Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
Mumbuca e Sobrado: comunidades camponesas em convivência com o semiárido
Alex Dias de Jesus1 https://orcid.org/0000-0002-4464-935X
Alex Dias de Jesus1 https://orcid.org/0000-0002-4464-935X
Mumbuca e Sobrado: comunidades camponesas em convivência com o semiárido
Mumbuca and Sobrado: peasant communities living in the semiarid region
Mumbuca y Sobrado: comunidades campesinas en convivencia con el semiárido
GEOPAUTA, vol. 5, núm. 2, e6005, 2021
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar as experiências de convivência com o semiárido nas comunidades camponesas de Mumbuca e Sobrado, localizadas respectivamente nos municípios de Bom Jesus da Serra e Encruzilhada, Bahia. Tais experiências foram mediadas pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). A metodologia empregada envolveu revisão bibliográfica, levantamento de dados secundários sobre estrutura fundiária e principalmente a aplicação de questionários com os camponeses residentes nas localidades. Os resultados obtidos permitem apontar que as experiências de convivência com o semiárido, mediadas pela ASA, contribuíram para maior acesso à água e para a melhoria das condições de vida da população residente nessas comunidades.

Palavras-chave:Comunidades camponesasComunidades camponesas,ConvivênciaConvivência,SemiáridoSemiárido.

Abstract: This article aims to analyze the experiences of living with the semiarid in the peasant communities of Mumbuca and Sobrado, located respectively in the municipalities of Bom Jesus da Serra and Encruzilhada, Bahia. Such experiences were mediated by Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). The methodology used involved a literature review, survey of secondary data on land ownership structure and mainly the application of questionnaires with farmers living in the localities. The results obtained allow us to point out that the experiences of living with the semiarid, mediated by the ASA, contributed to greater access to water and to the improvement of the living conditions of the population residing in these communities.

Keywords: Peasant communities, Coexistence, Semiarid.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar las experiencias de convivencia con el semiárido en las comunidades campesinas de Mumbuca y Sobrado, ubicadas respectivamente en los municipios de Bom Jesus da Serra y Encruzilhada, Bahía. Tales experiencias fueron mediadas por la Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). La metodología utilizada incluyó una revisión de la literatura, un estudio de datos secundarios sobre la estructura de propiedad de la tierra y principalmente la aplicación de cuestionarios a los agricultores que viven en las localidades. Los resultados obtenidos permiten señalar que las experiencias de convivencia con la región semiárida, mediadas por la ASA, contribuyeron a un mayor acceso al agua y al mejoramiento de las condiciones de vida de la población residente en estas comunidades.

Palabras clave: Comunidades campesinas, Convivencia, Semiárido.

Carátula del artículo

Artigos

Mumbuca e Sobrado: comunidades camponesas em convivência com o semiárido

Mumbuca and Sobrado: peasant communities living in the semiarid region

Mumbuca y Sobrado: comunidades campesinas en convivencia con el semiárido

Alex Dias de Jesus1 https://orcid.org/0000-0002-4464-935X
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí., Brasil
GEOPAUTA, vol. 5, núm. 2, e6005, 2021
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Recepción: 30 Mayo 2021

Aprobación: 29 Junio 2021

Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar as experiências de convivência com a seca protagonizadas pelos camponeses sertanejos e mediadas pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) nas comunidades rurais de Mumbuca e Sobrado, localizadas, respectivamente, nos municípios de Bom Jesus da Serra e Encruzilhada, no Sudoeste baiano, conforme mostra o mapa 1.

A metodologia consistiu em revisão bibliográfica sobre as estratégias de convivência com o semiárido, levantamentos de dados secundários provenientes do Censo Agropecuário de 2017 e de aplicação de 40 questionários em cada uma das comunidades, com perguntas relacionadas à situação fundiária, às relações de trabalho, produção e sobre os benefícios advindos das práticas alternativas de convivência com a situação de semiaridez.

O entendimento que se tem a respeito do campesinato brasileiro é de que ele se recria cotidianamente sob o modo de produção capitalista. Assim, o modo de produção que se sustenta na exploração do trabalho assalariado, possibilita, contraditoriamente, a reprodução de formas não tipicamente capitalistas. Isso dado ao caráter desigual e combinado do seu desenvolvimento.

O sertanejo é expressão particular do campesinato brasileiro que vive nas terras do sertão, em vastas áreas do interior do país. Praticam a agricultura de sequeiro e conhecem as condições do ambiente que habitam. Esse conhecimento tradicional é repassado através das gerações, através do núcleo familiar ou comunitário.

Segundo Neves (2007), etimólogos atribuem a gênese da palavra “sertão” à derivação de “desertão”. Outros conferem sua origem à palavra muceltão, transformado em celtão e depois, certão, que em latim significaria locus mediterraneus, ou lugar distante da costa, interior, sítio longe do mar. “Para todos significa região agreste, despovoada, lugar recôndito, distante do litoral, mas não necessariamente árido; terra e povoação do interior; enfim, o interior do país” (NEVES, 2007. p. 9).

Durante o período colonial, sertão significou fronteira da colonização, onde o colonizador procurava minérios e fazia guerras contra as populações indígenas originárias. Ou seja, o contrário do litoral, o distante, o desconhecido, mas também o lugar ligado à pecuária e à permanência de antigos costumes e tradições, mais presentes no Norte e Nordeste do Brasil.

No século XIX, conforme aponta Neves (2007), pelo menos dois sentidos de sertão são identificados, um deles associado à ideia de semiárido; o outro associado às atividades econômicas –, sobretudo à pecuária –, e aos padrões de sociabilidade. A partir daí, generalizou-se o uso da expressão para designar tanto o Nordeste semiárido, como áreas mais interioranas do país que foram incorporadas à economia nacional, gradativamente, desde o período colonial, através das atividades da mineração e da pecuária.

Como resultado da mestiçagem europeia, africana e nativa, constituiu-se o sertanejo, “integrado e consciente do pertencimento ao seu sertão específico” (NEVES, 2007. p. 23), tanto no Nordeste semiárido, quanto em áreas de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e até da Amazônia.

Embora o sertanejo que abordamos nesta pesquisa resida em áreas semiáridas, não é este o fator determinante na sua constituição, mas as relações sociais e os intercâmbios culturais entre eles e com grupos vizinhos e as especificidades da interação sociedade-natureza. São, ao mesmo tempo, quilombolas-sertanejos, fundos de pasto-sertanejos, ou, como aborda Dourado (2012), o camponês catingueiro. Sobre a relação dos sertanejos com o sertão, Ab`Saber argumenta:

O homem do sertão tem particular intuição para as forças telúricas. Os sinais longínquos das trovoadas, que anunciam chuvas. A chegada da estação das águas, chamada inverno. O rebrotar da folhagem em todas as caatingas. O retorno das águas correntes dos rios, ao ensejo das primeiras chuvas. O conhecimento das potencialidades produtivas de cada pequeno espaço dos sertões, desde as vazantes do leito dos rios até os altos sertões secos e pedregosos das colinas sertanejas (AB'SABER, 1999, p. 15).

As famílias camponesas das comunidades Mumbuca e Sobrado no Sudoeste da Bahia, podem expressar na lida diária o conhecimento do ambiente que habitam, conforme descreve Ab'Saber (1999).


Mapa 1
Localização das comunidades estudadas
elaborado pelo autor (2021)

Entende-se esses camponeses sertanejos enquanto modo de vida presente na sociedade atual, como forma de reinventar-se, e não como resquício do passado. A identidade camponesa é permeada por valores que permitem a sua permanência e sua recriação mesmo na sociedade capitalista. Por isso, o entendimento da recriação camponesa, passa necessariamente pela compreensão dos valores camponeses. Isto é, a relação que esses sujeitos têm com a terra, com o trabalho e com a família.

A Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e as ações de convivência com as secas

Historicamente, a intervenção estatal na região semiárida do Brasil esteve pautada na ideia de combate e superação da seca. Nesse sentido, a construção de estradas, grandes barragens, obras de irrigação e outras ações de caráter assistencialista estiveram presentes na agenda do Estado ao longo de séculos. Entretanto, o fracasso de muitas obras e de ações paliativas colocou em cena a discussão de um novo paradigma para o semiárido, o da convivência.

As críticas ao discurso de superação da seca já vinham sendo esboçadas nos escritos de Guimarães Duque há mais de 40 anos, onde o tema da convivência com o semiárido já era proposto, como demonstra Silva:

Quais as vantagens que podemos tirar da semiaridez? Tem-se a impressão de que outrora o conceito de seca era aquele de modificar o ambiente para o homem nele viver melhor. A ecologia está ensinando é que nós devemos preparar a população para viver com a semiaridez, tirar dela as vantagens (...) (DUQUE apud SILVA, 2008, p. 103).

Paralelamente à atuação do Estado com as ações de combate às secas, os movimentos sociais, as associações de trabalhadores rurais, os agentes de pastoral, ONGs de diversos tipos foram desenvolvendo experiências, buscando novas formas de atuação no semiárido.

Os movimentos de trabalhadores rurais do semiárido brasileiro, que em sua maioria tiveram suas origens no movimento sindical do campo, nas Ligas Camponesas, nos anos 1950; nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, dos anos 1970, e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) dos anos 1960 a 1980, passam a ter mais autonomia no período de redemocratização do país em relação aos partidos, aos políticos e à Igreja Católica.

As movimentações no sentido de propor uma convivência com o semiárido se fortaleceram apoiadas na bandeira da “agricultura alternativa” e da agroecologia, que ganham força na década de 1990. Nesse contexto, cresceu a discussão nas organizações populares do semiárido e até no interior do próprio Estado como na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por exemplo.

Não só o debate acerca da convivência foi fecundo nesse período. Diversas experiências agroecológicas adaptadas ao semiárido foram postas em práticas por esses movimentos. Muitas dessas alternativas foram experimentadas e aperfeiçoadas por organizações sociais em parceria com populações rurais. Grande parte dessas organizações irá se juntar, no final da década de 1990, para formar a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), como o Centro Sabiá, Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às Comunidades (PATAC), Cáritas Brasileira, Movimento de Organização Comunitária (MOC) e o Instituto Regional de Agropecuária Apropriada (IRPAA).

Os movimentos sociais e as organizações de trabalhadores do campo atuantes no semiárido construíram um debate político público ao longo de anos. A mais emblemática das ações protagonizadas por estas organizações, foi a ocupação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 16 de março de 1993, em decorrência da seca de 1992/1993. Convocado pela Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), o movimento reivindicava providências em relação à seca e políticas permanentes de convivência com o semiárido.

Essa mobilização foi o início da constituição de espaços coletivos sobre o tema no semiárido como o Fórum Seca em Pernambuco; a Articulação no Semiárido Paraibano; o Fórum pela vida no semiárido no Ceará e no Piauí; o Forcampo no Rio Grande do Norte e outras redes de debates (ASSIS, 2009).

Nesse momento, as organizações sociais ganham visibilidade e legitimidade na discussão da convivência com o semiárido. Paralelamente às discussões e a publicização dos debates, a construção das cisternas de placas vai ganhando espaço como uma alternativa para armazenamento de água para consumo humano e como ação eficaz na melhoria das condições de vida do povo sertanejo.

A partir daí, começou um processo de discussão envolvendo mais de trezentas entidades, que culminou com um seminário: Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Semiárido Brasileiro, realizado entre 10 e 13 de maio de 1993 nas dependências da SUDENE, com a participação de 152 pessoas, representando 112 entidades (DUQUE, 2009. p. 307).

Como resultado do seminário, ocorreu a criação do “Fórum Nordeste” que se propôs a elaborar um programa de ações permanentes que valorizassem a agricultura camponesa e as práticas alternativas de convivência com a seca.

A resposta governamental veio, entre 1993 e 1994, com a formulação do “Projeto Áridas: uma proposta de desenvolvimento sustentável para o Nordeste”. Porém, pouca coisa foi efetivada e na seca de 1998-1999, houve constatações de que mais uma vez a ação do Estado não solucionaria os problemas.

Para Silva (2008), a ação governamental naquela seca pode ser considerada uma síntese de como se comportou o Estado durante todo o século XX, diante das ocorrências de seca no semiárido:

A reação tardia pressionada pelos governantes locais, pelos riscos de perda de controle da situação e pela pressão da opinião pública; a demora na implementação de ações emergenciais, quando a gravidade dos problemas estava avançada; e a destinação de recursos, logo após o período mais grave da estiagem, caracterizando uma descontinuidade das ações (SILVA, 2008. p. 73).

Diante das novas frustrações, em 1999, durante a Terceira Sessão da Conferência das Partes das Nações Unidas da Convenção de Combate à Desertificação (COP3), realizada em Recife, entre 15 e 26 de novembro, representantes dos Movimentos Sociais, ONGs e entidades religiosas -como de costume nas Conferências da ONU -, formam um “fórum paralelo” ao espaço governamental para refletir sobre a realidade do semiárido e propor ações efetivas de intervenção.

Nesse espaço, além da troca de experiências sobre a convivência com a seca, avançam as discussões sobre a necessidade de uma articulação mais permanente das organizações sociais populares do semiárido brasileiro. Como fruto desse debate, surge a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), congregando diversas organizações de vários estados, algumas delas com bastante experiência no debate e nas ações implementadas na região.

Aproveitando o momento de convergência de ideias, da grande visibilidade política e do contexto da grande seca que permanecia, lança-se a Declaração do Semiárido com o objetivo de dar maior destaque ao tema da convivência.

Este documento apresenta propostas baseadas em duas premissas: o uso sustentável dos recursos do semiárido e a quebra do monopólio ao acesso à água e à terra na região. A Declaração do Semiárido funciona como manifesto de constituição da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) que veio a se consolidar, em fevereiro de 2000, quando lança sua Carta de Princípios, em Igarassu, Pernambuco.

“A ASA – Articulação no Semiárido – é um fórum de organizações da sociedade civil, que vem lutando pelo desenvolvimento social, econômico, político e cultural do semiárido brasileiro, desde 1999” (ASA, 2012). Essa é a definição que a Articulação no Semiárido toma como norteadora de suas ações ao longo de sua existência.

Atualmente, mais de mil entidades dos mais diversos seguimentos, como igrejas católicas e evangélicas, ONG’s de desenvolvimento e ambientalistas, associações de trabalhadores rurais e urbanos, associações comunitárias, sindicatos e federações de trabalhadores rurais, fazem parte da ASA.

Diversos projetos foram efetivados pela ASA durante esses anos. O mais importante deles é o projeto “Um milhão de Cisternas”, conhecido como P1MC. Esse projeto tem como objetivo construir um milhão de cisternas para famílias do semiárido brasileiro, garantindo que as populações rurais tenham acesso à água de qualidade. Consiste, basicamente, em captar água da chuva através do telhado das casas e armazenar em cisternas de 16.000 litros. Essa água é utilizada pela família para beber e cozinhar.

A atuação da Articulação no Semiárido no Sudoeste da Bahia

A experiência de construção de cisternas na região Sudoeste da Bahia se iniciou em 1997, quando o então bispo da arquidiocese de Vitória da Conquista recebeu uma doação para construir três cisternas. Estas foram construídas no município de Bom Jesus da Serra, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), por um processo chamado Fundo Rotativo Solidário. Esse Fundo se constituía na construção de cisternas nas casas das famílias e essas devolviam, a cada mês, uma quantia de R$ 20,00 de modo que quando o dinheiro alcançava o valor gasto, outra cisterna era construída na casa de outra família. Nesse processo, foram construídas 21 cisternas em Bom Jesus da Serra, cinco delas na comunidade Mumbuca, analisada nesta pesquisa.

A partir disso, a CPT começou essa experiência que coincidiu com o período de elaboração do Projeto Um Milhão de Cisternas (P1MC), que foi apresentado ao Ministério do Meio Ambiente, em 1999, para uma possível captação de recursos. Esse Projeto foi aprovado e entrou em fase de demonstração, quando foram criadas três Unidades Gestoras Microrregionais (UGMs). As UGMs são áreas de abrangência onde se define a gestão e atuação da ASA, nas quais são congregados vários municípios.

Inicialmente coordenada pela CPT, a gestão da ASA na região foi transferida para o Centro de Convivência e Desenvolvimento Agroecológico do Sudoeste da Bahia (Cedasb), que tem uma ação voltada para a agroecologia. “A cisterna é uma alternativa agroecológica”, lembram os agentes do CEDASB. Porém, mesmo conveniada com o CEDASB, a ASA mantém uma estreita ligação com as paróquias e a Arquidiocese de Vitória da Conquista - BA.

Desde o início, a ligação com a Igreja foi direta, visto que a Cáritas Diocesana, a CPT e a Ação Diocesana já travavam essas discussões no interior de suas equipes. Assim, os primeiros parceiros procurados são as paróquias e os agentes pastorais.

Do seu início até o ano de 2020, na UGM de Vitória da Conquista, foram construídas mais de 20 mil cisternas de consumo, 255 cisternas escolares e mais de 3 mil tecnologias de “segunda água”, que compreendem as cisternas de produção, barreiros e tanques de pedra. Além disso, foram criados 56 bancos comunitários de sementes e cerca de 2.680 famílias foram assessoradas com assistência técnica, atendendo mais de cem comunidades rurais em 15 municípios (CEDASB, 2021). Dentre elas, as comunidades de Mumbuca, no município de Bom Jesus da Serra, e a comunidade de Sobrado, no município de Encruzilhada, que são estudadas nesta pesquisa.

Foi através desse processo de diálogo da Igreja com as comunidades rurais que a ASA se consolidou na região, atendendo as comunidades de Mumbuca e Sobrado que analisaremos de maneira mais detalhada a seguir.

As primeiras experiências na comunidade Mumbuca

Os Fundos Rotativos Solidários funcionam como “caixas” de recursos das famílias e são utilizados em um momento de necessidade ou para construir um bem coletivo ou individual. Cada família contribui com uma determinada quantia durante um período e, através de sorteio, as famílias retiram o recurso total proveniente da soma da contribuição de todas as famílias. Se uma família for sorteada no início, ela continua contribuindo até que todas as famílias sejam beneficiadas.

Essa estratégia existe há muito tempo entre famílias camponesas no Nordeste brasileiro e passou a ser divulgada pela ASA com o objetivo de estimular a solidariedade. Foram exatamente com este objetivo que se originaram os Fundos Rotativos Solidários na Comunidade de Mumbuca, no município de Bom Jesus da Serra-BA.

A ideia, já conhecida do bispo arquidiocesano, partiu de uma freira que atuava na Comissão Pastoral da Terra na Arquidiocese de Vitória da Conquista. Conhecendo a difícil realidade da região, no ano de 1998, propôs que as famílias organizassem os Fundos para construir cisternas que pudessem amenizar o sofrimento por falta d’água. Com eles, foram construídas apenas cinco cisternas, mas estas serviam a várias famílias que residiam próximas umas das outras.

As cisternas construídas pelos Fundos Rotativos Solidários foram totalmente financiadas com recursos das próprias famílias e armazenam 16 mil litros de água captada através do telhado da casa, assim como as financiadas pela ASA atualmente. Há mais de 10 anos elas funcionam normalmente armazenando água para beber e cozinhar nas casas em que foram construídas.

Segundo dados do IBGE (2010), o município de Bom Jesus da Serra possui cerca de 10.113 habitantes. Destes, 7.345 (73%) vive no campo, isto significa que é um município predominantemente rural e que grande parte da população trabalha em atividades agrícolas, enfrentando as dificuldades climáticas e a estrutura fundiária concentrada.

Dos 1.570 estabelecimentos rurais cadastrados pelo Censo Agropecuário de 2017 no município de Bom Jesus da Serra, 1.296 (82,5%) possuem menos de 20 hectares e detém apenas 32% da área total. Essa é a situação das unidades camponesas da Comunidade Mumbuca, onde a maioria das propriedades não ultrapassa 20 hectares. Dentre as propriedades das famílias entrevistadas, apenas três possuíam mais de 20 hectares, a maior delas – com 55 hectares – dividida entre três famílias, o que indica a fragmentação em propriedades ainda menores.

Segundo dados da Associação de Moradores, existem em Mumbuca cerca de 125 famílias que vivem prioritariamente do trabalho com a terra. Segundo relatos dos mais idosos, eles vivem na região há mais de 150 anos, quando escravizados fugitivos permaneceram no local e fixaram residência. O povo da comunidade lutou durante cerca de quatro anos pela certificação de comunidade quilombola junto à Fundação Cultural Palmares (FCP), o que aconteceu em 13 de fevereiro de 2011.

Seus moradores se reconhecem enquanto quilombolas e através das visitas de campo podemos observar que esse sentimento é coletivo, ou seja, não existe divergência em relação ao autorreconhecimento. Segundo E. M., presidente da Associação de Agricultores Familiares do Território Remanescente de Quilombo de Mumbuca, o processo de mobilização para o autorreconhecimento e posterior certificação, foi tranquilo e não encontrou muitos obstáculos.

A Comunidade Mumbuca situa-se a 8 km da sede do município de Bom Jesus da Serra. É uma região de grande dificuldade de acesso à água. Antes das ações da ASA, os moradores caminhavam mais de 6 km em busca de água nos períodos de maior estiagem. As poucas fontes que existiam eram disputadas por centenas de famílias de várias comunidades e fazendas próximas.

Além disso, a água consumida era de péssima qualidade, o que mantinha o índice de doenças infectocontagiosas sempre elevadas. Nos meses de verão eram frequentes crises de diarreia, febre e vômito, em virtude do consumo de água contaminada. Situação que não mais se vê na comunidade.

Quase todos os moradores possuem títulos de propriedade da terra através da compra, e aquelas famílias que não os têm, vivem como parceiros nas terras dos ancestrais. Ou seja, casam e recebem sua parte de terra próxima à casa dos pais. Por esse motivo, ocorre em Mumbuca uma excessiva fragmentação da propriedade da terra o que torna a agricultura inviável em alguns casos.

Nas propriedades, planta-se feijão, mandioca, abóbora, milho e outras leguminosas que servem, sobretudo, para o consumo da família e, em alguns casos, são comercializados na feira do município. De acordo com os moradores, a comercialização é cada vez mais rara, por consequência das dificuldades em produzir que eles enfrentam com as estiagens e com a fragmentação da terra. O plantio dessas espécies é feito entre os meses de novembro e março, pois a partir desse período a agricultura torna-se impraticável por falta de chuva. Quem não planta neste período não planta mais durante o ano.

É por esse motivo que durante os demais meses do ano muitos trabalhadores saem em busca de emprego nas grandes cidades como São Paulo, Belo Horizonte ou nas cidades mais próximas como Vitória da Conquista. Ocorre anualmente a mobilidade temporária da força de trabalho para a construção civil ou, como é bastante frequente, para o corte de cana e para os cafezais da região. Esse “voo das andorinhas”, como nomeou Martins (1986) ao tratar da migração sazonal, garante, em muitos casos, a sobrevivência quando longas estiagens ocorrem.

Entretanto, esses trabalhadores não permanecem no trabalho migrante. Sempre retornam para cuidar da sua terra no período de plantio e colheita. O período em que passam fora é justamente para garantir a manutenção da família camponesa que permanece na terra, cuidando da casa e da criação. Isto significa que o trabalho assalariado é uma condição temporária para a manutenção do trabalho e do modo de vida camponês.

Uma moradora comenta que “dezembro, janeiro são sempre meses com mais gente na comunidade porque é o tempo das chuvas, é tempo de plantar e muitos homens voltam para casa”. É o tempo de “fazer a roça”, matar a saudade da mulher e dos filhos, fazer algum serviço na casa e se preparar para partir novamente. Apesar de marcante, esta não é a situação predominante na comunidade. A maioria dos chefes de família permanece em suas casas, mesmo com a impossibilidade de praticar a agricultura durante a maior parte do ano.

Foi diante dessas situações que os animadores da ASA perceberam a necessidade de levar à Mumbuca a construção das cisternas, através dos Fundos Rotativos Solidários. Logo após a construção das primeiras cinco cisternas financiadas pelas famílias, começou-se a construção de outras pelo Programa de Transição da ASA em convênio com a Agência Nacional de Águas e algumas famílias resolveram esperar para conseguir as suas.

E assim aconteceu. Em 2003 a Comunidade foi beneficiada com uma quantidade de cisternas de consumo, financiadas pelo Programa Um Milhão de Cisternas que começava a entrar em funcionamento. A partir daí, a Comunidade foi beneficiadomais duas vezes com cisternas do P1MC o que fez com que, atualmente, todas as famílias possuam cisternas ao lado da casa, tendo águapara beber e cozinhar.

Para as famílias, a cisterna foi o maior benefício que elas receberam. Todos os entrevistados afirmaram que a vida mudou para melhor depois da construção das cisternas e que para eles não existe mais a possibilidade de viver sem a água dela. O depoimento da camponesa a seguir mostra o contentamento depois do benefício.

Antes aqui era um sofrimento muito grande. Você não sabe o sofrimento que é viver sem água e quando tinha, não era boa pra beber. Hoje não, todo mundo tem água limpa, água da chuva pra beber e cozinhar. Às vezes até falta, quando fica muito tempo sem chover, mas na maior parte do ano a gente tem de onde tirar água (INFORMAÇÃO VERBAL)2.

Regularmente, a água acumulada nas cisternas é suficiente para as necessidades de uma família de quatro a cinco membros durante os meses sem chuva. Porém, existem anos de chuvas mais escassas do que o habitual e a cisterna ou os demais reservatórios de onde é tirada a água para outras tarefas que não beber e cozinhar não enche, e as famílias necessitam da ajuda do Exército ou da Prefeitura com seus carros pipas.

Contudo, de maneira geral, a cisterna, apelidada de “boneca branca do sertão” por um poeta popular da região, representa uma saída nos meses de maior escassez de água. As famílias camponesas não mais dependem do chefe político local para sanar suas necessidades com a água. Dependem de como utilizam a água armazenada nos períodos de chuva. A exceção existe com a ocorrência de uma grande seca.

Ter a cisterna em casa significa autonomia em relação aos recursos hídricos que suprem as necessidades mais básicas da família. Mulheres ganham mais tempo para se dedicar aos filhos, à casa e a elas próprias com o tempo que deixam de perder buscando água em lugares distantes. Crianças também ganham mais tempo para brincar, estudar ou ajudar os pais em outras tarefas, como é comum no campo.

Por isso é um bem tão valioso para eles. A cisterna não significa somente água mais próxima de casa e de melhor qualidade. Representa um passo no processo de construção de uma autonomia camponesa. Isto porque a água foi adquirida sem intermediação política local. Não é favor político que precisa ser retribuído a ninguém. É conquista individual de cada família e coletiva, da comunidade.

Antes a gente dependia da prefeitura. Às vezes os barreiros ficavam rachados sem água nenhuma e a gente tinha que levantar ainda de noite para buscar água bem longe. Muitas vezes a gente ficava esperando a água minar para encher as vasilhas. Além de ter que caminhar muito, ainda tinha que esperar na fila porque tinha gente que dormia lá mesmo. Foi muito sofrimento e eu espero não precisar passar por uma situação dessas novamente (INFORMAÇÃO VERBAL)3.

Pelo relato transcrito acima, entendemos o valor simbólico que a cisterna representa para a família. Além de representar uma maior comodidade, autonomia, pois são eles que controlam o uso da água, representa mais saúde, fato que pode ser comprovado pelos relatórios de acompanhamento das famílias, feitos pela Agente Comunitária de Saúde, que comenta:

Bastavam alguns meses sem chuva e a gente tinha que beber a mesma água que os animais bebiam, dos barreiros. A água contaminada elevava o índice de doenças, como febre e diarreia não só aqui na Mumbuca, mas em todo lugar aqui em Bom Jesus. Todo ano a gente via uma epidemia triste aqui. Depois das cisternas ninguém precisou beber mais água suja e agora é a coisa mais difícil ver essas doenças. (INFORMAÇÃO VERBAL)4.

Os relatos evidenciam o caráter benéfico das cisternas para a vida das famílias. Diretamente elas sofreram um impacto positivo com a aplicação de uma tecnologia simples e de fácil manuseio. Além disso, após a mobilização para a construção das cisternas, o que exige sempre um mutirão, as pessoas relatam que ficaram mais unidas. Ou seja, o processo de mobilização que está envolvido é parte fundamental para as comunidades beneficiadas.

Diante do exposto, podemos afirmar que a ação da Articulação no Semiárido através do Centro de Convivência e Desenvolvimento Agroecológico do Sudoeste da Bahia (CEDASB) contribui de maneira significativa para o processo de convivência com o semiárido e consequentemente para a permanência do camponês na terra, no território camponês de Mumbuca.

As ações de convivência com o semiárido na comunidade Sobrado

A Comunidade Sobrado revela outra etapa na atuação da Articulação no Semiárido. Embora as ações da ASA na Comunidade já existam desde o seu início na região, o foco das nossas análises foram as recentes experiências e suas consequências em um momento de maior vinculação da entidade com o Estado.

Assim como na comunidade Mumbuca, em Bom Jesus da Serra (BA), a constatação da grande dificuldade com o acesso à água na comunidade Sobrado, no município de Encruzilhada (BA), fez com que os animadores da ASA a colocassem entre as prioritárias para a aquisição das cisternas.

O município de Encruzilhada está localizado na microrregião Itapetinga, na regionalização da Secretaria de Planejamento da Bahia, e integra o Território de Identidade de Vitória da Conquista. Possui uma população total de 23.766 habitantes, sendo 18.636 residentes na área rural (IBGE, 2010). Ou seja, 78% da população vivem no campo, mesmo com as grandes dificuldades que enfrentam na reprodução de suas existências, como veremos.

Parte dessa população reside na Comunidade Sobrado, distante 40 km da sede do município. Na Comunidade vivem cerca de 100 famílias que cultivam, predominantemente, mandioca, feijão e milho e criam pequenos animais, como galinhas e porcos. Atualmente, algumas famílias têm cultivado também hortaliças, utilizando a água das cisternas de produção. Tal produção tem o objetivo prioritário o autoconsumo, o que evidencia o caráter da agricultura camponesa na região.

Em Sobrado, predominam as pequenas propriedades onde é utilizada a mão de obra exclusivamente familiar. Na comunidade, observou-se uma migração mais permanente do trabalho, ou seja, muitos filhos residem fora e não retornam nos períodos de chuva, mas construíram uma vida urbana, principalmente em grandes cidades. Este processo evita uma excessiva fragmentação da propriedade da terra, como verificado na comunidade Mumbuca, por exemplo.

Dos 1.871 estabelecimentos rurais cadastrados pelo Censo Agropecuário de 2017 no município de Encruzilhada, 1.223 (65,4%) possuem área menor que 20 hectares e detém apenas 6,9% da área total do município. No outro extremo, apenas 12 estabelecimentos rurais (0,64%), cada um possuindo mais de 1.000 hectares, controlam 19,48% de toda a área.

Assim como em Mumbuca, em Sobrado, além das dificuldades com a água para produzir, impõe-se a concentração fundiária como um fator que dificulta a reprodução camponesa. Assim, observa-se o reflexo da concentração da terra no município de maneira geral. Na comunidade, há predomínio de propriedades de até

10 hectares. Apenas 25% das famílias entrevistadas possuem propriedade com tamanho superior a 15 hectares e em nenhum caso verificou-se propriedade que chegasse a 100 hectares. Apesar disso, são unidades camponesas como estas que abastecem as feiras semanais das cidades de Encruzilhada e Cândido Sales, revelando, em escala local, a importância da agricultura camponesa na atualidade.

A maioria dos camponeses afirmou que possui título de propriedade da terra adquirido, na maior parte dos casos, a partir da herança. Verificou-se também a presença de filhos casados que vivem no interior da propriedade dos pais, apesar de a saída para outros locais ser mais frequente, como mencionado anteriormente.

Apesar de estar situada no município de Encruzilhada, a relação campo- cidade é maior com a sede do município de Cândido Sales que está a menos de 20 km da comunidade. É na cidade de Cândido Sales onde estudam as crianças do segundo ciclo do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. As crianças menores cursam até a 4ª série na própria comunidade. Possui escola, igreja, casa de farinha comunitária e parte das famílias realiza mutirão para a limpeza desses espaços coletivos ou para a colheita ou limpeza da roça de algum “compadre” ou vizinho.

Essa comunidade sofria com a falta de água e a Associação dos Pequenos Produtores levou a situação aos animadores da ASA que, assim como na comunidade Mumbuca, resolveram priorizar a localidade para ser beneficiada com as primeiras cisternas do Sudoeste da Bahia após a consolidação da Articulação no Semiárido em escala nacional.

Na comunidade Sobrado, as primeiras cisternas foram construídas no ano de 2002 com o financiamento da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) em convênio com a ASA nacional. Assim como nas demais comunidades, o processo de construção necessita de uma contrapartida da família que garante a hospedagem e a alimentação dos pedreiros que são capacitados pela ASA, em curso específico, e uma contrapartida da comunidade em ajudar na construção das cisternas para que o processo seja mais rápido.

Dessa forma, de 2002 até o ano de 2011 as famílias da comunidade Sobrado foram beneficiadas com a construção de 80 cisternas de consumo, oito cisternas de produção e quatro barreiros trincheira de tipo comunitário. Nessa comunidade existem cisternas que foram financiadas pelas parcerias com o setor privado, governo federal e estadual, através da FEBRABAN, do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) e da Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (SEDES), respectivamente.

Assim, as dificuldades de acesso à água foram diminuindo desde as primeiras cisternas no ano de 2002. Atualmente, além das 80 cisternas de consumo, oito famílias possuem cisternas de produção e conseguem manter uma produção razoável de legumes, hortaliças e algumas frutas.

O relato da camponesa a seguir, mostra as dificuldades enfrentadas por eles antes das primeiras cisternas serem construídas:

A gente bebia água de barreiro, água barrenta e poluída. Tem gente que pegava água do rio que já vem poluído de Cândido Sales. Você imagina aí a quantidade de doença que tinha por aqui. Era um sofrimento terrível demais. Às vezes a água era tão ruim que nem matava a sede. Hoje em dia, ninguém tem mais problema com água. Foi uma coisa muito boa essas cisternas aqui. (INFORMAÇÃO VERBAL.)5.

Assim como na comunidade Mumbuca, a cisterna representou para as famílias de Sobrado uma garantia de água de qualidade, tendo o seu acesso gratuito e controlado pelos próprios moradores. Não mais dependem de agentes externos que utilizavam o abastecimento dos barreiros nos períodos de seca como favor político devido pela comunidade. A família camponesa passou a assegurar o seu próprio acesso à agua, embora a relação entre a ASA enquanto organização da sociedade civil e Estado ainda esteja confusa no imaginário das famílias beneficiadas.

De qualquer maneira, a cisterna, doada ou conquistada, garante uma melhor qualidade de vida para as famílias do semiárido baiano. Não houve sequer um comentário de descontentamento diante do Programa. Receber a cisterna é receber a água e água de qualidade era um bem raro no semiárido antes dela.

Também em Sobrado o índice de doenças caiu drasticamente depois da aquisição das cisternas, segundo J.S, Agente Comunitária de Saúde da comunidade. Isso comprova mais uma vantagem que se soma às demais já discutidas até aqui.

Sem dúvida, depois que a gente começou a consumir água das cisternas muita coisa mudou por aqui. Tinha gente que trazia água até de Cândido Sales para não ter que beber água daqui. Era muita doença, hoje é a coisa mais difícil de ver por que a água é de qualidade (INFORMAÇÃO VERBAL)6.

Além das cisternas de consumo, que armazenam 16 mil litros de água da chuva, e que são responsáveis por uma mudança tão significativa no que diz respeito à saúde, à comodidade e ao bem-estar, oito famílias da comunidade Sobrado foram beneficiadas com as cisternas de produção, que são capazes de armazenar 52 mil Mumbuca e Sobrado: comunidades camponesas em convivência com o semiáridoJESUS, A.D. deGeopauta,Vitória da ConquistaISSN: 2594-5033,V. 5, n.2, 2021, e6005Este é um artigo de acesso aberto sob a licença Creative Commons da CC BY 20litros de água captada através das enxurradas e que pode ser utilizada para a produção de legumes, hortaliças, frutas etc. (ASA, 2021a).A escolha das famílias, como é comum acontecer nos processos da ASA, se deu em reunião dos moradores da comunidade.

O Programa Um Milhão de Cisternas objetiva construir 1 milhão de cisternas no meio rural do semiárido brasileiro (ASA,2021b), porém a água dessas cisternas serve apenas para beber e cozinhar. Com isso, as dificuldades para produzir continuam acentuadas. Com o Programa P1+2, ou seja, Uma terra e duas águas, tanto a água para beber, quanto a de produzir nos quintais próximos das casas é garantida. Evidentemente, 52 mil litros de água, armazenada durante o período de chuvas, não garantem a utilização para todo tipo de cultura, mas aquelas de menor porte podem ser regadas com essa água. É o caso das hortaliças, que são produzidas em Sobrado e comercializadas semanalmente na feira de Cândido Sales, município da região.

As experiências com as hortas nos quintais das casas, abastecidas com a água das cisternas de produção, têm mostrado que o problema é, e sempre foi, falta de acesso à água para que no sertão floresça qualquer tipo de cultura. Não só na comunidade Sobrado, mas em todas aquelas onde se tem acesso à terra, por menor que seja, e nas quais se implementam práticas agroecológicas de convivência com o semiárido, vêm-se hortas verdes e bem cuidadas durante a maior parte do ano. Isso altera profundamente a dieta da família que antes disso, só consumia alguns tipos de alimentos se comprassem nas feiras da região.

As cisternas de produção representam mais um passo na chamada transição agroecológica no semiárido brasileiro. Além da atividade prática, a produção onde antes parecia impossível, as experiências dessa e de muitas outras tecnologias apropriadas para a região, tem alterado profundamente a maneira como as pessoas encaram a agricultura no semiárido.

Têm ocorrido mudanças no processo de manejo com a terra. Os camponeses, através das trocas de experiências, vão vivenciando novas formas de cultivo. A unidade Gestora Microrregional de Vitória da Conquista já promoveu diversos encontros com os camponeses com espaços para a socialização de práticas adaptadas à convivência. Encontro desse tipo tem sidocada vez mais frequentes entre os camponeses integrados na ASA. Com isso, ampliam seus conhecimentos, ensinam novas formas de plantar, colher e consumir os alimentos. São camponeses unidos em rede em prol da convivência com o semiárido.

Aqui o que plantar dá! Não é por falta de vontade, é que a terra é pouca, sabe? Então, o pedacinho de terra que a gente tem não dá para plantar muita coisa. Agora com essas cisternas é que a gente planta uma coisinha, mas é mais para comer mesmo. Às vezes dá pra tirar alguma coisa pra vender, mas só em ter verduras do lado de casa já é muita coisa. Antes disso a gente não plantava nada. Não adianta plantar sem água. É perder tempo. (INFORMAÇÃO VERBAL.)7. (grifo nosso).

O relato acima é bastante significativo para mostrar a limitação da produção em virtude do tamanho das propriedades nas comunidades analisadas. Cabe lembrar que as propriedades menores que o módulo fiscal do município, são consideradas minifúndios. Situação que predomina tanto em Mumbuca quanto em Sobrado.

Iniciativas como essa têm contribuído para aumentar a relativa autonomia camponesa diante do processo de produção. Isso quer dizer que com a possibilidade de produzir, mesmo que seja em pequena quantidade, o camponês passa a controlar mais os elementos da economia camponesa no balanço do trabalho e consumo. Todavia, isso não o torna autossuficiente capaz de não depender de elementos exteriores. Pelo contrário, quanto mais produção ele tiver, mais contato ele terá com o mundo exterior à comunidade para comercializar o fruto do seu trabalho.

Os camponeses têm profundo conhecimento das etapas desse processo, como fica evidente na fala de um morador sobre a época das chuvas e o preço dos alimentos na cidade.

Tudo depende da chuva, né? Quando passa um tempo sem chuva, começa a faltar plantação e fica tudo caro na feira. Agora quando a gente consegue colher o que plantou, muitas vezes não acha preço. Não vale nem a pena vender, só o trabalho que a gente tem, não compensa, é melhor comer mesmo (INFORMAÇÃO VERBAL)8.

Entretanto, apesar de possibilitar um grande avanço no que tange ao processo produtivo familiar no semiárido, as cisternas de produção não são capazes de garantir a produção em larga escala, sobretudo de produtos básicos como feijão, milho, mandioca etc. Para este tipo de cultura é aguardada a água das chuvas que tem período certo para cair na região semiárida. Além disso, muitos animais sofrem com a falta de água para beber e as fontes comunitárias para lavar roupa, no período de seca, encontram-se em situação impróprias para o uso.

Os camponeses da comunidade Sobrado, há mais de 10 anos têm experimentado novas formas de convivência com a seca. Atualmente, apesar das dificuldades, a reprodução do modo de vida camponês ocorre de uma maneira adaptada às condições ambientais. Problemas continuam existindo, mas as experiências agroecológicas os têm minimizado cada vez mais.

Considerações finais

Diante do exposto, ressaltamos a importância que a Articulação no Semiárido tem para o campo brasileiro, especificamente para a região Sudoeste da Bahia onde tem protagonizado grandes mudanças nas comunidades rurais onde tem atuado. Tanto nas comunidades analisadas nesta pesquisa, como em outras no semiárido baiano, observa-se um grande reconhecimento para com a ASA e suas ações.

As visitas às famílias camponesas nas comunidades de Mumbuca e Sobrado evidenciaram uma mudança na atuação da ASA durante os anos. As primeiras experiências com os Fundos Rotativos Solidários, apesar de objetivar a construção das cisternas, de maneira direta, contribuía para o processo de mobilização social, exercitando o espírito de solidariedade e partilha comunitária. As novas ações, apesar dos benefícios para os camponeses, nãosão tão envolventes no nível comunitário. Talvez porque as cisternas passaram a ser vistas muito mais como Programa do governo do que da ASA

A elevação do Programa Um Milhão de Cisternas como política pública do Governo Federal contribuiu para o atendimento de um número maior de famílias beneficiadas. Porém, a análise da realidade, a partir das comunidades estudadas, mostra a gradativa perda de autonomia da entidade frente ao Estado.

Com isso, a Articulação vai ampliando o número de famílias beneficiadas, mas vai perdendo a autonomia dos processos de mobilização e execução das ações. As cobranças pela agilidade na construção de cisternas “atropela” o rico processo de educação popular, em que vários temas são discutidos, extrapolando a construção em si.

Prova disso foi a estratégia do Governo Federal em substituir as cisternas de placas por cisternas de plástico com o intuito de baratear os custos do Programa e diminuir o tempo para a construção. Em decorrência disso, a ASA começou uma ampla campanha demonstrando os malefícios dessa estratégia pedindo a continuidade das cisternas de placas em todo o semiárido.

Esse exemplo demonstra que as ações do Estado no semiárido brasileiro continuam tendo o objetivo de mediar os conflitos e não solucionar, radicalmente, os problemas da população sertaneja. À ASA cabe a estratégia de continuar existindo, promovendo consideráveis transformações na vida dos camponeses sertanejos sem perder, ainda mais, a sua autonomia.

Material suplementario
Referências
AB’SABER, Aziz Nacib. Sertão e Sertanejos: uma geografia humana sofrida. Revista Estudos Avançados, São Paulo: vol. 13, ano 36, p. 7-59, 1999.
ASA – ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO, 2012. Disponível em: www.asabrasil.org.br. Acesso feito em: 25 de agosto de 2020.
ASA – ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO, 2012. Documento base para discussão do P1MC. s.d. (mimeo).
ASA – ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO, 2021a. P1MC – Programa Um Milhão de Cisternas. Disponível em: P1+2 - ASA Brasil - Articulação no Semiárido Brasileiro. Acesso em: 4 de jul. de 2021.
ASA – ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO, 2021b. P1MC – Programa Um Milhão de Cisternas. Disponível em: P1MC - ASA Brasil - Articulação no Semiárido Brasileiro. Acesso em: 04 de jul. de 2021.
ASSIS, Thiago Rodrigo de Paula. Sociedade civil, Estado e políticas públicas: reflexões a partir do Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) no estado de Minas Gerais. Tese (Doutorado em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Seropédica: 2009.
CENTRO DE CONVIVÊNCIA E DESENVOLVIMENTO AGROECOLÓGICO DO SUDOESTE DA BAHIA – CEDASB. Programas. Disponível em: Programas | Cedasb. Acesso em: 30 de jun. de 2021.
DOURADO, José Aparecido Lima. Camponês caatingueiro: reflexões sobre o campesinato no semiárido brasileiro. GeoTextos, vol. 8, n. 1, p. 97-119, 2012.
DUQUE, Ghislaine. A articulação no semiárido: camponeses unidos em rede para defender a convivência no semiárido. In: FERNANDES, B. M, MEDEIROS, L. S. e PAULILO, M. I. (orgs.) Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. Vol. II. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 303-320.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Disponível em www.ibge.gov.br. Acesso em: 30 de jun. de 2021.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Agropecuário de 2017. Disponível em: IBGE | Censo Agro 2017 | Home. Acesso em: 30 de jun. de 2021.
MARTINS, José de Souza. Não há terras para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes, 1986.
NEVES, Erivaldo Fagundes. (Org). Caminhos do Sertão: ocupação territorial, sistemas viários e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. São Paulo: Arcádia, 2007.
SILVA, Roberto Marinho Alves da. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2008.
Notas
Notas
1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí. São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil. E-mail: alexdias@ifpi.edu.br
2 Entrevistado FB, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa.
3 Entrevistado AB, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa.
4 Entrevistado ABS, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa.
5 Entrevistado MS, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa. 6 Entrevistado JS/ACS, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa.
6 Entrevistado JS/ACS, em março de 2012.Entrevistarealizada pelo autor. Anotações emquestionáriosde pesquisa.
7 Entrevistado MF, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa.
8 Entrevistado MN, em março de 2012. Entrevista realizada pelo autor. Anotações em questionários de pesquisa.

Mapa 1
Localização das comunidades estudadas
elaborado pelo autor (2021)
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por Redalyc