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A biopolítica espacial de negação do ser político: estranhamento espacialmente construído e desumanização espacialmente forjada no Morro da Providência-RJ
The space biopolitics of the political being denial: spatially constructed strangeness and spatially forged dehumanization in the Morro da Providência-RJ
La biopolítica espacial de negación del ser político: extrañeza espacialmente construida y deshumanización espacialmente forjada en el Morro da Providência-RJ
A biopolítica espacial de negação do ser político: estranhamento espacialmente construído e desumanização espacialmente forjada no Morro da Providência-RJ
GEOPAUTA, vol. 5, núm. 2, e7972, 2021
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Recepción: 03 Abril 2021
Aprobación: 29 Junio 2021
Resumo: Apreendemos a metropolização do espaço enquanto processo socioespacial biopolítico. A partir da análise das remoções ocorridas no Morro da Providência-RJ, no âmbito da Operação Urbana Consorciada da Região Portuária do Rio de Janeiro e do Programa Morar Carioca, objetivamos analisar a espacialidade biopolítica na metrópole contemporânea. Após relacionar o processo de metropolização às relações de poder que inscrevem a biopolítica no espaço, buscamos um diálogo entre Michel Foucault e Henri Lefebvre, em torno dos conceitos de “meio” e “espaço instrumental”. Propomos a tríade analítica inscrição-prescrição-ordenação para examinar os projetos e intervenções urbanas que promovem o “estranhamento espacialmente construído” e a “desumanização espacialmente forjada”, processos espaciais que esvaziam a substância política que constitui o ser social.
Palavras-chave: metropolização, biopolítica, remoções, Morro da Providência, Rio de Janeiro.
Abstract: We understand the metropolization of space as a biopolitical socio-spatial process. Based on the analysis of the evictions that took place in Morro da Providência-RJ, in the scope of the Consortium Urban Operation of the Port Region of Rio de Janeiro and the Morar Carioca Program, we aim to analyze the biopolitical spatiality in the contemporary metropolis. After relating the process of metropolization to the power relations that inscribe biopolitics in space, we sought a dialogue between Michel Foucault and Henri Lefebvre, around the concepts of "milieu" and "instrumental space”. We propose the inscription-prescription-ordering analytical triad to examine urban projects and interventions that promote "spatially constructed strangeness" and "spatially forged dehumanization," spatial processes that empty the political substance that constitutes the social being.
Keywords: metropolization, biopolitics, evictions, Morro da Providência, Rio de Janeiro.
Resumen: Entendemos la metropolización del espacio como un proceso socio-espacial biopolítico. A partir del análisis de los desalojos que tuvieron lugar en Morro da Providência-RJ, en el ámbito del Consorcio Operación Urbana de la Región Portuaria de Río de Janeiro y del Programa Morar Carioca, pretendemos analizar la espacialidad biopolítica en la metrópoli contemporánea. Después de relacionar el proceso de metropolización con las relaciones de poder que inscriben la biopolítica en el espacio, buscamos un diálogo entre Michel Foucault y Henri Lefebvre, en torno a los conceptos de "medio" y "espacio instrumental". Proponemos la tríada analítica de inscripción-prescripción-ordenación para examinar los proyectos e intervenciones urbanos que promueven la "extrañeza construida espacialmente" y la "deshumanización forjada espacialmente", procesos espaciales que vacían la sustancia política que constituye el ser social.
Palabras clave: metropolización, biopolítica, desalojos, Morro da Providência, Río de Janeiro.
Introdução
A discriminação e criminalização dos moradores de favelas pode ser verificada desde suas origens, sendo o Morro da Providência (reconhecido historicamente como a primeira favela, inclusive por ser chamado de Morro da Favella) alvo de médicos higienistas, sanitaristas, engenheiros e jornalistas, que consideravam – através de charges e crônicas – “um lugar infestado de vagabundos e criminosos”, como sugere o Jornal do Brasil em 1900 (VALLADARES, 2011). As remoções acompanham a história das favelas na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Guterres e Barros (2015), na terceira geração dos programas de governo, a remoção retorna à cena com o Programa “Morar Carioca” (Plano municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais) – idealizado no primeiro mandato do prefeito Eduardo Paes (2009-2012). É no âmbito desse programa que uma série de intervenções serão levadas a cabo: a provisão de infraestruturas de mobilidade orientada para a mercadificação da cidade, as parcerias público-privadas, o discurso do risco, a gentrificação, sobretudo pelo discurso da “revitalização”.
Os principais projetos para o Morro da Providência, anunciados pelo programa2, foram 921 unidades habitacionais para atender mais de três mil moradores do morro e da zona portuária, revitalização da Praça Américo Brum, instalação de um Teleférico, a construção de um plano inclinado para facilitar a acessibilidade dos moradores, um centro esportivo, infraestrutura de rede de água e esgoto, equipamentos e serviços, contenção de encostas e reassentamento de famílias que residem em área de risco. Também havia uma proposta de transformar a favela em atrativo turístico, com a construção de um Centro histórico e cultural na área que abrange a Ladeira do Barroso, a Igreja Nossa Senhora da Penha, o antigo reservatório e a Capela do Cruzeiro3 - para o qual seria necessário remover todas as famílias que moravam no entorno da localidade. Das 832 casas marcadas (1/3 da favela) pela sigla SMH (secretaria municipal de habitação) para a remoção, 140 foram demolidas em 2013, segundo relatório da Anistia Internacional4. O relatório também aponta que as famílias foram reassentadas em conjuntos habitacionais da zona oeste (Cosmos, Realengo e Campo Grande), em áreas dominadas por milícias. De acordo com a secretaria de habitação do município do Rio de Janeiro, até 2013, 196 famílias foram “reassentadas”5.
É neste contexto que este artigo pretende discutir as remoções no âmbito de um processo mais amplo que, determina a história urbana dos dias atuais (LENCIONI, 2017), a saber, a metropolização do espaço, compreendida aqui como processo socioespacial biopolítico de negação do ser político. O presente trabalho é parte dos desdobramentos da pesquisa de doutorado do autor, que teve como procedimentos metodológicos, revisão bibliográfica, análise de documentos,trabalhos de campo e entrevistas com moradores do Morro da Providência.
Na primeira seção, buscamos relacionar a metropolização aos mecanismos do biopoder, que concebem a população como uma multiplicidade de indivíduos cuja existência é biologicamente definida, portanto, esvaziada de conteúdo político. É a partir dessa dinâmica que assistimos a proliferação do discurso do risco e de medidas de “segurança”, que visam controlar os fluxos, ou, “regular a desordem” (AGAMBEN, 2002, p.145). Na segunda parte, a partir da proposta da tríade analítica inscrição-prescrição-ordenação, desenvolvemos um diálogo entre Michel Foucault e Henri Lefebvre a fim de evidenciar a biopolítica espacial de negação do ser político, através do estranhamento espacialmente construído e da desumanização espacialmente forjada. Nas considerações finais, apontamos quatro aspectos da metropolização biopolítica. Objetiva-se, portanto, desvelar uma (bio)política espacial de negação do ser político, no contexto da metropolização do espaço. O espaço da metrópole, produto do amálgama entre capital financeiro e imobiliário, evidenciando pelas parcerias público-privadas, revela a emergência do que Vainer (2011) denomina por “cidade de exceção”: a gestão da cidade é direcionada aos negócios, num processo sistemático de despolitização e desqualificação da política, de negação enquanto pólis. Compreender tais processos é fundamental para superar aquele projeto de cidade.
Metropolização do espaço, biopoder e biopolítica
Embora Santos (1993) tenha abordado o problema da metropolização ao se debruçar sobre a urbanização no Brasil, é Sandra Lencioni que se aprofunda e desdobra o tema, tornando-se referência no assunto, no âmbito da ciência geográfica brasileira. Sua trajetória intelectual é reconhecida em Ferreira (2016), que afirma que as inquietações da autora “sempre estiveram interligadas e o processo que teve o papel de nexo aglutinador foi a metropolização do espaço”. A ênfase nas novas formas de gestão e nas intervenções localizadas, a emergência de uma espacialidade híbrida que supera a dicotomia rural-urbano, o império dos fluxos, o adensamento de determinadas áreas, o espraiamento da metrópole, as operações urbanas de “requalificação”, revelam as metamorfoses no território que são iluminadas pela metropolização do espaço, “que tem gerado forte gentrificação (...) produz segregação e apropriação desigual do espaço urbano” (FERREIRA, 2016).
Para Lencioni (2006a), o aspecto que se destaca dentre as diferentes concepções de metrópole situa-se na concentração de serviços privados e públicos, “que buscam garantir a gestão da reprodução do capital e sua viabilização política”. Embora o conceito de metrópole esteja associado ao conceito de cidade, desde a sua origem, como nos mostra Lencioni (2006a), esse está relacionado à urbanização, pois, a metrópole está ligada ao conceito de metropolização e relaciona-se com o espaço. O processo de metropolização se constitui como uma fase do desenvolvimento urbano, todavia, de natureza distinta, pois, “trata-se de desenvolver condições metropolitanas que são imprescindíveis para a reprodução do capital (...) negando a cidade”. Neste sentido, segundo a autora, o processo de metropolização submete a urbanização relacionada à cidade e se constitui numa determinação do momento atual.
A metrópole também pode ser apreendida como “a virtualidade de se constituir numa sobrevida do capitalismo” (LENCIONI, 2017), pois coloca-se enquanto condição, meio e produto da reprodução do capital, o que se torna ainda mais evidente a partir dos apontamentos da autora, quando verifica as alterações imobiliárias provenientes de renovações urbanas – como é o caso da Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro – e o desenvolvimento acentuado da segregação no interior da cidade região,
fazendo contrastar mais fortemente, a produção de bairros cada vez mais elitizados ao lado do crescimento de cortiços e favelas cada vez mais empobrecidos. A segregação social e espacial própria da metrópole contemporânea é muito mais acentuada do que da metrópole vinculada ao processo de industrialização e urbanização anterior. (LENCIONI, 2017, p.85).
Quando afirma que a metrópole contemporânea expressa a sobrevida do capitalismo, Lencioni (2017) aponta para a metamorfose relacionada à reestruturação produtiva que, diante do amálgama entre capital imobiliário e financeiro, instrumentaliza a metrópole à reprodução do capital: sob o imperativo das rendas, o capital financeiro dirige e domina o processo de reprodução em geral (LENCIONI, 2017, p.58).
A lógica imobiliário-financeira que determina a reprodução do capital se traduz, conforme Lencioni (2017), no crescimento da participação do setor de serviços, na expansão da produção imobiliária para abrigar esses serviços (principalmente através dos edifícios corporativos e torres de escritórios), na renovação de bairros (gentrificação) e na criação de edifícios como reserva de valor e terrenos como “bancos de terrenos”. Dentre tais evidências, a autora chama atenção para o fato da (re)produção da cidade como negócio, ou, do espaço como mercadoria para ser mercantilizada, uma vez que: “o que menos importa é o uso (...) a finalidade principal é a produção do imóvel em si, mirando seu valor de mercado. O feito principal é a troca, a realização da mercadoria, sobrepondo-se ao intuito do uso” (LENCIONI, 2017, p.65).
Esse novo momento da reprodução do capital, marcado pela hegemonia do capital financeiro, provoca desigualdades sociais de grande magnitude, revelando um violento processo de desumanização via gentrificação, a produção de simulacros espaciais e “a profusão de novos espaços urbanos que não tem nada a ver com a cidade” (LENCIONI, 2017, p.69).
Diante das contribuições de Sandra Lencioni e, considerando o objetivo deste artigo, que é desvelar as evidências da metropolização como biopolítica espacial de negação do ser político no urbano contemporâneo, podemos afirmar que, com a sobredeterminação do valor de troca em detrimento do valor de uso no âmbito da hegemonia do capital financeiro-imobiliário, o espaço como mercadoria triunfa sobre o espaço enquanto obra (no qual o valor de uso tem preeminência). A metrópole enquanto estratégia de sobrevida do capital, mediação fundamental para a gestão e viabilização política do capital e, praça financeira por excelência, revela-nos o horizonte para aqual as relações sociais de produção se direcionam em relação ao sujeito:destituído da substância do ser social e do político, portanto, numa inversão do “animal político” de Aristóteles, um ser concebido enquanto espécie biológica –apenas e tão somente, um animal.Por tais razões, emerge a necessidade de discutir o biopoder, uma vez que aquilo que define o ser de espéciee, portanto, o seu caráter político –o pôr teleológico que tem um caráter irrevogavelmente ontológico (LUKÁCS, 2013) –vai perdendo substância diante da emergência de dispositivos, técnicas e estratégias que despolitizam o humano(eliminando as intencionalidades)ao inserir o biológico do humano numa política.
O conceito de biopoder é elaborado entre 1974 e 1979, versando acerca de uma nova organização do poder a partir do século XVII – um poder que se preocupa com a gestão da vida – e que, estabelece, um contingente de conhecimentos, leis e medidas políticas visando o controle de fenômenos como os de aglomeração urbana, epidemias, transformação dos espaços e organização liberal da economia (FURTADO & CAMILO, 2016). De acordo com Furtado e Camilo (2016), as origens da problemática do biopoder em Foucault remontam às conferências no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), quando tratou da generalização da medicina nos espaços públicos. O biopoder está subdivido em dois polos, a saber, a anátomo- política do corpo humano (mecanismos disciplinares) e a biopolítica (mecanismos de segurança) e, de acordo com Danner (2010), a constituição do Estado moderno leva à instauração desses polos enquanto procedimentos institucionais de modelagem do indivíduo e de gestão da coletividade.
O debate acerca da medicina social é fundamental para observamos, pelo ponto da vista da espacialidade, a tomada de poder sobre o homem como ser vivo, uma “estatização do biológico” – que mobiliza estratégias espaciais, isto é, uma gestão da vida coletiva cuja preocupação do poder em “fazer viver” se desdobra através de mecanismos centrados no corpo individual (os espaços disciplinares) e na população (os espaços de segurança). Foucault discute essa bio-política de forma mais aprofundada no curso ministrado entre 1975-1976, intitulado “Em defesa da sociedade”.
Deste modo, Foucault (2008) afirma que, se a disciplina trabalha num espaço vazio, artificial, que vai ser inteiramente construído, a segurança irá se apoiar em certo número de dados materiais, com a disposição do espaço, ou seja, sobre algo que está dado. Outro ponto fundamental reside no fato da segurança maximizar os elementos positivos e minimizar o que é risco ou inconveniente, utilizando não apenas os dados materiais, como também a probabilidade. A polifuncionalidade é contemplada nos planejamentos característicos da segurança: a cidade tem múltiplas funções. A segurança também trabalha com o futuro – abertura para um futuro não controlado, nem controlável – “o bom planejamento da cidade vai ser precisamente: levar em conta o que pode acontecer” (FOUCAULT, 2008, p.26). Portanto, de acordo com Foucault (2008), as técnicas da segurança se vinculam ao problema da série indefinida de elementos que se deslocam e se produzem. Como são séries abertas, só podem ser controladas por uma estimativa de probabilidades.
É através do conceito de “meio” que Foucault vai discutir os “espaços de segurança”, uma espécie de ambiente criado em função de acontecimentos ou séries de acontecimentos possíveis que deverão ser regularizados num contexto multivalente e transformável. Os dispositivos de segurança, segundo Foucault (2008), trabalham, criam, organizam, planejam um meio antes mesmo da noção ter sido formada e isolada:
O espaço próprio da segurança remete portanto a uma série de acontecimentos possíveis, remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um aleatório que vai ser necessário inscrever num espaço dado. O espaço em que se desenrolam as séries de elementos aleatórios é, creio, mais ou menos o que chamamos de meio. O meio é uma noção que, em biologia, só aparece – como vocês sabem muito bem – em Lamarck. (...) O que é o meio? (...) O meio vai ser portanto aquilo em que se faz a circulação. O meio é um conjunto de dados naturais, rios, pântanos, morros é um conjunto de dados artificiais, aglomeração de indivíduos, aglomeração de casas, etc. O meio é certo número de efeitos, que são efeitos de massa que agem sobre todos os que aí residem. (FOUCAULT, 2008, p.27-28)
É importante perceber que o “meio” é um conjunto de dados sobre os quais os dispositivos de segurança (cálculos, estatísticas, probabilidade) trabalham, criam, organizam e planejam, portanto, são da ordem das representações de objetos geográficos manuseados para dar conta do problema da circulação. O meio é uma representação do espaço, concebido em termos de dados sobre os quais circulam causas e efeitos e, se existe concretamente, é na qualidade de um espaço instrumental, onde sistemas de objetos e sistemas de ações são controlados e regulados para “fazer viver”, isto é, reduzir ameaças e garantir a circulação da população. Neste sentido, Foucault (2008, p.28) afirma que o meio é um campo de intervenção que atinge uma população, isto é, “uma multiplicidade de indivíduos que são e que só existem profunda, essencial, biologicamente ligados à materialidade dentro da qual existem”. Embora Foucault (2008) passe “por alto” da questão espacial – dos espaços de segurança -, sua discussão contribui para levantar alguns apontamentos acerca da espacialidade biopolítica, tratada a partir do conceito de “meio” e “população”. Ampliando o debate acerca do “problema do espaço” em Foucault, o geógrafo Rogério Haesbaert (2014) ressalta o esquema de espacialidades características em cada tipo de sociedade, denominando “território de soberania” para focalizar as tecnologias de poder do tipo jurídico-legais que predominaram da Idade Média ao século XVII-XVIII, “espaço disciplinar” – referente ao que Foucault denomina de “moderno” e que é implantando a partir do século XIX, e o meio, que é o sistema contemporâneo e que
(...) dirá respeito sobretudo aos espaços de circulação (próximo ao conceito de rede), inserido em novas formas territoriais (dentro de uma concepção muito mais ampla de território, que inclui diversas modalidades de territórios-rede), onde a problemática básica será (...) a contenção da circulação. (HAESBAERT, 2014, p.169).
Ainda em relação ao conceito de meio, destacamos um importante apontamento que Michel Foucault traz ao abordá-lo enquanto campo de intervenção: este campo de intervenção que é o meio não atinge os indivíduos como sujeitos de direitos capazes de ações voluntárias (FOUCAULT, 2008, p.28), mas, o homem espécie biológica, ou seja, o homem destituído de suas dimensões política, cultural, social e ética. Deste modo, podemos depreender que os dispositivos biopolíticos de segurança quando atuam a partir de representações (espaciais) e de um espaço concebido como instrumento, esvaziam o conteúdo político do homem. É deste modo que o autor observa a “naturalidade da espécie humana dentro de um meio artificial” tão fundamental para apreender a implantação dos mecanismos de segurança quanto essa técnica política que se dirige ao meio, animalizando o homem.
Essa metropolização biopolítica engendra, assim, uma biopolítica espacial de negaçãodo ser político que se desdobra a partir de um movimento único constituído de três momentos–uma tríade que denominamosinscrição-prescrição-ordenação, promovendo um estranhamento espacialmente construído e uma desumanização espacialmente forjada. A inscrição desdobra-se através da provisão de infraestruturas que consistem em formas-conteúdos estranhas e até indesejadas (teleférico, plano inclinado, centro histórico), desqualificando o ser político pela negação de suas necessidades, demandas e desejos. A prescrição atua através do pré-estabelecimento de funções, usos, ritmos e atividades estranhos à vida cotidiana dos moradores (turismo e entretenimento para visitantes), negando a capacidade do ser político de pôr finalidade. A ordenação estabelece modos de comportamento e condutas estranhos à maneira de pertencer construída nas experiências, memórias e trajetórias dos moradores.
Desumanização espacialmente forjada, estranhamento espacialmente construído
A noção de meio, portanto, pretende contemplar os fenômenos relativos à regulação da desordem manifestados pela circulação e pelos fluxos, aspectos fundamentais no processo de metropolização e característica metropolitana, como apontados em Lencioni (2006b). Portanto, a organização e programação de espaços favoráveis à circulação e à viabilização política da reprodução do capital é o que se busca com a noção de meio. De acordo com Michel Foucault, em “História da sexualidade I: A vontade de saber” (1999), aexplosão de técnicas diversas e numerosas para administração dos corpos e para a gestão da calculista da vida inaugura a era de um biopoder, elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo. Este desenvolvimento,
(...) só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas, o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torna-las mais difíceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam; operaram, também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento. (FOUCAULT, 1999, p.133). [Grifo nosso].
Quando a produção não se limita mais ao seu aspecto estritamente econômico, portanto à fábrica, e se expande num front mais amplo, como observou Lefebvre (2016) – para o espaço inteiro – os mecanismos de vigilância, monitoramento e controle passam por um aperfeiçoamento cuja finalidade foi o ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos, exigindo, portanto, uma concepção e prática espacial que atendesse a tais propósitos. Podemos relacionar o espaço biopolítico de segurança com a organização-programação do cotidiano e com o espaço instrumental preconizados por Henri Lefebvre (1991; 2016). Considerando que o modo de produção capitalista se efetua através da cotidianidade, no âmbito da re-produção das relações de produção, Lefebvre (2016) afirma que a orientação comum a todas as atividades na sociedade neocapitalista está implicada no e pelo espaço. Todavia, este espaço é aquele configurado pelos cientistas, que contém um certo número de atributos e variáveis e que apresenta-se como modelo de coerência. Acreditamos que há uma estreita relação entre a noção foucaultiana de meio e a lefebvriana de espaço instrumental:
Esse espaço tem as seguintes características: vazio e puro, lugar dos números e das proporções, por exemplo, do número de ouro; ele é visual, por conseguinte, desenhado, espetacular; ele se povoa tardiamente de coisas, de habitantes e de “usuários”; na medida em que esse espaço demiúrgico tem uma justificação, ele se avizinha do espaço abstrato dos filósofos, dos epistemólogos. Sua confusão não ocorre sem riscos. Repitamos que o maio perigo e a maior objeção é a evacuação do tempo concomitantemente histórico e vivido. (LEFEBVRE, 2016, p.43).
O espaço como meio e instrumento, na perspectiva de Lefebvre (2016), é um instrumento político intencionalmente manipulado, um poder “nas mãos de alguém”, povoado segundo decretos de poder que pode reagir sobre os “povoamentos históricos”. Este espaço instrumental impõe uma certa coesão, que o autor define como uma “regulação buscada, pretendida, projetada, o que não quer dizer obtida”. A noção foucaultiana de meio aproxima-se das proposições de Lefebvre quando um espaço é concebido como instrumento político para intervir sobre os povoamentos, o que nos remonta ao célebre comentário de Foucault:
O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão. (FOUCAULT, 1999, p.134).
O diálogo entre Foucault e Lefebvre também se efetua quando o último afirma que o espaço instrumental é poder e saber: poder, ideológico, porque é político; saber, porque comporta representações elaboradas. Por implicar um projeto e estratégia, Lefebvre (2016, p.45) denomina o espaço instrumental enquanto racional-funcional e funcional-instrumental, para dizer que: “ele é o ambiente, o meio, ao mesmo tempo, de uma organização do consumo (...) da sociedade burocrática de consumo dirigido”. Ao utilizar esta expressão para denominara sociedade na década de 1960, Lefebvre (1991) chama atenção para um planejamento indireto e uma certa organização global que, através da atividade de escritórios, organismos públicos e instituições anexas, organizam o cotidiano. Para o filósofo, “alguns homens dotados e inteligentes (...) perceberam a possibilidade de agir sobre o consumo e por meio do consumo, ou seja, de organizar e estruturar a vida cotidiana” (LEFEBVRE, 1991, p.67), explorando de maneira racional cada fragmento da vida cotidiana (o trabalho, a vida privada, a família e os lazeres). A biopolítica e os dispositivos de segurança apoderam-se do cotidiano e, isso pode ser observado quando Lefebvre (1991) versa acerca da contradição entre o tempo cíclico e o tempo linear (racional) da acumulação de capital. O cotidiano não tem um caráter cumulativo: uso social do corpo, gestos, e expressões físicas se transformam, todavia, “o corpo não se metamorfoseia”, isto é, Lefebvre enfatiza que as carências e atividades psicológicas e biológicas possuemuma certa estabilidade, mesmo que recebam a marca dos estilos, das culturas, das civilizações. O cotidiano se transforma segundo ritmos que não coincidem com o tempo da acumulação e em espaços que não se identificam com os campos dos processos cumulativos(LEFEBVRE, 1991, p.69-70). Para o filósofo, a sociedade moderna enfrenta o problema organizando a mudança da cotidianidade para garantir sua unidade ou coesão. Deste modo, segundo o autor, o conflito entre o não-cumulativo e o cumulativo se resolve por uma subordinação metódica do não-cumulativo, “por uma racionalidade que toca as raias do absurdo, mas que é ótima na manipulação das coisas e das pessoas” (LEFEBVRE, 1991, p.70). Deste modo, a cotidianidade tende a organizar e programar não só as atividades psicológicas, mas até aquilo que no humano constitui sua dimensão biológica.
Ainda no que tange à organização do cotidiano, Lefebvre (1991) verifica “o desvio da energia criadora de obras para a visualização espetacular do mundo”, que promove uma “perda de substância”, que fica mais nítida quando o autor trabalha a dimensão da programação, isto é, a cibernetização da sociedade pelo caminho do cotidiano. Segundo Lefebvre (1991, p.73), as “atividades superiores” (formas, modelos e conhecimentos aplicados) tomam o cotidiano por objeto, para estrutura-lo e torna-lo funcional, transformando-o em plano “sobre o qual se projetam os claros e os escuros, os vazios e os cheios, as forças e as fraquezas dessa sociedade”. A organização do território, a instituição de vastos dispositivos e a reconstituição da vida urbana de acordo com modelos adequados (centros de decisão, circulação e informação a serviço do poder), são aspectos do que Lefebvre denomina cibernetização da sociedade – esvaziamento do conteúdo político do ser social, imposição de um pensamento único e impotência criadora. O que para Foucault tem a imagem de um animal, para Lefebvre tem a imagem de um robô, pois ambos são atingidos por um projeto biopolítico que os faz perder a substância politica. Trata-se de um projeto que tem no espaço e no território seu modus operandi, completamente distinto do modo espacial disciplinar, mas que está correlacionado a ele:
Assim, o recorte, ainda visível nas cidades novas, chega ao fim. Tende-se a uma reconstituição prática de uma espécie de unidade. Essa tendência chama-se oficialmente “urbanismo”. O problema da síntese volta ao primeiro plano. Procura-se “o homem de síntese”. Há muitos candidatos: filósofos, economistas, sociólogos, arquitetos, urbanistas, demógrafos, tecnocratas diversos e de diversas denominações. Quase todos apostam, sem o reconhecer, numa “robotização” da qual eles seriam os programadores, porque ela executaria a partir do modelo sintético criado por eles. Os mais inteligentes vislumbram a realização “espontânea”, isto é, democrática e não autoritária do seu modelo. (LEFEBVRE, 1991, p.74).
É no espaço instrumental de um cotidiano programado que, segundo Lefebvre (2016), se efetua a conexão coercitiva, conceituação que lança mão para articular o caráter conjunto-disjunto do espaço ao “reino das normas”, que prescrevem as utilizações do tempo. Neste espaço da modernidade, homogêneo, fragmentado e hierarquizado, os “homens de síntese” que operam sobre o meio, querem assegurar não só a coesão, mas a coerção,uma vez que a imposição de decretos de poder é fundamental para gestão da reprodução do capital na metrópole.
É neste sentido que falamos de uma desumanização espacialmente forjada, pois, quando Foucault (1999) afirma que o homem moderno é um animal cuja vida de ser vivo está implicada numa política, o fator de distinção é a existência política – ou seja – sem existência política, o ser humano é reduzido a sua dimensão biológica, torna-se animal. O espaço é político, porque é produto social, portanto, o espaço não prescinde do humano e não há humanidade sem espaço. Todavia, quando o espaço é tomado como instrumento, ele torna-se “o lugar da reificação, um lugar fora do tempo, fora da vida e da práxis” (LEFEBVRE, 2016, p.26), logo, um espaço que extrai a substância política que constitui a existência do humano, um espaço que desumaniza.
Por um lado, temos a desumanização espacialmente forjada, que busca iluminar as formas-conteúdo que atuam enquanto dispositivos de segurança a fim de regular a massa de indivíduos que só existem biologicamente; por outro lado, falamos também de estranhamento espacialmente construído, para iluminar as formas-conteúdo que atuam no falseamento da consciência e que participam na/da produção alienadora da cidade. Recorremos ao debate de Carlos (2017) a respeito da dialética do estranhamento-reconhecimento para discutir o que entendemos por “estranhamento espacialmente construído”. Segundo a autora, trata-se de um desencontro entre o tempo de transformação do espaço metropolitano e o tempo da vida de um indivíduo, fazendo com que a imposição de novos modos de uso do espaço limite as suas possibilidades:
Essa contradição produz o que chamo de estranhamento, que por sua vez é a consequência, direta hoje, do processo de reprodução espacial, que produziu a explosão-implosão. Diante de uma metrópole onde a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito rápido, os referenciais dos habitantes, produzidos como condição e produto da prática espacial se modificam numa outra velocidade, produzindo a sensação do desconhecido e do não identificado. Aqui, as marcas da vida de relação (e dos referenciais da vida) tendem a desaparecer, ou a se perder para sempre. A ideia do estranhamento liga-se à ideia de que a atividade produtiva tende a apagar, no capitalismo, seus traços, marcando o desencontro entre sujeito e obra. (CARLOS, 2017, p.284).
Considerando a morfologia de São Paulo, a autora fala acerca de um “espaço sem espessura”, isto é, assolado pelas formas da modernidade, com uma aparente ausência de traços do passado, que atuam sobre a constituição da identidade cidadão/cidade, redefinindo as relações sociais. Para Carlos (2017), as novas necessidades impostas pela reprodução econômica na metrópole impõem-se como ruptura na morfologia, e é neste processo que o não-reconhecimento do habitante desencontro entre habitante-cidade, um desencontro entre sujeito-objeto (obra) (CARLOS, 2017, p.285-286).
com os lugares da vida e com o outro é gestado. O estranhamento marca um
O momento da alienação do homem no mundo, preso no universo do mundo da mercadoria, onde o próprio espaço adquire esta condição, se reforça na dimensão espacial, no esvaziamento do sentido possível da apropriação do espaço. A normatização do espaço indica uma tendência no horizonte – o homem deixa de afirmar na atividade de apropriação. O estranhamento se coloca enquanto relação com o outro da relação na cidade. O espaço passa a ter preço e o uso se submete ao valor de troca, o que esvazia seu sentido – a intervenção no espaço subtrai dos habitantes os espaços onde se desenrola a vida e se revela em seus desejos mais profundos dos homens. Nesse contexto, a cidade vira fantasmagoria – se eleva independente e autônoma de sua produção social e humana. (CARLOS, 2017, p.292).
As intervenções e transformações na metrópole, no âmbito do lugar, além de produzir a perda das referências espaciais, de acordo com Carlos (2017), tendem a dissipar a consciência urbana, mudando hábitos, comportamentos e formas de apropriação: perda de memória, histórias, trajetórias; acentuação dos sentimentos de angústia, medo e solidão pela dissolução das relações de vínculo e afeto construídas pelas práticas espaciais vividas no cotidiano. A espacialidade das relações sociais que se inscreve num espaço que se reproduz sem referências consiste no processo que Carlos (2017) conceitua como “espaço amnésico”, marcado pelo constante reconstruir do espaço e das modificações do uso, cada vez mais normatizado. Nesses processos estão imbricados tanto uma anátomo-política quanto uma biopolítica, portanto, são processos impregnados de biopoder, uma vez que o cidadão – subjugado pelo poder da abstração – “está submetido à banalização do sentido do humano pela normatização exacerbada” (CARLOS, 2017, p.306).
Espaço e tempo tornados abstratos se esvaziam de sentido, contribuindo para a produção de uma nova identidade, a identidade abstrata como decorrência da perda dos referenciais, do empobrecimento das relações sociais; e como imposição do desenvolvimento do mundo da mercadoria, definida pelos parâmetros da reprodução do capital no momento atual. (CARLOS, 2017, p.302).
Assim, o estranhamento espacialmente construído refere-se aos processos espaciais que, a partir de um espaço abstrato-instrumental, objetivam formas espaciais capazes de subtrair e eliminar as memórias, experiências vividas e enraizadas no lugar, relações de afeto e significado, identidades e pertencimentos. O estranhamento espacialmente construído é marca da produção alienadora da cidade.
Como dito anteriormente, a metropolização biopolítica caracteriza-se por uma biopolítica espacial de negação do ser político, que se desdobra a partir do movimento conjunto de inscrição-prescrição-ordenação na promoção da desumanização espacialmente forjada e do estranhamento espacialmente construído. O exame dos projetos urbanísticos e das remoções que ocorreram no Morro da Providência permitiu-nos evindenciar essa espacialidade biopolítica na metrópole,observando a inscrição-prescrição-ordenação como prisma para uma leitura dos processos em tela. Constituindo-se enquanto tríade, possibilitaa análise dos momentos de provisão de infraestrutura, pré-estabelecimento de usos e organização/programação de experiências do/no lugar que negam as demandas, desejos,atividades e modos de pertencer dos sujeitos.
Considerações finais
A biopolítica espacial de negação do ser político torna-se evidente quando observamos o movimento de inscrição-prescrição-ordenação, seja através das imagens virtuais inseridas na paisagem, seja através da provisão de formas- conteúdos alheias a tudo que constitui a experiência do lugar e da vida cotidiana dos moradores: ambas promovem o que denominamos desumanização espacialmente forjada e estranhamento espacialmente construído – para conferir ênfase à espacialidade dos fenômenos investigados. Destarte, conclui-se que a metropolização biopolítica apresenta quatro aspectos: I) o discurso do risco (e da in-segurança); II) o problema da circulação/mobilidade; III) A exposição à morte, a multiplicação de seu risco e o racismo; e IV) A relação entre o cálculo/probabilidade e a financeirização.
Acerca do primeiro aspecto, o enunciado biopolítico, ou do poder de regulamentação, mais tarde denominado por Foucault pelo termo segurança, é “fazer viver”, isto é, agir em defesa da sociedade. O discurso do risco é funcional para atender a esta demanda, seja através da pacificação e das remoções, seja da construção de contenções, da instalação de sirenes ou câmeras de monitoramento, enfim, de uma gama de tecnologias de controle que tem por objetivo assegurar a vida da população. Vida biológica, lembremos. Portanto, a partir da constituição de um campo de intervenção, de onde emerge a noção foucaultiana de meio, o Estado – em sua nova prerrogativa – deve proceder na incumbência de reduzir danos, ameaças e crises. Este campo de intervenção –o espaço instrumental do cotidiano programado–é constituído de inúmeros dados que darão suporte à tomada de decisão: dados cartográficos, geológicos, censitários, criminalidade, etc. As intervenções serão justificadas a partir da análise conjunta das informações obtidas sobre o meio, para proteger a vida e garantir a circulação.
No Morro da Providência, a realocação de 832 casas8 foi justificada pela Prefeitura do Rio de Janeiro a partir da apresentação de um laudo técnico que condenava as moradias, principalmente da Pedra Lisa. Todavia, como vimos anteriormente, uma série de grandes obras fora anunciada para o morro, o que levou uma moradora a interrogar: se os moradores vão sair, para quem serão as obras que vão vir? O questionamento deixa a estratégia discursiva que mobiliza o risco e a in- segurança às claras: eliminar a má circulação para promover a boa circulação (a turística) – o que nos leva a discutir a questão da circulação e do racismo.
O segundo aspecto – o problema da circulação/mobilidade -, focaliza a metrópole constituída por redes densas por onde circulam capitais, pessoas, informações, bens e serviços. O problema biopolítico da metrópole diz respeito à circulação da população, mais especificamente, em como realizar a gestão da massa de indivíduos, como controla-la, como contê-la. Vimos, em primeiro lugar, que é apoiando-se em dados de estatística e probabilidade, pois essa é uma gestão de séries aleatórias e abertas. Em segundo lugar, é preciso deixar circular para que o mecanismo de normalização atue no controle do espontâneo, isto é, leve em conta o que é normalmente esperado para controlar o que acontece e programar o que vai acontecer. Em terceiro lugar, fazendo com que um dado fenômeno ocorra, no âmbito dessa normalização, é preciso delimitar o fenômeno dentro de um marco de aceitabilidade, até que o mesmo se anule. Tomemos como exemplo as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que revelam a pacificação como tutela militarizada do território, discutida por Oliveira (2014): de acordo com o autor, o aprisionamento e a morte são fenômenos naturalizados na cidade do Rio de Janeiro –“no período de 1995 a 1997, a polícia carioca matou mais do que a soma de todas as polícias do EUA, sendo responsável por cerca de 10% dos homicídios ocorridos na cidade” (OLIVEIRA, p.135, 2014). “Se no ano de 1998 as mortes por operações policias nas favelas eram de 20 pessoas por mês, em2007 essas mortes chegaram a cerca de 1.300” (RIBEIRO DIAS & CARVALHO, 2008 apud OLIVEIRA, 2014). A mídia auxilia na tarefa de naturalização do estigma das favelas como núcleo por excelência da violência fazendo que informações circulem, seja através dos jornais impressos, seja pelos noticiários sensacionalistas –conferindo à ameaça de uma geografia, um corpo e uma cor: o jovem negro periférico e favelado. Esses são revistados, “confundidos”, caminham como se tivessem um alvo estampado nas costas9.Sua circulação na metrópole não se faz sem constrangimentos, bloqueios, interdições –materiais/funcionais ou imateriais/simbólicos. No império dos fluxos da metropolização biopolítica a questão da mobilidade é atravessada por uma assimetria econômica, social, mas, sobretudo, racial.
Quando Foucault (2008b) aborda a questão do “deixar morrer” através do racismo, a exposição à morte e a multiplicação do risco de morte para determinados grupos da população é uma das formas em que se opera o assassínio indireto, o poder de tirar a vida – esse é o terceiro aspecto. O racismo instaura uma clivagem entre a população e faz funcionar a “relação guerreira” – para viver, é preciso matar – deste modo, atua como condição de aceitabilidade para poder tirar a vida de alguém/outros. O racismo assegura a função de morte na economia do biopoder (FOUCAULT, 2008b, p.308). Como aspecto da metropolização biopolítica, apresenta- se desde a realização de operações policiais (que ocorrem em favelas, geralmente em horário de ida para o emprego e escola) até as situações programadas de abandono e descaso com questões habitacionais e de saneamento. A repercussão do caso da morte de três jovens da Providência, que foram entregues por militares do Exército a traficantes de uma facção rival, lamentavelmente, ilustra essa dimensão. David Wilson Florência da Silva (24), Wellington Gonzaga Ferreira (19) e Marcos Paulo Campos (17) foram presos, acusados pelos militares por desacato à autoridade, e levados para o morro da Mineira-RJ, onde foram torturados, mortos e encontrados num aterro sanitário10. A ocupação militar no Morro da Providência estabelece essa dinâmica mortífera, onde um estado de exceção se instala como paradigma e a morte opera como política racializada. A invasão das casas de moradores de favela também expõe esse aspecto: com violência e truculência, portando armamento de guerra, policiais militares, sem ordem para inspecionar, chutam portas, depredam o imobiliário e instauram o terror em nome de buscas e apreensões nos “barracos”, uma representação espacial que desqualifica e denota de forma indigna as casas que se situam na zona de violação permitida, não de jure, mas de facto. A violenta exposição à morte, porém, não fica a cargo apenas do braço armado do Estado. Observamos que as remoções ocorridas deixaram na paisagem do Morro da Providência um cenário devastado, como as imagens que temos de cidades bombardeadas no Oriente Médio ou assoladas pela técnica de inabilitação do inimigo, de fazer terra arrasada. A metropolização biopolítica produz o que Mbembe (2016) chama de “proliferação dos espaços de violência” ao tratar das dinâmicas de soberania vertical e ocupação colonial, levandoa uma “guerra infraestrutural”11
Esses espaços de violência, sejam funcionais ou simbólicos, podem ser observados quando famílias continuaram suas vidas, diante da degradação sucumbante, em meio aos escombros das demolições na Providência:
Um grupo de moradores começou a se manifestar, mas a maioria ainda tava tentando entender. A maioria pensa que não dá pra lutar contra esse Estado, então luta pelo mínimo, que seria algo como uma indenização para poder partir pra outro lugar. Sem contar a questão de ter que abandonar toda uma história e uma vivência no lugar, a escola de samba, entre outras coisas, tem todo um valor emocional, histórico, e quem está de fora não sabe desse valor, e vem querer tirar você do seu lugar achando que está tudo bem. Teve até aumento de morte, pessoas com problemas de AVC, problemas cardíacos e tal por conta do abalo psicológico e pelo baque da notícia, que inclusive o Eduardo Paes era ciente de todo esse peso da remoção, e ainda assim fez. (INFORMAÇÃO VERBAL )12.
É expondo à morte e proliferando os espaços de violência e risco que a metropolização biopolítica, através do dispositivo do racismo, promove a desumanização espacialmente forjada e o estranhamento espacialmente construído, isto é, nega o ser político também na dimensão de sua eliminação e extermínio. “Viver a metrópole”, para quem?
O quarto e último aspecto, a relação entre o cálculo/probabilidade e a financeirização, nos leva a recuperar o comentário de Foucault (1999) ao verificar as técnicas para administração dos corpos e para a gestão da população como indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo, nota-se o cálculo/probabilidade como instrumento de planejamento e programação do espaço, fundamental à hegemonia do capital financeiro no processo de reprodução em geral, mas principalmente na reestruturação das áreas centrais das cidades, revelando o amálgama entre capital financeiro e imobiliário. A especulação imobiliária ampara-se no suporte estatístico-matemático para criar cenários ótimos para a acumulação, ou, prever onde o clima é favorável para auferir lucros extraordinários. Os projetos de renovação ou revitalização urbana revelam essa dimensão, uma vez que são produzidos mirando a realização da mercadoria em detrimento do uso. Esse aspecto torna-se evidente quando observamos a facilitação da circulação de capital financeiro pela emissão de títulos mobiliários, como no caso dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACS), cuja verba proveniente de sua comercialização custearia as obras infraestruturais na região, como demonstrado por Dametto (2018). De acordo com a autora, a Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro delimitou seu perímetro por meio do desenho de diferentes recortes espaciais que revelam uma estratégia do poder público municipal em fomentar valorizações futuras e investimento imobiliário em determinados espaços do perímetro. Cada parcela do espaço corresponde a uma oferta de CEPACS, isto é, cada metro quadrado do solo urbano de um setor, corresponde a uma quantia de CEPACS a ser adquirida para construção nele, o que Dametto (2018) verifica como uma “valorização diferencial projetada neste perímetro;(...) espaços a termaior potência na acumulação de capital”. Essa dinâmica, da cidade como negócio, do parcelamento do solo urbano para os negócios financeiros, promove a segregação do espaço e a gentrificação, processos que devem ser lidos também sob o prisma da clivagem que o racismo opera no âmbito da economia do biopoder. O ordenamento do território na forma de operações urbanas consorciadas pela via das parcerias público-privadas estabelece contenções territoriais funcionais e/ou simbólicas que determinarão a circulação da população em dada porção da cidade. A negação espacial do ser político se afirma quando o cálculo geométrico-financeiro e suas previsões de acumulação objetivam tão somente a realização do valor de mercado em detrimento de outras dimensões da vida, como aquelas ligadas ao uso e à cidade como obra, portanto, que não dispensam a atividade política.
Embora reveladores de uma dinâmica perversa que se estabelece no cotidiano da metrópole, estes aspectos também apontam para a necessidade de realizar um debate que considere o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala (GROSOFOGUEL, 2008), sobretudo porque, se para Lefebvre (1986) o espaço urbano é o território onde se desenvolvem a modernidade e a cotidianidade no mundo moderno e, se a metrópole contemporânea é uma especíe de tradução urbana da manifestação socioespacial da globalização (LENCIONI, 2017), é também onde se desenvolve a colonialidade, “uma vez que a ideia de raça e racismo torna-se o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema-mundo” (QUIJANO, 1993 apud GROSFOGUEL, 2008, p.123). Deste modo, se tratamos de um “espaço na modernidade” é imprescindível falar em “colonialidade”, uma vez que esta corresponde à contra-face do mundo moderno. A colonialidade, como forma mais geral de dominação no mundo atual (QUIJANO, 1992), complexifica a discussão sobre o racismo como dispositivo biopolítico, levando-nos à deslocar o lócus de enunciação e desenvolverum novo léxico para explicar as múltiplas hierarquias de poder que determinam nossa experiência no espaço-tempo do lugar.Diante da limitação de páginas, pretendemos apresentar o esforço em torno dessa tarefa em outra ocasião, considerando que este debate não se esgotou e exige outros desdobramentos.
Agradecimentos
Agradeço ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa concedida para realização desta pesquisa.
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Notas