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Cidadania Infantil Ativa em Territórios de Exclusão Social

Active Child Citizenship in Territories of Social Exclusion

Ciudadanía Infantil Activa en Territorios de Exclusión Social

Maria João Pereira
Universidade do Minho, Portugal

Cidadania Infantil Ativa em Territórios de Exclusão Social

Sisyphus — Journal of Education, vol. 7, núm. 3, pp. 107-120, 2019

Universidade de Lisboa

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Recepção: 05 Julho 2019

Revised document received: 26 Outubro 2019

Aprovação: 28 Outubro 2019

Publicado: 31 Outubro 2019

Resumo: As crianças desempenham um papel fundamental na construção de conhecimento, tanto sobre si mesmas, como sobre os contextos em que se movem, possibilitando um maior entendimento e compreensão sobre como perspetivam as suas vidas, nomeadamente em contextos tão específicos como o bairro de habitação social.

Procurámos compreender, interpelar e mobilizar as crianças como agentes ativos, nos processos de atribuição de significado aos seus modos de vida, nos seus territórios de ação, perante a possibilidade de se assumirem como sujeitos dotados de uma ação significativa em tais contextos.

As crianças revelaram competências sociais de participação na análise, identificação e envolvimento na vida social, assumindo pontos de vista, identificando problemáticas, atribuindo responsabilidades e apresentando propostas com vista à sua resolução, revelando autonomia e protagonismo nas suas vidas. Embora sem o apoio do adulto não tenham conseguido dar continuidade à operacionalização da mudança, por eles proposta, modificaram atitudes e conquistaram um lugar de maior poder.

Palavras-chave: infância, bairro, participação, cidadania, inclusão.

Abstract: Children play a key role in building knowledge, both on themselves and on the contexts in which they move, enabling a greater understanding of how they approach their lives, especially in contexts as specific as the neighbourhood of social housing.

We sought to understand, question and mobilize children as active agents in the processes of meaning attribution to their ways of life in their fields of action, faced with the possibility of assuming themselves as subjects endowed with a meaningful action in such contexts.

Children shown social skills of participation in the analysis, identification and involvement in social life, assuming their own points of views, identifying problems, assigning responsibilities and offering proposals for their resolution, thus showing self-sufficiency and leadership in their lives. Although without adult support they could not continue to develop the change they initially proposed, they changed attitudes and achieved a place of higher power.

Keywords: childhood, neighbourhood, participation, citizenship, inclusion.

Resumen: Los niños juegan un papel clave en la construcción de conocimiento sobre sí mismos y los contextos en los que se mueven, lo que permite una mayor comprensión de cómo ven sus vidas, particularmente en contextos tan específicos como el vecindario de vivienda social.

Intentamos comprender, desafiar y movilizar a los niños como agentes activos en los procesos de atribución de significado a sus formas de vida, en sus territorios de acción, dada la posibilidad de asumir como sujetos con una acción significativa en tales contextos.

Los niños revelaron habilidades sociales de participación en el análisis, identificación y participación en la vida social, asumiendo puntos de vista, identificando problemas, asignando responsabilidades y presentando propuestas para su resolución, revelando autonomía y protagonismo en sus vidas. Aunque sin el apoyo del adulto, no pudieron continuar con la consecución del cambio que propusieron, cambiaron las actitudes y ganaron un lugar de mayor poder.

Palabras clave: infancia, vecindario, participación, ciudadanía, inclusión.

Fui mostrar a minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei-lhes se o meu desenho lhes metia medo. As pessoas grandes responderam: “Como é que um chapéu pode meter medo?” O meu desenho não era um chapéu. O meu desenho era uma jibóia a digerir um elefante.

Antoine de Saint-Exupéry, 1946, pp. 9-10

A Criança Cidadã com Voz Própria

O trabalho que aqui apresentamos resulta do estudo realizado no âmbito da tese de doutoramento “Participação das crianças em territórios de exclusão social: possibilidades e constrangimentos de uma cidadania infantil ativa”, cujo ponto de partida foi compreender, interpelar e mobilizar as crianças como agentes ativos, nos processos de atribuição de significado aos seus modos de vida nos seus territórios de ação, perante a possibilidade de se assumirem como sujeitos dotados de uma ação significativa em tais contextos, através de relações de pesquisa mais implicadas com as crianças.

O caminho construiu-se a partir da Sociologia da Infância e das suas premissas, mas também dos outros e do espaço onde se movem, neste caso, do bairro habitado e da escola frequentada, com o contributo e as referências da Sociologia Urbana.

A criança encontra-se inserida numa sociedade onde é, simultaneamente, sujeito ativo de direitos (Fernandes, 2005) e cidadão ativo (Sirota, 2001), dotado das competências necessárias para construir e dar voz à sua própria história e, consequentemente, à dos outros atores sociais que a rodeiam (Sarmento, 2000). Esta não se limita a interiorizar e reproduzir as aprendizagens que lhes são transmitidas e que faz a partir do mundo dos adultos e de tudo que a rodeia (Corsaro, 2011), ela também se apropria, interpreta e reinventa o espaço social que a envolve.

Sabemos que as crianças desempenham um papel fundamental na construção de conhecimento (Lansdown, 2001), tanto sobre si próprias, como sobre os contextos onde se movem, possibilitando um maior entendimento e compreensão sobre como perspetivam os seus mundos na medida em que, como atores sociais, observam, comentam e reagem aos que se movem no seu espaço de interação social (Sarmento, 2000).

Ainda que os primeiros e principais laços sociais se desenrolem através da família, o processo de socialização mobiliza valores, práticas e hábitos adquiridos através de diferentes atores e dos diversos espaços em que o indivíduo se move. O facto de a criança se encontrar inserida na sociedade não pode ser ignorado, na medida em que a infância é uma construção social, ou seja, transcende a sua componente biológica. Esta apresenta uma dimensão cultural que varia em função da sociedade em que se encontra inserida tratando-se, por isso, de uma variável de análise social que deve ser tida em conta, tal como o género ou a etnia (Prout & James, 1997), e que ajuda a melhor compreender os seus modos de vida.

Nos contextos de vida diários e quotidianos das crianças surgem possibilidades de criarem/alterarem e construírem relações (Jung, 2015), que devem ser analisados e tidos em conta, sobretudo quando pretendemos conhecer as possibilidades de uma cidadania infantil ativa. Na fase mais tardia da infância outros agentes de socialização desempenham o papel que, durante determinado período de tempo, esteve circunscrito à família, como os pares, a escola e outras instituições passam a contribuir para o processo de socialização secundária do indivíduo (Giddens, 2008).

Todas estas dinâmicas sociais acontecem num espaço que se assume como uma expressão da sociedade (Castells, 2002), ou seja, um contexto espacial e social que constitui um elemento de socialização determinante para o sujeito, pois absorve a informação que lhe chega através do local onde habita e das relações de sociabilidade que mantém com os outros. Os elementos sociais, espaciais, culturais, entre outros, permitem-nos, deste modo, compreender os territórios em que as crianças se movem, pois encontram-se “intrinsecamente relacionados entre si” (Jung, 2015, p. 724).

Tendo, como indicadores, os contextos espaciais e sociais, compreende-se porque o lugar da criança muda de acordo com o território que ocupa e do contexto em que se encontra inserida (Trevisan, 2007).

A compreensão das relações entre atores, instituições e grupos sociais (Grafmeyer, 1994) e o entendimento do espaço como expressão da sociedade (Castells, 2002) ajuda-nos a compreender que o bairro de habitação social, um território com características tão específicas, remete para modos de ser e estar diferentes dos experimentados em outros contextos pelas crianças.

A infância no bairro de habitação social assume variantes distintas das experimentadas em outros contextos, traduzindo-se em modos de ser e estar heterogéneos.

Os contextos sociais e espaciais devem ser tidos em conta, porque representam um quotidiano experimentado ou assistido por algumas das crianças que habitam e/ou se movem nestes territórios, contribuindo para a construção da sua identidade “num processo evolutivo contínuo, segundo uma sucessão de fases que podem variar em função da diversidade dos contextos sociais a que o indivíduo acede” (Marques, 2014, p. 23). A informação que a criança recebe do bairro proporciona-lhe uma perceção diferente da realidade social em geral (Leandro, Xavier, & Cerqueira, 2000).

O contexto social e espacial em que a criança vive representa um importante fator socialização, pelo que as relações de sociabilidade que ali são desenvolvidas têm importantes implicações na sua formação (Jung, 2015).

O bairro de habitação social é marcado por uma realidade que se traduz, frequentemente, em isolamento, estigma, exclusão e mesmo autoexclusão. Algumas residentes nestes contextos encontram-se expostas a situações de perigo, nomeadamente de negligência parental ou violência doméstica. Frequentemente têm percursos escolares pautados pelo fracasso, sustentados pelo desinteresse dos próprios pais pela escola e pela educação dos filhos.

Uma criança moradora no bairro de habitação social periférico vive um quotidiano e dispõe de recursos bastante díspares de uma criança residente no condomínio fechado de luxo (Leandro et al., 2000), tratando-se estas apenas algumas das diferenças e desigualdades sociais que atravessam a infância (Sarmento, 2005). A “diversidade de infâncias” (Marchi & Sarmento, 2017, p. 956) remete para as desigualdades sociais entre crianças, fruto de inúmeros fatores que resultam no desdobramento de muitas infâncias.

As crianças que vivem no bairro de habitação social são iguais a tantas outras, mas, também, muito diferentes pelos contextos espaciais e sociais em que se encontram inseridas e as influenciam nos modos de ser e estar, devendo ser tidas em conta na medida em que possibilitam uma melhor compreensão das suas ações (Bogdan & Biklen, 1994).

Assim sendo, o contexto espacial, económico e social que envolve estas crianças apresenta-se como um elemento determinante quando avaliamos o processo de participação.

Crianças Agentes Ativos na Investigação

As crianças são as maiores e melhores especialistas nas suas próprias vidas e concentram grande parte do conhecimento sobre os seus próprios mundos (Lansdown, 2001) contribuindo, assim, para a construção de conhecimento científico relevante em parceria com os adultos (Fernandes, 2009).

Sendo as crianças uma “fonte primária de conhecimento sobre suas próprias visões e experiências” (Alderson, 2005, p. 436), as suas representações permitem um maior entendimento sobre a sociedade, dando-lhes “voz e ação” (Fernandes, 2009), para que as suas palavras sejam reconhecidas pelos adultos e tenham impacto naquele contexto.

Deste modo, focámo-nos em privilegiar as “vozes, olhares, experiências e pontos de vista” (Delgado & Müller, 2005, p. 354) através das representações de um grupo de crianças sobre o bairro e a escola, bem como as propostas apresentadas sob uma perspetiva de mudança destes locais, com vista a tornar-se um lugar mais respeitador dos seus direitos, constituíram o ponto de partida de uma jornada de participação, questionamento e ação.

Procurámos fazer uma pesquisa em que as crianças tivessem voz própria, por acreditarmos que “seria o melhor ponto de partida para um estudo social sobre as vidas das crianças” (Komulainen, 2007, p. 13). A criança com voz própria assume um papel principal no processo de construção de conhecimento acerca de si, mas também dos outros e do espaço onde se movem, neste caso sobre o bairro que habita e a escola que frequenta, permitindo-nos conhecer as representações que faze do mundo que a envolve, nomeadamente como o perspetiva, com vista a tornar-se um lugar mais respeitador dos seus direitos.

Encarar as crianças como cidadãos dotados de voz própria, perfeitamente capazes de intervir na sociedade em que se encontram inseridos nós, adultos, estamos a reconhecer-lhes competências, viabilizando uma mudança perspetivada pelas próprias crianças. Consideramos que somente através desta legitimação é genuína a inclusão das crianças em processos promotores de transformação.

Assumimos as premissas do paradigma crítico e da investigação participativa com crianças (Lincoln & Guba, 2000), através de uma nova possibilidade de entender a investigação como uma realidade participada, marcada por processos partilhados entre investigadores e participantes da pesquisa, onde se valoriza uma ontologia alargada, que mobiliza renovadas ações para o tradicional pesquisador e investigado. A partir deste paradigma é fundamental considerar que a realidade é participada, bem como os significados que são co-construídos entre todos os participantes na pesquisa (Lincoln & Guba, 2000).

As metodologias foram concebidas de modo a envolverem os sujeitos da pesquisa de modo muito implicado e com influência no processo de organização e construção do conhecimento. Nesta investigação, o sujeito participa, ao mesmo tempo que constrói conhecimento e desenvolve ferramentas que lhe permite assumir maior protagonismo nos seus mundos de vida (Lincoln & Guba, 2000).

O recurso ao método da investigação participativa é muito utilizado sob a premissa de “conhecimento é poder”, tendo sido aplicada em contextos socialmente desfavorecidos com vista a investigá-los a, criticamente, analisarem e empreenderem ações coletivas com o objetivo de efetuarem mudanças construtivas (Pant, 2008).

Ao serem encarados como agentes ativos na investigação, os participantes tomam consciência dos seus quotidianos e fazem a análise das suas realidades, com o objetivo de as compreenderem com vista a agirem no sentido de mudarem/melhorarem essa mesma realidade: “A conscientização, que inclui o processo de ação e reflexão coletiva pelas pessoas, é um componente importante para alcançar o empoderamento” (Pant, 2008, p. 96).

O envolvimento participado com conhecimento, consciência e reflexão promove um empoderamento que favorece a mudança da realidade social em que os indivíduos se encontram inseridos e, nesta perspetiva, a investigação participativa é determinante no envolvimento dos indivíduos sob uma perspetiva de mudança, assente no conhecimento e na compreensão de uma realidade social sob a perspetiva da sua transformação.

A investigação qualitativa, através do método da investigação participativa, permite desenvolver uma relação participada com as crianças, fruto da diminuição das relações de poder com os adultos (Francischini & Fernandes, 2016), mas também da construção do conhecimento assente nas suas representações, nomeadamente da validação do conhecimento social produzido pela/na infância. Através da investigação qualitativa tornou-se possível planear, com e para as crianças, dinâmicas de investigação participativa, de intervenção e inclusão.

Ao longo de todo o processo de investigação adotámos uma série de medidas que procuraram salvaguardar todos os envolvidos no processo mas, também, dos dados que decorreram do mesmo. Consideramos que compete ao investigador uma reflexão ponderada sobre o seu papel e como ocupa um espaço e os momentos que, até então, nunca lhe pertenceram ou dos quais nunca fez parte.

Trata-se de respeitar os direitos e interesses de todos os envolvidos na pesquisa, sejam estes crianças e/ou adultos, apurando se tem um propósito sustentável e ponderando os benefícios e/ou constrangimentos que lhe possam estar associados, de modo a evitar qualquer tipo de dano em quem nela participa, identificando e prevenindo possíveis focos de risco para as crianças (Alderson & Morrow, 2011).

Os Instrumentos de Investigação – Trabalho de Campo

O trabalho de campo realizado, no âmbito deste estudo, teve a duração de cerca de dois anos e contou com a participação de um grupo de 38 crianças, entre os 9 e os 12 anos, distribuídas em dois anos letivos nas escolas EB/JI do Lagarteiro e EBS do Cerco, situadas no Bairro do Lagarteiro e Bairro do Cerco do Porto, respetivamente.

Grande parte das crianças que participaram no presente estudo provêm de uma condição social desfavorável e, por vezes, de situações continuadas de pobreza, exclusão e precariedade social. A maioria provem de famílias com poucos rendimentos e baixos níveis de escolaridade, algumas mesmo analfabetas e/ou com baixa literacia. As principais problemáticas com que estas famílias se deparam encontram-se interligadas e formam uma cadeia de condicionamentos que se refletem nos seus quotidianos.

Muitas destas crianças nasceram e cresceram em famílias socialmente vulneráveis – marcadas por ciclos de pobreza e exclusão social, em parte fruto da baixa escolaridade e qualificações precárias que dificultam a inserção no mercado de trabalho –, muitas vezes, marcadas pela ausência das figuras parentais.

Durante todo o processo investigativo foi privilegiado o diálogo com as crianças, com o objetivo de captar as suas perspetivas sobre os territórios que habitavam, sempre através de um processo em que a investigadora assumiu o papel de facilitadora que apenas medeia intenções (Pant, 2008).

Optámos por uma triangulação metodológica, tendo recorrido a diferentes métodos e/ou instrumentos, com vista a cruzá-los mas, também, a validar o mais possível a informação recolhida (Aires, 2011, p. 55). Ao optarmos por uma triangulação, ou seja, pela utilização de diferentes estratégias de investigação, procurámos recolher modos variados de representar um mesmo tema, sendo que “observar de muitos ângulos e muitas maneiras diferentes fornece-nos uma observação mais completa da parte do mundo social que está a ser investigada” (Graue & Walsh, 2003, p. 128). Procurámos, assim, garantir a compreensão profunda do tema em análise (Lincoln & Denzin, 2003).

Durante a investigação foram salvaguardados os direitos de todos os envolvidos no processo através do consentimento informado. Adultos e crianças foram informados sobre os objetivos, dinâmicas e procedimentos da pesquisa, nomeadamente sobre a não obrigatoriedade em participar, a garantia de anonimato e confidencialidade e, por fim, a devolução da informação.

Utilizámos diversas técnicas como a entrevista individual e coletiva, a mesa redonda, o desenho, a fotografia, o vídeo, o texto, entre outras práticas, que captámos em áudio e/ou vídeo e que, posteriormente, transcrevemos, analisámos e registámos através de notas de campo.

Ao longo deste processo o discurso oral e direto assumiu um grande destaque, mas também os comportamentos, os gestos, as atitudes, as expressões, entre tantos outros que alcançaram igual importância no decorrer da pesquisa, permitindo-nos ter acesso a informação que, através das técnicas acimas referidas, não seria facilmente acedida.

Com recurso a questionamentos, reflexões e diálogos procurámos construir, o mais possível, instrumentos de investigação em parceria com as crianças, tendo sempre em conta o recurso às ferramentas que considerámos melhor se adaptarem aos seus quotidianos.

Os instrumentos de investigação foram construídos em parceria com as crianças e traduziram-se em questionamentos, reflexões, diálogos aplicados em ferramentas diversas como entrevistas individuais e coletivas, textos, desenhos, fotografias e vídeos, notas de campo, observação, entre outras. No âmbito do trabalho de campo foram produzidos/recolhidos vários instrumentos e dados tendo sido, no total, realizados 115 encontros com as crianças, dos quais 130 foram entrevistas (100 realizadas pela investigadora e 30 realizadas pelas próprias crianças). Foram produzidos 165 desenhos pelas crianças, 386 imagens (333 fotografias e 53 vídeos) e, ainda, 165 diários de campo.

Os dados permitiram uma análise de conteúdo que gerou diferentes categorias e subcategorias de análise. As categorias de análise tornaram-se indicadores dos principais temas presentes nos documentos/dados, tendo sido atribuído um código a cada uma das unidades, representativo das categorias e/ou subcategorias do sistema, a partir do qual foi realizada a análise. Foi realizada uma análise qualitativa dos dados, de modo indutivo, sem confirmação de hipóteses.

Participação Ativa e Cidadã

A história remota da infância associava a criança a dimensões de dependência e submissão, resultantes da crença de que o adulto era superior. Desde então, ao longo dos tempos, muito foi mudando até terem sido conquistados documentos que nos mobilizam e exigem considerar a criança como um ser humano, detentor de direitos, nomeadamente direitos cívicos que asseguram e garantem uma participação da criança na sociedade em que se encontra inserida.

A imagem da criança invisível foi dando lugar à imagem da criança cidadã, que se foi construindo através da conquista de direitos e deveres numa sociedade à qual pertence e na qual pode e deve participar.

Ainda assim, existem constrangimentos relativamente à participação da criança e resultam, maioritariamente, de uma postura de usufruto limitado da cidadania ativa das crianças (Sarmento, 2006). Estes resultam, segundo alguns adultos, de caraterísticas que as tornam incapazes de exercerem uma cidadania consciente e ativa, como a idade, que se traduz em direitos limitados que as impedem de assumir as mesmas responsabilidades que aos adultos. Por diversos fatores, como a idade, são consideradas seres imaturos, necessitadas de cuidados e proteção, incapazes de gerirem as suas vidas (Sarmento, 2006).

Por outro lado, na medida em que a cidadania é encarada como uma forma de participação e envolvimento na sociedade pode considerar-se crianças cidadãs ativas todas aquelas que participam e são capazes de moldar os seus mundos (Ballesteros, 2016).

A importância da participação na infância prende-se com o contributo e impacto que as crianças possam alcançar com as suas vozes, a par do respeito para com as crianças e as suas opiniões, mas com o enorme orgulho que advém do facto de serem ouvidas (Hill, Davis, Prout, & Tisdall, 2004). No desempenho do seu papel de cidadãs, as crianças trabalharam com o objetivo de preencherem as suas necessidades (Ballesteros, 2016), revelando níveis de contentamento, autoconfiança e orgulho (Alderson & Morrow, 2011).

Através das suas representações, procurámos que se envolvessem na vida pública em que se encontravam inseridas, de modo a que pudessem aumentar o seu conhecimento sobre os temas que os envolviam, com o objetivo de se sentirem cada vez mais parte integrante de uma sociedade que também lhes pertence e, neste caso concreto, a micro sociedade que é o bairro de habitação social.

A participação é uma ferramenta privilegiada no combate à exclusão social através do trabalho de competências que possibilitem o desempenho de uma cidadania ativa e inclusiva (Santana & Fernandes, 2011). Ainda que a infância não seja a mesma em todos os tempos e lugares (Trevisan, 2007), as competências de cidadania desenvolvidas pelas crianças, em processos de participação, habilitam-nas para o desenvolvimento de uma cidadania ativa e proporcionam-lhes as ferramentas necessárias à transformação da sociedade em que se encontram inseridas, transformando-a num lugar mais respeitador dos seus direitos.

Aos poucos, as crianças foram dando voz às suas opiniões e perspetivas através de desenhos, fotografias, vídeos, entrevistas e grupos focais de que resultaram inúmeros dados permitindo-nos, assim, uma rigorosa análise dos temas por elas apresentados para discussão. Recorde-se que os dados resultantes da pesquisa participativa permitem retratar “de forma mais fidedigna a realidade das crianças” (Santana & Fernandes, 2011, p. 14).

Através destes dados, as crianças identificaram e deram a conhecer as suas ideias, nomeadamente como perspetivavam a mudança no bairro e na escola e quais os seus planos de ação com vista à operacionalização dessa mesma transformação.

Em diversos momentos da pesquisa, as crianças revelaram múltiplas competências na análise, identificação e participação na vida social dos contextos em que se encontravam inseridas, revelando uma consciência dos problemas sociais que as afetavam e para os quais apresentaram soluções.

Após a identificação de algumas problemáticas as crianças apresentaram propostas com vista à sua resolução (Vis, Holtan, & Thomas, 2011) e atribuíram responsabilidades. Neste processo, as crianças consideraram não existir uma hierarquia de identificações, dado que todos os tópicos eram importantes e se encontravam ligados por um fio condutor comum. O comportamento das pessoas conduzia a uma ação que, frequentemente, resultava em danos.

Uma participação ativa e cidadã proporcionou às crianças um novo olhar sobre o bairro e a escola com uma perspicácia acrescida mas, também, permitiu-lhes uma reflexão sobre si próprias, sobre os outros e, também, sobre os lugares que ambos ocupavam (Graham & Fitzgerald, 2010). Este seria o ponto de partida para começarem a ajustar os sistemas simbólicos responsáveis pela gestão dos seus espaços sociais (Sarmento, 2006), através da mudança de comportamentos.

A partir da identificação e reconhecimento das problemáticas e responsabilidades, as crianças organizaram-se no planeamento de ações com vista à sua resolução, criando diversos instrumentos participativos através dos quais procuraram intervir nos seus contextos de vida.

Durante esse processo, revelaram vontade e competências necessárias com o propósito de darem a conhecer as suas vozes, recorrendo a ferramentas de informação e divulgação, com o objetivo de se fazerem ouvir, assumindo os seus papéis de agentes participativos e ativos.

As crianças, durante todo o percurso, identificaram as suas principais preocupações relativamente ao meio que as rodeava, procuraram encontrar soluções que resolvessem essas mesmas questões e fizeram propostas concretas de ações que potenciassem uma mudança nas suas vidas e nas dos seus pares.

No processo de representação para a mudança, as crianças observaram, questionaram, analisaram e debateram, envolvendo-se e explorando assuntos dos quais resultaram ideias de ações concretas. Após a identificação das principais problemáticas e, supostamente, dos seus responsáveis, este grupo de crianças propôs diversas soluções para cada caso em concreto que, após uma votação, optou pela proposta mais votada. Este seria o ponto de partida para a operacionalização da mudança, nomeadamente para encontrar os parceiros na sua agilização (a escola e a Câmara Municipal do Porto eram as propostas apresentadas).

As crianças identificaram a degradação (mas também a ausência) dos equipamentos, tanto no bairro como na escola, e o comportamento, tanto de adultos como de crianças, como os principais fatores a apontar e a transformar nos seus contextos de vida.

Para a mudança perspetivada pelas crianças, a informação, nomeadamente com vista à sensibilização dos pares e angariação de dinheiro com o objetivo de construir equipamentos e assegurar a manutenção e limpeza dos existentes, surgiram como elementos chave neste processo do grupo.

O grupo mobilizou-se e recorreu a algumas iniciativas, tendo em vista o objetivo da participação ativa com vista à mudança. Desse modo realizou uma venda de produtos usados na escola para angariação de fundos, criou um jornal escolar para informar e sensibilizar os pares para as suas preocupações, realizou algumas ações de sensibilização na escola e um pequeno vídeo informativo e promocional. Estas foram apenas algumas das estratégias utilizadas pelas crianças com vista à mudança por elas aspirada.

De qualquer modo, o jornal talvez tenha sido o maior impulsionador da mudança, na medida em que se viria a revelar a ferramenta com maior popularidade e alcance.

Conclusão – Perspetivar a Mudança

Como referimos anteriormente, as crianças como agentes sociais assumem-se capazes de transformarem os mundos sociais em que se encontram inseridas (Qvortrup, 2010), nomeadamente através da representação e identificação de determinados problemas, sob uma perspetiva própria e não dos outros (nomeadamente dos adultos). Esta representação e identificação resultou em vontades e perspetivas de mudança, apresentadas pelas próprias crianças sobre o que consideraram ser necessário transformar nos seus territórios de vida (Checkoway & Richards-Schuster, 2003), neste caso específico, o bairro de habitação social e a escola.

Nestes contextos, as crianças revelaram competências sociais de participação e assumiram vozes de mudança com vista a conhecerem e compreenderem alguns dos problemas sociais para os quais apresentaram algumas soluções, tendo desempenhado um papel ativo e participativo no decorrer da pesquisa, dando a conhecer as suas perspetivas e significados relativamente aos seus modos de vida.

Através destes recursos procuraram operacionalizar a mudança na sua própria realidade social, mobilizando ferramentas de participação que resultaram em ideias que colocaram em prática, revelando competências ao identificarem, planearem e agilizarem processos que no sentido de se tornarem mais autónomas e protagonistas nas suas próprias vidas.

No caminho, as crianças depararam-se com constrangimentos que limitaram a intervenção por elas planeada, revelando-lhes que, sem o apoio do adulto, seriam incapazes de darem continuidade à mudança, ainda que esta tenha prevalecido nelas próprias como consequência do processo de participação em que se envolveram.

Uma participação ativa e cidadã possibilitou às crianças perspetivar a mudança nos seus contextos de vida, mas, também, para elas próprias, para os outros e para os lugares ocupados por ambos (Graham & Fitzgerald, 2010).

Não obstante a autonomia e o protagonismo que assumiram nas suas vidas, sem o apoio do adulto as crianças não conseguiram, como coletivo, dar continuidade à operacionalização da mudança proposta por elas proposta. O (des) poder das crianças é representativo dos constrangimentos da participação e apresenta-se na diminuição do poder de algumas crianças, dos quais fazem parte tensões entre crianças e adultos (Ballesteros, 2016), nomeadamente através da medição de forças existente entre ambos que remete, também, para o poder do adulto e para os constrangimentos à participação que estes provocaram.

Em alguns momentos, os adultos contribuíram para limitar as competências de participação das crianças, que procuraram encontrar o seu lugar de direito embora, muitas vezes, os adultos tivessem a primeira e a última palavra a dizer. O poder do adulto impôs-se, com alguma frequência, limitando o exercício de uma cidadania ativa na infância.

As relações hierárquicas de poder assinalaram-se através da presença física do adulto (Komulainen, 2007), mas também da autoridade que a sua figura representa (Delgado & Müller, 2005).

O papel assumido pelas crianças foi de cidadãos ativos na sua própria realidade social, procurando adaptá-la às suas necessidades, revelando competências e mobilizando ferramentas de participação de que resultaram ideias debatidas e, maioritariamente, colocadas em prática.

Aos poucos, as crianças foram dando provas das suas capacidades de identificação, planeamento e concretização tendo-se envolvido ativamente nos temas que as próprias optaram levar para discussão, em grande grupo, sempre com o objetivo de agilizarem a mudança por elas ambicionada. Foram aprendendo a ser autónomas e, de certo modo, a assumir o protagonismo que lhes é devido.

Ainda assim, as ações levadas a cabo pelas crianças no âmbito do estudo que aqui se apresenta foram, segundo as próprias crianças, em certa medida, limitadas pelo simples facto de serem crianças, por não reunirem as ferramentas necessárias para o conseguirem, ou seja, por não deterem o poder para operarem as verdadeiras mudanças na escola e no bairro. Sem o poder de decisão necessário à concretização das mudanças consideravam que os seus projetos, os que haviam idealizado e mesmo os que já tinham implementado, tivessem continuidade e dessem frutos… não sem esse poder, o poder do adulto.

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