São Paulo. Por apresentar um espaço de atividades voltadas ao vestuário, com pequenas oficinas, lojas populares, baixo salário, baixo nível de investimento tecnológico e organização do trabalho não burocratizada, caracterizamos tais atividades como sendo próprias do circuito inferior da economia urbana. Tratam-se de formas de trabalho realizadas com capitais reduzidos, dependentes do próprio conteúdo dos lugares onde estão inseridas e que, no caso da área estudada, possui forte relação com a mão de obra feminina.
Palavras-chave: Pobreza feminina, Brás, Circuito inferior da economia urbana.
Abstract: This paper is an attempt to approximate the understanding of the world of work and the poverty situation of many women in the lower circuit of the urban economy of the popular clothing trade of Brás, downtown São Paulo. By presenting a space of activities focused on clothing, with small workshops, popular stores, low salary, low level of technological investment and non-bureaucratic work organization, we characterize such activities as belonging to the lower circuit of the urban economy. These are forms of work performed with reduced capital, depending on the content of the places where they are inserted and in this case the area studied has a strong relationship with the female workforce.
Keywords: Female poverty, Brás, lower circuit of the urban economy.
Resumen: Este documento es un intento de aproximar la comprensión del mundo del trabajo y la situación de pobreza de muchas mujeres en el circuito inferior de la economía urbana del comercio de ropa popular de Brás, en el centro de São Paulo. Al presentar un espacio de actividades centradas en la ropa, con pequeños talleres, tiendas populares, bajos salarios, bajo nivel de inversión tecnológica y organización del trabajo no burocrático, caracterizamos tales actividades como pertenecientes al circuito más bajo de la economía urbana. Estas son formas de trabajo realizadas con capital reducido, dependiendo del contenido de los lugares donde se insertan y, en este caso, el área estudiada tiene una fuerte relación con la fuerza laboral femenina.
Palabras clave: Pobreza femenina, Brás, Circuito inferior de la economía urbana.
Introdução
Segundo os dados estatísticos mais atuais, o número de mulheres responsáveis pelos domicílios vem aumentando nos últimos anos. Estes dados apontam também que os domicílios cuja responsabilidade domiciliar é feminina são maioria entre os mais pobres.3 O aprofundamento na análise de tais dados continua revelando como a realidade de desigualdade social baseada no sexo se apresenta no Brasil como um problema estrutural e como a pobreza afeta de forma diferente homens e mulheres.
Este trabalho buscou abordar a situação das mulheres no centro de São Paulo, levando em consideração a dinâmica econômica do comércio popular de roupas no Brás. Entende-se que o mundo do trabalho e a pobreza feminina já são temas abordados com muita eficiência nas Ciências Sociais. Por outro lado, na Geografia essas questões são difíceis de serem abordadas, pois dependem não somente da sensibilidade do pesquisador na análise das situações socioespaciais, mas também da sua capacidade de se manter fiel ao objeto de estudo da Geografia, o espaço geográfico. Ou seja, abordar tais temas na Geografia depende do tensionamento de certos conceitos de forma a manter uma entrada analítica segura nestas questões. Portanto, esse trabalho utilizou como recorte teórico analítico os dois circuitos da economia urbana, e, especialmente, para este caso, interessamo-nos pelo circuito inferior, uma vez que este ao ser dependente da dinâmica do lugar onde está inserido pode se mostrar genuíno á analise de tais questões.
Esta pesquisa partiu da análise de uma economia dos pobres (Paugam, 2003) que no meio urbano é substantivada pelo circuito inferior da economia urbana (Santos, 2004) e que possui relação de dependência com a economia dos ricos, ou seja, o circuito superior da economia urbana. Assim, dos dois circuitos escolhemos o circuito inferior da economia caracterizado por três vertentes analíticas: a) os baixos capitais investidos nos negócios; b) a incorporação seletiva e residual das novas tecnologias, e; c) a forma de organização do trabalho não burocratizada. Portanto, utilizou-se esses três recortes para compreender empiricamente trabalho e pobreza femininos no comércio popular do Brás, centro de São Paulo (Mapa 1).
Para trazer a discussão de gênero para dentro do debate geográfico, foi necessário refletir que para compreender as relações sociais e econômicas tendo como base o trabalho feminino, deve-se compreender a dinâmica do espaço que, neste caso estudado, se relaciona com modos de uso que se materializam, como causa e consequência dos fluxos, na forma de comércios ligados ao vestuário.
Como objeto de estudo escolhemos o Brás, localizado na área central de São Paulo que concentra uma parte considerável de pequenas lojas de comércio local de roupas e pequenas oficinas de costura com fortes relações com a mão de obra feminina.
A construção do mapa foi realizada no software ArcGIS 10.5 a partir das técnicas de geoprocessamento, envolvendo cartografia digital. A base é disponibilizada pelo próprio ArcGIS e a partir dela foi possível extrair arquivos com o formato shapefile (.shp) dos seguintes temas: região metropolitana de São Paulo, município de São Paulo, a área central do Município, seus bairros e suas principais vias do comércio popular.
Para o entendimento empírico do que é o circuito inferior da economia urbana no centro de São Paulo, foi necessário a realização de trabalhos de campo ao bairro do Brás. O trabalho de campo foi realizado por meio de observação do comércio formal e informal nas principais vias do comércio popular do Brás.
O circuito inferior no Brás e suas relações com o trabalho feminino
As etapas de mundialização às quais São Paulo conheceu, (SANTOS, 2009), é um importante ponto de partida, se não o principal, para a compreensão das transformações espaciais na porção central do município. Contudo, é a etapa recente, a da informação, que dá a São Paulo o caráter complexo de cidade informacional, uma vez que se caracteriza como metrópole global cuja base de atividades se utiliza da informação (SILVA, 2001; SANTOS; 2009; SILVA, 2012). É nessa complexidade de relações e situações decorrente do fenômeno de mundialização que ocorre um processo de crescimento, diversificação e afirmação da economia urbana.
Ao propor a teoria dos dois circuitos da economia urbana, subsistemas do sistema urbano, Milton Santos (2004 [1979]) afirmava que não era possível entender a urbanização dos países periféricos sem levar em consideração estes subsistemas. O circuito superior, caracterizado, de forma mais geral, pelo seu alto nível tecnológico, pelo capital intensivo e organização do trabalho burocratizada, é próprio dos grandes agentes hegemônicos; ao passo que o circuito inferior é caracterizado pelo baixo nível tecnológico, baixo capital investido e organização do trabalho desburocratizada. Próprio da economia dos pobres, o circuito inferior é dependente do conteúdo do lugar e possui uma enorme capacidade de gerar emprego e renda, ainda que esta seja extremamente baixa (SANTOS, 2004 [1979]).
Nesse sentido, a área central de São Paulo é marcada pela convivência dos dois circuitos da economia urbana. As ruas do Brás, por sua vez, são marcadas sobretudo pela economia dos pobres e, neste caso específico, baseada no vestuário, tanto no comércio quanto na produção. São pequenas lojas e oficinas de costura que ocupam os piores imóveis da área central, valendo-se dos interstícios deixados pelos grandes.
O circuito inferior engloba tanto pequenas ocupações urbanas, como por exemplo os ambulantes, quanto pequenas empresas formais pouco capitalizadas (SANTOS, 2019). Este circuito pode ser compreendido “como as formas de trabalho urbanas assumidas pela pobreza nas grandes cidades.” (MONTENEGRO, 2013, p. 38) e que, portanto, “são formas utilizadas pela população pobre, que é maioria e tende ao crescimento, de gerar renda a partir de atividades de organização simples, que dependem de mão de obra intensiva e pouco (ou nenhum) capital.” (CATAIA; SILVA, 2013, p. 58).
Esta população pobre que é desfavorecida ao mesmo tempo econômica, social e politicamente, se insere no circuito inferior da economia, afirmam Queiroz e Queiroz (2014). Assim, percebe-se uma clara interrelação entre a pobreza e o circuito inferior da economia urbana.
É neste contexto que se torna importante um diálogo a respeito da dinâmica do circuito inferior da economia urbana com base no trabalho feminino, uma vez que as mulheres permanecem confinadas em um número de ocupações cujo nível de rendimento é mais baixo, cujas atividades são de organização simples e de trabalho intensivo (LAVINAS, 1996). Evidentemente, nesse sentido, é necessário, em um primeiro momento, abandonar a ideia de classe trabalhadora homogênea, uma vez que essa, como afirmam Sousa-Lobo (1991) e Hirata (2002), quando vista de perto, tem dois sexos.
No circuito inferior
A acumulação do capital não constitui a primeira preocupação ou simplesmente não há essa preocupação. Trata-se, antes de tudo, de sobreviver e assegurar a vida cotidiana da família, bem como tomar parte, na medida do possível, de certas formas de consumo particulares à vida moderna (SANTOS, 2004 [1979], p. 46).
Nesse contexto, as mulheres buscam abrigo diante de desigualdades impostas e isto pode ser visto com mais clareza no comércio popular de roupas do Brás (Foto 1). Estas mulheres, vendedoras, costureiras, “sacoleiras”, ambulantes ou apenas consumidoras finais, se confundem em todo o comércio na busca por sobrevivência, tentando viabilizar renda, ainda que extremamente baixa, encontrar produtos que não consumam todo seu rendimento, encontrar emprego diante da instabilidade do mundo do trabalho ou manter seu pequeno negócio vivo diante das incertezas do período econômico atual e das modernizações seletivas do espaço urbano.
Quando as mulheres são inseridas na dinâmica das atividades remuneradas, produção de valores de troca, essas, segundo Rossini (1998), não são desvinculadas das “atividades não remuneradas”, ou seja, aquelas que compreendem a produção de valores de uso, as chamadas atividades domésticas. Assim, a participação feminina no mercado de trabalho depende de fatores que vão além da produção do trabalho.
O espaço da mulher no mercado de trabalho está permeado por hierarquias baseadas nas relações sociais de sexo (KERGOAT, 2009) e que no mundo do trabalho atribuem fundamentos econômicos que fazem parte das estratégias das grandes indústrias (ROCHA, 2014). Neste contexto, fica evidente que no período atual de divisão territorial do trabalho e desvalorização do trabalho da mulher, a pobreza afeta de formas diferentes homens e mulheres.
Além dos imigrantes bolivianos, no Brás, há também uma grande quantidade de mão de obra de moradoras da Zona Leste e Norte de São Paulo que estão distribuídas sobretudo nas pequenas lojas do comércio local de roupas e nas lojas de artigos domésticos.
No comércio, as mulheres são maioria nas lojas de roupas tanto femininas quanto masculinas (Foto 2). As lojas de sapatos, por sua vez apresentam uma grande quantidade de vendedores homens, quase não há mulheres nas lojas de sapato.
Muitas mulheres em situação de pobreza encontram no circuito inferior da economia urbana um abrigo. Criam diante da própria invisibilidade e da perversidade do mundo do trabalho uma oportunidade para gerar renda, ainda que extremamente baixa, e garantir a sobrevivência da família.
Ao se levar em consideração, portanto, que há um número muito maior de pequenas lojas locais de comércio de roupas no Brás, diretamente ligadas ao circuito inferior da economia urbana, cujos postos de venda são ocupados majoritariamente por mulheres e que as roupas destas lojas estão diretamente ligadas pela sua produção às costureiras de pequenas oficinas, geralmente localizadas nas dependências da própria loja ou em bairros próximos, este ramo de atividade condiciona e é condicionado por uma divisão do trabalho baseada no sexo e, neste caso, a mulher é a que mais movimenta o circuito inferior da economia urbana do vestuário e, portanto, é a sua principal agente.
Considerações Finais
Os fatores relacionados a divisão do trabalho e relações sociais são também indissociáveis do fenômeno da pobreza e que hoje dá base para entender um arranjo complexo que permeia a condição de pobreza de muitas mulheres no mundo do trabalho.
Os circuitos da economia urbana podem ser uma ferramenta importante de análise e de contribuição para o debate da divisão sexual do trabalho. Nesse sentido, é preciso mostrar que a classe trabalhadora inserida nestes dois circuitos é formada por homens e mulheres e que cada sexo os coloca em situações e relações diferentes com os mesmos.
As pequenas lojas do comércio popular do Brás são ocupadas em grande parte por mulheres. Portanto, o circuito inferior da economia urbana no setor de confecções deste lugar condiciona e é condicionado por uma divisão do trabalho baseada no sexo, tendo a mulher como sua principal agente.
Gratidão
Esta pesquisa contou com o apoio da Pró-Reitoria de Graduação (PRG) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Referências
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Notas