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História da Geografia escolar e seus manuais: considerações a partir da Reforma Francisco Campos (1931-32)
Diego Carlos Pereira 1 http://orcid.org/0000-0002-7450-8849
Diego Carlos Pereira 1 http://orcid.org/0000-0002-7450-8849
História da Geografia escolar e seus manuais: considerações a partir da Reforma Francisco Campos (1931-32)
History of School Geography and its textbooks: considerations from the Francisco Campos Reform (1931-32)
Historia de la geografía escolar y sus manuales: consideraciones desde la Reforma de Francisco Campos (1931-32)
GEOPAUTA, vol. 5, núm. 4, e9657, 2021
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
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Resumo: Esse artigo tem por objetivo contextualizar e discutir os arcabouços históricos e sociais que envolveram a constituição da disciplina de Geografia no ensino secundário em seus manuais escolares a partir da Reforma Francisco Campos (1931-32). Realizamos uma pesquisa bibliográfica e documental e nos fundamentamos no Paradigma Indiciário. Consideramos, a partir da bibliografia e dos indícios, que a disciplina de Geografia se caracterizou por uma “modernização conservadora” em que, apesar de ampliar seu espaço no currículo e buscar renovar seu ensino, funcionou como um aparato ideológico nacionalista de Estado e seus pressupostos renovadores tiveram poucos avanços práticos, configurando uma cultura livresca.

Palavras-chave:Reforma Francisco CamposReforma Francisco Campos,Geografia EscolarGeografia Escolar,Cultura escolarCultura escolar,Manuais EscolaresManuais Escolares.

Abstract: This article aims to contextualize and discuss the historical and social frameworks that involved the constitution of the school subject of Geography at the secondary education in its school textbooks in the Francisco Campos Reform (1931-32). We carry out a bibliographical and documentary research and base ourselves on the indiciary paradigm. We consider from the bibliography and the evidence that the Geography subject was characterized by a "conservative modernization" in which, despite expanding its spacein the curriculum and seeking to renew its teaching, it functioned as a nationalist ideological apparatus of State and its presuppositions renovators had few practical advances, configuring a book culture.

Keywords: Francisco Campos Reform, School Geography, School culture, Textbooks.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo contextualizar y discutir los marcos históricos y sociales que involucraron la constitución de la disciplina de Geografía en la educación secundaria en sus manuales escolares después de la Reforma de Francisco Campos (1931-32). Realizamos una investigación bibliográfica y documental y basada en el paradigma indiciario. Con base en la bibliografía y las evidencias, consideramos que la disciplina de Geografía se caracterizó por una "modernización conservadora" en la que, a pesar de ampliar su espacio en el currículo y buscar renovar su enseñanza, funcionó como un aparato ideológico nacionalista del Estado y sus supuestos renovadores tuvieron pocos avances prácticos, configurando una cultura libresca.

Palabras clave: Reforma de Francisco Campos, Geografía escolar, Cultura escolar, Manuales escolares.

Carátula del artículo

ARTIGOS

História da Geografia escolar e seus manuais: considerações a partir da Reforma Francisco Campos (1931-32)

History of School Geography and its textbooks: considerations from the Francisco Campos Reform (1931-32)

Historia de la geografía escolar y sus manuales: consideraciones desde la Reforma de Francisco Campos (1931-32)

Diego Carlos Pereira 1 http://orcid.org/0000-0002-7450-8849
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, Brasil
GEOPAUTA, vol. 5, núm. 4, e9657, 2021
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Recepción: 10 Octubre 2021

Aprobación: 20 Diciembre 2021

Introdução

As pesquisas no âmbito da história da Geografia escolar têm se delineado como uma linha de pesquisa que se dedica não somente ao registro da memória da disciplina e suas marcas históricas, como também a compreensão da construção da identidade da Geografia enquanto disciplina escolar ao longo do tempo, apontando para a sua constituição simbólica e cultural.

Este texto insere-se no contexto de uma pesquisa de doutorado intitulada – Movimento Escola Nova e Geografia Moderna Escolar em manuais para o ensino secundário brasileiro (1905-1941) -, desenvolvida na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Rio Claro) no âmbito de seu Programa de Pós- graduação em Geografia. Esta investigação conta ainda com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A referida pesquisa se dedica ao estudo do período de predominância da Escola Nova no Brasil, conforme temporalização de Saviani (2008) e na análise de suas particularidades na disciplina escolar Geografia.

Em nossa pesquisa, temos identificamos lacunas no que tange ao estudo e caracterização da Geografia escolar no período de predominância dos ideais escolanovistas, em especial nos livros escolares e currículos. Pesquisas como as de Issler (1973) e Rocha (1996) são as pioneiras em investigar aspectos desse período, no entanto, apresentam limites em suas análises, não adentrando aos conteúdos e discursos dos livros didáticos de Geografia e abordando, sobretudo, os currículos prescritos.

Diante da temática da pesquisa, neste texto nos dedicamos a um recorte delimitado pela chamada “Reforma Educacional Francisco Campos”, caracterizada por uma série de decretos promulgados entre 1931 e 1932 e, para o caso da disciplina Geografia, dedicada ao ensino secundário, elucidaremos considerações a partir do Decreto n° 21.241 de 4 de abril de 1932, voltado à organização do ensino secundário no país (BRASIL, 1932).

Desse modo, temos como objetivo central deste texto contextualizar e discutir os arcabouços históricos e sociais que envolveram a constituição da disciplina de Geografia no ensino secundário em seus manuais escolares a partir da Reforma Francisco Campos (1931-32). Esperamos, com isso, contribuir para avançar nas discussões dos impactos dessa reforma educativa em livros escolares de Geografia e, consequentemente, na sua constituição como disciplina escolar. Assim, a presente pesquisa apresenta-se como relevante no que tange a tencionar lacunas ainda existentes no âmbito da história da disciplina nesse período.

Tendo em vista esse objetivo, este artigo se constitui como um ensaio teórico e empírico escrito a partir de procedimentos de uma pesquisa bibliográfica e documental norteada por questionamentos e conjecturas acerca dos subsídios teórico-metodológicos e processos investigativos imbricados no âmbito da história da geografia escolar e do desenvolvimento histórico das reformas educacionais. Em segundo plano, este exercício teórico, bibliográfico e empírico está articuladoaos processos de desenvolvimento da pesquisa de doutorado.

Utilizamos em nossa pesquisa o arcabouço metodológico do Paradigma Indiciário. Ginzburg (2016) sinaliza o paradigma indiciário como um modo de fazer pesquisas na história que se pauta na busca pelo negligenciável, por aquelas observações e detalhes que se distinguem da maioria das pesquisas sobre aquele tema e que possibilitam uma construção histórico-narrativa e concreta. Para o autor, o Paradigma Indiciário é uma saída ao pesquisador que foge da dualidade ente o racionalismo (representado pelos métodos e concepções hegemônicas de ciência estruturada) e o irracionalismo (representado pela negativa da estrutura social, sendo a irracionalidade um fator dominante da natureza do ser humano).

O Paradigma Indiciário constitui-se de uma série de operações e processos de interpretação que sempre estiveram presentes nos diversos níveis sociais, não como algo descrito ou regrado socialmente ou por um grupo, mas como forma de desvendar questões eminentes, relacionando materiais empíricos e racionais (pistas) com a curiosidade, intencionalidade e interpretação relativamente livre dos sujeitos, mas ao mesmo tempo contextualizada histórica e socialmente (GINZBURG, 2016). Desta forma, o autor caracteriza o Paradigma Indiciário como método hermenêutico em que, o conjunto de pistas/evidências constroem uma sequência narrativa. Esse trabalho hermenêutico é comparado ao de um detetive que desvenda crimes a partir de pistas ou mesmo de um médico que diagnostica uma doença a partir de sintomas apresentados.

Foram selecionadas duas obras didáticas que se constituem como material empírico deste artigo: Geografia Secundária – 1ª série (LIMA, 1936) e Geografia Secundária – 2ª série (AZEVEDO, 1935). Esses manuais escolares foram selecionados segundo dois critérios: primeiro, pois se configuram como obras do período de vigência da Reforma Francisco Campos e trazem em suas capas um discurso propagandístico no sentido de informar suas atualizações e fidedignidades quanto à reforma; segundo, pois as obras apresentam contextos geográficos distintos na cultura escolar sendo que a primeira obra se caracteriza como uma obra de cunho regional, com circulação mais restrita no sul do país, enquanto a segunda obra é de um dos autores maisrenomados do período, com influência nacional no mercado de livros didáticos da época.

Salientamos ainda que, tendo em vista a fundamentação no âmbito do Paradigma Indiciário, não é de nosso interesse aqui realizar uma análise abrangente no que tange à escrita de uma “história geral” da disciplina. Ao elencarmos duas obras do período, estamos preocupados em levantar tencionamentos a partir dos indícios desses manuais escolares. Consideramos, assim, que este texto busca contribuir para a problematização histórica no âmbito da Geografia escolar, mas não possui pretensões de apontar conclusões finalísticas acerca da temática.

Breve contextualização epistemológica: história das disciplinas escolares, cultura escolar e os manuais didáticos.

Nosso arcabouço teórico delineia-se no entremeio das fundamentações da história das disciplinas escolares, imbricada e articulada em meio à história do currículo, história cultural e cultura escolar. No âmbito da história das disciplinas escolares, consideramos, assim como Chervel (1990), que os conhecimentos escolares não são meras simplificações dos conhecimentos científicos produzidos na academia, ao contrário, pressupomos que os conhecimentos escolares estabelecem referências aos conhecimentos científicos, mas se constituem por objetivos e finalidades próprios ao ensino escolar e seus contextos, produzindo e (re) produzindo culturas escolares.

Nesse sentido, acreditamos assim como Julia (2001) que cultura escolar representa:

um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (JULIA, 2001, p.10).

A partir dessas concepções, este artigo entremeia a investigação dos processos normativos de organização dos conteúdos e finalidades escolares em manuais didáticos de Geografia do período de vigência da Reforma Francisco Campos, introduzindo reflexões sobre processos que imbricaram a constituição desse conjunto de conhecimentos em disciplina escolar e, consequentemente, em sua dimensão cultural na escola.

Escolano (2012) propõe o princípio de que não temos uma cultura escolar, mas culturas escolares, no plural, para identificar a diversidade e os diferentes níveis de estudo nessa perspectiva. Segundo o autor, há um processo de coabitação entre diferentes níveis de conhecimento (acadêmico ou escolar), níveis institucionais, fontes (currículo, manuais, histórias) e grupos e seus interesses profissionais que constituirão diferentes contextos de visão para os pesquisadores da história da educação, entendendo que nenhum deles atinge um nível de totalidade de cultura escolar. Assim, os manuais escolares, segundo essa perspectiva, representam um nível de estudo da cultura escolar.

Choppin (2009) chega a afirmar que a história dos livros escolares apresenta uma relação intrínseca com a organização e a história das disciplinas escolares, uma vez que suas finalidades estão relacionadas ao caráter organizacional do conhecimento escolar e do currículo. Em complementaridade com esses pressupostos, Escolano (2001) afirma que "su génesis y difusión están estrechamente asociadas al nacimiento y desarrollo de los sistemas nacionales de educación, es decir, al proceso de implantación de la escuela pública" (ESCOLANO, 2001, p.14).

Assim, o manual como texto, segundo Escolano (2012), pode ser examinado como uma representação das práticas e materializações dos discursos pedagógicos, oferecendo sinais indicativos dos conceitos, conteúdos e pragmatismos das culturas escolares. Nesse aspecto, uma dimensão da prática é tomada (discursos), mas não a sua totalidade.

O manual escolar é um tipo de texto materializado em formato impresso ou digital com o qual as pessoas o reconhecem como um tipo de material específico da escola, pois ninguém o confunde com outros tipos de texto. Desta forma, é possível dizer que o manual é caracterizado como um gênero textual específico, com seus próprios atributos e reconhecimentos sociais (ESCOLANO, 2012).

Francisco Campos e a “modernização conservadora” do ensino de Geografia

Diante do contexto histórico do “pós - Revolução de 30”, caracterizado pelo autoritarismo político e pela política econômica progressista de industrialização e urbanização, o governo de Getúlio Vargas necessitava de uma remodelação do ensino que atendesse aos anseios do Estado nacionalista que começava a se consolidar.

Nesse sentido, a “Reforma Francisco Campos”, cujo nome se remete ao primeiro ministro da Educação e Saúde Pública do país e seu próprio executor, foi o primeiro conjunto de ações do então governo provisório para nortear a educação no país e, basicamente, se caracterizou pelo:

aumento do número de anos do curso secundário e sua divisão em dois ciclos, a seriação do currículo, a freqüência obrigatória dos alunos às aulas, a imposição de um detalhado e regular sistema de avaliação discente e a reestruturação do sistema de inspeção federal. Essas medidas procuravam produzir estudantes secundaristas autorregulados e produtivos, em sintonia com a sociedade disciplinar e capitalista que se consolidava, no Brasil, nos anos de 1930 (DALLABRIDA, 2009, p.185).

Neste contexto, para Saviani (2008), a Reforma Francisco Campos foi a primeira reforma que conferia uma nacionalização das normativas para a educação no país, visto que até então as reformas educacionais anteriores normatizavam apenas as instituições federais de ensino e, indiretamente, influenciava os sistemas estaduais e particulares de ensino, mas não os regulamentava.

Com isso, ao tencionarmos essa realidade constituída historicamente, é importante salientarmos o interesse autoritário em relação a uma centralização e nacionalização do ensino que, por um lado se constituíam como uma forma de regulamentação e de proposição de política de Estado para a educação, mas por outro, sintetizava um processo de disciplinarização da educação e o cerceamento da pluralidade por meio da homogeneização de uma política pública nacional.

Neste sentido, Saviani (2008) afirma que, com a Reforma Francisco Campos, houve uma “modernização conservadora” que nada mais era que uma representação típica das alianças políticas realizadas em vários setores por Getúlio Vargas em tessituras políticas que constituíssem um avanço do controle do Estado e, principalmente, a manutenção de Getúlio no poder.

Dessa forma:

Para Campos, aderir à Escola Nova não significava renunciar à ‘recuperação dos valores perdidos’, tarefa que, a seu ver, teria de ser desempenhada pelo ensino religioso. Dir-se-ia que a ‘modernização conservadora’, conceito que a historiografia tende a classificar a orientação política que prevaleceu após a Revolução de 1930, poderia facultar a seguinte leitura: enquanto conservadora, essa orientação buscava atrair a Igreja para respaldar seu projeto de poder, enquanto modernização, a força de atração dirigia-se aos adeptos da Escola Nova. Estes eram vistos como portadores dos requisitos técnicos necessários à viabilização do projeto de modernização conservadora (SAVIANI, 2008, p.270-271).

Para o autor, enquanto a reforma Francisco Campos assumia os pressupostos da Escola Nova para os ideais nacionais de ensino, o projeto de poder de Vargas buscava conciliar interesses religiosos e conservadores e, ao mesmo tempo, econômicos e liberais. Nesse processo de conciliação de interesses em prol da manutenção e ampliação do poder estatal, a cultura escolar entremeia processos de continuidades e rupturas que a tornam um processo histórico complexo do ponto de vista analítico.

O ensino secundário na Reforma Francisco Campos, segundo Dallabrida (2009), passou a ter 7 anos e ficou dividido em dois ciclos: fundamental (1ª a 5ª série) de caráter humanista de “formação geral” e complementar (1ª e 2ª series) ministrados nos institutos de ensino superior enquanto requisito e preparação para o acesso à formação de ensino superior.

Para o autor, a Reforma Francisco Campos consolidou no ensino secundário uma estrutura mais complexa que continuava a visar objetivamente o acesso ao ensino superior e reforçava as desigualdades sociais desse acesso. Havia uma preocupação de formação para as elites do país baseada em modelos já introduzidos na Europa e nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XIX, com estudos longos e teóricos em um processo educacional em que só a elite poderia dispor de tanto tempo para cursar. Enquanto isso, o ensino secundário se contrastava com o ensino técnico-profissional e normal, que eram curtos e práticos e se destinavam às classes trabalhadoras que tinham acesso ao sistema de ensino (DALLABRIDA, 2009). No que tange ao processo histórico de constituição da disciplina escolar de Geografia no contexto da Reforma Francisco Campos, segundo Rocha (1996), foi a primeira reforma educacional que ampliou e legitimou o papel da Geografia enquanto disciplina no currículo secundário. Para o autor, até então, a Geografia era uma disciplina secundarizada na escola e teve uma presença oscilante nas propostas curriculares.

A disciplina de Geografia passou a fazer parte das 5 primeiras séries do ensino secundário e ainda disciplina obrigatória na 2ª série do curso complementar pré-jurídico, que conferia acesso às faculdades de direito. Diante da ampliação do controle e da avaliação pelo governo provisório do ensino secundário, o aumento da carga horária da disciplina significou um reconhecimento nacional e uma legitimação conferida pelo Estado à disciplina de Geografia.

Para Pizzato (2001), este interesse legitimador do governo provisório de Getúlio Vargas à disciplina escolar de Geografia possuía um caráter estratégico de ampliar, com o suporte do discurso escolar, o alcance do discurso nacionalista, que ora era conservador e ora liberal. A Geografia era uma disciplina que, numa visão estadista, ampliaria na escola a discussão do Brasil enquanto uma “nação em desenvolvimento” e na divulgação dos interesses e valores do Estado.

Além desse interesse estratégico do Estado, que visava um posicionamento ideológico de Estado na configuração de seus conteúdos, a autora afirma que houveram outras transformações na disciplina de Geografia:

Para a Geografia escolar brasileira o período também é significativo em termos de renovação, pois começa a se firmar uma orientação moderna no ensino da Geografia escolar, introduzindo profundas transformações em termos de finalidades e metodologias. (PIZZATO, 2001, p.108).

Em consonância com estas idéias a reforma procurou também orientar o ensino de geografia conciliando dois elementos fundamentais da época: a geografia moderna e a educação. Incorporou as idéias de Pestalozzi e de outros pedagogos defensores dos métodos ativos, que prescreviam o ensino realizado em contato com a natureza, que apuraria a capacidade de observação e tornaria mais sólido o conhecimento em contato com a realidade objetiva. A excursão passa a ser vista como um dos principais recursos didáticos. (PIZZATO, 2001, p.111).

Nesse sentido, assim como Saviani (2008) afirma que a Reforma Francisco Campos representou uma “modernização conservadora” do ensino no Brasil, acreditamos que é possível transpor esse termo para uma explicação plausível dos processos que aconteceram no cerne da disciplina de Geografia no ensino secundário.

Acreditamos que a disciplina de Geografia se caracterizou por uma “modernização conservadora” no sentido de que, apesar de renovar diversos pressupostos de ensino e de suas metodologias, sobretudo baseadas no movimento Escola Nova e na orientação moderna de Geografia (com bases científicas), o seu ensino passa a vigorar com maior poder na esfera do currículo para atender a interesses e valores de um Estado nacionalista e, consequentemente, da elite que o compunha e que queria uma “formação geral” para o acesso ao ensino superior.

Para além desses interesses ideológicos que marcam a constituição da disciplina de Geografia na Reforma Francisco Campos, há ainda questionamentos no que tange ao alcance que representou o lado “renovador” proposto no entremeio do movimento Escola Nova e da orientação moderna da Geografia científica, pois:

Com a reforma de 1931 temos, concomitantemente, a Geografia Moderna e os métodos de ensino renovado preconizados pela ‘Escola Nova’ e pelas influências de John Dewey, então penetrando no Brasil, por intermédio de Anísio Teixeira. Isto não foi suficiente, entretanto. A experiência da implantação, pelos resultados que traria, mostrou que tanto a falta de sincronização como a inexistência, principalmente, de um professorado dotado de plena consciência do papel da Geografia nesse processo, transformaram as intenções pretendidas e reduziram o ensino de geografia ao ministrar aulas de conteúdo nem sempre renovado (ISSLER, 1973, p.157).

Para o autor, foi no ensino primário em que os pressupostos renovadores do ensino ativo se configuraram com maior representatividade por meio dos “Estudos Sociais”. Já no ensino secundário, enquanto disciplina “pura” legitimada no currículo escolar pela Reforma Francisco Campos, a renovação permaneceu, por muito tempo, tímida, sendo extremamente propositiva e discursiva, mas na prática, resultou em uma cultura livresca de conteúdos descritivos que pouco se modificou com a efetivação das propostas da Reforma Francisco Campos (ISSLER, 1973).

Desse modo, o autor analisa que:

Enquanto a escola primária se revela dotada de maior flexibilidade diante da renovação, o ensino secundário comporta-se de modo diferente. Dotado de estrutura mais rígida, funcionando em um plano onde só se avista o perfil de universidade, não encontra motivação para outro objetivo prático que não o de conduzir o estudante ao curso superior, usando como veículo o acúmulo de informações e de conhecimento (ISSLER, 1973, p.219).

Diante disso, acreditamos que é possível conjecturar que a disciplina de Geografia se constituiu, a partir da Reforma Francisco Campos, por meio dos processos institucionais de um governo provisório e autoritário que se caracterizava por contradições e conciliações entre pressupostos, muitas vezes, dispares e oscilantes, produzindo uma cultura escolar que impactou o conhecimento escolar e consolidou diversos pressupostos que, muitas vezes, estão enraizados até hoje no cerne da disciplina, justificando assim a necessidade dos estudos históricos para entremear o processo crítico do ensino de Geografia, inclusive, na contemporaneidade.

Diante de nosso levantamento documental, em curso em nossa pesquisa, exemplificamos alguns desses aspectos citados anteriormente a partir de dois livros didáticos de Geografia do período que foram produzidos levando em conta a Reforma Francisco Campos: o “Geografia Secundária para a 1ª série” de Afonso Guerreiro Lima (1935); e o livro “Geografia para a Segunda Série Secundária” de Aroldo de Azevedo (1936). Tendo em vista a referida reforma educacional, observemos as seguintes figuras:


Fig 01
Programa de ensino referenciado o livro de Aroldo de Azevedo (1936).


Fig 02
Programa de ensino referenciado no livro de Afonso Guerreiro Lima (1935).

Os referidos programas representados nas figuras 01 e 02 exemplificam a inserção das chamadas “Práticas de Geografia” nas proposições do ensino de Geografia. Segundo Issler (1973) a Reforma Francisco Campos tinha, como um de seus objetivos, a modernização do ensino substituindo os modelos de memorização até então predominantes por modelos que possibilitassem um caráter “prático” ou mesmo “útil” para os alunos.

Diante dos referenciais já apresentados aqui, para nós, a introdução das “Práticas de Geografia” foi gerada no entremeio da disciplina escolar de Geografia de maneira ao mesmo tempo renovadora e contraditória, representando uma “modernização conservadora”. Por um lado, simbolizava o interesse entremeado do movimento Escola Nova e da então nascente Geografia Moderna por um ensino pautado no empirismo, por outro lado essas práticas destituíram uma geografia nomeclatural, em que o aluno repetia nomes de lugares, por uma Geografia que levava o aluno a repetir práticas ditas “científicas” ou “práticas”. Podemos observar a seguinte imagem:


Fig.03.
Práticas de orientação geográfica no livro de Afonso Guerreiro Lima (1935).

Observamos, com esses exercícios de orientação geográfica expostos nas figuras 03, que ao mesmo tempo em que os livros se aproximam da realidade do aluno a partir do empirismo ao enunciar atividades relativas à casa, à escola e à cidade, por outro lado os exercícios parecem remeter ao enciclopedismo tradicional em que o aluno tenha que responder “onde aparece ou desaparece o sol” ou quando é questionado sobre “o que determina norte e sul”. Isso nos confere elementos que nos permitem conjecturar que as renovações ocorridas a partir da Reforma Francisco Campos, em que se assumiram pressupostos de uma educação ativa e “científica” por meio da Escola Nova e da Geografia Moderna, são renovadoras e ao mesmo tempo mantém marcas do enciclopedismo da pedagogia tradicional, demonstrando oscilações e contradições que são próprias da autonomia da disciplina e da constituição dos processos históricos e sociais.

Vale ressaltar que, no caso do livro de Afonso Guerreiro Lima, as chamadas “práticas” ou “aplicações” aparecem poucas vezes no corpo do livro e que em sua maioria se concentra na descrição de conteúdo. Obviamente que estamos na análise inicial dessas contradições, mas quais intencionalidades estão por trás dessas seleções de conteúdo e quais foram os alcances das renovações das “práticas de Geografia”? Acreditamos que temos um aspecto passível de aprofundamento em nossa pesquisa que será possível a partir de uma análise detalhada, que ainda está em processo de desenvolvimento.

Mas diante desses questionamentos e das evidentes oscilações e contradições desse processo histórico de “modernização conservadora”, ainda trazemos o seguinte exemplo:


Fig. 04
Conteúdo sobre a América do Sul explicitado no livro de Aroldo de Azevedo (1936)

O referido autor do livro explicitado na figura 04, Aroldo de Azevedo, é considerado por ISSLER (1973) e ROCHA (1996) como o autor que mais vendeu livros didáticos de Geografia no período de vigência da Reforma Francisco Campos, com mais de 1 milhão de livros vendidos no país considerando todas as suas obras e edições. Apesar de ter em vista que o mesmo considera em seu livro as “práticas de Geografia”, originárias da reforma educacional e dos movimentos da Escola Nova e da Geografia Moderna, ao analisarmos a obra, observamos que em nenhum momento o autor explicita, como no caso do outro livro analisado, as tais práticas, atividades ou exercícios.

O autor defende uma modernização do ensino de Geografia em seu prefácio, no entanto, essa modernização se concretizou na sua obra na materialização de uma descrição e análise científica das paisagens e regiões. Assim como observamos na figura 05, o livro se detém à caracterização com dados científicos da descrição da paisagem, com nomes de rochas e nomeclatura e altitude dos picos da América do Sul. Como o exemplar não possui exercícios, nos questionamos: ao substituir uma descrição que exigia do estudante a memorização por uma descrição de dados ditos “científicos” ou “modernos”, em que consistia a renovação tendo em vista que o ensino de Geografia continuava se detendo às descrições que agora eram de “natureza científica”? Mais um questionamento que acreditamos problematizar o avanço da nossa pesquisa.

Considerações finais

Com esse artigo, elucidamos pressupostos teóricos e documentais acerca da constituição histórica da Geografia enquanto disciplina escolar legitimada nos currículos e nas políticas educacionais brasileiras a partir da Reforma Francisco Campos (1931-32) refletindo acerca de suas oscilações, contradições, renovações e permanências no entremeio deste processo histórico-educacional.

Ao defendermos que a geografia escolar se consolidou nesse período diante de um processo de “modernização conservadora”, conjecturamos as contradições expressadas nas propostas curriculares e analisadas por diversos autores da área e pelos indícios explorados a partir de dois livros didáticos do período, considerados na análise. Nesse sentido, a Reforma Francisco Campos produziu marcas de discursos e conteúdos dúbios e duais nos manuais escolares de Geografia em seu período de vigência; esses conteúdos e discursos sinalizam oscilações no que tange a permanências de aspectos tradicionais de ensino em consonância com a presença de renovações metodológicas e discursivas, sobretudo as relacionadas aos pressupostos da Escola Nova e da defesa do Estado Nacional.

Acreditamos que esse pressuposto de “modernização conservadora” se configura como um aspecto ao qual nos propomos avançar diante de nossa pesquisa de doutorado, buscando contribuir academicamente para a discussão histórica da disciplina e levantando novos questionamentos.

Material suplementario
Agradecimentos

À FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)

Referências
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BRASIL, Ministério da Educação e Saúde Pública; Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. DECRETO N. 21.241: Consolida as disposições sobre a organização do ensino secundário e dá outras providências, Rio de Janeiro, 4 de Abril de 1932.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, 1990. p. 177-229.
CHOPPIN, Alain. O manual escolar: uma falsa evidência histórica. Tradução: Maria Helena C. Bastos. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 13, n. 27 p. 9- 75, Jan/Abr 2009.
DALLABRIDA, Norberto. A reforma Francisco Campos e a modernização nacionalizada do ensino secundário. Educação, Porto Alegre, v. 32, n. 2, p. 185-191, maio/ago. 2009.
ESCOLANO, Agustín Benito. Sobre la construcción histórica de la manualística en España. Revista Educación y Pedagogía. Medellín: Facultad de Educación. Vol. XIII, No. 29-30, (enero-septiembre), 2001.
ESCOLANO, Agustín. El manual como texto. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 3 (69), p. 33-50, set./dez. 2012.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais – morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 7ª reimpressão, 2016.
ISSLER, Bernardo. A Geografia e os Estudos Sociais. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Presidente Prudente, 1973. 253f.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-43, 2001.
LIMA, Afonso Guerreiro. Geografia Secundária – 1ª série. Porto Alegre: Livraria Globo, 1935.
PIZZATO, Maria Dilonê. A geografia no contexto das reformas educacionais Brasileiras. Geosul, Florianópolis, v.16, n.32, p 95-137, jul./dez. 2001 ROCHA, Genylton Odilon Rêgo da. A trajetória da disciplina Geografia no
SAVIANI, Dermeval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. 2 ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2008. (Coleção Memória da Educação).
Notas
Notas
1 Doutor em Geografia (2019) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP - Campus Rio Claro/SP). Graduado em Licenciatura em Geografia (2014) e Mestre em Educação (2016) pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM - Uberaba/MG). Professor da área de Educação e Geografia do Departamento de Sociedade, Educação e Conhecimento da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ. É vice-líder do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão Artesanias Geográficas e Educacionais (AGE/UFF) diegocarlos@id.uff.br.

Fig 01
Programa de ensino referenciado o livro de Aroldo de Azevedo (1936).

Fig 02
Programa de ensino referenciado no livro de Afonso Guerreiro Lima (1935).

Fig.03.
Práticas de orientação geográfica no livro de Afonso Guerreiro Lima (1935).

Fig. 04
Conteúdo sobre a América do Sul explicitado no livro de Aroldo de Azevedo (1936)
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