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Políticas públicas educacionais no Brasil pós-redemocratização: percursos à cidadania?
Carina Copatti1 http://orcid.org/0000-0003-0485-388X; Adriana Maria Andreis 2 http://orcid.org/0000-0002-5369-3766
Carina Copatti1 http://orcid.org/0000-0003-0485-388X; Adriana Maria Andreis 2 http://orcid.org/0000-0002-5369-3766
Políticas públicas educacionais no Brasil pós-redemocratização: percursos à cidadania?
Public educational policies in Brazil after redemocratization: pathways to citizenship?
Políticas educativas públicas en Brasil después de la redemocratización: ¿caminos hacia la ciudadanía?
GEOPAUTA, vol. 4, núm. 1, pp. 69-91, 2020
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
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Resumo: Tendo como campo de investigação as políticas públicas no cenário educacional delineado posteriormente à promulgação da Constituição Federal em 1988, o objetivo deste texto é analisar elementos da cidadania nos documentos dessas políticas visando perceber avanços e desafios presentes, ainda, no que tange à perspectiva de formação cidadã. A questão central investiga em que medida as políticas educacionais brasileiras têm contribuído e/ou limitado uma perspectiva de formação cidadã. Para tanto, o percurso metodológico envolveu a interação entre pesquisa bibliográfica e documental, considerando como centralidade a análise de documentos da política educacional nacional (CF, 1988; LDB, 1996; PNLD, 1985; PCN, 1998; DCN, 2013; BNCC, 2017).

Palavras-chave:Políticas públicas de educaçãoPolíticas públicas de educação,Redemocratização do BrasilRedemocratização do Brasil,Formação cidadãFormação cidadã.

Abstract: Having as a field of investigation the public policies in the educational scenario outlined after the promulgation of the Federal Constitution in 1988, the objective of this text is to analyze elements of citizenship in the documents of these policies in order to perceive advances and challenges present, also, with regard to the perspective of citizen formation. The central issue investigates to what extent Brazilian educational policies have contributed and/or limited a perspective of citizen training. Therefore, the methodological path involved the interaction between bibliographic and documentary research, considering as centrality the analysis of documents of national educational policy (CF, 1988; LDB, 1996; PNLD, 1985; PCN, 1998; DCN, 2013; BNCC, 2017).

Keywords: Public education policies, Redemocratization of Brazil, Citizen training.

Resumen: Teniendo como campo de investigación las políticas públicas en el escenario educativo esbozado después de la promulgación de la Constitución Federal en 1988, el objetivo de este texto es analizar elementos de ciudadanía en los documentos de estas políticas con el fin de percibir los avances y desafíos presentes, también, con respecto a la perspectiva de la formación ciudadana. El tema central investiga en qué medida las políticas educativas brasileñas han contribuido y/o limitado una perspectiva de la formación ciudadana. Por lo tanto, el camino metodológico implicó la interacción entre la investigación bibliográfica y documental, considerando como centralidad el análisis de los documentos de la política educativanacional (CF, 1988; LDB, 1996; PNLD, 1985; PCN, 1998; DCN, 2013; BNCC, 2017).

Palabras clave: Políticas de educación pública, Redemocratización de Brasil, Formación ciudadana.

Carátula del artículo

Políticas públicas educacionais no Brasil pós-redemocratização: percursos à cidadania?

Public educational policies in Brazil after redemocratization: pathways to citizenship?

Políticas educativas públicas en Brasil después de la redemocratización: ¿caminos hacia la ciudadanía?

Carina Copatti1 http://orcid.org/0000-0003-0485-388X
UPF, Brasil
Adriana Maria Andreis 2 http://orcid.org/0000-0002-5369-3766
UNIJUUI/RS, Brasil
GEOPAUTA, vol. 4, núm. 1, pp. 69-91, 2020
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Recepção: 30 Janeiro 2020

Aprovação: 03 Abril 2020

Introdução

Estamos, no Brasil, caminhando em uma perspectiva cidadã? Essa questão é discutida tomando como campo de investigação o cenário que se desenha no país posteriormente à promulgação da Constituição Federal em 1988. Em diálogo com esse universo, os documentos das políticas públicas educacionais, desde aquela época, vêm contemplando esse pressuposto; estes constituem centralidade nesse processo de investigação que se delineia nas páginas seguintes. Assim, temos como objetivo analisar elementos da cidadania nos documentos das políticas públicas educacionais, visando perceber avanços e desafios presentes, ainda, no contexto dessas políticas no que tange à cidadania.Cabe destacar, que entendemos a noção de contexto sempre implicada à dimensão espaço-temporal geográfica. Pois,nesse sentido, ressalta-seque as deliberações têm relação com os processos elaborados e objetivados nos lugares do mundo, e que são legitimados na forma de documentos.

Ao encontro dessa perspectiva, o percurso metodológico envolveu a interação entre pesquisa bibliográfica e documental, a partir da análise da política educacional nacional, centrada nos seguintes documentos: Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 1985), Lei de Diretrizes e Bases (LDB, 1996), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN, 2013), Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica (2015); Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017). A análise destes documentos, em contato com referenciais teóricos da área da educação, compreende a organização deste escrito, complexificado pelo diálogo entre a Constituição Federal de 1988, reconhecida como Constituição Cidadã, e os documentos das políticas educacionais.

A questão proposta visa responder: em que medida as políticas educacionais brasileiras tem contribuídoe/ou limitado uma perspectiva de formação cidadã? Para debater com relação a este aspecto o texto está organizado em quatro momentos: a) políticas públicas educacionais no contexto de redemocratização do país; b) Os livros didáticos e o PNLD; c) Para além do Livro Didático: a BNCC e a dimensão cidadã; d) Democratização e a formação cidadã no desdobramento das políticas educacionais.

Políticas públicas educacionais no contexto de redemocratização do Brasil

Após o longo período de Ditadura Militar imposta no país desde 1964, o processo de redemocratização do Brasil, a partir de 1985, trouxe a possibilidade de se delinear políticas públicas educacionais numa perspectiva cidadã, lançando um olhar, pela primeira vez na história do país 3, sobre os distintos contextos sociais, étnicos e culturais. Esse processo teve início com a construção e aprovação da Constituição Federal de 1988, nossa Carta Magna, que contemplou aspectos concernentes à construção de uma sociedade democrática e deu maior visibilidade à perspectiva da cidadania.

No preâmbulo do referido documento é aferida a ideia de:

[...] instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, CF 1988, PREÂMBULO).

Nessa apresentação, a democracia, a liberdade e o pluralismo, são destacados enquanto aspectos de um conjunto implicado ao Estado Democrático. Todavia, permite denotar incoerência, pois refere à proteção do Ente Divino, desrespeitando, desde a introdução, a laicidade do Estado e dos cidadãos em suas múltiplas crenças, ou, ainda, na condição de Ateus.

Foi com base neste documento que as políticas públicas de educação começaram a ser pensadas no contexto democrático instaurado no país. Em 1996, foi publicada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB nº 9394/96, compondo as deliberações a respeito da educação, tomada como bem público, de direito de todos e como dever do Estado.

A educação básica em seu caráter público teria, então, a partir deste momento, como incumbência, uma sériede pressupostos, os quais foram inseridos neste documento, mais especificamente ao fazer referência aos Princípios e Fins da Educação Nacional, no qual constam as seguintes definições:

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I -igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II -liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III -pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV -respeito à liberdade e apreço à tolerância; V -coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI -gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII -valorização do profissional da educação escolar; VIII -gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX -garantia de padrão de qualidade; X -valorização da experiência extra-escolar; XI -vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.(LDB, 1996)

Notamos que a igualdade, a liberdade, a coexistência, a solidariedade, a valorização, a democracia e o pluralismo são textualizados como princípios constitutivos dos percursos à cidadania. Assim como a Constituição Federal, a LDB reverberou em uma série de outras leis que, posteriormente, foram planejadas no sentido de manter e ampliar o caráter democrático e cidadão que passou a compor, mesmo que tardiamente, os desdobramentos das políticas educacionais do país.

Em 1998 foram construídos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) referentes aos aspectos da tradição pedagógica brasileira, da constituição da escola e da sua dimensão cidadã, contendo orientações didáticas quanto à autonomia, diversidade, interação e cooperação, além de contemplar aspectos sobre a disponibilidade para a aprendizagem, organização do tempo e do espaço e seleção de materiais e possibilidades de avaliação.

Os PCNs (BRASIL, 1998) constituem um referencial de qualidade para a educação em todo o País e tem como função orientar e garantir a coerência dos investimentos no sistema educacional, socializando discussões, pesquisas e recomendações, subsidiando a participação de técnicos e professores brasileiros, principalmente daqueles que se encontram mais isolados tendo menor contato com a produção pedagógica atual.

Por sua natureza aberta, configuram uma proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e sobre programas de transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores. [...] O conjunto das proposições aqui expressas responde à necessidade de referenciais a partir dos quais o sistema educacional do País se organize, a fim de garantir que, respeitadas as diversidades culturais, regionais, étnicas, religiosas e políticas que atravessam uma sociedade múltipla, estratificada e complexa, a educação possa atuar, decisivamente, no processo de construção da cidadania, tendo como meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos, baseado nos princípios democráticos. Essa igualdade implica necessariamente o acesso à totalidade dos bens públicos, entre os quais o conjunto dos conhecimentos socialmente relevantes. (BRASIL, 1998, p. 13).

O documento proposto enquanto parâmetro às ações educacionais, refere o respeito às diversidades culturais, regionais, étnicas, religiosas e políticas em uma sociedade múltipla, estratificada e complexa. O cidadão e a cidadania são expressos como processo e meta para o acesso aos bens públicos e conhecimentos relevantes. Essas textualizações se enlaçam ao conjunto dos documentos da CF e da LDB, com um empenho específico em referir, também, o caráter aberto à construção pelas escolas e professores.

Em 2013 foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), destinadas a levar ao conhecimento a legislação educacional brasileira referente às distintas etapas da educação básica: Diretrizes Gerais para a Educação Básica; Revisão das Diretrizes para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos, para o Ensino Médio, para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, para a Educação Básica nas escolas do campo e para o atendimento educacional especializado na modalidade Educação Especial, além de orientar sobre a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, para Educação de Jovens e Adultos (EJA), para a Educação Escolar Indígena, educação escolar de crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância, para a Educação Escolar Quilombola, para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Também as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos.

As orientações trazidas nas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013), consideram seu papel de indicador de opções políticas, sociais, culturais, educacionais, e a função da educação, na sua relação com os objetivos constitucionais de projeto de Nação, fundamentando-se na cidadania e na dignidade da pessoa, o que implica igualdade, liberdade, pluralidade, diversidade, respeito, justiça social, solidariedade e sustentabilidade.

Nas DCN’s (BRASIL, 2013, p. 18) o conceito de Cidadania,

Reveste-se de uma característica –para usar os termos de Hannah Arendt –essencialmente “social”. Quer dizer: algo ainda derivado e circunscrito ao âmbito da pura necessidade. É comum ouvir ou ler algo que sugere uma noção de cidadania como “acesso dos indivíduos aos bens e serviços de uma sociedade moderna”, discurso contemporâneo de uma época em que os inúmeros movimentos sociais brasileiros lutavam, essencialmente, para obter do Estado condições de existência mais digna, do ponto de vista dominantemente material. Mesmo quando esse discurso se modificou num sentido mais “político” e menos “social”, quer dizer, uma cidadania agora compreendida como a participação ativa dos indivíduos nas decisões pertinentes à sua vida cotidiana, esta não deixou de ser uma reivindicação que situava o político na precedência do social: participar de decisões públicas significa obter direitos e assumir deveres, solicitar ou assegurar certas condições de vida minimamente civilizadas.

Notamos que a citação da pesquisadora naturalizada estadunidense, Hannah Arendt, é utilizada como sustentação de que a cidadania é entendida como social, mas que pressupõe a política efetivada por meio da participação efetiva nas decisões acerca das escolhas. Como viemos apontando,também nos PCN’s (1998) a compreensão é de que o exercício da cidadania exige o acesso de todos à totalidade dos recursos culturais relevantes para a intervenção e a participação responsável na vida social. Nesse sentido, o domínio da língua falada e escrita, os princípios da reflexão matemática, as coordenadas espaciais e temporais que organizam a percepção do mundo, os princípios da explicação científica, as condições de fruição da arte e das mensagens estéticas, os domínios de saber tradicionalmente presentes nas diferentes concepções do papel da educação no mundo democrático, dentre outras exigências, se impõem no mundo contemporâneo.

É pertinente, também, considerar as Políticas de formação docente no Brasil, haja vista que a perspectiva de formação cidadã perpassa, em grande medida, pela forma como atuam os docentes, profissionais formados em distintos contextos, espaços e tempos, o que reverbera em múltiplos olhares sobre a educação e sobre a necessidade (ou não) da dimensão cidadã. Isso se evidencia por coexistirem, nas escolas, professores que consideram a cidadania como centralidade na formação dos seres humanos e outros saudosistas em relação à ditatura militar, entendendo o período como o de “respeito às normas” e “disciplina”.

A rigidez do regime é relacionada diretamente ao modelo educacional presente na época e que, para muitos docentes, sejam eles novos na profissão ou antigos (e sem um olhar atento a esse processo), defendem esse modo de ensino tradicional baseado na inexistência de espaços de diálogoeparticipação e, porconseguinte, de possibilitar a visibilidade social dos sujeitos.

O documento das novas diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério da educação básica, Parecer CNE/CP 02/2015, se refere à cidadania em vários momentos. Um dos elementos que atenta é ao currículo escolar, tomado como “o conjunto de valores propício”à produção e à socialização de significados no espaço social e que contribui para a construção da identidade sociocultural do educando, dos direitos e deveres do cidadão, do respeito ao bem comum e à democracia, às práticas educativas formais e não formais e à orientação para o trabalho (BRASIL, 2015, p. 2). Neste ponto, a formação de professores para a educação básica, seguindo as novas diretrizes, precisa contemplar o currículo, este compreendido sob aportes democráticos e um viés que aponta a construção da cidadania.

No artigo 2º, § 2º, considera que a educação se efetiva nas instituições educativas por meio de processos pedagógicos entre os profissionais e estudantes articulados nas áreas de conhecimento específico e/ou interdisciplinar e pedagógico, nas políticas, na gestão, nos fundamentos e nas teorias sociais e pedagógicas para a formação ampla e cidadã e para o aprendizado nos diferentes níveis, etapas e modalidades de educação básica. Isso conduz à ideia de que perpassam a construção do conhecimento de área e pedagógico do professor e sua relação com os estudantes, aspectos que possam contribuir para a cidadania.

Já no Art. 5º, informa que a formação de profissionais do magistério deve assegurar a Base Comum Nacional, pautada pela concepção de educação como processo emancipatório e permanente. E leva em conta, logo no item I desse artigo, a integração e interdisciplinaridade curricular, dando significado e relevância aos conhecimentos e vivência da realidade social e cultural, consoantes às exigências para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Mais uma vez a cidadania é evidenciada como 76 um exercício que perpassa as relações sociais e, por isso, um constructo a partir da escola.

No Art. 7º considera que o professor deverá possuir um repertório de informações e habilidades composto pela pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, resultado do projeto pedagógico e do percurso formativo, consolidado no exercício profissional, permitindo o conhecimento da instituição educativa como organização complexa na função de promover a educação para e na cidadania. Sob estes aspectos, que são muitos, envolve o conhecimento da organização escolar e, ainda, da função da escola na construção de sujeitos preparados para atuar no mundo, o que remete à cidadania.

Por fim, o Art. 12 considera que os cursos de formação inicial, respeitadas a diversidade nacional e a autonomia pedagógicadas instituições, serão constituídos de três núcleos: I) formação geral, das áreas específicas e interdisciplinares, e do campo educacional, seus fundamentos e metodologias, e das diversas realidades educacionais; II) Aprofundamento e diversificação de estudos das áreas de atuação profissional, incluindo os conteúdos específicos e pedagógicos, priorizadas pelo projeto pedagógico das instituições, em sintonia com os sistemas de ensino; III) Estudos integradores para enriquecimento curricular.

No núcleo I, uma das necessidades é a “pesquisa e estudo das relações entre educação e trabalho, educação e diversidade, direitos humanos, cidadania, educação ambiental, entre outras problemáticas centrais da sociedade contemporânea” (BRASIL, 2015, p. 10). Mais uma vezas diretrizes de formação de professores para a educação básica inserem aspectos da democracia e revisitam a necessidade de tomar a cidadania como elemento na formação e no trabalho docente.

O que se coloca, diante disso, é que a legislação tem avançado sob estes pressupostos e dado visibilidade e legitimidade à perspectiva cidadã. No entanto, a dúvida que permanece e que carece de estudos de modo mais específico com relação aos cursos de formação docente (dentre eles em universidades públicas, comunitárias, particulares e em cursos em faculdades e EAD), é se estes aspectos têm sido considerados efetivamente, ou se apenas se reproduz o discurso da lei, mantendo-se um processo formativo pautado na transmissão, no ensino tradicional e na hierarquização do conhecimento, como ocorria no período ditatorial.

Quando a formação docente ocorre de forma que os pressupostos democráticos e a cidadania não sejam aprofundados e debatidos em suas significações, pode permanecer um modo de perceber a educação apenas com a finalidade de “transmitir” determinados conteúdos, de reproduzir certos valores, sem que se avance para a dimensão participativa, dialógica e crítica que se pretende em um país constituído sob um viés democrático e pensado para a atuação cidadã dos sujeitos.

O complexo documental que foi referido até aqui, apesar das incoerências apontadas, denota um empenho em referir e qualificar a cidadania. Paralelamente a todo esse conjunto normatizador, desde 1985 é configurada formalmente a política nacional do livro didático4, a partir do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), este que desde 2017 tem sido denominado Programa Nacional do Livro e do Material Didático.

Este programa, anterior à redemocratização do Brasil, é tomado como referência no estudo proposto por se referir a um conjunto de medidas que remetem à complexificação da produção de livros didáticos destinados às escolas públicas do Brasil e que, desde a década de 1990 ganha um caráter mais qualificado diante do processo de avaliação das coleções didáticas a partir da avaliação pedagógica iniciada em 1996. O movimento de expansão da política do livro didático perpassa o período de redemocratização do país e se constitui, nas últimas décadas, como um programa complexo, cujos materiais destinados às escolas contemplam aspectos da democratização do acesso ao conhecimento e considera a perspectiva cidadã em suas definições gerais.

A importância da compreensão dos desdobramentos da implementação dessa política leva em consideração a influência destes materiais nos contextos de educação pública escolar e de constituir um dos materiais que mais diretamente chega à população, mesmo que circule apenas entre professores e estudantes, mas constitui, segundo Callai (2016), um dos únicos materiais didáticos acessíveis aos estudantes brasileiros e possíveis de serem acessados pela maioria das famílias.

PNLD e o livro didático brasileiro: possibilidade para a formação cidadã?

Implicadas no universo da política pública brasileira, as políticas educacionais conformam-se por meio de documentos mais recentes que se preocupam em textualizar a cidadania. Nesse universo, cabem destaques ao PNLD e mais recentemente à BNCC, pois são documentos da política educacional brasileira que estão presentes de modo contundente na escola. Por isso, dedicamo-nos ao enfoque da análise da cidadania nesse complexo documental, a iniciar pelos livros didáticos.

Outras decisões inerentes aos desdobramentos da política nacional do livro, iniciada em 1985, se refere à reutilização dos livros por outras turmas subsequentes, ou seja, a distribuição de livros não consumíveis, sendo sua escolha realizada pelos professores das escolas em que estes seriam utilizados, o que ampliou a possibilidade de que os professores possam conhecer melhor as propostas e tomar decisões mais democráticas sobre quais coleções optar. Ocorreu, também, a especificação do processo técnico de controle da qualidade dos livros didáticos, a avaliação destes materiais e a organização de bancos de livros didáticos a serem distribuídos conforme necessidade das instituições escolares públicas.

Em 1994 articularam-se os critérios para avaliação do livro didático pelo MEC/FAE/UNESCO, ampliando-se, assim, os critérios para avaliação e qualificação dos livros didáticos. Em 1996 teve início o processo de avaliação pedagógica dos livros didáticos, que resultou em uma maior de qualificação destes recursos, haja vista que possibilitou de grupos de professores da educação superior e, posteriormente, também da educação básica, passassem a compor as equipes de avaliação das coleções de livros didáticos. A democratização do processo trouxe novos significados na medida em que os sujeitos que utilizam estes materiais teriam também representação no processo de avaliação dos materiais.

Além da avaliação das coleções de livros didáticos foi oferecido às escolas e seus professores, a partir de 1997, o Guia de Livros Didáticos contendo o resultado da avaliação destes materiais destinados ao ensino fundamental. Este recurso bastante significativo, apesar de existir desde 1997, em formato impresso e posteriormente disponibilizado pela internet, em muitas realidades continua desconhecido, haja vista que as políticas educacionais, os documentos resultantes delas, as orientações que deveriam chegar aos professores nem sempre chegam por uma série de dificuldades nessa interlocução, que vão desde as falhas de comunicação entre MEC e as instituições escolares, o não conhecimento por parte dos professores deste recurso como facilitador da escolha dos materiais ou, ainda, pela presença de grupos editoriais nos contextos escolares, forçando e induzindo a escolha de suas coleções didáticas.

Isso contribui para que, em muitas escolas, a escolha dos materiais seja realizada com base em determinadas coleções disponibilizadas pelas editoras antes mesmo de que chegue o Guia do LD para que seja acessado, perpetuando um processo questionável quanto à democratização da escolha das coleções, e frágil no sentido de perceber se, de fato, os professores estão conseguindo acessar informações sobre todas as coleções e perceber suas propostas, inclusive com relação a aspectos que contribuem à formação cidadã.

A partir do ano 2000 e nos anos seguintes, novos avanços ocorreram com a expansão do PNLD, isso porque passou a distribuir dicionários, livros em braile, materiais em libras, Atlas Geográfico e realizar o atendimento ao Ensino Médio através do PNLEM. Ainda, ocorreu a criação do Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA).

Além da produção e distribuição destes recursos a todos os níveis da educação básica brasileira, essa política deu maior visibilidade às diversidades e aos distintos contextos em que vivem os brasileiros que estão inseridos nas escolas públicas. Isso ocorre, por exemplo, no conteúdo abordado pelos livros didáticos, os quais, a partir da constituição cidadã e democrática do país, passou a levar em conta um conjunto de diversidades, sejam elas sociais, econômicas, culturais, étnicas, e, ainda, as diversidades de gênero, de constituição familiar, a visibilidade de sujeitos portadores de distintos tipos de deficiências, dentre outros aspectos que, desde a década de 1990 passaram a compor, mesmo que em muitas coleções de modo pouco expressivo, uma tentativa de atender às distintas realidadesdo país e a diversidade de sujeitos que compõe o Brasil.

Apesar de não conseguir contemplar de modo aprofundado todos os aspectos da diversidade brasileira em suas múltiplas especificidades, o que se percebeu foi um aumento significativo de espaços para abordar a diversidade e tecer possibilidades de dialogar sobre outros temas anteriormente invisibilizados.

As propostas de livros didáticos levam em conta um conjunto de aspectos estabelecidos em edital publicado pelo FNDE, em consonância com a legislação vigente e os desdobramentos do Programa Nacional do Livro Didático. Entretanto, apesar do cuidado em considerar a legislação, muitas editoras adequam minimamente suas coleções didáticas ao edital, apenas o suficiente para que não sejam reprovadas nos processos avaliativos, a exemplo do que é apontado em determinados conteúdos geográficos analisados por Corrêa e Meirelles (2019). Isso reverbera em coleções didáticas que, em muitos aspectos, não aprofundam debates referentes a determinados temas sociais e políticos. Sem estes destaques, a formação cidadã perde espaços e mantém-se sob um viés fragmentado.

Outra situação presente no contexto do PNLD se refere à produção de livros didáticos, amplamente dominada pelas empresas editoriais privadas, o que, consequentemente, tem limitado a produção de obras destinadas à diversidade que é inerente aos estudantes das escolas públicas do país. Isso, pois, a existência de um número restrito de editoras participantes do processo de avaliação acaba por manter no mercado, e especialmente no contexto da aquisição de livros por parte do Estado, um conjunto pequeno de coleções didáticas destinadas a atender os alunos das escolas públicas localizadas nas 27 unidades federativas do país. Nesse contexto ocorre o que é apontado por Bairro (2018, p. 7):

Os resultados apontam para uma tendência -a qual acompanha o aumento dos investimentos do Estado brasileiro na política pública do PNLD da concentração da obtenção dos Editais do PNLD no período por um pequeno número de empresas. Empresas estas concentradas a formar um conglomerado educacional. [...] Ainda que se identifiquem, fora do programa, enquanto empresas distintas, aparecem sob a égide do conglomerado no programa de livros brasileiro.

Esse processo limita também as opções didáticas que, muitas vezes, não comportam a diversidade étnica, social e cultural do país, constituído por um território extenso e permeado por uma multiplicidade de contextos que se diferem e que necessitam de uma educação que, além de outros contextos,abarque os aspectos que envolvem a realidade próxima/local.

Considerando que é investido um valor significativo na produção das coleções, estas precisam ser sempre aperfeiçoadas e tomar o atendimento à diversidade e a perspectiva cidadã como condicionantes a um movimento que contribua, efetivamente, às melhorias da sociedade, indo além do seu papel de abranger um conjunto de conhecimentos que vem sendo historicamente construído.

No entanto, é perceptível, ainda, um determinado padrão que se mantém, a fim de garantir aceitação deste material no mercado e que seja aprovado tanto na avaliação pedagógica quanto pelos professores e escolas, que poderão “adotá-lo” para uso durante quatro anos. Isso se justifica pois, como uma mercadoria, o livro didático, quando construído em uma proposta que leve em conta questões polêmicas de modo amplo, pode ser considerado por muitos professores como um material desafiador, e poderá não ser aceito, tendo em vista que instiga diferentes pontos de vista em sala de aula e vários debates. Nesse contexto, o professor muitas vezes prefere evitar certos desconfortos e escolher um livro menos crítico sobre determinados temas sociais. Assim, seleciona materiais que apresentam temas expressos de modo objetivo, facilitando a leitura e a elaboração de atividades aos alunos, também, porque seus tempos de escola estão ocupados com a sala de aula e com restritos momentos aos planejamentos e análises. Esses aspectos, contribuem para manter a invisibilidade destas questões, o que compromete o debate de temas necessárias à formação para a cidadania (COPATTI, 2017).

As propostas didáticas limitadas a um modelo pré-definido, que se adequa a todo o território nacional, são disponibilizadas às escolas após a aprovação em processo de avaliação realizado pelo MEC. Assim, as propostas aprovadas de cada editora (por vezes mais de uma coleção de um mesmo grupo editorial) passam a disputar a escolha dos professores e, portanto, espaço no mercado de consumo.

Os valores públicos investidos não são planejados pensando nos detalhes de cada coleção, mas seguem um edital que, em alguns aspectos, comporta a dimensão cidadã e em muitos outros ainda inviabiliza seus avanços, considerando-se que, a maioria das coleções, não toca ou não aprofunda temas que contribuem à cidadania plena. Dito de outro modo, a cidadania acessível a todos e viável ao desenvolvimento da sociedade de modo equitativo não é, de fato, presente na linguagem e nas propostas dos livros didáticos das distintas áreas.

Diante de um cenário de expansão dos investimentos públicos na avaliação, aquisição e distribuição destes materiais, refletir sobre que formato tem delineado a perspectiva cidadã e em que medida ela aparece, tem se tornado uma necessidade.

Somente no ano de 2017, de acordo com dados do FNDE, foram investidos nos anos finais do ensino fundamental 6 um total de 1.295.910.769,73 reais em livros didáticos, contemplando alunos do 1º ao 9º ano do ensino fundamental e repondo exemplares para o ensino médio. Em 2018 foram investidos um total de 1.467.232.112,09 em reais, destinados principalmente ao Ensino Médio, além do PNLD Campo, EJA e reposição de livros para ensino fundamental. Os investimentos realizados em 2019 com os livros para a educação infantil, principalmente, somam o montante de 1.102.025.652,17 em reais, também contemplando a reposição de exemplares para o ensino fundamental e médio.

Os dados numéricos permitem estabelecer relações entre a organização da política educacional e a perspectiva cidadã porque expressam a amplitude do conjunto de escolas, alunos, obras e valores investidos para a compra dos livros didáticos a serem distribuídos a estudantes de todo o país, democratizando o acesso a um conhecimento construído historicamente e reconhecido como necessário de ser transmitido às novas gerações.

Esses dados visibilizam a dimensão continental do território brasileiro por um lado, e aquiescem inferir que, diante de densidade da abrangência desses investimentos, por outro lado, remetem à dificuldade no cuidado com a forma como esse conteúdo é veiculado nesses materiais e com relação à limitação de atores/grupos sociais (diga-se econômicos) incumbidos da tarefa de construir formatos de livros que trazem à tona determinados discursos em suas propostas.

Os recursos investidos, como podemos observar, mantém a disponibilização de um grande número de exemplares de livros didáticos que, atualmente, atendem a grande maioria dos estudantes das escolas públicas do país. No entanto, grande parte destes jovens não se sente contemplada nestes materiais, seja pelo modo de linguagem que mantém, pela estrutura fragmentada de conteúdos, pelas dificuldades ainda presentes em relacionar-se com as distintas realidades, com as diversidades e outras situações invisibilizadas ou apresentadas de uma maneira que acaba desconsiderando suas formas de existência.

Considerando os desdobramentos da política nacional do livro didático é importante problematizar as dinâmicas dessas políticas por constituírem-se como direcionamento, muitas vezes, aos conteúdos no contexto escolar e norteadoras de mudanças e (re)adequações de propostas didático-pedagógicas na medida em que, em muitas realidades, estes materiais são utilizados como principal fonte de pesquisa ou como elemento principal da aula.

Bittencourt (2004)salienta que o livro didático pode assumir funções diferentes, dependendo das condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares. Por ser um objeto de “múltiplas facetas”, constitui-se como produto cultural, como mercadoria ligada ao mundo editorial e dentro da lógica de mercado capitalista, como suporte de conhecimentos e de métodos de ensino das diversas disciplinas e matérias escolares, e como veículo de valores, ideológicos ou culturais.

Como apontamos, um desafio ainda presente na proposição de livros didáticos e na avaliação tem sido, ainda, a relação entre quantidade destes materiais (pela disponibilização a todas as escolas e redes) e a qualidade destas produções. E essa qualidade vai muito além de textos e atividades bem elaboradas, reverbera, principalmente, no modo como são construídos para trazer à vivência de todos os estudantes a cidadania como uma prática social.

Diante desse desafio, Höfling (2003, p. 163), chama a atenção para a situação evidenciada pelos grupos editoriais, estes que, na arena de decisão e definição da política pública para o livro didático, podem comprometer a natureza e a própria conceituação de uma política social com contornos mais democratizantes. Isso porque é documento e sua concretude se realiza no contexto escolar como currículo escolar. Essa perspectiva, no contexto atual, tem se delineado de modo ainda mais claro e amplo, quando se vê instalada uma proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que acaba por fazer com que as coleções didáticas se moldem à sua proposta. Alguns aspectos relativos à BNCC são discutidos a seguir.

Para além do Livro Didático: a BNCC e a dimensão cidadã

A definição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), prevista na Constituição Federal de 1988 e debatida nos últimos anos,prometia, inicialmente, uma marca bastante forte no sentido da perspectiva cidadã. No entanto, na sua implementação, no final de 2017, na versão final da BNCC, a perspectiva cidadã estava bastante esmaecida. Objetiva-se, textualizada em articulação com o desenvolvimento de aprendizagens a partir de habilidades e competências.

Esse documento (BNCC, 2017), considera competência como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Considera que é a partir da construção de habilidades e competências que se pode contribuir à resolução de demandas sociais, do trabalho e atuar de modo cidadão. Sendo assim, a cidadania é inserida como uma das dez competências gerais da Base Nacional para a educação básica, da seguinte forma:

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. (BNCC, 2017, p. 9)

O exercício da cidadania, embora mencionado tanto nos aspectos gerais deste documento quanto ao se referir especificamente aos componentes curriculares, não avança o debate sobre que cidadania se propõe e sob quais perspectivas ela pode ser pensada. A dimensão da cidadania considerada na BNCC se refere à Constituição Federal de 1988, na qual menciona o artigo 205, que reconhece a educação como direito fundamental compartilhado entre Estado, família e sociedade, determinando que a educação, como um direito de todos, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

No entanto, a BNCC tem como foco o desenvolvimento das competências por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” (conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e do que devem “saber fazer” (mobilização para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do exercício da cidadania e do mundo do trabalho). Esse processo, segundo o documento, oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais, o que é questionado por diversos autores com relação ao tom prescritivo que ganha a partir da pedagogia das competências.

Diante disso, percebemos o foco principalmente na construção de um aparato de elementos, explicitados em vários momentos, e a cidadania mencionada brevemente, sendo um elemento pouco aprofundado.Isso se observa, ainda, na sua inserção pouco aprofundada nos componentes curriculares, os quais, apesar de mencionarem essa perspectiva, não inserem diretamente aportes para que isso se efetive. Apenas o componente curricular de história abarca essa possibilidade nos objetos do conhecimento do 5º ano do Ensino fundamental.

Da mesma forma, a proposta da BNCC especificamente para o ensino médio, aprovada em 2018, menciona a cidadania mas também não insere aspectos mais amplos que potencializem um aprendizado para o mundo da vida, indo além da ideia de aprender procedimentos a serem apreendidos e reproduzidos pelos estudantes. A BNCC de ensino médio se restringe a uma proposta geral e depois se abre para cinco itinerários formativos, os quais obrigam os estudantes a escolher itinerários, sendo que alguns deles, em escolas periféricas, em pequenos municípios, por exemplo, não são ofertados, reduzindo ainda mais a democratização de conhecimentos considerados essenciais à formação integral e à construção da cidadania.

A dimensão cidadã, em nosso entendimento, precisa ir além de compor habilidades e competências, sendo uma compreensão mais ampla com relação às vivências em sociedade, aos desdobramentos nela existentes que, em um contexto democrático, permite que possamos atuar conscientemente, exercer direitos e contribuindo com nossos deveres também nos debates sobre temas que envolvem a sociedade em que vivemos.

Trata-se de compreender que educar para a cidadania envolve reconhecer a centralidade da dimensão humana.A construção da autonomia e da maioridade se configuram em processos inerentes à cidadania.Cabe lembrar, que cidadania é o argumento central da escola em geral, que trabalha com conhecimentos considerando o individual e o coletivo. Mas isso se legitima, desde que se proponha a oportunizar a inclusão das pessoas como sujeitos participantes no que se refere aos direitos e deveres.

Cabe destacar a importânica dos conhecimentos específicos dos componentes curiculares enquanto dispositivos nesse processo,como, por exemplo, na Geografia. Pois, sendo o espaço geográfico um produto e uma produção da sociedade, relaciona-se diretamente com o conceito de cidadania, pois diz respeito ao mundo comum e à equidade social. É inter subejtivamente que se constrói o espaço geográfico, por isso, o compromisso é reconhecer o outro como outro-eu. A Geografia, assim como as demais áreas, é uma das ciências que contribui para a aprendizagem da cidadania por sua implicação territorial e por sua possibildiade de compreender o mundo. (ANDREIS, 2012).

Estes aspectos precisam ser considerados, principalmente a partir da aprovação da BNCC, visto que tem ocorrido um processo de padronização dos currículos e das propostas dos livros didáticos a esse documento. Assim, os livros didáticos se adequam às competências e habilidades nela estipuladas, mas que apresentam, ainda, várias lacunas no sentido de visibilizar aspectos voltados à efetiva democratização do conhecimento, tanto atendendo as diversidades sociais e culturais, quanto em relação aos enfoques dos diferentes temas que se apresentam hoje como atuais.

Democratização do conhecimento e a perspectiva de formação cidadã nas políticas educacionais

A cidadania, mesmo que tenha seu sentido variante no tempo e no espaço, como apontam Pinsky e Pinsky (2003), possui um caráter de interação e este, na interpretação de Carvalho (2015), se modifica conforme se delineia a sociedade e variam os regimes políticos (no contexto colonial, ditatorial, democrático).

O geógrafo brasileiro, Milton Santos (2007, p. 19), considera que:

O respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância.

A dinâmica social inerente à coletividade dos indivíduos precisa ter clara consciência que se constitui de forma mais humana e significativa tomando a cidadania como elemento basilar, necessário à sua manutenção. E nesse contexto se estendem os direitos de cada indivíduo, os quais precisam ser assegurados, eos deveres para com a sociedade.

Os direitos de toda a população, na perspectiva cidadã adotada por Carvalho (2015), considera os direitos civis, políticos e sociais inerentes à toda a população, e não apenas a uma parte dela, conforme considerado em distintas épocas e sociedades ao longo do tempo. Os direitos civis são aqueles fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva e incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria, garantindo o mínimo de bem-estar social a toda a população. E os direitos políticos “se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado à parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado (CARVALHO, 2015, p. 15).

A cidadania, compreendida como exercício de participação social sob uma dimensão igualitária, constitui-se como uma necessidade de ser pensada e debatida, visto que,conforme Milton Santos (2007)é hoje, ainda, incompleta. Assim, mudanças no uso e na gestão do território se impõem, se queremos criar um novo tipo de cidadania, uma cidadania que se nos ofereça como respeito à cultura e como busca da liberdade.

Para pensar o território, as disputas nele impostas, as dinâmicas do espaço que se constitui como uma conjuntura de forças que se impõem e se sobrepõem sobre os grupos sociais, é preciso um exercício reflexivo e dialógico amparado na construção da cidadania. Conforme Pinsky e Pinsky (2003), um possível caminho para a cidadania é sua aprendizagem na escola, constituindo-se como ponto de início de um trabalho de fortalecimento de seu sentido. Dessa forma, a cidadania deve ser “ativa e reivindicadora” como considera Carvalho (2015).

Diante de um contexto em que a educação em seu caráter público tem sido ameaçada no Brasil, tem-se no debate sobre cidadania a possibilidade de alimentar e fortalecer a democracia. No contexto das políticas públicas de educação, a cidadania precisa ter espaço no debate tanto no que concerne aos documentos norteadores, quanto reverberar efetivamente nas propostas dos livros didáticos e na educação pública que se propõe nas instituições escolares.

As coleções de livros didáticos atuais, que tem se enquadrado nas proposições da BNCC, a qual contempla a cidadania de modo pouco contextualizado, precisam constituir como pano de fundo de suas propostas a perspectiva cidadã. Isso porque a cidadania é um processo vivo, dinâmico, e somente avança na medida em que se põe em visibilidade os distintos sujeitos que compõe a sociedade, muitos deles à margem, invisibilizados, considerados cidadãos apenas sob o aspecto de votantes.

Essa mudança necessária reverbera diretamente nos processos educativos que acontecem nas escolas situadas nas mais diversas condições sociais, econômicas, culturais deste país. É nestes espaços que os livros didáticos chegam, por vezes de forma mais direta do que os resultados das demais políticas educacionais recentes, que trazem a democracia e a cidadã como pressupostos.

Em muitos contextos escolares o livro didático acaba sendo o principal recurso utilizado na preparação e na efetivação das aulas dos professores dos diversos componentes curriculares. Diante disso, o debate sobre a cidadania é basilar haja vista que constitui elemento primordial à construção de uma sociedade em que a participação e a justiça social estejam contempladas efetivamente.

Há questões que permanecem e dizem respeito a quatro aspectos essenciais: a) como tem se constituído a formação de professores para a cidadania; b) como tem se delineado as políticas educacionais com relação ao que recai, especificamente, no contexto da formação cidadã, como os livros didáticos e a BNCC; c) que aspectos podem ser reavaliados no intuito de ampliar a qualidade dos materiais disponibilizados diante da necessidade da ampliação das vivências e da consciência cidadã; d) como e de que forma tem chegado às instituições escolares os resultados das políticas educacionais implementadas.

Estes aspectos, que podem surtir pesquisas mais adiante, precisam ser pensados a partir da sua potencialidade no sentido de contribuir para que a cidadania seja, de fato, presente na sociedade brasileira de modo amplo e que, diante dos desafios de um contexto marcado por dificuldades em preservar a democracia, constitua voz forte a partir dos espaços de educação pública, tomada desde a CF de 1988 como bem público, de qualidade, laica e acessível a todos.

A dimensão cidadã nas políticas educacionais precisa, portanto, ser complexificada nas políticas públicas educacionais, nos livros didáticos e nas legislações referentes à formação de professores. Persiste o desafio de avançar a pesquisa e a reflexão a respeito destes aspetos, considerando, de imediato, que a própria cidadania é necessária à garantia do debate que se propõe.

Considerações finais

Fortalecer as políticas públicas educacionais pensando a formação dos cidadãos tende a contribuir para a construção de uma sociedade permeada pela cidadania. Em diálogo com esses debates é possível apontar que a cidadania entendida como respeito ao outro como outro-eu, no qual a democracia e o reconhecimento das diversidades estejam contemplados, ainda é um desafio que precisa ser construído por meio da clareza no entendimento desse princípio, bem como da sua objetivação nos documentos das políticas educacionais.

Consideramos, ao analisar elementos da cidadania nos documentos das políticas públicas educacionais, que os avanços foram significativos desde a década de 1990, mas se mantém muitos desafios no contexto dessas políticas no que tange à cidadania. Pelos documentos das políticas públicas educacionais e respondendo à pergunta por nós posta, afirmamos que restrita e lentamente estamos caminhando na perspectiva cidadã no Brasil, embora seja, ainda, uma cidadania incompleta, restrita, que não se constitui em suas potencialidades diante de inúmeros processos históricos que se relacionam, em grande medida, às desigualdades sociais, que implicam na não efetivação da justiça social de modo mais amplo.

A política educacional, analisada em diálogo com os documentos que legitimam o programa do livro didático no Brasil e a BNCC implementada atualmente, trazem a preocupação de abranger de modo concentrado o conjunto nacional, mas que, nesse complexo, restritamente tem contribuído para a construção e o respeito aos princípios democráticos.

Então, há ainda muito a avançar neste debate uma vez que as referências à cidadania permitem denotar incoerências em alguns documentos, em suas propostas quando se referem à formação cidadã ou à atuação cidadã, neste caso de professores. Também, considerando diretamente a proposta da BNCC tomando as habilidades e competências como centrais e tendo a cidadania como um resultado a ser obtido a partir destas. Da mesma forma, o modo como os livros didáticos tratam as diversidades, de modo por vezes superficial, e sob conteúdos fragmentados, acaba por dificultar que aspectos essenciais ao debate sobre a construção de uma sociedade plural, democrática, cidadã se efetive.

Resulta disso que, cada vez mais tem-se investido muitos recursos públicos na aquisição e distribuição de livros didáticos produzidos por grandes empresas privadas, e moldados/enquadrados à proposta da BNCC. Temos, assim, de um lado, um movimento importante de democratização do acesso a um conhecimento considerado necessário aos estudantes brasileiros, mas que, por outro lado, restringe as propostas a determinadas habilidades e competências, diminui a visibilidade das diversidades das mais variadas formas, o que dificulta, cada vez mais, que se avance em aspectos essenciais para que os livros didáticos sejam instrumentos à uma cidadania plena.

Resta-nos, como esperança, que os cursos de formação de professores estejam atentos à formação cidadã e à perspectiva democrática. No entanto, em alguns contextos de formação de professores o viés reprodutivista de conteúdos e de práticas sociais se mantém. Esperamos que, diante dos desdobramentos da política nacional que apequena os investimentos na formação de professores, a qualidade dos livros didáticos disponibilizados seja uma atenção permanente, contribuindo para que os professores que atuam na educação básica possam ter acesso a materiais coerentes e que contribuam, efetivamente, para interpreter a sociedade e construir aportes à cidadania

Diante de inúmeros aspectos que perpassam esse debate e que não cabem neste artigo, nos preocupa,principalmente, os retrocessos quanto ao debate de temas necessários à cidadania.Frente a isso é essencial resistirmos, tendo a pesquisa e o diálogo como possibilidades a um movimento dialógico entre universidade e escola, ampliando a problematização de temas que são comuns às dintintas áreas e que, sob o olhar da Geografia, área a partir da qual lançamos este olhar, nos parece importante de ser aprofundado, referindo-se à manutenção da democracia como conquista do povo brasileiro e com relação à cidadania enquanto caminho para a participação da população nos destinos do País.

Material suplementar
Agradecimientos

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior–CAPES, que financia esta pesquisa através do Estágio Pós-Doutoral do Programa Nacional de Pós-Doutorado/Capes (PNPD/CAPES) realizando no Programa de Pós-Graduação em Educação(41020014002P6) do(a) Universidade Federal daFronteira Sul.

Referências
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Notas
Notas
1 Professora graduada em Geografia e Mestre em Educação pela UPF. Doutora em Educação nas Ciências pela UNIJUI. Bolsista PNPD, UFFS Campus Chapecó. E-mail: c.copatti@hotmail.com
2 Graduada em Geografia, Mestre e Doutora em Educação na Ciências: concentração Geografia pela UNIJUUI/RS, Professora na Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Chapecó. E-mail: adriana.andreis@uffs.edu.br
3 Não se pode desconsiderar a experiência democrática vivenciada entre 1945 e 1964 em que, pela Constituição de 1946, manteve conquistas sociais garantidas anteriormente, como os direitos políticos. Essa constituição já afirmava no artigo 166 que a educação é direito de todos e dever do Estado, no entanto, quase metade da população do país, à época, era analfabeta e o sistema de ensino ainda precário em sua estrutura e organização.
4 Apesar de que os primeiros movimentos de utilização e organização de materiais didáticos para as escolas remeter a um processo iniciado ainda em meados do século XIX, foi apenas na década de 1920 que foram tomadas as primeiras medidas de construção de propostas didáticas para o atendimento dos estudantes do país. Nesse contexto, em 1929 foi criado o Instituto Nacional do Livro (INL) para legislar sobre políticas públicas do livro didático, e em 1938 foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) visando estabelecer critérios de controle sobre a produção e circulação dos livros no país. Posteriormente, outras ações foram tomadas para prover as escolas com materiais didáticos, a exemplo do convêncio MeC/UsAID, que permaneceu poucos anos fornecendo livros às escolas. Outras ações foram delineadas nos anos seguintes, culminando com avanços significativos e a expansão do programa com a distribuição de materiais didáticos a todos os níveis da educação básica, a partir dos anos 2000 de modo mais especifico.
5 Adrião e Oliveira (2018), em 2015, por exemplo, a Abril Educação, juntamente com a Ática e a Saraiva, foram as editoras que mais receberam recursos do PNLD originários de investimentos públicos.
6 Investimentos referentes ao atendimento a professores e alunos deste nível de ensino e à reposição de livros aos demais níveis de ensino, considerando, ainda, a reposição de livros conforme o número acrescido de matrículas.
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