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Subjetividades em Dívida: Formação e Sociedade de Controle
SUBJECTIVITIES IN DEBT: TRAINING AND CONTROL SOCIETY
Sisyphus — Journal of Education, vol. 5, núm. 1, pp. 89-100, 2017
Universidade de Lisboa

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Copyright (c) es propiedad de Sisyphus – Journal of Education. Sin embargo, alentamos que los artículos publicados en la revista se publiquen en otro lugar, siempre que se solicite el permiso de Sisyphus y los autores incorporen nuestra cita original y un enlace a nuestra página web.

Recepção: Dezembro , 17, 2016

Aprovação: Fevereiro , 16, 2017

Publicado: Fevereiro , 27, 2017

DOI: https://doi.org/10.25749/sis.10474

Resumo: O artigo apresenta uma discussão conceitual sobre a produção de uma dívida das subjetividades, em resposta aos excessos da sociedade contemporânea, gerando adoecimentos, ódios, ressentimentos, extenuante busca de formação, procura desmedida de trabalho, competição desleal por cargos e vagas, exposição pública exaustiva, entre outros problemas atuais a analisar. Pensar esses acontecimentos da atualidade se torna relevante e pode contribuir com várias áreas dos saberes, na medida em que interroga a história do presente, contando com Deleuze, Foucault, Arendt, Negri, Cocco, Arendt, Levy, Bauman e Castells, entre outros pesquisadores importantes da produção das subjetividades contemporâneas. Afirma-se como a formação continuada acrescida da precarização do trabalho e mercantilização das relações afetivas e sociais geraram sofrimentos e questões complexas difíceis de elaborar e lidar, no contemporâneo.

Palavras-chave: História, Subjetividades, Dívida, Controle, Capital.

Abstract: The paper presents a conceptual discussion on the production of a debt of subjectivities, in response to the excesses of contemporary society, generating illnesses, hatreds, resentments, strenuous search training, excessive demand for labor, unfair competition for positions and vacancies, exhaustive public exposure among other current issues to consider. Think these events of today is relevant and can contribute to various areas of knowledge, in that it interrogates the history of the present, with Deleuze, Foucault, Arendt, Negri, Cocco, Arendt, Levy, Bauman and Castells, among other researchers important production of contemporary subjectivities. It is stated as plus continuing education casualization of labor and commodification of affective and social relations generated suffering and difficult complex issues to develop and deal in contemporary.

Keywords: History, Subjectivities, Debt, Control, Capital.

Introdução

Esse artigo aborda teoricamente algumas pistas sobre a dívida no contemporâneo, enquanto processo de subjetivação, em uma prática de controle dos corpos e subjetividades, em intensos procedimentos de formação, empresariamento e culpa, no âmbito de um plano do cotidiano existencial. Trata-se de um artigo teórico, baseado em uma analítica das práticas cotidianas de subjetivação presentes na formação e no trabalho, na sociedade contemporânea.

A vertente histórica e social baliza a escritura em tela e se sustenta em interrogações da psicologia escolar, educacional, social, institucional e política, em conversações com a filosofia, a sociologia, a antropologia e a comunicação. Para tanto, parte-se de Deleuze, Foucault, Arendt, Negri, Cocco, Levy, Bauman e Castells, entre outros pesquisadores que trouxerem contribuições de grande importância, em uma conversa conceitual crucial e uma análise problematizadora do acontecimento subjetividades endividadas, trabalho precário e formação continuada.

Subjetivação é um processo heterogêneo, múltiplo e singular, que não cessa de acontecer e produz subjetividades, ou seja, modos de viver, de ser, de sentir, de pensar, de se relacionar e de agir. Esse processo é constituído por variações indeterminadas de encontros, ao acaso das práticas culturais, sociais, históricas, ecológicas, políticas, econômicas e educativas (Deleuze, 1992).

Na atualidade, em especial, a partir das duas últimas décadas em diante, segundo Deleuze (1992), a sociedade de controle passou a ganhar mais presença nos modos de viver e ganhou proeminência face às outras maneiras de organizar um campo de práticas, sendo movida pela dívida infinita, tanto no trabalho quanto na educação, na família, na saúde e na amizade. A busca por pagar o que nunca cessa de ser cobrado tem levado pessoas a sucumbirem aos processos de intenso sofrimento e, até mesmo, de adoecimento.

A culpa em não cumprir uma agenda extenuante vem como um dos efeitos de um arquivo das mágoas, guardadas e vivas enquanto signo das cobranças infindas de formação continuada, amigos não vistos e trabalho a entregar. Outro aspecto dessa sociedade é que as relações sociais, afetivas e educativas se transformam em empresa, marketing e compra e venda de serviços.

O controle dos corpos em meio aberto e a oferta de formação instrumental

Os novos controles são finos e rápidos, conforme Deleuze (1992), sendo realizados sem imposições, a partir de metas, publicidades, bônus, competições, prêmios, tempo acelerado e exigência de formação ininterrupta, em tempos de desemprego e perdas de direitos trabalhistas. Diante do crescimento do desemprego e do aumento de rigor para contratar por meio de escolarização longa, todos passam a receber sem parar uma avalanche de propaganda para formação permanente. A oferta da compra e venda de informação se dá por: folders, mensagens, cartas, ofertas permanentes de cursos, especializações, palestras, faixas, classificados nos jornais, e-mails, oficinas, venda de pacotes para capacitações e idas aos congressos.

O ensino das novas estratégias e táticas de empreendedorismo está a todo vapor nos últimos anos, pois quem perde ou não consegue vaga no mercado formal é culpado pelas grandes mídias e empresários como os que estão fora ou foram desligados do emprego porque não estudaram o suficiente e por não terem experiência. A perda de direitos trabalhistas e a exploração ampliada ocorrem paralelamente ao aumento da concentração de renda, do crescimento das corporações internacionais e da informatização das atividades primárias, secundárias e terciárias (Forrester, 1998).

Na virada para a década de 1990, as reformas neoliberais implementadas a partir do governo Collor e o cenário macroeconômico (recessão ou baixo crescimento da economia num contexto de intensa reestruturação industrial, juros elevados e abertura comercial com a intensificação da concorrência intercapitalista), contribuíram para a constituição de um cenário de degradação do mercado de trabalho com alto índice de desemprego total nas regiões metropolitanas e deterioração dos contratos salariais devido à expansão da informalização e da terceirização nas grandes empresas, visando reduzir custos. (Alves, 2009, p. 189)

O controle pressupõe saberes e poderes nas práticas de subjetivação em curso. Uma dinâmica ágil, móvel e centrípeta tenta controlar as forças centrífugas ao capital internacional em sua égide de tudo capitalizar. A circulação da informação em rede vem inflacionando as vidas, tomadas pelo mercado do conhecimento e transformadas em capital humano para empresas, famílias, escolas e amigos. A ideia de rede de contatos traz o utilitarismo para o centro das relações sociais, afetivas e educativas (Castells, 2001).

Foucault (2008) alerta para o fato de que todos os grupos sociais venham a se tornar mecanismos para o investimento subjetivo na esfera dos negócios econômicos e nas políticas vigentes, constituindo subjetividades empresariais, os empresários de si mesmos. Os relacionamentos passaram a ser fabricados como empresas lucrativas, em contratos de custo e benefício, funcionando desde o nível de aprendizado na educação primária, na família e pelas mídias televisivas, bem como nas disciplinas escolares sobre empreendedorismo.

Os vínculos sociais e afetivos entraram no cálculo econômico e político da política educativa e da administração gerencial da produção do excesso como capital (Bauman, 2004). O trabalho passa a ser muito mais geração de rentabilidade pela formação de empresas médias do que a venda da força do trabalhador, segundo Foucault (2008). Assim, a liberação de crédito e a assessoria para a formação de empresas pequenas bem como os empréstimos para financiamento estudantil ganharam expressão nas últimas décadas como parte da política neoliberal, na geração de renda e nas encomendas de abertura de microempresas (Gorz, 2005).

A renda se tornou modulada pelo chamado capital de conhecimento, forjado por uma prática de acordo com a qual quanto mais se estuda, se acumula títulos e certificados, mais valor imaterial teria a contabilidade do custo e benefício da formação, alimentando a criação de um mercado da educação continuada (Cocco & Vilarim, 2009). Dessa perspectiva, o trabalho se articula à educação permanente em formato de empresas catalisadoras do capital informacional e constitutivas do excesso a que se vêm submetidos aqueles que vislumbram algum sonho chamado sucesso ou acesso à renda (Gorz, 2005).

Mas para aceitar o excesso, todos devem abrir mão de amizades e amores ou capitalizá-los e utilizá-los em forma de moeda ou de rede de contatos ou, ainda, como parceiros de contrato, conforme analisou Foucault (2008), no neoliberalismo norte-americano. Para Linhart (2007), há uma desmesura nessa maneira de viver em que o excesso ganha vulto relevante e a dívida se torna a contrapartida de quem deseja saborear a empresa como um combustível necessário para quem anda em uma montanha russa contínua.

O excesso deixa o rastro de uma dívida impagável e extenuante, que ninguém pode cumprir, apesar de sempre prometê-lo nos planos de metas (Sennett, 2006). Por isso, Lazaratto e Negri (2001) denominaram essa modalidade de ação de trabalho imaterial e criticaram a entrada em cena do fator humano nas organizações empresariais, as quais ganharam grandes lucros com a negociação do conhecimento e inovação no mercado da novidade e “do agora”, apresentando resultados produtivos avaliados por diagnósticos de qualidade total.

A crise na educação, conforme Arendt (2000) tem uma relação com a perda de densidade nos estudos, em face da oferta superficial de informações, desligadas de sentido e repletas de imagens utilitaristas. A ausência de uma partilha como legado em prol do comércio e do empresariamento de informações tem como efeito um sujeito desgastado pelo excesso de conhecimento fragmentado e usado como recurso instrumental. A informação, apenas para a realização de concursos, provas, acesso ao ensino superior e para formar um sujeito da opinião, acaba por se tornar estratégia de opressão dos estudantes e educadores, simultaneamente, perpetuando dominações e preconceitos.

O legado dos saberes a partilhar perde a importância na sociedade de controle, a qual visa acumular capital sustentado na produção de conhecimento para o mercado neoliberal, forjando sujeitos empresários. Um ativismo da informação sem a vida contemplativa da meditação, segundo Arendt (2000), tem gerado processos autoritários de educação e trabalho, pois o tecnicismo promove a ausência do pensar como maneira de vida, o que implica fomentar práticas de insegurança, medo e terror, em um liberalismo utilitarista de corpos, mentes, corações e relacionamentos.

Forrester (1998), em relação ao uso da informação submetida às demandas do capital, já havia apontado como a precarização do trabalho iria desembocar em um crescimento imenso de desempregados lançados no mercado informal, culpabilizados pelas perdas de vínculos trabalhistas por justificativas a eles atribuídas como: falta de formação continuada, ausência de iniciativa e competitividade, pouca flexibilidade e criatividade. Essas explicações estariam arraigadas por preconceitos e racionalidades neoliberais, em um modelo gerencial de organização em que haveria uma quebra nos direitos dos trabalhadores e uma individualização das práticas coletivas de resistência.

Por isso, Kehl (2007) relata o aumento do acontecimento sofrimento psíquico por meio do ressentimento em função do sentimento de não pertença e abandono relacionados ao fato de estar fora do consumo, fora do mercado de trabalho, endividado e cobrado por mais e mais êxito, somada ainda a culpa imensa pela acusação de não ser esforçado o suficiente e não ter estudo necessário para ocupar uma vaga no mercado de trabalho.

Voltando a Foucault (2008), vale ressaltar o quanto ele destacou a mutação do trabalho formal remunerado pelo salário para o modelo informal com geração de renda, o neoliberalismo. Nessa dimensão de precarização, a educação foi alçada como motor da criação do sujeito econômico, empresário e, curiosamente, não é por acaso que acompanhamos muitas escolas, hoje, adotando disciplinas como marketing, empreendedorismo, voluntariado, terceiro setor e ética da competição em seus currículos, desde as séries iniciais da educação fundamental.

Ressentimentos e dívida social no controle da informação: resistências e multiplicidades

Uma prática de resistência na formação, na atualidade, é a crítica à educação não tecnicista, buscando uma perspectiva integral e inclusiva para todos, baseada na promoção de direitos, cujo alicerce é a possibilidade de pensar, ao contrário de acumular informação (Larrosa, 2014).

Ora, mas se há encomenda sem cessar para o endividamento por meio da informação, também há para a desaceleração e resistência política ao engodo do excesso de informação como um pré-requisito para a liberdade (Castells, 2013). As redes sociais foram agenciadas como uma trincheira de batalhas entre movimentos sociais, grupos variados, partidos políticos, empresas, grandes e pequenas mídias, enfim, se tornaram na última década espaço de disputas diversas: políticas, sociais, econômicas, subjetivas, ecológicas, históricas e culturais (Lèvy, 2007, 2009).

As resistências ganharam grande dimensão na internet porque as mídias tradicionais, sobretudos as televisivas e impressas permanecem fechadas em oligopólios de informação, sem fazer circular as diferenças econômicas, políticas e sociais, contribuindo negativamente para a sociedade com pautas antidemocráticas e marcadas pela lógica empresarial da formação do sujeito doutrinado por notícias pasteurizadas (Larrosa, 2014).

Assim, as resistências buscam a internet como veículo mediador de suas críticas e espaço para publicar vozes variadas, protestos, convites às manifestações, criação de blogs e sites de denúncias e expressão de textos fora do circuito editorial, acesso a outros discursos e mídias alternativas (Castells, 2013). É possível lembrar nesse ponto os estudos de Foucault (2004), em especial na aula inaugural do Collège de France A ordem do discurso. A interdição da fala, a desqualificação dos que falam, a circulação de alguns discursos em detrimento de outros foram alvo dos trabalhos realizados por Foucault, na Arqueologia do Saber (2009).

Aí que entra em cena a relação entre verdade e poder, pois a prática de publicar e fazer circular algo por veículos como editoras, mídias, internet, palestras e manifestos, por exemplo, é a expressão da idéia de Foucault de que não há saber sem poder, nem poder sem saber. O discurso é heterogêneo, múltiplo, disperso e não tem unidade, assim, o fechamento dos espaços de fala e publicação é uma tentativa de doutrinar e criar dogmas onde há singularidade e forças disruptivas (Foucault, 2004).

Essa discussão auxilia a argumentar este artigo porque as resistências na internet podem aumentar a circulação de muitos saberes anteriormente calados. Os efeitos dessa maior divulgação por meio de uma multiplicidade discursiva pode ganhar vulto em outros espaços como as ruas, as ocupações, as greves, a transmissão de entrevistas e imagens de vídeos das manifestações realizadas que não saíam nas grandes mídias (Darvey, 2014).

Ao mesmo tempo em que tais dissidências foram relevantes, ressentimentos e ódios passaram a ser expressos também em resposta a essa visibilidade das diferenças, explodindo em períodos recentes, por exemplo, no Brasil, desde 2013, com os movimentos de junho, antes da Copa das Confederações e, depois, na Copa do Mundo, em 2014 (Darvey, 2014).

A ampliação de meios de informação e a correlativa ampliação de vozes expressando-se trouxe como efeito um ódio que se disseminou pela explicitação de tensões de classe, de raça/etnia, de escolaridade, de posições políticas, de sectarismos etnocêntricos entre regiões e estados brasileiros, em particular na campanha das eleições para presidente da república, no segundo semestre e 2014, no Brasil. Vieram à tona sentimentos e pensamentos primários, marcados pela intensa mágoa e disputa violenta (Sorj, 2004).

Os ressentimentos envolvidos em anos, décadas e séculos de silenciamento e abafamento das tensões explodiram em violências, ataques à democracia, tentativas de fragilizar políticas públicas e até mesmo colocar em cena estratégias militares e criar leis impeditivas das manifestações nas ruas e na internet, caracterizando-as como crime de terrorismo, por exemplo, com base em no Projeto de Lei da Câmara 101/2015 recentemente aprovado no senado.

Há, nos últimos anos, um conjunto significativo de lutas em jogo, disparadas por movimentos sociais variados, tais como: críticas à precarização do Sistema Único de Saúde (SUS), reivindicações trabalhistas, lutas pela terra e por moradia, movimentos pela educação de qualidade e pela desaceleração da produtividade na universidade, manifestações por transportes dignos e com preços acessíveis, denúncias contra gastos em grandes eventos e contra a especulação imobiliária nos bairros e cidades em que se realizaram esses eventos internacionais. Mas outras se somavam como a luta contra barragens, favoráveis à reforma política, pela democratização da comunicação brasileira, de crítica ambiental e contra o genocídio de povos negros e indígenas etc (Darvey, 2014; Wagner, 2010).

A dívida social de cumprimento e implantação de garantias fundamentais de direitos passou a ser mais gritante do que as dívidas do conhecimento instrumental, difundidas nas grandes mídias e propaladas na publicidade empresarial (Agamben, 2015). Foi colocado em cena um vetor diagonal, deslocando os bloqueios da palavra social e criando passagens para expressões de uma educação e de um trabalho do pensamento crítico radical enquanto tática de resistência à escolarização aprisionada, nas encomendas da formação do capital humano, controlando corpos e subjetividades (Larrosa, 2014).

No Brasil, nos últimos anos, as brigas entre partidos políticos vão além de legendas e concepções de Estado, trazem preconceitos, discriminações, medos, inseguranças, interesses, dominações e opressões históricas, presentes e não equacionadas em todo o período republicano e, algumas, do modelo aristocrático imperial e até mesmo da colonização do país (Sorj, 2004). Atualizações se colocam e se materializam nesse campo minado e tenso, levado aos extremismos nas revoltas que podem a qualquer momento desembocar em guerra civil.

Considerações finais

A crise global da educação, da cultura e do trabalho dá um tempero a mais nesse caldeirão fervilhando, prestes a derramar o caldo em situações de violência extrema. Ao invés da resposta do Estado e das grandes mídias ser a de uma abertura ao diálogo, contrariamente, reformam currículos escolares, retirando matérias de crítica social, como a filosofia e a sociologia, patrulhando a difusão da educação libertária, diminuindo as verbas drasticamente das políticas públicas, acirrando a censura às diferenças nas pautas jornalísticas e anunciando reformas com perdas incisivas de direitos na educação, na saúde e no trabalho (Wieviorka, 2008).

As subjetividades da sociedade da informação podem ser entendidas como formadas pela opinião, veiculadas por meios midiáticos e orientadas a se divertir. Tendem a ser dispersas, trazendo dificuldades enormes de concentração em atividades escolares tradicionais, até mesmo na escrita de uma redação e na leitura de um livro. A aceleração da informação anda juntamente com a velocidade da economia e das transformações tecnológicas, acionando uma lógica mercadológica, baseada nos controles difusos e no empresariamento das práticas educativas (Sennett, 2006).

O mercado com seu conjunto de empresas imprime um estilo de vida consumidor, empresarial e vendedor de mercadorias, nas prateleiras escolares. Assim, evidencia que as escolas tornaram-se empresas que realizam negócios, buscam lucros e clientes, ensinam o empreendedorismo aos alunos e os ajudam a expressar suas opiniões, no acúmulo de informações superficiais e pouco concatenadas, sintetizadas e analisadas com algum nível de densidade. As conexões estabelecidas pelos novos aparatos biotecnológicos e do marketing aplicado aos negócios materializam as aspirações de uma sociedade empresarial, racista, vivendo em redes de consumo, coisificação e dispersão, convivendo com níveis crescentes de informações arquivadas e partilhadas (Sibilia, 2015).

Hoje, há um campo farto de pedagogias das competências voltadas para utilitarismos e pragmatismos, os quais visam dirigir a educação na esfera do mercado e formar sujeitos do conhecimento bancário, ensinando maneiras de conviver, saber, de aprender e trabalhar em formatos mais rápidos e flexíveis, propondo a aquisição veloz de informações com pouco questionamento. Uma escola produtivista promove como instituição formadora maior investimento na educação escolarizada, em menor tempo, para polivalência e criatividade por meio do uso massivo de novas tecnologias de ensino e aprendizagem, concebidas para a reforma do sistema educacional, na racionalidade da gestão gerencial, denominada de qualidade total (Frigotto, 1984).

Deleuze (1992) ressaltava já o quanto as instituições de controle tentam fazer reformas, ainda disciplinares, mas falham o tempo todo, pois não conseguem lidar com os fluxos ágeis dos controles finos e ondulantes do capitalismo especulativo e da financeirização mundial. A encomenda de excelência na gestão por qualidade total tem trazido para as políticas educacionais competições desenfreadas entres docentes, pesquisadores, estudantes, profissionais de assessoria, prestadores de serviços particulares e a incorporação da linguagem do mercado na administração escolar e universitária, cada vez mais absorvida por um vocabulário da economia política neoliberal e pela lógica do empreendedorismo utilitarista como gramática educativa e produtiva (Bueno, 2003).

Nesse âmbito, vale destacar o crescimento do adoecimento docente e estudantil, o crescimento do assédio no trabalho, em função de ressentimentos guardados nas relações cada vez mais desgastadas pela competição desenfreada e pelo produtivismo na carreira. A dívida docente e dos educandos parece somente aumentar indefinidamente e qualquer esforço para saná-la parece algo impossível e muito distante face às metas traçadas de comparação entre os indicadores da produção internacional. Diante da ausência de uma meta fixada, todos estão sempre em busca de superar-se e de superar o outro. A dívida se torna assim impagável porque está assentada na lógica do sem limite (Lazzaratto & Negri, 2001).

O ódio, os ressentimentos e as dívidas impagáveis vão minando as relações sociais e afetivas entre colegas de trabalho e entre os estudantes de tal modo que explodem em práticas de judicialização, medicalização e criminalização dos efeitos disparatados de tamanha crise de confiança e compromisso na reciprocidade e solidariedade, nas políticas educativas, no presente. Nesse aspecto, fica patente a afirmativa crítica de Paulo Freire (1987) à pedagogia da opressão, que já apontava para os problemas da educação bancária em seus efeitos desastrosos no que tange à saúde mental e coletiva, ao contexto da gestão do trabalho, às relações familiares e de amizade, em uma cadeia de efeitos em cascata de sofrimentos intensificados pela precarização dos direitos e aumento sistemático das pressões por maior produção.

A tendência à ampliação do carreirismo anda lado a lado com práticas de extrema burocracia enrijecida e vai dando o tom, assim, às vertentes autoritárias de gestão do trabalho e da educação, marcadas pelo ódio, concomitantemente à racionalidade do mercado neoliberal, o que constitui um paradoxo, na atualidade, pois a burocracia diminui a liberdade, flexibilidade, polivalência, criatividade, formação continuada e inovação, todas elas ferramentas que funcionam como mantras neoliberais.

O impedimento da circulação de uma variedade de vozes e rostos nos espaços de comunicação, educação e trabalho tem contribuído para a censura da crítica social e política, gerando silenciamento da palavra social, conforme destacou Lapassade (1983). Toda burocracia autoritária tende a silenciar a diferença e fechar os canais da palavra social circulada por vários veículos e em muitos equipamentos e grupos sociais.

Arendt (2000) registrou a importância da democracia participativa para mediar tensões sociais e práticas de violência. Ora, se os canais democratizantes se fecham em prol do produtivismo e dos interesses de grandes corporações empresariais, oligopólios são constituídos e o princípio da concorrência caro ao neoliberalismo se fortalece. Conforme Linhart (2007), instalou-se um paradoxo do aumento de produtividade utilitária em contraponto à perda de liberdades e ao aprisionamento de marcas, a qual domina os mercados e diminui a circulação de informações, consumo, bens e venda dos serviços.

Trata-se de uma biopolítica, da análise do racismo de Estado e da sociedade atravessando a educação e as políticas de geração de renda. Se o livre mercado seria um princípio em um ponto, o Estado regulamentador do mercado e pouco financiador das políticas sociais ganham vulto na judicialização, na medicalização e criminalização social generalizada, segundo Foucault (2008). Essas práticas são resultantes de uma justiça ressentida, vingativa, baseada no castigo e na culpa. A indignação e o ódio têm ligação com mágoas, amarguras, raiva guardada, por longo tempo. A subjetividade endividada é reativa, reage face ao caldeirão de ressentimentos ao qual está subjugada, ruminando a dor não sarada (Ferraz, 2015).

Uma subjetividade presa aos detalhes e dispersa no pensar, inquieta e incomodada insistentemente pela mágoa, pela raiva e pela vontade de saber mais e mais vivencia um sentimento de culpa absurdo pelas dívidas não quitadas com a formação continuada e frente à quantidade de informação a que não teve acesso. Fora a disputa pelo acesso à educação bancária e ao sentimento de dívida, vigora uma perspectiva de memória esquecida, deletada pela coisificação dos corpos e do conhecimento, cujos sentidos foram perdidos e abandonados em prol da visão de mercado na educação e no trabalho. Verbos como: deletar, descartar e desapegar se tornaram algo recorrente nos processos de subjetivação contemporâneos, em que o legado do conhecimento como memória de uma sociedade é banalizado e consumido superficialmente, enquanto se valoriza enlatados a comer e a defecar sem nada absorver de precioso a não ser informações fragmentadas para concursos e gerenciamento de arquivos capitalizados (Ferraz, 2010).

Se por um lado o capital humano ganhou destaque, por outro as subjetividades ficaram restritas às ofertas do capitalismo mundial integrado, articulador de corporações e do capital financeiro especulativo. A forma empresa de vida é impedida pelo mecanismo que a incentiva, ao esbarrar com as agendas de bancos, organismos e conglomerados internacionais articulados nos processos de mundialização da economia, da cultura e da informação (Bauman, 1999).

Em Amor líquido, Bauman (2004) assinala a perda de compromisso afetivo e o esgarçamento dos laços de confiança e vínculos de reciprocidade na contemporaneidade. A descartabilidade pela liquidez dos relacionamentos, os quais passaram a ser cooptados pelas dívidas da informação e pelos ressentimentos do consumo e empresariamento da vida, se tornou um acontecimento a considerar analiticamente com atenção, no presente, pois a educação e o trabalho demandam vinculação, coletividade, solidariedade, reciprocidade; excluídas de muitas das práticas pedagógicas, obrigando a pensar em como agir nessas dimensões quando elas inexistem ou estão em extinção. Existiria ainda educação e trabalho sem relacionamento? Em que medida os laços foram transformados em liquidez e a educação e o trabalho foram minados enquanto referências sociais e culturais, hoje?

Referências

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