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A paisagem e a produção do espaço no entorno do lago de Furnas,Sul de Minas Gerais
The landscape and the production of space around the lake of Furnas in southern Minas Gerais
El paisaje y la producción de espacio alrededor del lago de Furnas en el sur de Minas Gerais
A paisagem e a produção do espaço no entorno do lago de Furnas,Sul de Minas Gerais
GEOPAUTA, vol. 4, núm. 4, pp. 113-139, 2020
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Recepção: 10 Julho 2020
Aprovação: 30 Novembro 2020
Resumo: Os objetivos do presente trabalho são entender as transformações na paisagem a partir da construção da represa de Furnas, no sul de Minas Gerais, e porque a população de Alfenas usa tão pouco o lago como opção de lazer e turismo no próprio local, fazendo uso em outros municípios banhados pelo lago. Com efeito, o uso do lago em Alfenas acaba ficando mais restrito à população dos bairros periféricos no entorno. Parte-se do pressuposto que em Alfenas a infraestrutura é inferior em ralação aos outros municípios banhados pelo lago, assim como o apoio ao lazer e ao turismo, mas que além disso há um componente acerca da paisagem que é considerada inferior comparativamente aos municípios da parte norte do reservatório.
Palavras-chave: Paisagem, Fotografia, Represa de Furnas.
Abstract: The objectives of the present work are to understand the transformations in the landscape from the construction of the Furnas dam, in the south of Minas Gerais, and why the population of Alfenas uses the lake so little as an option for leisure and tourism on the place, making use of other municipalities bathed by the lake. In effect, the use of the lake in Alfenas ends up being more restricted to the population of the nearby peripheral neighborhoods. It is assumed that in Alfenas the infrastructure is inferior in relation to other municipalities bathed by the lake, as well as the support for leisure and tourism, but that in addition there is a component about the landscape that is considered inferior compared to the municipalities of the part north of the reservoir.
Keywords: Landscape, Photography, Furnas Dam.
Resumen: Los objetivos de este trabajo son comprender las transformaciones en el paisaje a partir de la construcción de la represa de Furnas, en el sur de Minas Gerais, y por qué la población de Alfenas usa el lago tan poco como una opción de ocio y turismo en el lugar, haciendo uso de otros municipios bañados por el lago. En efecto, el uso del lago en Alfenas termina siendo más restringido a la población de los barrios periféricos circundantes. Se supone que en Alfenas la infraestructura es inferior en relación con otros municipios bañados por el lago, así como el apoyo para el ocio y el turismo, pero que además hay un componente sobre el paisaje que se considera inferior en comparación con los municipios de la parte al norte del reservorio.
Palabras clave: Paisaje, Fotografía, Represa de Furnas.
Introdução
A construção de usinas hidrelétricas no país, a despeito de ser uma fonte de energia renovável, tem gerado inúmeros impactos, transformando econômica, social e ambientalmente as regiões onde são implantadas; evidenciados por movimentos de resistência, não só ambientais, mas em luta contra as desapropriações, os reassentamentos, as mudanças na circulação, nas paisagens, nos seus modos de vida e identidade ao lugar.
A construção do reservatório de Furnas, inaugurado em 1963, o maior reservatório construído até então, o “Mar de Minas”, é um exemplo desse processo. Em um período que não estavam constituídas formas de resistência, essas populações foram praticamente desconsideradas. No contexto desenvolvimentista do país, não havia espaço para organizações de caráter ambiental e social. A geração de energia elétrica numa escala nacional para atender ao processo de industrialização e urbanização em marcha se impôs às escalas regionais e locais, onde as populações desses locais ficaram com o ônus do processo e tiveram que se adaptar a essa nova realidade, ou mudar compulsoriamente para outro lugar.
O “bônus” foi apropriado de forma desigual, pois são necessários recursos econômicos para investir ou consumir as atividades decorrentes do lago artificial, como as atividades náutica, o turismo, casas de veraneio etc. À população mais pobre sobrou a pesca e o lazer de final de semana nas áreas de acesso ao lago, cada vez mais restritas.
A inundação para a formação do reservatório atingiu 34 municípios na região do sul de Minas Gerias, tanto áreas rurais como urbanas, e implicou em impactos e potencialidades diferentes entre esses municípios.
Em relação à paisagem, houve uma transformação significativa, pois numa paisagem rural e urbana de pequenas cidades, implanta-se uma paisagem lacustre. Ao longo do tempo, o lago foi sendo integrado ao modo de vida dessas populações, principalmente através das atividades de lazer, turismo e a pesca; embora se verifiquem conflitos pelo uso do lago e de suas águas. Em Alfenas, localizado mais na parte sul do reservatório, o lago não é tão explorado pelo turismo e atividades de lazer em comparação aos municípios localizados na parte norte, a exemplo de Capitólio, que apresenta condições de paisagens consideradas mais atrativas, como cachoeiras e canyons.
Os objetivos do presente trabalho são entender as transformações na paisagem a partir da construção do lago de Furnas e porque a população de Alfenas usa tão pouco o lago como opção de lazer e turismo no próprio local, fazendo uso em outros municípios banhados pelo lago, que acaba ficando mais restrito à população dos bairros periféricos no entorno. Parte-se do pressuposto que em Alfenas a infraestrutura é inferior em relação aos outros municípios banhados pelo lago, assim como o apoio ao lazer e ao turismo, mas que, além disso, há um componente acerca da paisagem que é considerada inferior comparativamente aos municípios da parte norte do reservatório, como em Capitólio.
Dentre os procedimentos metodológicos, a presente pesquisa contou com revisão bibliográfica acerca do referencial teórico sobre a produção do espaço e da paisagem, sobre a implantação do reservatório de Furnas e sobre a cidade de Alfenas-MG. Para apreender a percepção da população da cidade de Alfenas sobre o lago de Furnas foram empregadas entrevistas semi-estruturadas, principalmente nos bairros periféricos no entorno do lago em Alfenas e bairros de classe média, a fim de comparar o uso e a percepção em relação ao lago, em um total de 50 entrevistas; levantamento de dados estatísticos sobre o município e região, documentos e material cartográfico.
Por enfocarmos a questão da paisagem e da representação de seus elementos, empregamos também como metodologia o uso de fotografias, tanto as obtidas em solo, como fotografias aéreas através da técnica da Fotografia Aérea com Pipa, a fim de registro e comparação de algumas das paisagens da região do Sul de Minas Gerais. Nesse sentido, desenvolvemos uma breve discussão sobre o uso da fotografia nas ciências humanas.
O uso da fotografia nas ciências humanas
A fotografia, desde seu advento, foi um recurso importante para a Geografia. Na Geografia “moderna”, ela foi utilizada como uma técnica no registro da paisagem, o que em face dos pressupostos da ciência geográfica nesse período, limitou sua abrangência, como um “instantâneo” da observação. A fotografia era vista como um registro objetivo e neutro da realidade e não uma forma de linguagem que também é passível de interpretação e, enquanto metodologiaassumiaum papel secundário, especialmente como ilustraçãodo texto (STEINKE, 2014).
Ademais, desde o início, a fotografia pareceu conferir a neutralidade e a objetividade que as ciências da observação tanto requeriam. No caso da ciência geográfica, foi a heterogeneidade de territórios e as mutações verificadas em cada um deles, que tornou atraente o emprego do registro fotográfico. Por outro lado, estranhamente, ela não passaria de um elemento a mais (acessório, banal) na incursão geográfica. Ou seja, a fotografia vai, apesar de seu caráter inovador, restar como um tipo de documento secundário em relação à narrativa textual – ao lado do mapa, o recurso mor do geógrafo clássico (STEINKE, 2014, p. 20).
A fotografia aérea trouxe novas maneiras de interpretar a superfície terrestre. Como afirma Claval (2012), sobre a mudança dos pontos de visão e da análise da paisagem na Geografia:
A observação direta é o olhar horizontal ou oblíquo do passante, é a leitura da paisagem à qual todos têm acesso. A passagem para a visão vertical, sem a qual a noção de paisagem agrária não teria surgido, é confirmada pelos outros procedimentos – a utilização de fotografias aéreas, o recurso aos mapas especiais que são os planos cadastrais. […] A passagem para a percepção vertical – que permite as generalizações, evidencia a estrutura das distribuições e permite a leitura dos reagrupamentos regionais – não ocorre sem o perigo para o geógrafo: ela às vezes leva a esquecer os objetos que realmente importam na vida das pessoas, que são substituídos por outros (CLAVAL, 2012, p. 251).
Com efeito, a fotografia não é a realidade objetiva mas uma imagem extraída do real, um recorte deste; portanto, resultado de uma escolha de quem fotografou, que realizou um recorte ou um enquadramento; apenas alguns elementos do real estão presentes, pois seria impossível captar todo o real.
Como destacou Flusser (1985), a fotografia efetua a redução das quatro dimensões da realidade (as três do espaço mais a do tempo) para as duas dimensões do plano. As imagens são o resultado de abstrair duas dimensões e a “imaginação” é a capacidade tanto de abstrair as duas dimensões como de restituí-las. “Em outros termos: imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens.” (FLUSSER, 1985, p. 7).
Nesse sentido, a fotografia é uma representação da realidade, mas também uma linguagem, que aprendemos a decodificar, a ler, de acordo com nossas experiências. Como expressou José de Souza Martins, em “Sociologia da fotografia e da imagem”:
Não só a realidade social é constituída, também, de silêncios e invisibilidades que ampliam enormemente a distância entre essas certezas e o que se sabe que a sociedade teoricamente é. Como a fotografia é muito mais um documento impregnado de fantasia, tanto do fotógrafo quanto do fotografado, quanto do “leitor” de fotografia, do que de exatidões próprias da verossimilhança (MARTINS, 2016, p. 28).
A
A fotografia, assim como outras técnicas e linguagens, mudou nossa forma de entender e expressar o cotidiano. Se a fotografia capta um determinado contexto histórico e espacial, ela também como tecnologia e como técnica também se transformou em função do tempo e espaço. Vivemos numa sociedade em que o sentido visual é hipertrofiado e a fotografia é uma das responsáveis pela banalização das imagens.
Enquanto metodologia, a fotografia é tão importante quanto os outros instrumentos de pesquisa, desde que consideremos os seus limites:
Tomar a imagem fotográfica como documento social em termos absolutos envolve as mesmas dificuldades que há quando se toma a palavra falada, o depoimento, a entrevista, em termos absolutos, como referência sociológica, que são dificuldades de sua insuficiência e de suas limitações (MARTINS, 2016, p. 11).
O historiador Peter Burke (2017) faz uma discussão sobre o uso de imagens como evidência histórica, dentre essas a fotografia. Questiona uma frase muito comum que diz “a câmera nunca mente”. Para isso, o autor expõe dois exemplos de um mesmo tema – os cortiços – e como ele foi retratado de forma diferente.
Numa perspectiva afirmativa ao uso da fotografia como evidência: “As fotografias são especialmente valiosas para a reconstrução histórica de cortiços que foram destruídos, revelando a importância da vida de ruelas e becos em cidades como Washington e detalhes específicos tais como a localização das cozinhas” (BURKE, 2017, p. 130).
Em outra passagem, revela o uso político das fotografias: “De acordo com suas atitudes políticas, certos fotógrafos escolhiam representar as casas mais deterioradas, a fim de apoiar a campanha pela extinção dos cortiços, já outros, escolhiam as de melhor aparência, para se opor a esse projeto” (BURKE, 2017, p. 131).
Nesse sentido o autor concordava com uma frase segundo a qual: “fotografias nunca são evidências da história: elas são a própria história” (BURKE, 2017, p. 39).
Portanto, as fotografias constituem não só um instrumento mas um conteúdo importante dos estudos geográficos, desde que consideremos a fotografia como um recorte espaço-temporal, uma escolha de enquadramento, que coloca em evidência alguns elementos, enquanto encobre outros. De acordo com essas pressuposições, uma categoria da Geografia relacionada diretamente é a paisagem.
A natureza, a paisagem e a produção do espaço
A concepção de paisagem surge em um contexto de avanço de dominação e exploração econômica da natureza, em que esta passa cada vez mais tanto pelos processos de fragmentação quanto de representação.
Neil Smith (1988) argumenta que a concepção de natureza abriga um dualismo, entre uma natureza exterior e uma natureza universal, interrelacionada e contraditória. Segundo a qual, em resumo:
A concepção exterior é um resultado direto da objetivação da natureza no processo de produção. E contudo, não importa quão eficiente esse processo de produção seja e quão completamente ele realize a exteriorização da natureza; em uma palavra, não importa quão eficazmente ele realize a emancipação da sociedade humana da natureza – os seres humanos, sua sociedade e seus artefatos continuam a estar sujeitos às leis e aos processos “naturais” (SMITH, 1988, p. 44).
O autor propõe como forma de superação desse dualismo a noção de produção da natureza, na qual a natureza torna-se socializada:
Todavia, com o progresso da acumulação de capital e a expansão do desenvolvimento econômico, esse substratum material torna-se cada vez mais o produto social, e os eixos dominantes de diferenciação são, em sua origem, crescentemente sociais. Em suma, quando essa aparência imediata da natureza é colocada no contexto histórico, o desenvolvimento da paisagem material apresenta-se como um processo de produção da natureza (SMITH, 1988, p. 67).
É nesse âmbito de produção da natureza que ocorre, como desenvolvimento desigual, a junção dos valores de uso, de troca e o espaço social (SMITH, 1988, p. 67).
Nesse sentido, se há a produção da natureza exteriorizada, há sua fragmentação e representação, que desencadeiam o consumo dos signos da natureza, em especial, através da paisagem, segundo as proposições de Lefebvre (2013), discutida mais à frente.
Desde o período de sistematização da Geografia no século XIX, a paisagem é uma categoria chave, apoiada na observação e descrição da superfície terrestre, torna-se importante como procedimento metodológico multiplicar os pontos de visão:
A imagem que temos da natureza em um ponto pode gerar confusão. O papel do geógrafo que analisa a paisagem é multiplicar os pontos de vista, olhar o relevo de perto e de longe, desde a base das cadeias e desde seus picos, e construir, a partir daí, uma imagem sintética da região que analisa (CLAVAL, 2012, p. 248).
Claval (2012) salienta a importância da interpretação funcional na análise da paisagem pelo geógrafo treinado na observação vertical desta:
É tentador render-se às especificidades culturais das populações responsáveis pela variedade infinita das paisagens. Os geógrafos formados nas disciplinas do olhar – que sabem passar da visão horizontal ou oblíqua do passante, sensível a tudo o que lhe chega ao olhar, à visão sintética oferecida pela visão vertical – são sempre reticentes quando lhes são propostas interpretações culturais: eles têm o sentimento de que as abordagens funcionais que aprenderam a desenvolver vão mais longe e permitem entrar mais profundamente na intimidade dos fatos sociais e em sua tradução espacial (CLAVAL, 2012, p. 260).
A abordagem funcional foi predominante até a década de 1970, quando a partir daí começam a ser considerados também os aspectos subjetivos do observador, assim como os culturais, estes mais associados à vertente da Geografia Humanística e, em outra linha de abordagem, a ênfase nos processos da reprodução capitalista, sua espacialidade e contradições, característicos de modo geral, à Geografia Crítica.
Segundo os pressupostos da Geografia Crítica, o espaço e a paisagem são produtos sociais, portanto, resultado de um processo histórico, que trazem consigo os registros desse movimento. De acordo com Santos (2007):
Todos os espaços são geográficos porque determinados pelo movimento da sociedade, da produção. Mas tanto a paisagem quanto o espaço resultam de movimentos superficiais e de fundo da sociedade, uma realidade de funcionamento unitário, um mosaico de relações, formas, funções e sentidos (SANTOS, 2007, p. 88).
Sobre a paisagem, este autor define: “Tudo o que nós vemos, o que a nossa vista alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. É formada não apenas de volumes mas também de cores, movimentos, odores, sons etc. (SANTOS, 2007, p. 88-9).
Em relação à percepção da paisagem em função da localização:
Nossa visão depende da localização em que se está, se no chão, em um andar baixo ou alto de um edifício, num miradouro estratégico, num avião... A paisagem toma escalas diferentes e assoma diversamente aos nossos olhos, segundo o lugar onde estejamos, ampliando-se quanto mais quando se sobe em uma altura, porque desse modo desaparecem ou se atenuam os obstáculos da visão, e o horizonte vislumbrado não se rompe (SANTOS, 2007, p. 89).
A noção de variação de escalas adquire aqui relevância, pois quanto menor a distância da tomada da superfície maior a escala, maior a riqueza de detalhes e, portanto, diferentes percepções da paisagem.
Cosgrove (2012) propõe na compreensão das paisagens, além dos códigos e símbolos culturais, sua ligação às relações de poder e de reprodução social. Como no exemplo da implantação de parques públicos na Inglaterra vitoriana, ou seja, no contexto da Revolução Industrial:
[…] Se descrevermos a história desses parques, verificaremos que o objetivo explícito de seus criadores era o controle social e moral. Visando melhorar o bem-estar físico e moral da classe trabalhadora (cuja dissolução interromperia os lucros), a classe média vitoriana ativamente desencorajava os passatempos tradicionais: beber em tavernas, brigas de galo, festivais locais ou feiras. Substituiu essas formas de diversão pelos parques públicos, elaborando as regras de conduta de modo mais preciso. Apesar do passar do tempo, essas áreas características da paisagem urbana inglesa ainda simbolizam os ideais de decência e da propriedade pertencente à burguesia vitoriana (COSGROVE, 2012, p. 228).
Fica evidente a produção de uma paisagem voltada à reprodução social, dentro de um contexto ideológico da burguesia, como os valores difundidos dessa classe se prolongam no tempo e são reproduzidos pelas classes populares.
Em relação ao conceito de produção do espaço, Lefebvre (2013) o situa numa concepção mais ampla de reprodução das relações sociais de produção. O autor concebe o espaço social como uma dialética produto-produtor, suporte de relações econômicas e sociais, que “entra também na reprodução, a do aparato produtivo, a da reprodução ampliada, das relações que executa de forma prática ‘sobre o terreno’” (LEFEBVRE, 2013, p. 56).
Lócus e condição da dinâmica dos agentes sociais, o espaço torna-se estratégico na reprodução dos interesses e desejos dos indivíduos e dos grupos na luta pela apropriação desse espaço. Nesse sentido, aflora no espaço sua natureza política. Mobilizado como mercadoria o espaço carrega as contradições do valor de uso e o do valor de troca, como obra e como produto. Sua desigual apropriação em função da variação de seu valor desencadeia processos de segregação de classes e segmentos sociais.
De acordo com Lefebvre (2013, p. 92), a reprodução do espaço ocorre reproduzindo uma tríade de processos relacionados: as representações do espaço ou espaço concebido; os espaços de representação ou espaço vivido; e a prática espacial ou espaço percebido.
A paisagem aparece em Lefebvre (2013) como manifestação da produção do espaço, como obra, mas também como produto, pois o espaço tem como natureza elementar a forma da simultaneidade:
O conceito de espaço une o mental e o cultural, o social e o histórico. Reconstrói um processo complexo: descobrimento (de novos espaços, desconhecidos, continentes, do cosmos) - produção (da organização espacial própria de cada sociedade) - criação (de obras: a paisagem, a cidade com sua monumentalidade e o décor). Se trata de uma reconstrução evolutiva, genética (com uma gênese) mas de acordo com uma lógica: a forma geral da simultaneidade. E isto porque todo dispositivo espacial repousa sobre a justaposição na inteligência e na junção material de elementos dos quais se produz a simultaneidade (LEFEBVRE, 2013, p. 57).
Enquanto espaço percebido, a paisagem coloca-se muitas vezes como expressão e, muitas vezes, encobrimento da reprodução do espaço e da lógica da produção capitalista.
A potência de uma paisagem não procede do fato de oferecer-se enquanto espetáculo, mas de sua apresentação como espelho e miragem, apresenta para o possível espectador uma imagem ao mesmo tempo ilusória e real de uma capacidade criadora tal que o indivíduo (Ego) pode atribuir-se como própria durante um momento de autoengano. A paisagem possui a potência sedutora de um quadro, sobretudo quando se trata de una paisagem urbana que se impõe imediatamente como obra (Veneza). Daí a falsa ilusão turística suscitada, a de participar na obra e compreendê-la, quando o turista meramente passa através do país e da paisagem, e recebe passivamente una imagem. A obra concreta, os produtos engendrados e a atividade produtora se ocultam ou caem esquecidos (LEFEBVRE, 2013, p. 235).
Nesse sentido, destaca um componente de classe e de representação do poder na paisagem, dando o exemplo da ascensão da burguesia em Toscana:
A burguesia transformou o país e a paisagem, de acordo com um plano preconcebido, seguindo um modelo. As casas de colonos, denominadas poderi se agrupam em torno do palácio onde residia ocasionalmente o proprietário, onde habitava seu gerente. Entre os poderi e o palácio, alamedas de ciprestes se alinhavam nos dois lados do caminho. O que simboliza os ciprestes? A propriedade, a imortalidade, a perpetuidade. E esses ciprestes se inscreviam na paisagem dotando-a ao mesmo tempo de sentido e profundidade. As árvores e os caminhos se recortavam, dividiam as terras e as organizavam. A paisagem, sua disposição evocava as leis da perspectiva, cuja realização mais acabada culmina na praça urbana, entre as arquiteturas que a cercam. A cidade e o campo – sua relação – engendraram um espaço que os pintores da escola de Siena, a primeira das italianas, irão identificar, formular e desenvolver (LEFEBVRE, 2013, p. 134).
A paisagem então revela-se carregada de representações na presença e ausência de seus elementos e processos, no movimento do concebido e do vivido, assim como suas contradições (obra e produto) que só podem ser restituídas no movimento de reprodução das relações sociais de produção. Como representação da natureza, a paisagem expressa, mas também encobre muitos dos processos de reprodução.
É com base nesse referencial que tentaremos apreender a transformação que a implantação do lago de Furnas ocasionou na região, na produção de um outro espaço, alterando os elementos naturais e paisagísticos, mas também acerca da representação desses elementos. Sobretudo a ideia de modernização e industrialização do país que serviu de justificativa para uma série de intervenções e seus impactos sociais, econômicos e ambientais no sul de Minas Gerais.
A construção da represa de Furnas
A construção do reservatório de Furnas (a partir de 1958) situa-se no contexto de avanço de industrialização do país, um novo estágio produtivo, em que as infraestruturas e o potencial energético precisam ser ampliados para acelerar essa nova fase do capitalismo, apoiada na reprodução ampliada do capital das indústrias de bens de capital, de consumo duráveis, de maior diversificação do parque produtivo, para o qual há uma demanda crescente de energia.
Energia, transportes e indústrias vão ser os setores estratégicos para acelerar o crescimento do país. Por exemplo, as rodovias federais vão ser ampliadas de 22.250 km para
35.419 km, especialmente no Centro-Sul do país. E a geração de energia hidrelétrica teve uma ampliação de 3 milhões de kw em 1955 para cerca de 5 milhões de kw em 1961 (BECKER; EGLER, 2006, p. 85).
Para tanto, o espaço nacional vai ser mobilizado e articulado, como condição dessa nova fase ampliada do capital, em outros termos, uma nova fase de produção do espaço apoiada especialmente em capitais estatais e transnacionais.
Bertha Becker (1988) chama a atenção para a construção de uma nova malha sobreposta ao espaço nacional anterior:
Uma nova tecnologia espacial do poder se desenvolve. Trata-se da imposição no espaço nacional de uma poderosa malha de duplo controle, técnico e político – correspondente aos programas e projetos governamentais e de empresas públicas e privadas – a que chamamos de “malha programada” ou “projetada”. Ela se concretiza principalmente: a) na extensão de todos os tipos de redes – viária, urbana, de comunicação, de informação, institucional, bancária etc.; e b) na criação de novos territórios superpostos à divisão político-administrativa vigente, geridos por instituições estatais diretamente pelo governo central e desprovidos de instrumentos político-institucionais que garantem a representatividade da população (BECKER, 1988, p. 118).
Essa integração também ocorrerá pelo sistema de energia elétrica (por meio de subestações e linhas de transmissão), que antes desse período refletia um espaço nacional desarticulado, estruturado em economias regionais, como apontam Santos e Silveira (2006):
A difusão de energia elétrica no território nacional leva, num primeiro momento, à construção de sistemas técnicos independentes, chamados a atender às necessidades locais. Mais tarde, a ocupação e a urbanização do território, o processo de industrialização, o aperfeiçoamento das técnicas de geração e transmissão e a organização centralizada do setor em torno da Eletrobrás convergem para interligar boa parte dos sistemas isolados. […] Constituem-se dois grandes subsistemas no território nacional: Norte/Nordeste e Sul/Sudeste/Centro-Oeste. O primeiro iniciou-se com a usina de Paulo Afonso em 1955 […] O segundo subsistema, mais denso, foi interligado a partir de 1963, com a Usina de Furnas no Rio Grande e a interconexão do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Verifica-se, assim, uma expansão das linhas de transmissão no Brasil, passando de 4.513,3 quilômetros em 1955 para 159,291,6 quilômetros em 1995
(SANTOS; SILVEIRA, 2006, p. 69).
A integração do espaço nacional pela expansão do capitalismo moderno não ocorre evidentemente sem contradições, com impactos ambientais de toda ordem, desmantelamento de modos de vida e de comunidades locais e regionais, posseiros, indígenas, ribeirinhos, expulsando essas populações para as periferias dos centros urbanos, que constituíram uma mão de obra barata para este processo de industrialização, ou engrossaram o exército industrial de reserva.
Em relação ao reservatório de Furnas, que fornece energia a esse processo de industrialização e urbanização, especialmente no Centro-Sul do país, teve nas escalas regional e local impactos econômicos, sociais e ambientais significativos no sul de Minas Gerais.
Inaugurada em 1963, a área inundada do reservatório na bacia do Rio Grande quando na cota de 765 metros é de 1.400 km2, equivalente ao então estado da Guanabara, e perímetro de 3.000 km. O lago inundou áreas de 34 municípios, que os impactou de forma diferente, alguns municípios ficaram com a sede à beira do lado (PREFEITURA MUNICIPAL DE ALFENAS, 2006).
Contribuiu também para o desmantelamento da malha ferroviária na região que foi substituída pela malha rodoviária. Essa transformação implicou na reestruturação da rede urbana. A rede urbana no sul de Minas era caracterizada por uma rede tradicional formada por um conjunto de pequenas e médias cidades, ligadas à produção cafeeira e ao leite (CORRÊA, 2006).
O lago de Furnas em Alfenas e região
Com a reestruturação da rede urbana no sul de Minas Gerais, a partir do avanço da industrialização e da integração do mercado nacional, algumas cidades ganharam importância (centralidade) em detrimento de outras.
Esse é o caso da cidade de Alfenas, que tinha uma posição secundária em relação à rede urbana estruturada pela ferrovia, e ganhou maior centralidade com o modal rodoviário, controlando a articulação das pequenas cidades do entorno, sobretudo em função da rede de serviços de saúde e de ensino superior; gradualmente vai consolidando uma polarização regional (Mapa 1).
Na imagem de satélite 1, o território do município de Alfenas, destacando-se em sua porção oeste o represamento do Rio Cabo Verde e afluentes e, a leste, o Rio Sapucaí e afluentes da margem esquerda, que fazem parte do reservatório de Furnas. A área urbana localiza-se no interflúvio.
O município de Alfenas conta com uma população estimada de 79.966 habitantes para o ano de 2019 (IBGE, 2020). O crescimento quantitativo da população total e da urbana, assim como do produto interno bruto do município, aponta para transformações qualitativas importantes na rede urbana e em seu espaço intraurbano, com uma maior diversificação das atividades e dinamismo urbano, consolidando-se como uma cidade de polarização regional, mas também com o aumento das disparidades regionais e urbanas.
No período de dez anos, o Produto Interno Bruto (PIB) do município passou de 823 milhões de reais em 2007 para 2,6 bilhões em 2017, um crescimento de três vezes, com expressiva expansão do setor de serviços, o que corrobora o aumento da polarização.
Verifica-se mais recentemente a tendência à reprodução de lógicas e características de cidades maiores, como: expansão de condomínios fechados, intensificação da segregação socioespacial, consumo do espaço e da paisagem, por meio do turismo e do lazer.
Essa paisagem passa a ser valorizada, consumida e alterada com a construção de condomínios fechados, casas de campo e loteamentos às margens do Lago ou cada vez mais próximos (Foto 1).
Apesar do reservatório ter a produção energética como o seu principal objetivo, também está ligado às atividades de abastecimento, turismo, náutica, lazer, pesca, piscicultura, irrigação, pecuária (dessedentar o gado) e despejo de efluentes.
Em Alfenas, a inundação para a formação do lago artificial ocasionou ou contribuiu para transformações significativas, como o desmantelamento da agricultura de subsistência na várzea, como o arroz, o feijão e o milho, e o avanço das monoculturas, especialmente o café, e das pastagens. Também a inundação de áreas urbanas, com o deslocamento de população e isolamento de lugares, como o distrito de Barranco Alto (o acesso principal é feito por balsa), a alterações ambientais e da paisagem, com a transformação de um ambiente e de uma paisagem de rios e córregos para um lacustre(CARVALHO; NOGUEIRA,2015).
A construção do lago reestruturou os elementos naturais e sociais da paisagem do sul de Minas e, portanto, o vivido e o percebido do lugar. Mas essa paisagem contém ainda vestígios de tempos passados, quando nos períodos de seca, com o rebaixamento do nível da água, aparecem o curso original dos rios e as ruínas de construções.
Há uma diferença de percepção em relação ao reservatório entre a população mais velha que viveu antes do lago e que foi desapropriada, e a população jovem que já cresceu com o lago e se apropriou dele. Em relação aos mais velhos, o alagamento das várzeas, a alteração de seus modos de vida, as baixas indenizações, o êxodo rural, resultou em um espaço percebido como de “catástrofe”. Em relação aos mais jovens que não viveram essa mudança, o lago ofereceu novas opções de lazer, com um espaço e uma paisagem percebidos de forma positiva (LEMOS JÚNIOR, 2010; MARTINS, 2010).
Atualmente, o lago está integrado economicamente e culturalmente na região, isto não quer dizer que não há conflitos entre os múltiplos usos, sobretudo a geração de energia com o turismo, o lazer, a pesca, a piscicultura e a irrigação.
Nos períodos de estiagem, a necessidade de manter a geração de energia leva a um rebaixamento do nível da água (depleção), o que afeta diretamente as outras atividades, pois além da alteração da paisagem, com a exposição e erosão dos solos às margens, crescimento de vegetação em parte do leito da represa, alteração da qualidade da água, com menos água para diluição de efluentes, agroquímicos, reprodução de algas e morte de peixes. A grande variação do nível da água é um dos fatores que afeta investimentos em atividades na represa. Empreendedores ligados ao turismo reivindicam o estabelecimento de uma cota mínima para o nível da água em 762 metros. A administração da Usina Hidrelétrica de Furnas argumenta que manter o reservatório nesse nível de água teria impactos na produção de energia e nos seus valores em escala nacional, além de impactos ambientais e nas hidrovias à jusante em função da integração do sistema (ONS, 2020):
Desta forma, a água estocada no reservatório da UHE Furnas é valorada, além da própria usina, em mais 12 usinas, sendo que 4 delas (Ilha Solteira, Jupiá, Porto Primavera e Itaipu) localizam-se no Rio Paraná, do qual o Rio Grande é um de seus formadores, caracterizando o acoplamento hidráulico entre esses rios. Cada 1 m3/s que passa nas turbinas da usina de Furnas é capaz de produzir cerca de 5,4 MW, considerando-se a valoração dessa água em todas as demais usinas localizadas a jusante, até a UHE Itaipu. Logo, já se observa nesta abordagem conceitual inicial que qualquer restrição imposta ao uso da água estocada no reservatório da UHE Furnas terá significativo impacto na produção de energia elétrica no país, além daqueles associados aos condicionantes ambientais, como por exemplo a necessidade de defluências mínimas para oxigenação da água, bem como outros usos múltiplos, como as hidrovias das bacias dos rios Paraná e Tietê (ONS, 2020, p. 8).
Observa-se, portanto, que a Usina Hidrelétrica opera em escala econômica e espacial mais ampla (das regiões Sudeste e Centro-Oeste e nacional), sobrepondo-se a interesses da região do sul de Minas Gerais, e imponto outra regionalização. Todo o corpo hídrico do reservatório foi apropriado e tornou-se uma commodity valorizada por diversas demandas, sobressaindo como uma necessidade elementar à reprodução das relações de produção.
A crescente diversidade de usos e o aumento da demanda acentuam os conflitos por esse recurso. Em Alfenas, um exemplo desse conflito de usos e da questão do baixo volume, foi a instalação da Marina Porto Seguro, próxima à Rampa Náutica, ficou inativa desde o rebaixamento do nível da água; o acesso de barcos na Rampa Náutica ficou comprometido e também muitos piscicultores reduziram ou perderam sua atividade (foto 2 e 3).
Nos municípios da porção norte do lago, onde a água é mais transparente e há maior volume, têm mais vocação para o turismo, com escarpas, canyons, cachoeiras, especialmente em Capitólio3. Valores paisagísticos que atraem turistas para o consumo desse espaço, através de hotéis, pousadas, restaurantes, casas de campo, condomínios fechados, passeios de lancha etc. (foto 6).
Inúmeros sites na internet de empresas de turismo anunciam pacotes de viagem a Capitólio, um roteiro pelos pontos de maior valor paisagístico onde “O esplêndido cenário natural possui cânions com mais de 20 metros de altura da represa de furnas, cachoeiras, grutas e exuberante vegetação”, nos quais o turista é convidado a “contemplar as belezas naturais, fazer trilhas, passear de lancha, degustar as delícias da culinária local...” (VIAJALI, 2020).
Com uma profusão de imagens dos atributos da paisagem natural, reforçam a cenarização/espetacularização do local, assim como a intensificação do turismo de massa e predatório, pois o município de pequeno porte não possui infraestruturas e rede de serviços compatíveis com a intensificação do fluxo de turistas (KURIMORI, 2018).
Na região sul do lago, com relevo de baixas colinas, de água mais turva, onde ficam as cabeceiras da represa e o nível da água varia mais, o potencial turístico diminui como em Alfenas. O espelho d’água em Alfenas é menor, assim como os atributos da paisagem comparativamente; também há maior poluição com despejo de efluentes, menos infraestrutura, o que implicam um uso e um turismo inferior à parte norte. No Plano Diretor de Alfenas há referência ao desenvolvimento do turismo no Lago, mas não estabelece instrumentos legais mais efetivos, nem sua aplicação (PREFEITURA MUNICIPAL DE ALFENAS, 2006).
Na foto 5, vê-se o despejo de efluente pelo emissário da Estação de Tratamento de Esgoto da Copasa no leito quase seco da represa, o que ocasiona, junto ao baixo volume de água, o aumento da demanda bioquímica de oxigênio (DBO) e a mortandade de peixes.
Mais próximos à área urbana de Alfenas, há dois pontos principais de acesso ao lago para recreação e pesca: a Rampa Náutica e o Juquinha, cerca de sete e dez quilômetros do centro da cidade, respectivamente. Outros dois pontos importantes, ambos a cerca de vinte quilômetros do centro da cidade, são a Ponte das Amoras, na divisa com o município de Campos Gerias, e o município de Fama, também são utilizados como espaço de lazer de parte da população; este último, em função de uma melhor infraestrutura, serviços e elementos paisagísticos (Figuras 6 e 7).
Na foto 6, a Ponte das Amoras tem aproximadamente um quilômetro de extensão sobre o rio Sapucaí, onde se observa um maior espelho d’água do que nas proximidades do espaço urbano de Alfenas, como a Rampa Náutica; é possível verificar atividade piscicultora; e em ambas extremidades da ponte localizam-se alguns restaurantes e pousadas. A “prainha”, praia artificial de lazer público, atualmente está inutilizada devido à infraestrutura destruída.
Na figura 9, a cidade de Fama, banhada pelo rio Sapucaí, que tem população de 2.377 habitantes (estimativa para 2019, IBGE, 2020). Apresenta atividade turística um pouco mais desenvolvida, sobretudo no período do verão e no carnaval, com restaurantes na orla e pousadas. Entretanto, com o baixo nível do lago, como na fotografia a seguir, há uma queda expressiva no turismo.
Muitas propriedades à beira do reservatório não respeitam a distância mínima do corpo d’água, apropriando-se do espaço e impedindo o acesso público, é mais um exemplo de privatização da orla do lago.
A paisagem na foto 8 expressa praticamente uma hierarquia intra-urbana, com o bairro Santa Clara na periferia e limite da mancha urbana, com os cafezais indicando a transição ao espaço periurbano. No centro da foto, à esquerda, a creche e as instalações do campus II da Unifal, indicando novos serviços no local e a transformação numa periferia mais heterogênea. Mais acima na foto, na direção sul, aparecem os bairros Pinheirinho, à direita, e o bairro Recreio Vale do Sol, à esquerda, e a região do centro da cidade, onde se percebe uma baixa verticalização. O bairro Santa Clara é um dos bairros mais distantes do centro, está a cerca de seis quilômetros, considerando as dimensões de uma cidade de porte pequeno a médio, como Alfenas.
Após a instalação do campus II da Unifal, em 2012, e a melhoria de infraestrutura, o Santa Clara e a região vêm passando por um intenso processo de valorização, com novos loteamentos e especulação, que ameaçam de expropriação parte dessa população, com tendência de mudança do perfil socioeconômico da região, pois o padrão dos novos empreendimentos se destinam mais ao perfil da classe média.
Na paisagem da foto 9, percebe-se o limite do bairro Santa Clara na direção norte, nota-se o limite da mancha urbana, o espaço periurbano com as plantações de café, à direita, e o novo loteamento Crystal, indicando a expansão da periferia sobre este, ao fundo um trecho a represa de Furnas, a cerca de dois quilômetros do bairro.
Nas entrevistas realizadas com os moradores do bairro Santa Clara, localizado na periferia da cidade, a proximidade ao lago o torna uma das poucas opções de lazer; a pesca faz parte da identidade de alguns moradores, sobretudo relatos referentes ao período da infância. A paisagem do lago é percebida como “beleza natural”, mesmo que transformada, a superfície da água, a vegetação, os sons dos pássaros, destacam-se como representação da natureza. Também foi mencionado a tranquilidade da natureza em contraste com a agitação do urbano.
Mas também o espaço percebido como área suja, poluída. A Rampa Náutica foi referida como uma “bagunça”, como área de consumo de bebidas e drogas, automóveis com som alto, etc. No período seco, os moradores também salientam, além da percepção sobre a paisagem, que a conta de luz fica mais cara, e portanto como a represa pode impactar nos seus custos de vida mais diretamente.
Nas entrevistas em bairros de classe média (Novo Horizonte e Jardim Oliveira), a paisagem da represa também remete aos elementos da natureza e de sua “beleza natural”: o Sol, a vegetação, a água… também a representação da natureza em seus elementos, aparece como natureza não produzida. A maioria indicou o uso da represa para a pesca e ida a restaurantes às margens da represa na Ponte das Amoras e em Fama. Locais como a Rampa Náutica eram vistos como ermos, poluídos, aparecendo como alternativa de uso os clubes, como o Tênis Clube e o Sesi, que não estão próximos à represa. O clube do Banco doBrasil, próximo à Rampa Náutica e à represa, mas sem acesso a ela, não foi mencionado.
No Santa Clara, a periferia é vista como uma paisagem não valorizada porque falta identidade com o lugar onde se vive segregado. Nesse sentido, a natureza é no máximo uma segunda natureza, já transformada, produzida, esquecendo que a do lago também é produzida, que no entanto remete à representação de uma natureza original.
Natureza fragmentada em seus elementos, na visão dos moradores, portanto uma visão de natureza externa e reduzida. Em uma das entrevistas, o morador relata que em sua infância, costumava apanhar frutos do cerrado nas proximidades da represa, porém atualmente esses frutos estão mais escassos ou as crianças não os conhecem.
A crescente urbanização de Alfenas, no sentido da intensificação do modo de vida urbano, na qual a percepção de espaço/tempo é distinta do rural, sobretudo a partir de meados do século XX, quando se instalaram, por exemplo, os primeiros clubes e cinema, ampliando o entretenimento e o lazer, indicam a fragmentação da natureza e do tempo em cotidiano. “A ‘natureza’, ou aquilo que é tido como tal, aquilo que dela sobrevive, torna-se o gueto dos lazeres,[…]” (LEFEBVRE, 2006, p. 116).
A instalação de clubes é um indicador dessa transformação, pois o uso das piscinas em detrimento dos rios e do lago, indica a fragmentação e a representação da natureza. E mesmo um esvaziamento das festas populares e do espaço público em benefício de espaços e eventos privatizados – vale destacar que o único parque municipal, onde fica também o zoológico, está fechado para visitação.
Dois exemplos significativos são os clubes Náutico e Tênis Clube. O primeiro, localizado às margens da represa na parte norte da cidade, ao lado da Rampa Náutica, sempre foi um clube municipal e mais popular, e com dificuldades até de se manter em funcionamento. Enquanto o segundo, localizado numa parte elevada e valorizada da cidade, no bairro do Aeroporto, mais próximo ao centro, é um clube privado, destinado às classes média e alta da população.
A transição da cidade pequena, de influência rural, para uma cidade média e de predominância urbana, verifica-se em uma maior consolidação de zonas de classes sociais mais homogêneas e, portanto, de aumento da segregação socioespacial.
Junto a essa expansão, o acesso da população à represa vai sendo fechado por sítios e casas de campo. A classe média que compra esses sítios nas margens do reservatório é quem tem o acesso e não mais a população mais pobre do entorno, a exemplo da prainha, relatado nas entrevistas, sobrando poucos espaços com acesso livre, como a Rampa Náutica, poluída, e o Juquinha, para a pesca.
A foto 10 mostra uma situação comum quando o nível da água está baixo, frequentadores descem com veículos a Rampa Náutica para acessar a represa mais à frente. Na imagem destaca-se também vegetação que cresce no leito quase seco da represa e, ao redor, vegetação de pastagens, sem muito atrativos paisagísticos, onde ocorre atividade de lazer bastante modesta.
O espaço às margens do lago vai sendo loteado e privatizado, principalmente aquele nas proximidades da periferia, que possibilita maior uso da represa pela população pobre do entorno, pois é mais restrita pela mobilidade. A classe média tem mais condições de acessar lugares mais distantes onde há restaurantes na beira da represa, como em Fama e na Ponte das Amoras.
Aos moradores a natureza transformada, degradada e fragmentada resulta em uma representação através de seus fragmentos, o espelho d’água, a vegetação secundária, o som dos pássaros etc., a partir da qual a constituição de identidade ao lugar e à paisagem dá-se de um modo precário ou de uma forma cada vez mais mercantilizada.
Considerações finais
A paisagem é um elemento significativo da construção da identidade regional. Na região sul de Minas Gerais essa paisagem é caracterizada especialmente pelos elementos naturais, uma rede de pequenas cidades e suas ruralidades. A construção da represa de Furnas reestruturou essas paisagens e introduziu um novo elemento, um ambiente lacustre. Concomitantemente, a expansão do agronegócio e a rearticulação rodoviária da rede urbana, trouxeram grandes impactos sociais, econômicos e ambientais à região.
A água dos rios foi expropriada do uso dos ribeirinhos e pequenos agricultores, e apropriada pelo Estado para a reprodução em outra escala econômica e espacial, tornou-se uma mercadoria, e em disputa por vários usos, conforme a economia e a urbanização ficavam mais complexas.
Nesse sentido, há a uma questão importante relativa à paisagem, mas que vai além, como produção e reprodução da natureza, da paisagem e do espaço como valores, em seus conteúdos econômicos, políticos e ideológicos.
As imagens e especialmente as fotografias são elementos significativos para representação dessas paisagens. Nesse sentido, elas foram um instrumento importante para a ressignificação das paisagens no sul de Minas Gerais. Tanto no sentido de refletir uma “modernização”, como de reforçar estereótipos. Por isso, como metodologia utilizada, elas foram importantes para uma abordagem crítica desses elementos, pois como uma linguagem, elas podem tanto esconder quanto revelar.
O uso das fotografias aéreas e em solo foi um recurso importante para registro e acompanhamento desses processos. Comparações espaciais e temporais corroboraram a argumentação, como uma fonte de informação própria e não apenas como recurso de ilustração.
Com o avanço da urbanização, a periferização do espaço periurbano, que avança sobre o rural, onde muitos têm na colheita temporária do café um complemento da renda. Nesse contexto, o lago ganha novas funções, dentre essas, o lazer e o chamado “turismo de natureza”, mas também conflitos pelo uso desse recurso.
O principal objetivo da pesquisa foi comprovar a subutilização do lago de Furnas pela população alfenense, preferindo o uso em outros municípios próximos onde o lago possui uma composição de beleza cênica ligada à “natureza” e considerada mais atraente à de Alfenas.
Evidentemente que outras questões também contribuíram, como a infraestrutura mais precária, a degradação do ambiente e uma identidade já constituída como um local ermo e perigoso, onde os processos de representação atuam diretamente na percepção da paisagem.
Esses fatores acabam levando a um componente de classe no uso do reservatório com relação às atividades de lazer e turismo, pois uma parcela da população pobre dos bairros mais próximos, com poucas opções de lazer, limita-se aos passeios aos finais de semana de calor à ida ao lago, em suas proximidades de moradia. Enquanto outra parcela da população, com maior poder aquisitivo, pode consumir espaços mais distantes e com maiores atrativos paisagísticos e com infraestrutura.
A espoliação urbana também se verifica nas formas de lazer, nas quais a população mais pobre procura nas proximidades uma das poucas opções na represa, assumindo esses custos, uma vez que o salário não os cobrem, demonstra a precária inclusão dessa população no urbano.
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Notas