Entre ausências e emergências, genocídios e epistemicídios: notas sobre metrópole e “espacialidades enegrecidas”

Between absences and emergencies, genocides and epistemicides: notes on metropolis and “blackened spatialities”

Entre ausencias y emergencias, genocidios y epistemicidas: notas sobre metrópolis y "espacialidades ennegrecidas"

Felipe Taumaturgo Rodrigues de Azevedo 1 http://orcid.org/0000-0001-5952-4675
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Entre ausências e emergências, genocídios e epistemicídios: notas sobre metrópole e “espacialidades enegrecidas”

GEOPAUTA, vol. 4, núm. 1, pp. 111-128, 2020

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Recepção: 30 Janeiro 2020

Aprovação: 30 Março 2020

Resumo: Este trabalho é uma proposição alternativa às condições quase sempre imutáveis dos estudos que se debruçam sobre o urbano na Geografia. O interesse parte de um pressuposto que ratifique a necessária reconstrução e o enaltecimento da ciência geográfica enquanto materialidade indiscutivelmente potente, mas ainda indolente no que se refere a corpos de homens e mulheres negras que se especializam pela metrópole. Para além do apontamento de perspectivas problemáticas para o desenvolvimento da vida desses sujeitos, o artigo tenta valorizar o profícuo nascituro de postulados epistemológicos que podem surgir a partir disso. Por meio do diálogo com os debates relativos à analítica da colonialidade, sobretudo mediante sua relação com o corpo e o espaço, tentamos prostrar essa crítica.

Palavras-chave: Corpo, Urbano, Negro.

Abstract: This work is an alternative proposition to the almost always immutable conditions of studies that focus on the urban in Geography. The interest starts from a presupposition that ratifies the necessary reconstruction and the praise of geographic science as an indisputably potent materiality, but still indolent with regard to the bodies of black men and women who specialize in the metropolis. In addition to pointing out problematic perspectives for the development of these subjects' lives, the article attempts to value the unborn child of epistemological postulates that may arise from this. Through dialogue with the debates related to the analysis of coloniality, especially through its relationship with the body and space, we try to prostrate this criticism.

Keywords: Body, Urban, Black.

Resumen: Este trabajo es una propuesta alternativa a las condiciones casi siempre inmutables de los estudios que se centran en lo urbano en Geografía. El interés parte de una presuposición que ratifica la reconstrucción necesaria y el elogio de la ciencia geográfica como una materialidad indiscutiblemente potente, pero aún indolente con respecto a los cuerpos de hombres y mujeres negros que se especializan en la metrópoli. Además de señalar perspectivas problemáticas para el desarrollo de la vida de estos sujetos, el artículo intenta valorar al feto de los postulados epistemológicos que pueden surgir de esto. A través del diálogo con los debates relacionados con el análisis de la colonialidad, especialmente a través de surelación con el cuerpo y el espacio, intentamos postrar esta crítica

Palabras clave: Cuerpo, Urbano, Negro.

Introdução

No campo da historiografia brasileira, a destacar o ramo preocupado com a discussão do trabalho, se propõe a denúncia de um “paradigma da ausência” na repercussão dos assuntos relativos à cor de trabalhadores na reprodução da vida social do Brasil do período pós-abolição. Essa construção pode ser muito bem percebida pelas contribuições de historiadores como Sidney Chalhoub (2009) e Álvaro Nascimento (2016). A leitura se preocupa com o apagamento de corpos negros na constituição da produção historiográfica brasileira e propõe alternativas interessantes para a discussão, como a inserção da opção de colonial enquanto dado profícuo para subversão teórica desse “problema”, crítica demarcada principalmente na análise de Nascimento.

Essa realidade não parece muito distante das discussões que permeiam a Geografia, sobretudo a que se debruça acerca da dimensão da vida urbana, quase sempre amparada por uma leitura embranquecida e muitas vezes distante da realidade de países do Sul Global, como admitido inclusive pelo filósofo francês Henri Lefebvre (2008), quase sempre uma referência fundamental (com justiça) das discussões que envolvem a problemática da produção do espaço urbano.

Parece evidente reconhecer que esse tensionamento não é um produto recente, muito menos algo acabado. A dimensão da ausência como condição para a conformação da geopolítica do conhecimento se ampara pela constituição histórica de um projeto de “longa duração” permeado por genocídios intrinsecamente acompanhados de epistemicídios, como brilhantemente alertado pelo sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2013). Os genocídios/epistemicídios cunhados por Grosfoguel remetem ao século XVI, mas preservam a estrutura basilar da naturalização da diferença que privilegia homens brancos e europeus de cinco países do Norte Global, como se fosse possível esquadrinhar as infinitas realidades do mundo, inclusive urbano, desde esse pequeno espaço.

O objetivo do trabalho esbarra em uma simples tentativa de imaginar possibilidades e perspectivas possíveis para caracterizar a dimensão metropolitana mediante uma narrativa que não “encubra”, como nas linhas de Enrique Dussel (2011), existências, cores e subjetividades. Essa percepção, para além da retórica da própria leitura urbana, pretende deslocar certo enfoque a fim de alinhavar a leitura de colonial como importante e necessária opção para subverter os ordenamentos teóricos para a cidade, constantemente indispostos a se proclamarem autocríticos e ainda distantes de outros lugares de enunciação possíveis.

A estrutura argumentativa se inclina a pensar sobre quatro questões indispensáveis, que sequencialmente contribuem para a organização da escrita e do alinhamento teórico do trabalho:

1) a concepção de ausência enquanto paradigma, proposta que aqui estará mais próxima da leitura do historiador Álvaro Nascimento(2016) no texto Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social do trabalho no Brasil , além das contribuições de Boaventura de Sousa Santos (2007) em sua “Sociologia das Ausências”, postulado teórico disposto a subverter uma “razão indolente” característica da geopolítica do conhecimento que privilegia certos lugares de enunciação, cores e corpos e está marcada pela ciência geográfica preocupada com a produção do espaço urbano. Essa dimensão será associada à potente proposta de Ramón Grosfoguel (2013) no texto A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI no qual reconhece uma “perspectiva mais longa” como referência de apagamentos históricos de corpos e mentes.

2) o debate sobre colonialidade e decolonialidade inferido a partir das dez teses de Nelson Maldonato-Torres (2018) enquanto um acúmulo extremamente necessário para a constituição de outras narrativas que estejam para além das aproximações entre a metrópole, a questão racial e o projeto da modernidade/colonialidade, organização potencialmente questionável por meio da adoção de uma analítica da decolonialidade.

3) a constituição de uma narrativa que aproxime a concepção de metrópole e a reprodução da subordinação do colonizado no bojo da modernidade/colonialidade, principalmente mediante inspiração na leitura do psiquiatra Frantz Fanon no livro Pele negra, máscaras brancas (2008), onde o autor reconhece o prevalecimento metropolitano como condição causal da subserviência enquanto questão também “patológica”. Além disso, há a conjugação dessa análise com outras pontuações pertinentes à dimensão racial na vida urbana, principalmente no Rio de Janeiro em meio aos megaeventos, como a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, análise feita pelo geógrafo Rogério Haesbaert a partir do diálogo com o antropólogo João Pacheco de Oliveira (2014). Essa política, em nossa abordagem, estará próxima de uma “necropolítica”, como nos escritos de Achille Mbembe (2016).

4) como guisa de conclusão, a proposição de uma linha teórica para os estudos urbanos que consiga tangenciar associações possíveis entre a analítica da colonialidade e decolonialidade com a demarcação da Geografia Urbana enquanto campo disposto a elucubrar caracterizações muito mais abertas e corporificadas a partir da questão racial, próximas das “espacialidades enegrecidas” enunciadas por Guimarães (2019). Uma realidade um pouco distante de certa dependência do eurocentrismo embranquecido que demarca historicamente essa parte do campo geográfico.

Produzir a ausência: entre metonímias e prolepses

O “paradigma da ausência”2 enunciado por Álvaro Nascimento (2016), em diálogo sobretudo com os também historiadores Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da Silva (2009), tem sido denunciado por alguns autores no que se refere ao entendimento do mundo do trabalho mediante uma compreensão embranquecida e que se manifesta quase sempre como única realidade possível. Uma das críticas mais fortes nesse sentido é a dificuldade de alguns intelectuais conseguirem reconhecer os trabalhadores negros inseridos no contexto de classe operária por conta do seu passado de escravidão. Essa negligência se dava, inclusive, com o próprio uso da cor como possibilidade de argumentação na produção dos textos. Uma grande resistência em “enegrecer a classe” (NACIMENTO 2016, p. 613). Ainda segundo o autor,

a própria cor dos trabalhadores geralmente passava em branco nas páginas das obras. Em termos metodológicos, os autores abraçavam-se a categorias profissionais, étnicas e nacionais, mas quase nada discutiam acerca dos conflitos e solidariedades no tocante à cor dos trabalhadores, chave fundamental para incluir o racismo como um problema histórico na historiografia dos mundos do trabalho (NASCIMENTO, 2016, p. 613).

Uma alternativa enquanto “caminho para a reflexão” exposta por Álvaro Nascimento é o uso de autores atentos à problematização dessa dimensão no cerne do conteúdo epistemológico. Essa rota é uma das perspectivas metodológicas inscritas em nosso trabalho, principalmente pelas bibliografias citadas pelo autor. A preocupação com essa história única, como ensina Chimamanda Adichie3, mais do que uma precaução, se torna necessidade. Em sentidos políticos e epistemológicos. Como alertam Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel (2019, p. 11) “o racismo também será um princípio organizador daqueles que podem formular um conhecimento científico legítimo e daqueles que não o podem” Essa realidade torna possível separar corpos, cores e lugares na produção do conhecimento.

A postulação da “ausência” também tem lugar valoroso nas contribuições de Boaventura de Sousa Santos (2007), sobretudo na construção de sua crítica à uma “razão indolente” que consegue, por meio da representação de figuras de linguagem como a prolepse e a metonímia, caracterizar a ausência de outras temporalidades, conhecimentos e lugares de enunciação na produção do conhecimento. Imaginar a “razão metonímica”, maneira de “tomar a parte pelo todo” (SANTOS, 2007, p. 25), encontra seu sentido na produção de um universalismo para a realidade social que cria uma ideia de totalidade (essa necessariamente abstrata) como se só essa fosse importante. Esse modelo de razão, para o autor português, procura lugar nos interstícios de um reducionismo amparado pela “simetria dicotômica” que se manifesta como mero “véu”, nos termos de Du Bois, de uma hierarquia.

Vivemos em um conhecimento preguiçoso, que é, por natureza, um conhecimento dicotômico: homem/mulher, norte-sul, cultura/natureza, branco/negro. São dicotomias que parecem simétricas, mas sabemos que escondem diferenças e hierarquias. Podemos nos perguntar se na China ou na índia há uma racionalidade mais ampla. Eu respondo que sim, pois não têm o mesmo tipo de racionalidade. A questão é para onde nos conduz uma racionalidade tão estreita como a nossa (SANTOS, 2007, p. 27).

A hierarquia, condição própria da razão indolente, talvez seja o rosto mais verossímil da produção de um conhecimento marcado pela legitimidade da diferença. Mais do que isso, da constituição da indiferença. Ora, ignorar a presença de trabalhadores negros na edificação das relações sociais da cidade do Rio de Janeiro no contexto do pós-abolição é uma grande representação dessa condição, ignorar a questão racial nos debates urbanos também.

No que se refere à “razão proléptica”, a compreensão da reprodução da vida por meio da prolepse perpassa por construir o fim sem contá-lo. “É conhecer no presente a história futura” (SANTOS, 2007, p. 26). A racionalidade se manifesta proléptica mediante o fim de uma história que tem hora e lugar, porque é única. O desenvolvimento econômico e o progresso são as características preponderantes dessa perspectiva, que carregam consigo a dimensão histórica da perversidade da acumulação que, como já exposto a partir de Quijano (2005), foram fundamentais no controle de corpos e territórios. É um movimento circular e repetitivo que se perpetua como condição pétrea no recrudescimento de postulações inclinadas ao esquecimento, à invisibilidade e à exploração de mulheres, do Sul, da natureza e do negro. Os grupos na parte de baixo da hierarquia metonímica proposta por Santos (2007).

Nossa razão ocidental é muito proléptica, no sentido de que já sabemos qual é o futuro: o progresso, o desenvolvimento do que temos. É mais crescimento econômico, é um tempo linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa: o futuro é infinito. A meu ver, expande demais o futuro. A razão indolente, então, tem essa dupla característica: como razão metonímica, contrai, diminui o presente; como razão proléptica, expande infinitamente o futuro (SANTOS, 2007, p. 26).

A leitura de Santos (2007) contribui e inspira porque é no apontamento dessas narrativas e figuras de linguagem que o autor consolida sua proposição acerca da constituição de uma “Sociologia das Ausências”. Longe de querer reivindicar a parte geográfica dessa discussão, muito embora se reconheça que essas relações sociais são, indiscutivelmente, também espaciais, mas parece fundamental enunciar possibilidades reais de subversão dessa lógica que invisibiliza e apaga grupos, corpos e cores que não estão presentes nas principais representações teórico- metodológicas da produção do conhecimento nos debates urbanos. A ideia de reconhecer a falta de corpos negros nessa condição faz parte de um processo que tenta, como propõe o autor português, a “não reduzir a realidade ao que existe”, uma concepção embranquecida e disposta ao esquecimento.

Como possibilidade de inserção para a discussão, no que diz respeito à conformação da ausência, o sociólogo Ramón Grosfoguel costura reflexões de forma bem consistente quando tece um diálogo interessante com o historiador francês Fernand Braudel e suas contribuições aos estudos históricos. Nessa reflexão, Grosfoguel sinaliza que a constituição dessa narrativa indolente e incrustada na produção do conhecimento faz parte de um projeto colonial edificado no século XVI com efeito de “longa duração”. O sociólogo porto-riquenho analisa a constituição do projeto colonial em seu sentido político-administrativo, amparado pela racionalidade da conquista (o ego conquiro), essa que se torna possível mediante o extermínio (o ego extermino). A dimensão do “eu” presente tanto no ego conquiro quanto no ego extermino fazem parte da crítica do filósofo Enrique Dussel (2011) ao processo de recrudescimento de uma geopolítica do conhecimento sustentada pelo ego cogito (eu penso), tão fundamental para a tessitura do pensamento moderno que “iluminou” a produção científica e privilegiou homens de cinco países do Ocidente (Itália, França, Inglaterra, Alemanha e os Estados Unidos), uma narrativa que só se consolidou universal desde a aniquilação de outras possibilidades de leitura e conhecimento de mundo. Juntas, essas perspectivas que equalizam a centralidade do eu (“eu conquisto”, “eu extermino” e “eu penso”), formam a tríade necessária para o que o autor caracteriza como o “encobrimento” do Outro, uma construção narrativa que inviabiliza outros vernáculos possíveis e contribui para o processo de conformação desse “paradigma da ausência” em diferentes escalas espaço-temporais, inclusive no campo dos estudos urbanos.

Sobre a analítica da colonialidade e da decolonialidade

Transferir a ausência de corpos e mentes negras para o cerne do debate acerca da produção do conhecimento se torna apenas uma das condições necessárias para tentar arranhar um mundo da vida indolente e indiferente à grupos étnicos e sociais subalternizados na reprodução de suas relações sociais no âmbito da ciência, mas também da sociabilidade, sobretudo na vida urbana. É interessante perceber que essa dimensão consegue tocar diversas perspectivas que poderiam se configurar enquanto profícuos pontos de partida para a discussão. Desde a questão da expropriação da terra (como foi para Frantz Fanon), ou à própria produção do espaço urbano (a principal raiz do nosso problema, já que é uma produção ainda distante da leitura decolonial), parece considerável reconhecer a importância de construção teórica que consiga abranger elementos do real, com o reconhecimento da ausência da questão racial, à constituição e necessária participação desses corpos na produção do espaço e em seus rebatimentos teóricos.

Na associação proposta, essa tentativa circunda a perspectiva decolonial enquanto potente articulação e inclinação teórica para promover certa aproximação entre os dois campos. Aqui, sem perder um método que postula contradições (pelo contrário), se conclui a necessidade de contrapor elementos a fim de construir sínteses consistentes acerca dos movimentos do pensamento no solo da Geografia Urbana. A rota trilhada busca interseções entre a decolonialidade e os estudos urbanos para subverter a condição de negras e negros nas principais interpretações sobre a cidade, dois campos aparentemente afastados (para não dizer separados), mas com intensas relações comuns.

O caminho possível apresentado pelo historiador Álvaro Nascimento (2016) recebe certo aprofundamento com os acréscimos de alguns autores preocupados com a abordagem decolonial, principalmente na construção das críticas que conformam a colonialidade. Ou seja, representam a “pedra fundamental” de qualquer circunstância que se proponha oposta à naturalização da diferença presente nos consolidados debates urbanos que em sua maioria negligenciam a participação de negras e negros nessa discussão.

Uma bibliografia que parece elementar, tanto pela clareza argumentativa quanto pela densidade da proposta, é o texto Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas, de Nelson Maldonado-Torres (2019). O artigo, em sentidos pedagógicos, é vigoroso no que diz respeito à postulações necessárias acerca da perspectiva decolonial, mas tem seu valor ampliado quando sugere aberturas extremamente ricas para o leitor, principalmente a um público que ainda pode aparentar algumas dúvidas acerca desses argumentos.

O filósofo apresenta dez teses para pensar a colonialidade e a decolonialidade, passando por concepções fundamentais para o entendimento dos argumentos decoloniais, mas principalmente para o enriquecimento dessa leitura (e a inserção de outras) para a compreensão do mundo. As teses que preenchem a crítica à colonialidade são apresentadas de maneira inicial pelo autor e são cinco: 1) a “ansiedade” oriunda do aparato político-administrativo do colonialismo; 2) a diferença fundamental entre colonialismo e colonialidade; 3) a concepção da modernidade/colonialidade como catástrofe metafísica; 4) a naturalização do extermínio; 5) a colonialidade do saber, do ser e do poder.

No que diz respeito à decolonialidade (também enumerada em cinco), Maldonado-Torres (2019) distribui as teses da seguinte forma: 6) o enraizamento da decolonialidade em um giro decolonial; 7) a emergência do condenado como questionador, pensador, teórico e escritor/comunicador; 8) um giro decolonial estético e a emergência do condenado como criador;

No que diz respeito à decolonialidade (também enumerada em cinco), Maldonado-Torres (2019) distribui as teses da seguinte forma: 6) o enraizamento da decolonialidade em um giro decolonial; 7) a emergência do condenado como questionador, pensador, teórico e escritor/comunicador; 8) um giro decolonial estético e a emergência do condenado como criador;

9) um giro decolonial ativista e a emergência do condenado enquanto possibilidade de mudança social; 10) decolonialidade como projeto coletivo.

Seja nas teses sobre colonialidade ou decolonialidade, fica evidente a abertura de potentes caminhos para a realização de qualquer crítica disposta no campo da ciência e da constituição do saber para a conformação da modernidade/colonialidade. Talvez o ponto mais importante para o nosso texto seja a congruência dessa interpretação com a proposição de uma Geografia Urbana não só preocupada com a questão racial, mas necessariamente antirracista. As teses sobre a colonialidade fundamentam a estrutura fundante de um modelo societário o qual transformou o componente racial como caracterização para sobreposição de alguns grupos sobre outros (por isso refletir sobre a “razão metonímica” é tão importante), lógica que na América, se refletiu no controle de corpos, mas também do trabalho, como muito bem apontado por Aníbal Quijano:

A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foramestabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (QUIJANO, 2005, p. 107-108).

Seria metodologicamente problemático escolher exclusivamente uma das teses de Maldonado-Torres para constituir a reflexão que propomos, por isso algumas tendências analíticas são expostas nesse momento como condição de apontamentos futuros dentro do próprio texto, a fim de consolidarmos a narrativa de uma vida urbana engajada com a perspectiva decolonial e regularmente conectada com a questão racial, análise mais bem formulada no próximo tópico do trabalho.

Metrópole e colonialidade

Em nossa perspectiva, não existe elo mais forte entre a modernidade/colonialidade e a vida urbana do que a corporificação de sujeitos em sua abrangência metropolitana. Ora, era esse espaço a centralidade essencial do aparato-político administrativo do colonialismo. Frantz Fanon (2008) no livro Pele negra, máscaras brancas, sobretudo no primeiro capítulo, intitulado O negro e a linguagem, mas também na quarta parte da obra, chamada Sobre o pretenso complexo de dependência do colonizado, tanto no que se refere à linguagem, quanto nas implicações do que o autor conclama “psicopatologia do colonizado”, percebe a inscrição da metrópole como mediação emergente para as consequências incisivas no cotidiano das populações que viviam sob a sombra da condição metropolitana do pacto colonial.

O grande estímulo oriundo da obra de Fanon (2008) que se encontra à discussão acerca da metrópole surge em seus argumentos dispostos a contrapor a concepção de que, no contexto do cotidiano de um negro martinicano (território ultramarino francês localizado na América Central Insular), para que seu ciclo de vida se tornasse completo, haveria a necessidade de ir à França. É essa relação de interdependência, quase abusiva, que apontamos como disponibilidade teórica para avançar nas discussões da vida metropolitana em uma perspectiva antirracista, sobretudo em seu espectro dominante. O negro que retorna à Martinica depois de um período na França fala diferente, se relaciona com o mundo de uma outra maneira, transforma sua condição dentro da própria subalternidade. “O negro que conhece a metrópole é um semideus”, escreve Fanon:

O negro que entra na França muda porque, para ele, a metrópole representa o tabernáculo; muda não apenas porque de lá vieram Montesquieu, Rousseau e Voltaire, mas porque é de lá que vêm os médicos, os chefes administrativos, os inúmeros pequenos potentados. (...) Existe uma espécie de enfeitiçamento à distância, e aquele que parte por uma semana com destino à metrópole cria em torno de si um círculo mágico onde as palavras Paris, Marselha, La Sorbonne, Pigalle, são pedras fundamentais (FANON, 2008, p. 36).

É essa realidade, capaz de discernir homens e mulheres por mera localização no mundo, que nos chama atenção como potencialidade do bojo da metrópole para o tempo presente. Os escritos de Fanon remetem ao início do século XX, mas que ainda podem servir enquanto potentes mecanismos de articulação para a consolidação do espírito da vida metropolitana como impulso de transformação da vida cotidiana. Parece considerável ratificar que essa concepção, declaradamente em contextos diferentes, aqui só se preserva mediante inspiração, mesmo que para isso sejam feitos alguns esforços, inclusive nessa relação com a compreensão de diferentes espacialidades e temporalidades.

O conteúdo da metrópole nos aproxima de diversos exemplos que contornam a problemática urbana em seu sentido prático por meio de caracterizações que esbarram na dinâmica da colonialidade. Quando essa narrativa se ampara em algumas cidades específicas do mundo, como o Rio de Janeiro, o cerne da discussão se configura de forma ainda mais transparente. No período histórico de eventos de magnitude internacional, com destaque à Copa do Mundo FIFA 2014 e aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, essa demarcação pode ser percebida de maneira mais latente.

Uma bibliografia que parece indispensável por reunir elementos interessantes do tema proposto é o texto O marketing urbano e a questão racial na era dos megaempreendimentos e eventos no Rio de Janeiro, de Denílson Araujo de Oliveira(2014). O geógrafo constrói um arcabouço teórico que consegue confluir os debates que permeiam a questão racial, mas promove essa conceituação a situando de maneira bem coerente no espaço-tempo em que os megaeventos dão à tona nos processos de refuncionalização urbana na metrópole carioca. Ainda que o autor esteja mais preocupado com a dimensão publicitária na análise, os processos de “venda” da cidade, em sua totalidade, estão imbricados à predisposição do uso político da questão racial como implicação interessante para o bojo das negociações que estavam imputadas na cidade no contexto dos eventos de magnitude internacional.

O elemento que atravessa basicamente toda a tônica do trabalho é a produção do “mito da democracia racial” que fez parte da “mesa de negócios” na concorrência entre as cidades, consolidando a lógica de um “patriotismo de cidade”, conceito apontado por Vainer (2002) que evidencia a possibilidade de se reconhecer, no interior da reprodução da vida urbana, a construção de um cotidiano corporativista e sem conflitos. Para isso, seria necessário tangenciar pelo menos três grandes necessidades do marketing urbano: 1) negligenciar a “racialização” na distribuição da população pela cidade; 2) desestimular as críticas à segregação racial no espaço; 3) tornar a cidade do Rio de Janeiro como exemplo próspero e excepcional para o recebimento de investimentos (OLIVEIRA, 2014).

Todos os três pontos enunciados por Denílson Oliveira demarcam a prosperidade (a priori) de um projeto mercadológico que tem sua consolidação amparada pelas singularidades que apregoam o Rio de Janeiro como vitrine de um país sem diferenças (inclusive raciais), usufruidor de consensos e de certa pacificação. Nas palavras de Oliveira (2014, p.85):

O mito da democracia racial revigora-se como elemento que nos singulariza de todo o mundo. As intervenções apaziguadoras que mascaram os processos de segregação racial do espaço buscam criar esses consensos sociais via estratégias midiáticas, a fim de reforçar um patriotismo urbano, a cordialidade do povo brasileiro, a harmonia das nossas relações raciais frente ao caos, à desordem, à insegurança, ao racismo e à crise das grandes cidades em outras partes do mundo.

Essa lógica, ainda que evidentemente dotada de especificidades, não se distancia de outros processos concomitantes que se fizeram característicos da reprodução da vida cotidiana na cidade do Rio de Janeiro no período dos megaeventos, como o desenvolvimento de um sentimento de crise e insegurança (HAESBAERT, 2015). Na verdade, seria mais coerente dizer que essas retóricas, entre outras coisas, se complementam. A “crise” instaurada pela sensação de caos urbano, como apontada por Oliveira (2014), “precisa ser despertada para que o patriotismo pela cidade possa ocultar e atenuar privilégios, usurpações e vantagens historicamente acumuladas” (p. 86). Além de, como dito, tal sentimento fazer emergir a possibilidade de construção da democracia racial na cidade como representação de “paz interna”, solução midiática para o contexto de crise, solidificando os argumentos necessários para o recrudescimento do controle e da coerção na cidade.

O controle, tão fundamental para a compreensão do período atual, como visto em Deleuze (1992), se caracteriza como importante mediação na relação segurança-insegurança, binômio exposto pelo geógrafo Rogério Haesbaert (2015) no artigo “do telecontrole à ocupação: In- segurança e contenção territorial na metrópole carioca”, onde o autor se debruça sobre a potencialidade dos usos e abusos da questão da segurança pública como terreno fértil para a materialização de interesses políticos e econômicos.

O ponto a ser destacado do texto de Haesbaert (2015), como preenchimento importante para a discussão que almejamos, se dá, sobretudo, pela dimensão da ocupação territorial mediante o discurso da “pacificação”4, narrativa também presente na discussão que Denílson Oliveira (2014) estipula sobre o marketing urbano na construção de um apelo midiático que influencia, principalmente, no cotidiano de sujeitos subalternizados da metrópole. Talvez a grande virtude da discussão seja analisar a concepção de “pacificação” no seu conteúdo prático, sem o véu do discurso. O autor é enfático quando propõe que anecessidade de pacificar um território remete à retomada pelo Estado de um espaço em que ele não se fizera presente. No texto, em algum momento a ideia de “marginalidade” vem à tona porque expõe, literalmente, a condição periférica (no sentido dos direitos sociais) de determinados espaços da cidade, esses dispostos à caracterização estigmatizada de uma área em que a crise se tornou elementar.

Como se trata de espaços amplamente estigmatizados e, a partir da presença ostensiva do narcotráfico em alguns pontos, genericamente criminalizados, o discurso de “(re)ocupação” aparece vinculado a outro, ainda mais disseminado e igualmente polêmico e contraditório, o da “pacificação”. Juntos, eles fundam uma imagem dos espaços subalternos, em especial das favelas, além das áreas “à margem” ou alheias à dominação do Estado, como espaços “à margem” da própria “civilização”, como zonas de guerra ou, pior, “de barbárie” (HAESBAERT, 2015, p. 234).

A condição estigmatizada desses espaços subalternos tem sua construção amplamente produzida pelo marketing urbano destacado por Oliveira (2014), mas essa análise deve ser associada à condição majoritária da “gestão tutelar de territórios e populações”, reflexão proposta pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira (2014) e lembrada por Rogério Haesbaert (2015) na discussão sobre a ocupação territorial com as Unidades de Polícia Pacificadora. É nesse gerenciamento tutelar dos sujeitos sociais e de suas territorialidades que as contrariedades do discurso de democracia racial se demonstram por sua inveracidade.

João Pacheco de Oliveira (2014) compara a dimensão atual da “pacificação”, trajada pelo discurso midiático de retomada de territórios, com a noção de pacificação a partir da contenda do par (na discussão) “civilização”. Em texto anterior, Pacheco de Oliveira (2010) indica que tanto a pacificação como a civilização são conteúdos imagéticos distintos, mas que podem pertencer à mesma alçada teórica e processual. No caso, sua discussão remete ao controle de populações indígenas, muito embora as práticas de ocupação e controle pelas UPP’s apresentem traços comuns, como lembrado por Haesbaert (2015, p. 235).

A “pacificação” dos subalternos nas favelas do Rio de Janeiro resulta numa incorporação de diversas áreas da cidade, de forma muito mais enfática (em especial da Zona Sul e próximo aos principais eixos de circulação), ao mercado capitalista formal, seja na terra, seja da força de trabalho, e representa também a contenção do narcotráfico (e, consequentemente, da população pobre criminalizada de favelas onde ele se reterritorializa) em áreas mais periféricas da cidade e no seu entorno, na região metropolitana.

Na análise, a problemática da militarização urbana como materialização da reprodução da vida social em determinados espaços metropolitanos caracteriza a dimensão racista e genocida no território da cidade. Por mais que o corte racial não seja adotado por Haesbaert na produção de sua análise, é quase que intuitivo reconhecer que a “população pobre criminalizada de favelas” citada pelo autor é composta majoritariamente por corpos negros. Portanto, parece evidente que existem processos de exclusão e apagamento em curso. Alguns em sentidos propriamente “físicos”, incrustados na materialidade urbana que nega a realidade de negros e negras enquanto sujeitos de direitos, mas também de caráter epistemológico, quando as espacialidades desses corpos se denotam ausentes dos debates relativos à questão urbana, inclusive em casos que repercutam ações de violência.

O filósofo Achille Mbembe (2016), por mais que não se alinhe exatamente a uma leitura urbana, contribui largamente com a discussão. Os debates acerca da “necropolítica” parecem cada vez mais pertinentes para a compreensão da reprodução da vida social do período atual. No texto Necropolítica, bom resumo do livro homônimo do autor, emergem diversas possibilidades de associações à discussão colocada nesse trabalho. Por exemplo, Mbembe é categórico ao relacionar as políticas imperialistas de soberania à ocupação territorial e à “escolha” sobre quem merece (ou não) viver. Essa noção, muito influenciada pela ideia foucaultiana de biopoder, demonstra que em uma perspectiva histórica seja preciso produzir cortes, sobretudo “racializados”, para essa construção, principalmente pela importância da raça (ou nesse caso do racismo) na redefinição dos Estados em sua constituição moderna.

No momento atual, a emergência do Estado como entidade de poder decisório sobre o grupo, o sujeito, ou o corpo a ser eliminado se manifesta nas mais diversas espacialidades, na discussão o interesse se inclina ao contexto urbano, mas a partir de fenômenos que delimitam a constituição racista na reprodução do bojo político da morte e do terror na cidade. Como dito, a concepção de exceção, anteriormente apresentada principalmente pela abordagem para a cidade exposta por Vainer (2012), condiciona a ocupação de um território mediante o controle do seu conteúdo físico e geográfico. Essa noção, também lembrada por Mbembe (2016), remete à replicação de modelos historicamente forjados na construção da modernidade e que foram fundamentais para supressão de populaçõesindígenas, em um primeiro momento, e negros escravizados em outros.

O que é chamado de “ocupação colonial” por Mbembe (2016), em associação aos fins políticos-administrativos do controle metropolitano sobre a colônia, soa como concatenação necessária e imprescindível à análise de Pacheco Oliveira (2014). Por mais que não exista um diálogo direto entre os dois autores, imaginar povos “pacificados” na posterioridade de uma territorialização pelo Outro, apresenta os elos necessários para a consolidação do processo do extermínio como constructo político, subjetivo e, também, epistemológico.

Essa caracterização remonta, se retornarmos aos marcos da analítica da colonialidade, ao que Maldonado-Torres (2019) chama de “catástrofe metafísica”. Para o autor, a noção de catástrofe diz respeito à inclinação perversa da civilização ocidental à naturalização do combate e à guerra perpétua como reproduções eficazes de projetos de vida colonial. O cotidiano metropolitano, seja em seu sentido mais estrito para a época atual (próxima do que se compreende como vida urbana) ou em períodos históricos mais próximos da conformação da modernidade/colonialidade, a metrópole carrega consigo certa intuição característica de um modelo orgânico de valorização do extermínio. Não é caro reconhecer que o projeto metropolitano não existiria sem essa condição perene voltada à eliminação corporal, subjetiva e epistemológica do outro.

Transformar essa realidade demanda certo acúmulo teórico que permita valorizar corpos e mentes ausentes dos debates geográficos e das ciências sociais enquanto dimensão “problemática”, como nos termos de Guerreiro Ramos, mas que sejam contemplados por sua potencialidade de produção do conhecimento disposta a subverter condições racistas e genocidas/epistemicidas. No trabalho, essa perspectiva se alinha a necessidade de reconhecer um sujeito que é necessariamente “corporificado”, como ensina Ana Clara Torres Ribeiro (2005)? e que também surge na análise de Maldonado-Torres. Essa busca só se torna possível quando a ciência geográfica debruçada com o espaço urbano abre espaço para as ricas inserções de autores e autoras verdadeiramente preocupados com essa questão, como é o caso da discussão proposta por Geny Guimarães (2019), referência fundamental para imaginar “espacialidades enegrecidas” e “geografias antirracismo”.

Considerações finais: das espacialidades enegrecidas

Imaginar caminhos possíveis ao ramo da Geografia Urbana em conteúdo mais próximo de uma linha antirracista predispõe uma alternância mais incisiva nas principais obras utilizadas para a construção da discussão proposta. Parece indispensável buscar bibliografias que não só apresentem a condição negada do negro enquanto sujeito de direitos, mas também soa necessário enaltecer sua condição espacial e subjetiva na própria produção do espaço, nesse caso urbano.

A valorização de “espacialidades enegrecidas” como muito bem colocado pela geógrafa Geny Guimarães (2019) no texto Espacialidades de corpos negros no Rio de Janeiro, parece um processo essencial para subversão de uma análise que só reconheça a visibilidade de negros e negras enquanto sujeitos passivos e subalternizados, ou, como na maioria das vezes, figuras invisíveis dos debates propostos. A autora, embebida pela obra do sociólogo Guerreiro Ramos, propõe um método que reconheça negros e negras “desde dentro”. Para isso, fundamenta uma metodologia que passa por alguns aspectos fundamentais, desde a criação de alternativas ao processo embranquecido da escrita, quanto a valorização de outras linguagens, como a literatura, para a produção teórica. É necessário transpor de “Geografias do Racismo para Geografias do Antirracismo e Negras” (GUIMARÃES, 2019, p. 87) como forma de burlar o embranquecimento que fundamenta a construção das cidades brasileiras e, também, dos debates que as envolvem.

A discussão da autora remete não só à novas metodologias referentes à produção teórica do espaço urbano, mas abre brechas à consolidação de inserções possíveis para a vida na cidade. Um ponto de vista imprescindível da proposição de Guimarães (2019) é a concepção do patrimônio urbano, no caso do Rio de Janeiro, e seu embranquecimento “encobridor” de marcas negras nas paisagens da metrópole carioca. Essas marcas, por vezes perceptíveis e em outras não, representam a materialidade da presença africana na reprodução da vida na cidade.

(...) consideramos que as marcas que africanos escravizados deixam na cidade do Rio de Janeiro para seus descendentes são todas as construções que ergueram, das ruas que abriam, ou seja, dos sobrados que edificaram com fachadas coloniais que esculpiram e que conhecemos nos espaços históricos, mas também deixaram como herança as marcas das resistências que nem sempre vemos, mas sentimos em cada rua que passamos desta cidade, as pegadas no Cais do Valongo que não vemos, mas sabemos que estão inscritas ali naquele local (GUIMARÃES, 2019, p. 94).

O corpo, constituinte de uma materialidade histórica e geográfica, parece o fio condutor dessa interrelação entre um “passado que não passa” e projeções futuras. Entre um espaço produzido, mas negligenciado, e que deve ser representado política e teoricamente enquanto reapropriação. Como indica Guimarães (2019), um corpo negro não pode estar relacionado à reprodução da cultura e da vida apenas por meio da dança, do jongo ou da capoeira, como quase sempre visto na teoria social. Sabemos que sim, o corpo é movimento, mas sempre deve ser lembrado também como História e Geografia.

A dimensão do corpo, sobretudo a partir da valorização de um sujeito que é corporificado, foi motivo de brilhantes observações por Ribeiro (2005), como no texto Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário A autora propõe uma discussão que preserva a espacialidade do corpo em contextos metropolitanos, principalmente em sua relação com a produção do espaço. A partir do reconhecimento do senso comum e da valorização da espacialidade enquanto um caminho analítico promissor, a análise de Ribeiro (2005) permite contrapor a analítica da colonialidade que desabilita a condição teleológica do “ser”, circunstância fundamental de uma razão que delimita tempos, espaços e subjetividades (MALDONADO- TORRES, 2019).

É na identificação dessa contraposição, presente em Guimarães (2019) e Ribeiro (2005), que a consolidação de uma “Geografia do Corpo”, caracterização indispensável de uma analítica, agora, da decolonialidade, pressupõe o movimento necessário para burlar a indigesta realidade que transforma a vida metropolitana em um terreno disposto ao bojo da colonialidade em diversos períodos históricos. Se o corpo ao que Guimarães (2019, p. 92) se refere é preenchido por conteúdo “mental, espiritual, psicológico e intelectual”, a leitura parece contornar todos os processos colocados em questão nesse trabalho.

Ao construirmos um diálogo da autora com Maldonado-Torres (2019), retornando às teses fundamentais da decolonialidade, parecem evidentes as consonâncias possíveis entre as duas abordagens. O sujeito, necessariamente corporificado na leitura, faz parte de um grande projeto de transformação social e epistemológica que esbarra tanto na reprodução da vida urbana quanto na geopolítica do conhecimento. Esse projeto não deve ser encarado de maneira isolada, mas como um produto histórico de longa duração que se desloca da racionalidade da modernidade/colonialidade responsável pelo encobrimento de corpos e mentes enquanto projeto político-epistêmico. Seja colonial ou urbana, a metrópole tem, por meio da produção da ausência e do extermínio os corpos negros como seus primeiros alvos, mas também as suas principais resistências, em forma de espacialidade, espiritualidade e intelectualidade.

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Notas

1 Mestrando em Geografiado Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEO) -Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –Brasil, Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização -felipetaumaturgo2@hotmail.com
2 Do ponto de vista da historiografia brasileira, parece indiscutível a necessidade de subversão dessa condição que ainda “emperra o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres e do movimento operário” (CHALHOUB;SILVA, 2009, p. 15). Segundo os autores, as origens dessa ausência remetem a um conjunto de fatos históricos e revisões bibliográficas que inscrevem o modelo escravocrata no cerne do olhar de alguns movimentos teóricos brasileiros, seja no contexto abolicionista na segunda metade do século XIX, com as contrariedades entre Joaquim Nabuco e José de Alencar, mas também com Gilberto Freyre nos anos 1940 e principalmente as leituras de Emília Viotti da Costa, Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso nas décadas de 1960 e 1970.
3 Ver: https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia/. Acesso: 11/11/2019 às 18:24.
4 A discussão não se apoia na compreensão da parceria público-privada que rege o modelo de pacificação na cidade do Rio de Janeiro, portanto os argumentos expostos estão mais próximos do ramo conceitual do que da própria materialização das UPP’s emsi.
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