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O drama natalino do Círio de Nazaré: Investigando a performance do mito do eterno retorno e o inconsciente coletivo da maior procissão católica do planeta
Heraldo Elias Montarroyos
Heraldo Elias Montarroyos
O drama natalino do Círio de Nazaré: Investigando a performance do mito do eterno retorno e o inconsciente coletivo da maior procissão católica do planeta
El drama navideño del Cirio de Nazaret: Investigando la performance del mito del eterno retorno y el inconsciente colectivo de la mayor procesión católica del planeta
The Christmas drama of the Círio de Nazaré: Investigating the performance of the myth of the eternal return and the collective unconscious of the greatest catholic procession of the planet
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 5, núm. 2, pp. 75-114, 2018
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo: Pesquisa antropológica sobre a procissão do Círio de Nazaré; investiga a realidade religiosa vivida pelos devotos usando uma estrutura teatral, o auto, que dramatiza ao ar livre as principais fases da biografia de Nossa Senhora de Nazaré, incluindo o seu nascimento, vida e morte descritos nos documentos conhecidos como apócrifos. Foi utilizada a teoria do filósofo Mircea Eliade fundamentada no “mito do eterno retorno” que interpreta o conteúdo natalino da procissão e a teoria analógica do Teatro apresentada pelo antropólogo Victor Turner que serve para descrever e analisar a performance dos devotos nos diversos rituais do Círio de Nazaré. O resultado da pesquisa mostra que existe um teatro devoto no Círio e impactos significativos na interpretação da maior procissão católica do planeta quando se utiliza a biografia apócrifa de Maria como modelo de observação da realidade.

Palavras-chave:Círio de Nossa Senhora de NazaréCírio de Nossa Senhora de Nazaré,Arquétipos do CírioArquétipos do Círio,Teatro DevotoTeatro Devoto.

Resumen: Investigación antropológica sobre la procesión del Círio de Nazaret; investiga la realidad religiosa vivida por los devotos usando una estructura teatral, el auto, que dramatiza al aire libre las principales fases de la biografía de Nuestra Señora de Nazaret, incluyendo su nacimiento, vida y muerte descritos en los documentos conocidos como apócrifos. Se utilizó en ese sentido la teoría del filósofo Mircea Eliade fundamentada en el “mito del eterno retorno” que interpreta el contenido navideño de la procesión y la teoría analógica del Teatro presentada por el antropólogo Victor Turner que sirve en ese caso para describir y analizar la performance de los devotos en los diversos rituales del cirio de Nazaret. El resultado de la investigación muestra que existe un teatro devoto en el Cirio e impactos significativos en la interpretación de la mayor procesión católica del planeta cuando se introduce la biografía apócrifa de María como modelo de observación de la realidad.

Palabras clave: Círio de Nuestra Señora de Nazaret, Arquetipos del Círio, Teatro Devoto.

Abstract: Anthropological research on the procession of the Círio de Nazaré; investigates the religious reality lived by the devotees using a theatrical structure, the self, that dramatizes in the open the main phases of the biography of Our Lady of Nazareth, including its birth, life and death described in documents known as apocrypha. The theory of the philosopher Mircea Eliade, based on the “myth of the eternal return” which interprets the Christmas content of the procession plus the analogical theory of the Theater presented by the anthropologist Victor Turner, is used in this sense to describe and analyze the performance of the devotees in the various rituals of the Círio de Nazaré. The result of the research shows that there is a devout theater in the Círio and significant impacts on the interpretation of the biggest catholic procession of the planet when introducing the apocryphal biography of Maria like model of observation of the reality.

Keywords: Círio of Our Lady of Nazaré, Archetypes of Círio, Devout Theater.

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Artigo

O drama natalino do Círio de Nazaré: Investigando a performance do mito do eterno retorno e o inconsciente coletivo da maior procissão católica do planeta

El drama navideño del Cirio de Nazaret: Investigando la performance del mito del eterno retorno y el inconsciente colectivo de la mayor procesión católica del planeta

The Christmas drama of the Círio de Nazaré: Investigating the performance of the myth of the eternal return and the collective unconscious of the greatest catholic procession of the planet

Heraldo Elias Montarroyos
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Brasil
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 5, núm. 2, pp. 75-114, 2018
Universidade Federal do Espírito Santo
Introdução

Essa pesquisa antropológica pretende analisar o conteúdo e a performance da maior procissão católica do planeta, o Círio de Nazaré, desenvolvendo duas teorias metodológicas interligadas.

A primeira teoria analisa o conteúdo dos principais momentos do Círio, baseada na fenomenologia do especialista em Religião e também filósofo Mircea Eliade, e tem como desafio identificar a presença ou ausência de determinados conteúdos universais ou arquétipos na essência dos fenômenos regionais aqui selecionados, aplicando especialmente a técnica da introspecção filosófica.

Eliade (2002, 2001, 1992, 1979) afirmou nesse sentido que os rituais que buscam “voltar atrás” no tempo, praticado por culturas humanas diversas, mobilizam criações exteriores como poesia, jogos, espetáculos e cerimônias religiosas. Entretanto, independentemente da forma cultural, o ato de “voltar atrás” sempre desempenha nessas criações uma função terapêutica no indivíduo, apontando um caminho de cura existencial que desperta a esperança de renovação do Mundo e também da vida coletiva mediante a repetição da ideia de Criação do Cosmos.

Eliade explicou também que o retorno aos braços da Divindade é uma possibilidade de renovar e de regenerar a existência atual da pessoa, desde que haja fé e perseverança no indivíduo. Mas é importante considerar que quando o Homem religioso tenta fugir da historicidade nesse momento, ele não abdica de sua qualidade de ser humano para se perder em um suposto estágio de “animalidade”.

Eliade ressaltou, ainda, que a partir da dramatização social, carregada de sentimentos transcendentes, o Homem religioso reencontra a linguagem sagrada e a sensação de ter redescoberto o paraíso perdido. Contudo, esse retorno não é um ato de alienação. Melhor do que isso é uma revitalização dos desejos humanos sublimes que são canalizados para a concretização de novos projetos sociais, destacando-se principalmente a motivação para se realizar grandes mudanças políticas do Mundo em que mora o Homem religioso, apoiado no que há de melhor do passado mítico.

A segunda teoria dessa pesquisa utiliza a técnica da analogia com o Teatro, visando reorganizar a performance dos devotos do Círio numa sequência que tem começo, meio e fim. Essa teoria segue a recomendação do antropólogo Victor Turner (CAVALCANTI, 2007, p. 128), que “ao formular a noção de Drama Social, tinha em mente a explícita comparação da estrutura temporal de certos tipos de processos sociais com aquelas dos dramas no palco, com seus atos e cenas, cada um com suas qualidades peculiares e todos caminhando para um clímax”. Como exemplo, o estudo realizado sobre a aldeia Ndembu pelo antropólogo Turner considerou o reencontro social dos nativos em seus rituais de forma semelhante a um drama grego “no qual assistimos à impotência do indivíduo humano diante do destino: mas, nesse caso, o destino são as necessidades do processo social”.

A teoria da performance do antropólogo Turner considera que diferentes personalidades e pessoas comuns ocupam posições sociais variadas na comunidade, mas entram em conflito simbolicamente durante a dinâmica dos rituais (CAVALCANTI, 2007, p. 130). No fim do processo ritual, espera-se que a ordem pública seja recomposta; e embora os conflitos estruturais da comunidade continuem os mesmos, serão novamente rediscutidos e redimensionados pelos agentes sociais no plano simbólico em futuros rituais. Ou seja, os rituais não escondem os conflitos, mas ao contrário, os revelam no plano simbólico, ainda que seja de forma inconsciente.

Adaptando essa teoria analógica ao estudo do Círio de Nazaré, desenvolve-se o modelo do auto teatral, pretendendo sistematizar ou reorganizar a etnografia religiosa da maior procissão católica do planeta, utilizando os apócrifos “marianos” como conteúdo da encenação. O ponto de partida para usarmos esse conteúdo extraoficial foi inspirado na premissa histórica relacionada com a Natividade de Maria, que tradicionalmente considera-se foi no dia 8 de setembro, informação essa que não consta nas páginas dos quatro Evangelhos da Igreja, mas foi decisiva na instituição do Círio de Belém do Pará, no dia 8 de setembro de 1793.

A técnica da analogia resgata nessa pesquisa não apenas a universalidade, a cristandade, a catolicidade e a regionalidade da natureza natalina-mariana do Círio de Nazaré, mas também descobre um dado invisível ao senso comum que é a existência de um teatro devoto mariano, um auto popular no Círio, verificável sob determinadas pré-condições teórico-metodológicas ou programáticas onde são reencenados os episódios principais da biografia de Nossa Senhora de Nazaré, a Mãe de Jesus, em torno do tema preponderante da “Natividade”.

A analogia também suscitou questões intrigantes, especificamente: qual é o impacto (positivo ou negativo) que os apócrifos “marianos” exercem sobre a interpretação tradicional do Círio? É conveniente adotá-los como instrumento de observação da realidade? A aplicação desses documentos revela algo novo na etnografia da procissão? Esses documentos tornam a descrição do Círio mais densa e mais rica de aspectos folclóricos e religiosos?

Análise da Performance

A analogia pode desempenhar duas funções heurísticas relevantes: descritiva e criativa. Particularmente, a função criativa estimula a solução de problemas já existentes, identifica novos problemas e sugere a elaboração de novas hipóteses (JUSTI; MENDONÇA, 2016).

Justifica-se o uso da analogia nas Ciências Humanas quando se pretende conhecer algo complexo e estranho, usando-se como roteiro algo que é já conhecido, experimentado e familiar ao pesquisador.

A analogia considera que existe uma aparente familiaridade entre dois fenômenos ou objetos de estudo. Finalmente, sendo bem-sucedida, ganha solidez de tal forma que os elementos participantes da relação analógica fazem o leitor crer que existe uma unidade perfeita e indissolúvel entre eles.

Até certo ponto, a técnica da analogia se baseia no raciocínio comparativo e privilegia semelhanças entre certo modelo e fenômeno social; além disso, é uma fonte alternativa de descoberta de novos dados, pois ao reorganizar as informações da pesquisa possibilita a visualização de traços originais e diferentes do objeto estudado.

Segundo Cavalcanti (2007, p. 130, 133), “a analogia entre a vida social e o drama/teatro há muito tempo já estava disponível nas ciências sociais, tanto na teoria ritual do drama quanto na ideia da vida como um teatro com o desempenho de papéis por atores sociais”. Nesse sentido, “ações podem ser vistas como uma prova de força entre interesses conflitantes de pessoas e de grupos que tentam manipular, cada qual em seu próprio benefício, a rede de relações sociais estruturais e circunstanciais”. Por essa razão, “esses processos sociais revelariam outra dimensão embutida na metáfora dramatúrgica, aquela do embate entre os homens que abre um campo de alternativas possíveis para a ação”.

Do ponto de vista metodológico, Cavalcanti (2007, p. 135) chamou a atenção, ainda, para o fato de que no modelo do antropólogo Turner “(...) os dramas sociais analisados são necessariamente, narrativas sobre ações, ou seja, as ações propriamente ditas foram objeto de uma transposição ficcional, e existem na forma de narrações idealizadas e ordenadas por nosso autor”.

Explicou a analista Cavalcanti que de um lado, do ponto de vista do nativo, “o processo de acusação interno à aldeia, que sempre se segue à irrupção da crise inauguradora de um drama qualquer, é ele mesmo uma análise e autoanálise da conduta dos atores/personagens”.

Do ponto de vista metodológico, de outro lado, “o autor/antropólogo organiza essas narrativas e ações na sua própria narrativa de um drama revelador das razões estruturais implícitas nos conflitos explicitados pelas acusações, defesas e contra-acusações que movimentam a trama de ações”.

A união desses dois ângulos da realidade constitui finalmente “uma descrição de um processo social em movimento, um modelo dinâmico de sociedade em que ação relacional, reconstituída e apresentada de forma dramática, é interpretada dentro dos princípios da estrutura social”.

No esquema traçado por Turner, o drama social observa quatro fases características 1-quebra de uma regra ou valor; 2-crise; 3-ação reparadora; 4-reintegração ou reconhecimento da cisma.

Desse modo, segundo o que analisou Cavalcanti, “esse percurso fica repleto de experimentação subjetiva, afetiva e cognitiva, dos princípios estruturais conhecidos pelos personagens/atores sociais”. Por isso, “no drama social, não se revelam apenas os focos de tensão da estrutura social, mas constitui-se também um lugar de possível reflexão, análise e autoanálise e de transformação conceitual e interior da pessoa Ndembu em seus relacionamentos”.

Finalizando, Victor Turner “narrou o desenrolar de ações como uma engrenagem natural de comportamentos”; mas “é preciso notar que à certa altura dos relatos, Turner entra na cena dramática por ele montada” (CAVALCANTI, 2007, p. 135).

O antropólogo perde então “a distância analítica da direção da sua peça e passa a atuar na cena como mais um de seus personagens, e assim o autor-dramaturgo começa a analisar possíveis desdobramentos futuros dos conflitos” (CAVALCANTI, 2007, p. 134).

Auto Religioso

O auto é uma peça teatral originalmente realizada ao ar livre. Surgiu na época medieval abordando temas religiosos e profanos, contendo partes declamadas, bailados e cantos, geralmente acompanhados por pequenos conjuntos musicais (MORAES, 2006).

Um auto religioso tem um prólogo que diz o que acontecerá; depois, desenvolve-se a peça propriamente dita que é dividida em jornadas que percorrerão certas áreas dentro e fora da Igreja; por último, vem o Epílogo que resumirá os acontecimentos e convidará o espectador a voltar de novo a assistir à próxima encenação.

No século XVI, os missionários jesuítas, entre eles, o jovem padre José de Anchieta, utilizaram o auto como estratégia de evangelização dos indígenas, repassando mensagens religiosas através de uma linguagem lúdica e com poucos rebuscamentos estilísticos a fim de serem transmitidos facilmente os ensinamentos fundamentais da catequese.

Na prática, essa estratégia servia como elemento apaziguador das diferenças sociais entre nativos e colonizadores que se igualavam, temporariamente, na mesma animação pública; além disso, com essa prática, ensinava-se a língua geral inventada pelos missionários no Brasil, e estimulava-se os nativos a se converterem ao Cristianismo com a exibição de quadros representando o Inferno e o Satanás.

Nos primórdios da colonização brasileira, segundo a historiadora Laura de Mello e Souza (1994, p. 100), a teatralização jesuítica nas missas acontecia com a mesma frequência em que os índios “iam tangendo e cantando folias a seu modo, ao som de maracás, berimbaus, taquaras”.

No começo da colonização, o auto inaugurou a atividade teatral no Brasil, sendo o mais famoso desse período “O auto das onze mil virgens”, escrito por José de Anchieta, em 1583, dedicado aos padres Cardim e Gouvea, que contou com a participação entusiasmada de todo o povo de Salvador, então capital do Brasil, numa espécie de tragicomédia inspirada na vida de Santa Úrsula e na lenda europeia das onze mil virgens, chegando a ser representada cinco vezes na Bahia, entre 1583 e 1605.

Na criação literária do padre José de Anchieta, ainda no Brasil-colonial, o sagrado se misturava com os elementos profanos, e esse tipo de relação aumentou expressivamente devido à abertura criativa ou poética do enredo e da proposta da peça ao ar livre.

As narrativas escritas por Anchieta incluíam embarcações; salvas de arcabuzes; gritos e uivos de índios; flautas e percussões; e até assombrações da floresta. Tudo isso era assistido prazerosamente pelos colonos, índios e autoridades locais, que se emocionavam com os dramas encenados na área externa da igreja.

Nos autos escritos por José de Anchieta, pioneiro desse gênero no Brasil, misturavam-se espontaneamente personagens representando santos, animais, demônios, guerreiros, figuras alegóricas; dentro de um grande cenário folclórico que muitas vezes incluía flores e enfeites diversos de procedência indígena.

A abertura teatral para temas diversos do cotidiano religioso no período colonial foi tão grande que até mesmo o padre José de Anchieta escreveu um auto encenando apenas demônios a fim de refletir juntamente com os índios a maldade dessas criaturas na Terra. Para fazer esse tipo de auto, desenvolveu-se não apenas um sincretismo religioso, mas também demonológico, pela primeira vez no Brasil.

Conforme explicou o historiador Eduardo Hoornaert (1991, p.119), “foram os missionários quem trouxeram o imaginário do diabo que divide o Mundo em dois campos adversos e interpreta a vida como um combate entre duas bandeiras”. Nesse contexto, Deus passou a significar a virtude, e o Diabo, o pecado. Desde então, a partir dessa dicotomia apresentada pelos missionários, os mitos indígenas (Jurupari, Curupira, Ipuiara e Boitatá) foram reinterpretados. E os negros também tiveram seus deuses africanos igualmente redesenhados pelo olhar do branco dominador e passaram a representar figuras demoníacas.

Na opinião da pesquisadora Patrícia de Moraes (2006, p. 15) a discussão da moral e dos preceitos católicos articulava-se no auto formando uma mensagem, cujo estilo linguístico representava os modos rudes e simplórios do jeito de falar da população brasileira, que, por sua vez, encontrava-se privada dos meios e dos modos literários eruditos. No contexto colonial, a comunicação catequética adquiriu grande impacto sobre a massa da população não letrada. Nesse sentido, o folclorista Câmara Cascudo admitiu, igualmente, que a origem dessa expressão artística, o auto, surgiu com a necessidade de evangelizar de forma inovadora, focalizando os Mistérios, as Santidades e os Dogmas do Catolicismo.

No auto mariano do Círio, especificamente, a peregrinação é fundamental. De acordo com o ilustre professor Hoornaert (1991, p. 102), “a via peregrina é tão antiga no cristianismo que suas origens se confundem com a própria vida apostólica de Jesus e seus discípulos pelos caminhos da Galileia a anunciar a Boa Nova do Reino de Deus de aldeia em aldeia”. No começo, as peregrinações eram simplesmente andanças, e “não precisavam de dinheiro, nem túnicas, mas de sandálias e um cajado apenas”. Como exemplo desse ambiente peregrino primitivo, Hoornaert citou a imagem da Fuga para o Egito e o desterro de Nossa Senhora como sendo bastante popular e representativa nos primórdios da colonização.

Nesse sentido, ressaltou Hoornaert (1991, p. 102) que na formação do povo brasileiro os indígenas se tornaram índios de corso; e os negros transplantados da África perderam tudo: terra, família, posse e estabilidade; consequentemente, essa grande massa oprimida deu origem a camponeses sem campo, sem-terra, sem-teto. Ainda de acordo com Hoornaert (1991, p. 103), “estudos mostram que hoje um terço da população brasileira pode ser qualificada de migrante, ou seja, durante toda a vida não encontra estabilidade nesta terra; nem um chão para morar, nem um pedaço de terra para plantar, nem um emprego fixo

Os brasileiros peregrinos, explicou o mesmo autor, recebem variados nomes: são posseiros, retirantes da seca, ou das enchentes, nordestinos, favelados, preguiçosos, etc. Na realidade brasileira, geralmente, “a vida desse povo é um giro sem fim em suas andanças”. Observando esse fenômeno social, Hoornaert (1991, p. 105) enfatizou, ainda, que a resposta brasileira dada aos erros da evangelização colonial foi exatamente a via peregrina que atuou, inclusive, como fonte de interpretação dos ritos oficiais da Igreja, impactando fortemente na realidade através do imaginário típico de um cristianismo nômade. Nessa cultura andarilha que vem do tempo colonial dissolveu-se a hierarquia política e surgiu uma relação direta e menos formal com os santos, nos moldes do trato familiar. Também, o povo nômade brasileiro passou a ver a natureza com prioridade sobre a cultura e lhe reservou um significado espiritual. Nessa cultura nômade admira-se, basicamente, a “provisoriedade do tempo”, ou seja, a dinâmica real da vida, pois é no movimento que se considera que está a própria ordem do Mundo. “Isso resulta aos olhos da sociedade sedentária, numa falta de disciplina, em um gosto pela improvisado, num trato espontâneo que nem sempre é bem acolhido no Mundo em que vivemos, onde os modos de vida sedentários se impõem com força, senão com violência”.

Nesse quadro histórico, é oportuno acrescentar o fato de que Nossa Senhora de Nazaré do Desterro representava os interesses espirituais dos opressores ou colonizadores portugueses, funcionando como símbolo da identidade nacional dos migrantes que colonizavam o Brasil.

Nessa direção, Laura de Mello e Souza (1994, p. 33) afirmou em suas pesquisas que colonizar não era apenas uma empreitada física, mas igualmente, ou até mais, simbólica. Em sua análise, a fé não se apresentava isolada da empresa ultramarina, “propagava-se a fé, mas colonizava-se também”. Juntamente com esse desafio, popularizou-se a imagem do Céu e do Inferno. A própria colônia foi absorvida por esse imaginário, que exigiu dos religiosos um trabalho redobrado de educação, de fiscalização e de punição.

Ao se contextualizar o culto à Nossa Senhora de Nazaré do Desterro, no Brasil e

Amazônia, “a colônia foi um purgatório de brancos, através da instituição do degredo que passou a ser uma característica negativa da formação do povo brasileiro, por isso, “o português transplantado só pensava na pátria além-mar: o Brasil era um degredo ou purgatório” (SOUZA, 1994, p. 81).

Específicamente, o Brasil era um purgatório em relação à metrópole. Para os jesuítas, particularmente, as religiões indígenas e africanas eram aberrações satânicas; por esse motivo a “vida cotidiana na colônia se mostrava impregnada de demônios” (p. 145).

Na explicação de Mello e Souza (p. 149), a complexidade da formação social brasileira pressupôs a relação simultânea do escravismo com o cristianismo que “puxou a colônia para as imagens infernalizadas”. Constituíam o inferno as tensões sociais; os envenenamentos de senhores; os atabaques batendo nas senzalas e nas vielas escuras das vilas coloniais; além dos quilombos, que assombravam as matas, os caminhos e os descampados.

De outro lado, a metrópole atraía a colônia para o polo paradisíaco: chegava-se ao Céu quando se rezava o credo de Portugal, compartilhando os valores autênticos da religião lusitana. Do ponto de vista econômico, o fato de abastecer os mercados europeus com açúcar, tabaco, ouro e brilhantes, significava também cumprir-se um tipo de missão civilizatória em favor da Europa.



“Nascimento de Maria”. Autor: Ghirlandaio, 1490.
Acervo: www.abcgallery.com

É nesse contexto, portanto, que o Círio de Nazaré na Amazônia desempenhou papel civilizatório, pois representou a salvação espiritual dos degredados e dos colonizadores apartados de sua terra natal, cultuando no chamado “Inferno Verde”, assim conhecida a Amazônia do século XVIII e XIX, a Luz sagrada que emanava do maior símbolo da metrópole: Nossa Senhora de Nazaré.



Nascimento de Maria”. Autor: Giotto, 1306.
Acervo Google.

Anunciação, nascimento de Maria e banquete de aniversário

Foi na Idade Média, interior da França, em 430 d.C., que se revelaram, dançando, alguns anjos a um nobre francês comemorando o dia 8 de setembro que, para eles, seria a data em que nasceu Nossa Senhora de Nazaré. Não demorou muito tempo, essa revelação foi adotada oficialmente pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Consequentemente, além do Natal de Jesus Cristo, comemorado no dia 25 de dezembro, e do Natal de São João Batista, festejado no dia 24 de junho, a Cristandade ganhou mais outro Natal, o de Maria, que foi reconhecido em Portugal, desde os primordios, como dogma do Círio de Nazaré.

Não foi por acaso, portanto, que a aparição de Nossa Senhora ao cavaleiro português dom Fuas Roupinho, à beira do abismo diante do mar, no século XII, ocorreu em setembro, mês de Maria, fazendo o Círio ser comemorado no dia 8, tanto em Portugal como no Brasil e Angola.

Outro dado histórico envolvendo Nossa Senhora de Nazaré aconteceu no dia 8 de setembro, na praia de Saquarema, Rio de Janeiro, em 1630, quando foi encontrada uma pequena imagem de madeira por alguns pescadores e, posteriormente, foi transportada para uma cabana de onde retornou ou fugiu misteriosamente.

Da mesma forma, o dia 8 de setembro marcou a inauguração da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré em Angola, depois de cumprida a promessa do governador André Vidal de Negreiros, na década de 1640, que sobreviveu durante um naufrágio entre Pernambuco, no Brasil e o continente africano.

Na Amazônia brasileira, o Círio de Nazaré foi oficializado pelo governador dom Francisco de Sousa Coutinho no dia 8 de setembro de 1793 para comemorar, da mesma forma, o Natal de Maria; entretanto, essa data variou no calendário a partir de 1840 por causa das chuvas intensas que caíam à tarde, resultando algumas décadas depois na instituição da data definitiva, o segundo domingo de outubro, pela parte da manhã, conforme se pratica atualmente em Belém do Pará (MONTARROYOS, 1992).

O que os anjos proclamaram na Idade Média completava as informações que os apócrifos apresentaram há muito tempo, e extraoficialmente na opinião da Igreja Católica Apostólica Romana. Ou seja, Maria era filha do casal Joaquim e Ana, por intervenção de Deus e anunciação do Anjo Gabriel. Esse fato milagroso atendeu na época às fervorosas orações de Ana, pois ela e seu esposo Joaquim nunca tiveram filhos. A tradição apócrifa considerou, inclusive, que Joaquim tinha mais de 100 anos de idade antes do nascimento de Maria!

No Círio de Nazaré, a Anunciação do Nascimento de Maria reaparece materialmente nas ruas de Belém do Pará com o anúncio e lançamento do cartaz oficial da Festa; com as peregrinações de Nossa Senhora nas comunidades católicas; com a estreia da iluminação da Basílica; e com as romarias terrestres e fluvial que antecedem a Trasladação e o Círio.

Pelos apócrifos, Joaquim foi assediado moralmente pela comunidade onde morava por não ter herdeiros, por isso, retirou-se 40 anos no deserto, vivendo sozinho, onde depois teve a notícia sobrenatural da gravidez de sua esposa.

Com o nascimento de Maria, posteriormente, o casal refez os laços familiares e Joaquim foi aceito pela comunidade, principalmente um ano depois da boa nova, quando então pode oferecer um banquete inesquecível aos sacerdotes, vizinhos, autoridades, escribas, entre outros, proclamando a sua nova condição social de pai, ocasião em que Maria completava um ano de idade e ainda era amamentada por sua mãe.

No banquete, contam os apócrifos, Joaquim apresentou o seu bebê aos príncipes e sacerdotes que abençoaram a sua filha e proferiram a seguinte exaltação: “Ó Deus Altíssimo, põe teus olhos nesta menina e outorga-lhe uma bênção perfeita, dessas que excluem as ulteriores”. Depois disso, Ana levou a sua pequena Maria ao oratório de sua casa e deu-lhe o peito para mamar. Ela compôs, em seguida, um hino ao Senhor Deus, após meditar sobre a importância do banquete, dizendo então as seguintes palavras:

Entoarei um cântico ao Senhor, meu Deus, porque me visitaste, afastando de mim o opróbrio de meus inimigos e me deste um fruto santo, que é único e múltiplo a seus olhos. Quem dará aos filhos de Ruben a notícia de que Ana está amamentando? Ouvi, ouvi, ó Doze Tribos de Israel: Ana está amamentando (Disponível em: .Protoevangelho de Tiago sobre a Natividade de Maria).



“Anunciação do Nascimento de Maria”. Autor desconhecido
Acervo Google.

Ainda de acordo com a tradição apócrifa, ao deixar Maria dormindo no quarto, Ana saiu e foi atender aos comensais. Depois, no final desse banquete, os comensais saíram satisfeitos e louvaram a Deus, conforme descreveu o “Protoevangelho de Tiago sobre a Natividade de Maria”.

Atualmente, o nascimento de Nossa Senhora é celebrado pela Igreja Católica Apostólica Romana precisamente nove meses depois de comemorar a data da Imaculada Conceição, concernente à visita do anjo Gabriel, que ocorreu no dia 8 de dezembro, anunciando a chegada de Jesus.

No calendário juliano, o nascimento de Maria é comemorado no dia 8 de setembro; no gregoriano, dia 21; e especificamente no calendário amazônico, por força do clima chuvoso do século XIX, essa data foi transferida, gradualmente, para o segundo domingo do mês de outubro, pela parte da manhã.

A festa da Natividade de Maria já era celebrada no Oriente antes de ser instituída no Ocidente. De acordo com a tradição, essa festa teve início mais tarde na Europa quando São Maurílio a introduziu na diocese de Angers, na França, em consequência de uma revelação que chegou ao seu conhecimento, em 430. Os relatos históricos que são divulgados em diversas páginas eletrônicas das igrejas brasileiras em geral informam que:

Um senhor [respeitável] de Angers encontrava-se na pradaria de Marillais, na noite de 8 de setembro daquele ano, quando ouviu os anjos cantando no Céu. Perguntou-lhes qual o motivo do cântico. Responderam-lhe que cantavam em razão de sua alegria pelo nascimento de Nossa Senhora durante a noite daquele dia (Disponível em: ).

A Natividade de Maria é um dos 3 Natais reconhecidos pela Cristandade, além do nascimento de Cristo e de São João Batista. O nascimento de Nossa Senhora, especificamente, é uma festa litúrgica das Igrejas Católica, Anglicana e Bizantina. Para os católicos bizantinos, em especial, a Natividade de Maria é a primeira festa litúrgica das 12 realizadas ao longo do ano. Nessa festa natalina, o Mundo católico admira Nossa Senhora como sendo Ela a aurora que anunciará o “Sol de justiça” que chega para dissipar as trevas do pecado.

O desterro da Sagrada Familia e o Natal de Jesus

O nascimento de Jesus ocorreu em um lugar improvisado, um estábulo, perto de Belém da Judeia, onde seus pais tiveram de se acomodar de qualquer jeito por causa da perseguição que sofriam da parte do Rei Herodes. Mas para surpresa de Maria e José, naquele fim de mundo chegaram, pouco tempo depois, os três Reis Magos que conseguiram alcançar a Sagrada Família misteriosamente com a ajuda da astronomia e de alguns sinais sobrenaturais, permitindo que eles reverenciassem de perto o divino e majestoso bebê para o qual ofereceram presentes ou donativos na forma de ouro, mirra e incenso.

Foi o Anjo Gabriel quem anunciou a gravidez divina de Maria, profetizando que em seu ventre estaria o Salvador da Humanidade, Jesus. Esse momento sagrado foi relembrado poeticamente pelo hino oficial do Círio de Belém do Pará, cantado pela primeira vez em 1909, na Basílica de Nazaré, declamando: “Vós sois o lírio mimoso, do mais suave perfume, que ao lado do Santo Esposo, a castidade resume”. Além disso, como bem escreveu Euclides Farias, o autor do hino religioso paraense, “Vós sois a flor a inocência; que a nossa vida embalsama; com suavíssima essência que sobre nós derrama”.



“Descanso na fuga para o Egito”. Autor: Caravaggio séc
XVII. Acervo: www.abcgallery.com

Também, a homilia de São JoãoDamasceno, na Idade Média, relembrou oepisódio da Anunciação e justificou as razõespelas quais Maria teria sido eleita por Deusnaquele momento através do Anjo Gabriel.Segundo o que escreveu São João Damasceno,na Idade Média:

Uma vinha de belos sarmentos foi gerada no seio de Ana, e ela produziu um fruto cheio de doçura, fonte de um néctar abundante de vida eterna para os habitantes da Terra. Joaquim e Ana fizeram-se semeadores de justiça e recolheram um fruto de vida [...] Permanece em alegria, oh Ana venturosa, por teres dado à luz uma mulher, porque essa Mulher será a Mãe de Deus, porta da luz, fonte de vida, e reduzirá a nada a acusação que pesava sobre a Mulher (Disponível em: ).

Apesar de ter sido escolhida por Deus para assumir a responsabilidade espiritual de gerar o Salvador da Humanidade, Maria teve de enfrentar a maledicência popular a respeito de sua gravidez, quando todos acusavam o fato de que ela ainda não coabitava com José; além de ser o seu esposo muito mais velho, enquanto a jovem Maria contava com 12, 13, ou 14 anos de idade. Pela Divina Providência, entretanto, o Anjo Gabriel novamente reapareceu e foi até José, enviando-lhe a seguinte recomendação que se encontra no Evangelho de Mateus: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi gerado é do

Espírito Santo” (MATEUS, 1: 20. Bíblia Sagrada).

Apesar da intervenção divina, Maria sofreu um duro golpe com a suspeita do Rei Herodes sobre a sua gravidez, imaginando que existia uma conspiração, um plano político de derrubada do poder, pois conforme diziam os rumores, Jesus seria o Rei dos reis. Com essa suspeita, Herodes determinou a matança de todas as crianças menores de dois anos, visto que não possuía informações precisas sobre a data de nascimento e a moradia de Jesus. Sobre o infanticídio generalizado daquela época, assim registrou o Evangelho de Mateus: “Raquel, em Ramá, chorou com grande lamento a morte de seus filhos” (MATEUS, 2:18. Bíblia Sagrada).



“Anunciação: a flor de Deus”. Autor: Sir Edward Burne-Jones, 1862
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Também, quando o Rei Herodes foi procurado pelos Reis Magos, os bruxos da Pérsia, que estavam atrás do lugar onde havia nascido ou já morava o Menino-Deus, perguntou aos ilustres visitantes o que sabiam a respeito daquela criança; mas apesar de todas as artimanhas utilizadas para obter alguma pista, não obteve êxito, pois na verdade os Reis Magos nada sabiam sobre Jesus, e assim continuaram o caminho apontado pela Estrela guia de Belém até alcançarem a sagrada manjedoura, mas sem dar qualquer sugestão ao Rei Herodes, “por divina providência”, conforme lembrou o evangelista Mateus (2:11-12. Bíblia Sagrada).

José e Maria escaparam na direção do Egito, orientados pelo Anjo Gabriel. Nesse desterro forçado, José cumpriu a sua missão sagrada de esposo e pai adotivo exemplar, caminhando no deserto e puxando sempre o burrico no qual se encontrava sentada a esposa grávida e depois Jesus carregado no colo de sua Mãe. Essa passagem da Bíblia, mais tarde, seria relembrada pelo quadro católico da Sagrada Família do Desterro. Nesse quadro, José puxa o burro usando uma corda, parecendo arrastar a carruagem de uma Rainha e de um Rei.

Incrivelmente, esse esforço bíblico também não seria esquecido pela memória social da Cristandade, pois além de compor a imagem clássica da Sagrada Família, é relembrado no teatro devoto do Círio pelas ruas da capital paraense quando se puxa a corda de quase quatrocentos metros, atrelada ao carro da berlinda, e os “cordeiros” de Deus reencenam o sacrifício de José no doloroso Desterro de Maria pelas avenidas da capital, Belém.

A passagem bíblica e apócrifa do Natal de Cristo, séculos depois, seria relembrada também pelo imaginário popular como sendo o Presépio de Jesus, ou Adoração dos Reis Magos, retratada na Idade Média por pintores renomados, além de ser dramatizada com a participação de personagens vivos no auto natalino idealizado primeiramente por São Francisco de Assis, na Idade Média, que realizou a primeira montagem de um presépio fixo, com bonecos de barro, onde se destacavam o burro, o cavalo e as vacas, além de personalidades sagradas.




Em Portugal, especificamente, a tradição de montar Presépios incorporou personagens representativos da cultura popular, dentre eles, lavadeiras, bailarinos de ranchos folclóricos, banda de música acompanhada de moleiros e moinhos, entre outros.

Nas telas pintadas ao longo da Idade Média, faziam parte além da Sagrada Família e dos Reis Magos, animais diversos como cavalos, bois, vacas e burros. O pintor Boticelli (1474) incluiu alguns pavões para dar um toque aristocrático à situação religiosa. Diferentemente, o pintor Ghirlandaio (1488) introduziu quatro anjos observando o local do nascimento de Jesus, além de dezenas de pessoas entre elas homens, mulheres e crianças visitando a manjedoura com roupas aristocráticas e medievais preparadas especialmente para aquela solenidade pós-natalina.

No Círio de Belém do Pará, específicamente, o Presépio faz parte do auto natalino através dos brinquedos artesanais de miriti, que são comprados nas ruas, ao calor da procissão, repetindo-se inconscientemente o ato fundamental de celebração do nascimento de um bebê, nesse caso, simbolicamente três em um: que são Maria, Jesus e o próprio devoto que renasce pela Fé. O Presépio do Círio é ambulante, pois atravessa as ruas do Desterro, através da comercialização dos brinquedos que representam animais, veículos, enfeites domésticos, cata-ventos, peças interativas, entre outras variedades feitas com o caule da folha da árvore miriti que chama a atenção por apresentar uma grande maleabilidade natural, facilitando a modelagem do artesão, semelhante ao isopor. O cenário do Presépio ambulante compreende as avenidas urbanas do Desterro, mais Nossa Senhora carregando Jesus dentro da berlinda e os devotos imitando José, quando puxam a corda atrelada a esse veículo sagrado. Nesse contexto bíblico e apócrifo quem dá e recebe um brinquedo ou boneco de miriti repete uma cena emblemática, no estilo amazônico, funcionando como sinalizador de alguém que já nasceu ou está pronto para nascer. Se relembramos, portanto, que o Círio é uma festa natalina por excelência, visto que nasce Maria e por meio dela, Jesus, a função dos brinquedos vai além do aspecto folclórico, lúdico e comercial. Eles demonstram, na verdade, que no teatro devoto do Círio de Nazaré existe um espírito infantil entre os peregrinos, que é reencenado em torno de uma criança simbólica e virtual que está no colo de Maria.



“Madona e filho, com São Jerónimo, São José e Santana”. Autor Lorenzo Lotto, 1534.
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Curiosamente, Jesus durante a infância também gostava de brincar com bonecos de barro e muito provavelmente, de madeira, pois seu pai adotivo, José, era carpinteiro e artesão, sendo provável nesse sentido que ele tenha fabricado alguns brinquedos de madeira para diversão do seu filho adotivo.

Assim, segundo os apócrifos, ou “Protoevangelhos árabes sobre a infância de Jesus”, o Menino-Deus costumava fabricar os seus próprios bonecos e brinquedos, usando argila, e depois que soprava nesses mesmos objetos, eles ganhavam vida; como por exemplo, pássaros, burrinhos e cavalos, que além de voar e andar, alimentavam-se das coisas que Jesus oferecia.

Para os colegas de infância, Jesus com menos de sete anos de idade dizia que bastava mandar que os bonecos andassem e imediatamente eles obedeciam. Com o passar do tempo, seus colegas ficaram impressionados com o que viram tantas vezes e acabaram confessando aos seus pais que Jesus tinha um poder fantástico de transformação das coisas. Imediatamente, os meninos foram repreendidos com a seguinte ordem: “Foge, daqui em diante, de sua companhia, pois ele é um feiticeiro. Deixai de brincar com ele!”1.

Retorno de Maria à Vila de Nazaré

Quando souberam da morte do Rei Herodes, Maria e José receberam a instrução do Anjo Gabriel para retornar à vila de Nazaré e mais uma vez tiveram de enfrentar a pé uma longa caminhada atravessando terra e água debaixo do Sol escaldante do deserto com a esperança de encontrar uma vida renovada em sua terra natal. Segundo o evangelista Mateus:

(...) eis que um anjo do Senhor apareceu em sonho a José, e disse-lhe: dispõe-te toma o menino e sua Mãe e vai para a terra de Israel; porque já morreram os que atentavam contra a vida do menino. Dispôs-se ele, tomou o menino e sua Mãe e regressou para a terra de Israel. Tendo, porém, ouvido que Arquelau reinava na Judéia em lugar de seu pai Herodes, retirou-se para as regiões da Galileia. E foi habitar numa cidade chamada Nazaré para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas. O menino será chamado Nazareno (MATEUS, 2: 19-23. Bíblia Sagrada).

Maria ficou conhecida entre os Católicos como Nossa Senhora dos Caminhantes e dos Imigrantes, pois o tempo todo precisou caminhar longas distâncias fugindo da perseguição do inimigo, porém, seu caminhar sempre teve algo especial, pois:

Era cheio de seriedade, com seus vestidos, com a graça do seu rosto, com a maturidade do discernimento num corpo juvenil; ela tinha um caminhar grave, sem precipitação, sem preguiça; também, apresentava um caráter sério, temperado de júbilo (...); mostrava um caminhar de uma jovem mulher, sempre obediente aos pais (Disponível em: . Sobre a Natividade de Maria, homilia de São João Damasceno. Tradução Seminário de Sintra, Portugal; Alexandrina de Balasar: site oficial).



“Apresentação de Jesus no templo”. Autor: M. Broederlam, 1394-99
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Semelhantemente, durante quinze dias na Festa de Nazaré, a imagem de Maria depois de longa peregrinação pelas avenidas do Desterro fica exposta à contemplação dos fiéis no bairro Nazaré. No meio da Praça-Santuário que fica em frente à Basílica, os devotos tocam emocionados as fitas que envolvem o manto da imagem peregrina do Círio, onde todos, oportunamente, parecem refletir com encantamento a homilia de São João Damasceno que exaltou: “Bem-aventurada, oh Glória insigne da Humanidade!”.

A realização do Círio de Belém do Pará também reescreve a passagem bíblica e apócrifa do retorno de Maria à vila de Nazaré. De acordo com a tradição, tendo sido achada a imagem de Nossa Senhora no interior da floresta, à beira de um riacho ou igarapé, por volta do 1700, o caboclo Plácido José de Sousa teve a ideia de transportá-la para uma cabana de palha construída na periferia da cidade de Belém; entretanto, para surpresa do próprio caboclo, a imagem desapareceu do oratório indo reaparecer justamente no lugar perdido que ficava no meio da floresta.

Várias vezes a imagem sagrada foi transportada para a cabana, mas sempre retornava ou fugia para o seu local primitivo, o que impressionou a todos, inclusive ao governador do Estado, que procurou acalmar a opinião pública determinando trancar a imagem da Santa na capela do Palácio do Governo, cercada por reforço militar.

Misteriosamente, entretanto, a imagem de Nossa Senhora reapareceu no lugar original da floresta onde foi achada pelo caboclo Plácido. Por isso, todos se convenceram de que a vontade sobrenatural de Nossa Senhora era mesmo ficar naquele terreno, batizado pelo povo de Nazaré, onde se localiza hoje a Basílica-Santuário.

Epílogo: Assunção de Nossa Senhora

Durante muito tempo na Idade Média, particularmente entre os católicos bizantinos no século V ou VI acreditou-se que Maria não morreu, apenas dormiu por alguns instantes no final de sua vida para, depois, ser proclamada pelos anjos como Rainha do Céu, caracterizando o belo quadro da “Assunção de Nossa Senhora”.

Em 1950, esse falecimento, dormida ou ascensão de Nossa Senhora transformou-se em dogma da Igreja Católica Apostólica Romana por determinação do Papa Pio XII.

Os relatos existentes a respeito desse fato espetacular da Cristandade são encontrados em alguns apócrifos que descreveram o reconhecimento divino do papel que Nossa Senhora teve na Vida e Morte de Jesus Cristo, ganhando por isso a proclamação universal de “Rainha do Céu”.



“Assunção da Virgem”. Autor: Bartolomé Estebán Murillo, 1670.
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“Crucificação”. Autor: Antonello da Messina, 1475-76
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últimos momentos de Maria, dentre eles, os espíritos desencarnados de Ana, Isabel, Isaac, Davi, Jacó e Abraão que cantavam em alto tom o coro Aleluia, juntamente com uma infinidade de Santos que veneravam o seu corpo e alma, cobertos de luz e que exalava intenso perfume de flores e de rosas que saturavam o ambiente até que Jesus chegou e tomou em seus braços a majestosa Mãe, na direção do Céu

Os apócrifos de São João (conhecido como Teólogo-Evangelista) e de Tiago descrevem que a despedida de Maria foi organizada pelo Espírito Santo, que avisou et ransportou os apóstolos de Jesus que estavam longe, em outros países e cidades onde realizavam suas missões, e foram conduzidos, extraordinariamente, dentro de nuvens luzentes, desembarcando no local da despedida de Nossa Senhora, em Belém da Judeia, atendendo, inclusive, ao pedido da própria Nossa Senhora que implorou a Jesus, através de suas orações, a oportunidade de ter o último reencontro com aqueles companheiros com os quais conviveu intensamente antes e depois da Crucificação

Além dos apóstolos, havia uma grandemultidão de admiradores observando osúltimos momentos de Maria, dentre eles, os espíritos desencarnados de Ana, Isabel, Isaac,Davi, Jacó e Abraão que cantavam em alto tom o coro Aleluia, juntamente com umainfinidade de Santos que veneravam o seu corpo e alma, cobertos de luz e que exalava intensoperfume de flores e de rosas que saturavam o ambiente até que Jesus chegou e tomou em seusbraços a majestosa Mãe, na direção do Céu

De acordo com o relato de João, o Evangelista, ele próprio foi arrebatado pelo Espírito Santo, na cidade de Éfeso, onde se encontrava trabalhando, e depois foi conduzido até a presença de Nossa Senhora, através de uma nuvem luzente, tendo a chance, por isso, de lhe dizer pessoalmente, emocionado, as últimas palavras: “-Salve, ó mãe de meu Senhor, aquela que gerou a Cristo nosso Deus; alegra-te, porque irás sair deste mundo muito gloriosamente”2.

Outros discípulos e conhecidos de Maria, como André, o irmão de Pedro, mais Tadeu, Simão e Felipe, que já estavam mortos, foram despertados de seus sepulcros pelo Espírito Santo, ganhando a oportunidade ímpar de proferir as últimas palavras de adeus à Mãe de

Jesus.

O apóstolo Pedro, que estava em Roma, também foi transportado por uma nuvem luminosa com destino a Belém, onde se encontrava Maria.

O apóstolo Paulo, por sua vez, proferiu o seguinte testemunho:

Também eu, enquanto me encontrava numa cidade a pouca distância de Roma, chamada terra dos Tibérios, ouvi o Espírito Santo que me dizia: A mãe de teu Senhor está para abandonar este mundo e empreender por meio da morte a sua caminhada aos céus; põe-te tu também então a caminho de Belém para despedir-te dela. E nesse momento uma nuvem luminosa arrebatou-me e colocou-me no mesmo lugar em que estais.

N

No final desse ritual de despedida, foi Jesus diretamente até Nossa Senhora e lhe chamou enfaticamente: “Maria”. E ela respondeu: “Aqui me tens, Senhor”. E o filho, Jesus, completou: “Não te aflijas; melhor será que teu coração se alegre e sinta gozo, pois encontraste graça para poder contemplar a glória que me foi dada pelo meu Pai”.

Jesus permaneceu o tempo todo ao seu lado e continuou dizendo: “Eis que a partir deste momento teu corpo será transportado ao paraíso, enquanto que tua santa alma estará nos céus, entre os tesouros de meu Pai, coroada de um extraordinário esplendor, onde há paz e alegria próprias dos santos anjos e mais ainda”3.

Semelhantemente ao que descreveram apócrifos, o Recírio realizado no final quinzena festiva também reproduz derradeiros instantes de Nossa Senhora de Nazaré. Essa ocasião é acompanhada comintensa emoção e lágrimas por milhares de devotos que homenageiam a Santa, acenando com seus lenços brancos, a subida da imagem original na direção do Altar-glória da Basílica onde Maria guarda o título “Rainha do Céu”, coroada e iluminada por Anjos dourados




Somente um ano depois dessa despedida é que a imagem original de Nossa Senhora desce novamente à Terra para ser contemplada pelos admiradores e fiéis na programação do próximo Círio, ficando sempre no interior da Basílica. Tanto na subida como na descida de Nossa Senhora é utilizada uma escada que permite ao diretor da festa do Círio alcançar o Altar-glória onde fica a redoma que protege a imagem original do Caboclo Plácido. A escada, segundo Mircea Eliade (em obras diversas) simboliza - no inconsciente da Humanidade - o movimento espiritual que todo ser humano deseja realizar entre o Céu e a Terra



“A coroação da Virgem”. Autor: Fra Filippo Lippi, 1441-1447
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Na solenidade do Recírio, o ritual de despedida com mais de 50 mil devotos acompanha a outra imagem sagrada, a peregrina, até a Capela do Colégio Gentil Bittencourt, onde se acredita que Nossa Senhora ficará “dormindo” durante o ano inteiro. Entretanto, alguns dias depois, sem nenhum ritual de massa, a imagem peregrina retorna à Basílica, onde curiosamente, no passado, “adormecia” no aposento pessoal do Vigário.

Análise de Conteúdo

O mito nazareno ficou conhecido na capital da Amazônia brasileira, Belém do Pará, quando uma pequena imagem de madeira representando Nossa Senhora de Nazaré do Desterro, com cerca de 30 centímetros de altura, “fugiu” de um lugar para o outro relembrando, oportunamente, os primórdios da criação do Cristianismo, quando Maria precisou escapar do Rei Herodes para dar à luz o menino Jesus. Essa fuga da imagem religiosa preservada até hoje no imaginário popular aconteceu por volta de 1700.

Indo mais além, o mito nazareno representa uma história sagrada universal, relembrando a Gênesis, quando Deus criou a luz e determinou, mais tarde, o nascimento de Maria para ser a encarnação da Luz divina entre os Homens na Terra.

A própria expressão “círio” quer dizer “vela grande acesa na procissão”, originalmente cultuada na Páscoa, representando a Luz de Deus e de Cristo.

Adaptando a definição apresentada pelo antropólogo Malinowski (citado por Eliade: Mito e realidade, 2002), o mito nazareno exprime, enaltece e codifica a crença do Círio; salvaguarda e impõe os princípios morais da sociedade católica; garante a eficácia dos rituais; além disso, oferece regras práticas para a orientação do devoto em sua vida pessoal.

Na teoria formulada por Eliade (2002, p.23), o mito é um ingrediente vital da civilização humana. Portanto, longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva à qual se recorre incessantemente; por isso não é absolutamente uma teoria abstrata ou fantasia artística, mas é uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.

De maneira geral, os mitos relatam não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas, e do Homem, mas também acontecimentos primordiais a partir dos quais o indivíduo chegou a ser o que é, ou seja: um ser mortal; sexuado; organizado em sociedade; e obrigado a trabalhar para viver, segundo certas regras sociais (ELIADE, 2002, p. 23).

Admitindo-se essas características fundamentais, desenvolve-se o pressuposto ontológico de que o mito copia um determinado modelo de vida ideal ou arquétipo que serve na prática como sinalizador público para se alcançar uma certa realidade transcendental, além do “aqui-agora”.

Pressupomos, por isso, que o mito nazareno induz o indivíduo a um tipo situação que permite libertá-lo das amarras do presente, proporcionando um conjunto de rituais e de elementos simbólicos com intenso poder de sensibilização sobre a fé e a imaginação pessoal, trazendo assim uma experiência terapêutica salutar para o devoto que repercute no retorno simbólico ao cotidiano.

De acordo com Eliade (2001), existem três estratégias que fazem o devoto regredir ao tempo primordial da Criação:

1- Imitando um arquétipo, ideia ou modelo exemplar celestial;

2- Construindo cidades, igrejas, casas, santuários, que simbolizem o centro de ligação da Terra com o Céu;

3- E desenvolvendo rituais e comportamentos significativos que reproduzam as principais cenas da Criação com seus heróis e antepassados.Importar lista

O mito nazareno é delimitado nessa pesquisa por meio de narrativas e dramatizações coletivas que descrevem sentimentos e não fatos. Algumas vezes, entretanto, o mito nazareno absorve alguns fatos históricos, como, por exemplo, a descoberta da imagem e sua fuga que chegou ao conhecimento do Palácio do Governo paraense ou então a criação jurídica do Círio em 1793; porém, sua mensagem ontológica não é comprovada ou refutada pelo conhecimento científico ou realista da História, uma vez que envolve sentimentos e expectativas, como esperança, santidade, nascimento, amor, ódio, vitória, heroísmo, etc., que ganham concretude social apenas e tão somente através da sensibilidade e da fé daqueles que o praticam dentro do Catolicismo ao longo de sucessivas gerações.

Apresentando uma linguagem católica o mito nazareno descreve a história de Maria, a Mãe de Jesus, seu nascimento, vida e morte. Nos rituais do Círio essa biografia tem por analogia a forma de um auto teatral, desenvolvendo quadros, ícones ou atos que suscitam uma explosão criativa de textos, performances, comunicações, sentimentos, histórias de vida e discursos verbais e não verbais através da linguagem física do corpo do devoto durante a peregrinação pelas ruas da cidade.

Sendo uma narrativa de sentimentos relacionados com os mistérios, a santidade e a moralidade mariana, o mito nazareno traz múltiplas possibilidades de leitura e de compreensão afetiva do seu núcleo dogmático que se manifesta periodicamente através de diversos rituais, entre eles, a Trasladação e o Círio, dramatizados e animados com música, poesia, arte plástica, sacrifícios, peregrinações, notícias de jornais, pesquisas acadêmicas, etc.

Como todo discurso social, da mesma forma o mito nazareno veicula “verdade, poder e saber”, nos termos sugeridos por Michel Foucault, em sua obra Microfísica do poder; consequentemente, existe um determinado ponto de vista que se impõe como absoluto (do tipo: Maria é Santa; o Círio é patrimônio dos brasileiros, etc.); constitui-se também um saber especializado ou erudito, principalmente entre pesquisadores e teólogos.

Também, devido à sua textura poética e transcendental, o mito nazareno apresenta uma função social terapêutica na comunidade, possibilitando entre os seus praticantes a recontextualização e o reencantamento da realidade social dentro dos parâmetros mitológicos oficiais que permitem recuperar a universalidade da vida, ameaçada pelo racionalismo e pela massificação da Modernidade.

De outro ângulo, o mito nazareno é uma fonte de revitalização da ordem e disponibiliza práticas libertadoras em relação ao materialismo histórico sufocante, proporcionando novas possibilidades de intepretação da vida humana e do cotidiano social.

O mito nazareno descreve um modelo exemplar de vida, ou arquétipo, que faz o Homem religioso se sentir maior espiritualmente; importante na sociedade; presente na História; e integrante de uma ecologia cósmica sagrada.

Devido a esse conteúdo sagrado, Eliade atribuiu à Religião o papel fundamental “de ser a solução exemplar de toda crise existencial, não apenas porque é indefinidamente repetível, mas também porque é considerada de origem transcendental, portanto, valorizada como revelação recebida de um outro Mundo, transumano”. Ao mesmo tempo, a Religião torna a existência “aberta a valores que já não são contingentes nem particulares, permitindo assim ao Homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim das contas, alcançar o Mundo do espírito” (Citado por QUEIROZ, 2010, p. 35).

Na reprodução do discurso mitológico religioso alguma “coisa” aconteceu há muito tempo atrás, representando temas críticos que fazem parte de uma agenda filosófica existencialista mais ampla, incluindo, por exemplo, a preocupação com a vida e a morte, com o pecado e a salvação, com o Bem e o Mal, com o eterno e o passageiro, com o absoluto e o relativo, etc.

Reconhecendo a presença desse conjunto de temas existencialistas, notamos que o mito nazareno não causa nenhuma ruptura no cotidiano, mas, ao contrário, facilita a sua recomposição ou revitalização espiritual, ligando durante 15 dias o sagrado com o profano que serão desligados, no entanto, com a prática do Recírio no final da festa.

De acordo com Eliade (2002, p. 11), é difícil encontrar uma conclusão definitiva sobre o que é o mito e que possa ser aceita por todos os eruditos e, ao mesmo tempo, seja acessível aos não especialistas. Acima de tudo, “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”. Provisoriamente, entretanto, a definição que parece menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais (ELIADE, 2002, p. 11).

Apresentando feições regionais, o mito nazareno poderia ser uma narrativa fechada, uma exclusividade do povo paraense. Entretanto, desenvolvendo uma reflexão comparativa desse mito com outras manifestações similares e com algumas ideias religiosas afins, descobrimos gradativamente a existência de um conjunto de filosofias que representam temas fundamentais da existência e da história social humana.

Para descobrir as aberturas do mito em relação ao Universo promovemos um diálogo entre a “realidade” empírica dos discursos sociais e a “idealidade” dos discursos filosóficos sistematizados pelo antropólogo Eliade, que nos permitem produzir uma visão crítica e abrangente dos significados religiosos que se encontram além das fronteiras domésticas, regionais, ou católicas do Círio de Nazaré.

Conforme destacou Eliade, pela filosofia renascentista o Homem religioso procura superar desafios de toda sorte e ingressa psicologicamente no esquema do mito a fim de reestruturar a sua vida pessoal e de viver subjetivamente um novo tempo.

Especificamente na obra O mito do eterno retorno (2001), Eliade afirmou que em todos os lugares do planeta existe uma concepção a respeito do fim e do início do tempo com base na observação dos ritmos biocósmicos que expressam uma necessidade humana de regeneração periódica das relações individuais com a Natureza e a Sociedade. Essa regeneração periódica do tempo pressupõe uma nova criação, uma repetição do ato cosmogônico, uma abolição do materialismo dominante. Existem, por exemplo, cerimônias periódicas de expulsão de demônios, de doenças e de pecados; além de rituais que se preocupam com os dias anteriores e posteriores ao Ano Novo. Nesses casos verifica-se, geralmente, a instituição de um feriado na comunidade, servindo como espécie de marcador social de um novo tempo.

Pela filosofia criacionista, por sua vez, o devoto nazareno pensa repetir o ato de criação do Universo e de outros empreendimentos menores, como o surgimento de uma religião ou o nascimento de deuses e heróis que são relembrados através do ritual religioso. Nessa perspectiva filosófica, o mito nazareno é um retorno imaginativo da memória coletiva aos braços de um determinado acontecimento impressionante do passado.

No livro Imagens e símbolos (1979), Eliade afirmou que o ser humano mergulha na realidade profunda da vida material e do espírito usando imagens sagradas. Pela imaginação, ele produz, inclusive, um Mundo sempre novo.

Eliade (2001) completa esse ponto de vista argumentando que todo ritual possui um modelo divino ou arquétipo com a função de recordar os atos religiosos pioneiros que foram praticados por deuses, Homens civilizados, ou heróis míticos ancestrais. Desse modo, o conceito de cosmogonia representado pela filosofia criacionista demanda especificamente a criação de algum templo central que deverá servir como representação estética ou testemunho da Gênesis para as futuras gerações.

Pela filosofia natalina, o devoto do Círio busca também o retorno às origens, acreditando que o movimento imaginativo de libertação da consciência, nesse caso, voltando-se para um paraíso perdido que lhe proporciona verdadeiramente uma sensação de alívio, e que deve trazer curas espirituais que se refletem, muitas vezes, no desaparecimento de certas doenças físicas. No entanto, para que o ritual natalino seja eficaz é preciso saber repetir a gestação e o nascimento, ou seja, seguir a cartilha do rito religioso.

Analisando a filosofia existencialista, Eliade destacou o fato de que Homem religioso tem necessidade de encontrar um ponto fixo ou absoluto que funcione como marcador existencial no cotidiano; por isso, ele constrói um centro sagrado e elabora mitos fundadores até mesmo de sua própria identidade social.

Eliade ressaltou que o desejo do Homem religioso de viver no sagrado equivale, de fato, ao seu desejo de situar-se na realidade objetiva, de não se deixar paralisar pela relatividade sem fim das experiências puramente subjetivas, de viver num Mundo real e eficiente - e não numa ilusão. Esse comportamento verifica-se em todos os planos da sua existência, mas é evidente no desejo do Homem religioso de mover-se unicamente num Mundo santificado, quer dizer, num espaço sagrado. É por essa razão que são elaboradas técnicas de orientação, que são, propriamente, técnicas de construção do espaço sagrado.

Na filosofia metafísica ou platônica encontramos essa mesma necessidade antropológica do Homem religioso de recordar e regredir. Esse “voltar atrás” foi percebido particularmente por Sigmund Freud apresentando um impressionante poder de cura na alma dos pacientes.

De acordo com Eliade (2002), o retorno individual à origem é uma possibilidade de renovar e de regenerar a existência daquele que a empreende. Mas esse “retorno à origem” pode ser efetuado para vários tipos de finalidades e apresentar diversos significados. O mais importante nisso tudo é rememorar os detalhes da existência (atual ou anterior), pois é somente através da recordação que se chega a “queimar” o indesejável ou então “ressuscitar” o melhor do passado.

Através da rememoração, ou “anamnesis”, há uma libertação por meio da ideia do Tempo. Essa técnica se relaciona com a concepção arcaica de que se pode conhecer a origem e a história de uma “coisa” para depois dominá-la.

sábios a rejeitar a historicidade de Jesus”.



“Criação do Sol e da Lua”. Autor: Michelangelo, 1512;
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Eliade (2001) declarou que o Mundo que nos rodeia tem um “arquétipo alienígena”. A transformação do caos em cosmos através do ato divino de criação proporciona formas e regras que lembram o Mundo transcendente, por isso “alienígena”. Na prática, pelo ritual, o arquétipo ou modelo exemplar se torna real; e sua realidade inclui fundamentalmente o poder sagrado.

Na filosofia metafísica elaborada por Platão, lembramos do passado através da “mimese”, ou cópia humana do que aconteceu no Mundo sagrado. A alegoria da caverna é, por exemplo, uma cópia humana que aborda o contraste sobrenatural entre sagrado e profano, entre Luz, Trevas e Purgatório.

No debate da filosofia iluminista do mito religioso, por último, Eliade (2002, p. 142) afirmou que o Evangelho e outros testemunhos primitivos sobre a origem do Cristianismo estão impregnados de elementos mitológicos, alguns de origem judaica, outros de origem pagã. De acordo com sua análise, “acrescentamos que a presença maciça dos símbolos e dos elementos cultuais solares ou de estruturas misteriosas, no cristianismo, encorajou alguns

Em O sagrado e o profano (1992), Eliade admitiu que é fácil compreender por que o acontecimento religioso tem fundamento “cosmogónico”. Para ele, o sagrado revela a realidade absoluta; portanto, funda o Mundo e estabelece os limites e, assim, produz a ordem cósmica para os Homens.

Especificamente, no complexo ritualístico do Círio de Nazaré todos os caminhos oficiais percorridos pelo devoto na terra e na água, espaços profanos, a priori, despertam a ideia do renascimento espiritual representado pela simbologia da luz.

A própria historicidade da palavra Círio quer dizer vela grande acesa na procissão, tradicionalmente incluída na liturgia da Páscoa, simbolizando a luz de Jesus e de Deus que orienta o caminho da Humanidade na direção do Bem.

Associado a esse conteúdo bíblico exemplar do inconsciente humano, o Círio transforma-se numa procissão renascentista. Noite, escuridão e transladação relembram o período pré-natal, quando o devoto ainda se encontra acomodado no ventre materno e não conhece a luz do Mundo. Dia, sol e Círio proporcionam, por sua vez, a ambientação do renascimento do devoto com a chegada subjetiva de um novo tempo. Nesse rito de passagem, o estado embrionário, fetal, infantil e obstétrico do parto é reencenado com sacrifício pelo devoto, retomando a ideia central do útero, associada com a utilização simbólica do cordão umbilical e também com a repetição do ato de explosão da placenta, através dos fogos de artifício queimados tradicionalmente no Círio e Trasladação, por iniciativa do Sindicato dos Estivadores e Arrumadores de Belém, com cerca de 30 minutos de duração. No espetáculo pirotécnico acontece algo semelhante também ao Big-bang, ou mais precisamente, relembra o momento em que Deus disse “-Haja luzeiros no firmamento dos céus, para fazerem a separação entre a noite e o dia; e sejam eles sinais, para estações, para dia se anos. E sejam para luzeiros no firmamento dos céus para alumiar a terra. E assim se fez.[Depois], Deus fez os dois grandes luzeiros: o maior para governar o dia, e o menor para governar a noite; e fez também as estrelas”(GÊNESIS, 1: 14-15. Bíblia Sagrada).No sistema natalino do Círio a ideia fundamental é reconquistar a dignidade da existência material e espiritual que pertence ao “paraíso perdido”, desenvolvendo para isso acatar se que se remete, programaticamente pelo mito, à gestação e ao nascimento do indivíduo. Nesse contexto, simbolicamente, o retorno uterino promete trazer rejuvenescimento; dar longevidade; desafogar os “nós” da realidade; ré encantar o Universo; e recomeçar a vida espiritual.



“A Virgem, a Criança e Santana”. Autor: Leonardo da Vinci, 1516
Acervo: www.abcgallery.com

Mas quem nasce efetivamente nesse dia? Em primeiro lugar, Maria, pois o Círio foi institucionalizado no dia 8 de setembro, data do seu nascimento, anunciada pelos anjos na Idade Média. Em segundo lugar, nasce Jesus, pois através de Maria, vem o Salvador. Em terceiro lugar, renasce o devoto, que retorna ao estado embrionário e se religa, poeticamente, ao útero, através da corda, puxada por 8 mil “cordeiros” de Maria, enquanto, o restante da população, cerca de 2 milhões e 300 mil devotos caminham solidariamente, contemplando e reverenciando o momento natalino central, representado pelas contrações do parto no vai e vem da multidão, que se confunde na textualidade do evangelho com o próprio desterro da Virgem Santíssima.

Mas além de Maria, de Jesus e do peregrino renasce um quarto personagem no tempo do Círio que é a luz universal. Buscando ajuda no mito da caverna de Platão para explicar o surgimento desse quarto fenômeno, consideramos que as trevas seriam a ignorância, o medo, a opressão, enquanto as luzes representariam o sol da verdade, da justiça, da razão, da liberdade, da sabedoria, o sumo bem.

Desse modo, por influência dessa alegoria grega, avaliamos que o Círio é uma procissão metafísica ou platônica porque incentiva seus participantes a não ficarem algemados ao medo ou limitados ao acaso, nem às trevas, como aconteceu, positivamente, na primeira Trasladação, em 1793, quando não havia qualquer ponto de iluminação artificial na direção do Palácio e foi justamente o Círio quem tirou as pessoas da floresta de Nazaré, símbolo do inferno e das trevas, orientando oportunamente a caminhada na direção da cidade, centro da ordem, da luz e da civilização.

Além de ser uma procissão metafísica ou platônica, transformando a física da luz em uma ideia de salvação e de progresso espiritual, o Círio é uma procissão cosmogônica, genesiana, ou criacionista, um culto à Luz divina, desenvolvendo, através do seu rito de passagem, a Natividade de Maria, relacionada ontologicamente com o primeiro dia da Criação do Universo.

Esse momento extraordinário da Gêneses se repetiu mais tarde na História da Humanidade através da gravidez de Ana que deu à Luz Maria e essa, por sua vez, Jesus. Porém, antes de acontecer a Imaculada Conceição de Maria, de acordo com a reflexão do padre Antônio Vieira, no “Sermão sobre a Natividade de Maria” (no século XVII): “Deus Pai viu a luz no terceiro dia e concluiu que era boa para ser filha; Deus Filho olhou para a luz e concluiu que era boa para ser mãe; Deus Espírito-santo olhou para a luz e concluiu que era boa para ser esposa”.

Na filosofia criacionista do Círio, Maria nasceu, propositadamente, dos planos deDeus, encarnando a Luz divina que, depois, daria “à Luz” ao chamado “Sol da justiça”, Jesus,que é outra manifestação da Luz divina com temperamento forte e abrasador, conformesugeriu o célebre sermão do padre Antônio Vieira e semelhantemente ao que previu o profetaMalaquias (4:1-3. Bíblia Sagrada) quando escreveu nas últimas linhas do Velho Testamento aseguinte descrição:

(...) eis que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os quecometem perversidade serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz oSenhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo. Mas paravós outros que temeis o meu nome, nascerá o Sol da Justiça, trazendo salvação nassuas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria. Pisareis os perversosporque se farão cinzas debaixo das plantas de vossos pés, naquele diz que preparei;diz o Senhor dos Exércitos.



“O casamento da Virgem”. Autor: Fra Angélico, 1432-1434
Acervo: www.abcgallery.com

Além de ser uma procissão renascentista, natalina, iluminista, criacionista, e metafísica, o Círio é uma procissão existencialista e expressa coletivamente a necessidade do Homem moderno de renascer espiritualmente, superando o desencantamento racional e animalesco da sociedade capitalista moderna, dirigindo com essa esperança transformadora as suas emoções e fé espiritual para um começo idealizado do Universo puro, sem maldade, grandioso, divino, paradisíaco, para o qual espera retornar usando para isso o poder da imaginação e da fé com a intuito de reciclar as energias pessoais; curar doenças; remediar neuroses; quebrar algemas que o prendem à caverna escura do mito platônico e, finalmente, reintegrar-se ao tempo presente, mais forte, renovado, liberto; começando, subjetivamente, um novo ano. Nesse contexto existencialista, o Círio é um remédio filosófico para a crise existencial do ser humano católico diante da Morte, da Doença, da Infelicidade, da Violência, e da Política, oferecendo-lhe a cada ano a possibilidade terapêutica de elevar a sua autoestima como pessoa humana bem como a chance de redescobrir através da linguagem simbólica e arquetípica a responsabilidade pessoal que cada um tem sobre a Vida Espiritual que se espalha divinamente além das fronteiras astronômicas.

Considerações finais

Deixando de lado a opinião extremista de que “os apócrifos são todos fantasias e falsas teologias”, existem três categorias (dos aberrantes, complementares e alternativos) que podem nos ajudar a racionalizar a discussão acerca da importância desses antigos documentos extraoficiais na popularização do Cristianismo e especialmente na caracterização do culto mariano praticado nos dias atuais.

Por apócrifos aberrantes entendem-se aqueles que falsearam ou exageram na descrição dos fatos, por exemplo, da infância de Jesus. Os complementares são aqueles que apresentam dados que complementam os textos canônicos. Nesse grupo estão, por exemplo, os Evangelhos sobre Maria, a mãe de Jesus. Os alternativos são os que trazem novidades, seja no conteúdo, seja na expressão de um pensamento rejeitado e condenado ao esquecimento pelo pensamento hegemônico da época. O Evangelho de Maria Madalena é o melhor exemplo para um texto alternativo apócrifo. Não considerar essa divisão é colocar os apócrifos em uma única categoria, a de textos falsos, mentirosos e não inspirados (FARIA, 2014, p. 2-3).

De acordo com o especialista Faria (2014, p. 6) a maioria dos 88 apócrifos é complementar (52 deles); o restante divide-se em aberrantes e alternativos. Os apócrifos “marianos”, particularmente, entram na categoria dos “complementares”, pois:

A tradição apócrifa mariana conservou o lado mãe de Maria, sua virgindade perpétua e seu apostolado, mas também e, infelizmente, a resignação. Assim como Maria sofreu, as mulheres devem suportar seu sofrimento. Maria é a Virgem, Nossa Senhora e Senhora Mãe de Deus e de nossa salvação, que é o Senhor Jesus Cristo. Sendo assunta aos céus, ela foi a primeira mortal que ressuscitou e, com isso, todo cristão tem a certeza de que também ressuscitará.

Reforçando o caráter complementar dos apócrifos “marianos”, Faria avaliou que:

O retrato de Maria que emerge dos evangelhos apócrifos é o de uma mulher preciosa, mãe e apóstola de seu Filho. Mulher liderança. Mulher mãe de um filho especial. Mulher ternura. Mulher escolhida por Deus para ser a mãe de seu Filho. Mulher reconduzida pelo Filho à morada de Deus. Mulher pura, sem pecado, santa e consagrada a Deus. Diante da postura negativa em relação à mulher, o cristianismo

apócrifo e o hegemônico fomentaram a devoção mariana, apresentando-a como mulher pura, virgem e santa. Os apócrifos são mais contundentes que os canônicos, ao defenderem sua virgindade antes, durante e depois do parto. Maria foi o modelo de mulher, que manteve a virgindade durante toda a sua vida. O próprio marido, José, encarregou-se de conservar essa castidade (FARIA, 2014, p. 31).

Nessa mesma direção, Faria reconheceu que:

Várias tradições populares e catequéticas sobre Maria aparecem a partir dos apócrifos, tais como: coroação de Maria; a palma de Nossa Senhora; a Assunção de Maria; a virgindade de Maria; a consagração a Maria; sua vida em Nazaré; os nomes de seus pais, Joaquim e Ana; a vara do idoso José que floriu ao ser escolhido para ser seu marido; a dormição e não morte de Virgem Maria; a viagem de Maria, José e o Menino Jesus para o Egito; a presença de Maria aos pés de Jesus quando Ele morre (FARIA, 2014, p. 31).

A pesquisa histórica de Faria (2014, p. 30-31) revela que na liturgia da Igreja Católica o dia do nascimento de Maria é celebrado em 8 de setembro. Essa festa, celebrada primeiramente na Igreja do Oriente, foi incorporada ao calendário católico pelo Papa Sérgio I (650-701 d.C.), no correr do século VII. De fato, paradoxalmente, ao longo do tempo, percebeu o especialista Faria que “a Igreja rejeitou os apócrifos, mas fez uso de muitos de seus ensinamentos nos dogmas e na tradição de fé”. Portanto, “com belíssimas narrativas literárias sobre Maria, os primeiros séculos do cristianismo imprimiram uma devoção a ela, que perdura em nossos dias na Igreja oficial e na religiosidade popular”. O resultado disso é que “a devoção popular criou uma piedade mariana, que foi além da orientação do cristianismo hegemônico”.

Diante desses fatos históricos o especialista Faria (2014, p. 11) concluiu que:

O cristianismo hegemônico venceu vários tipos de cristianismos propostos, mas não conseguiu eliminar todos eles. Muitas de nossas práticas e profissões de fé cristã têm também seus fundamentos nas origens apócrifas do cristianismo. Na maioria das vezes, nem temos consciência disso.

Com auxílio da teoria fenomenológica de Eliade identificamos nessa pesquisa os conteúdos universais que se manifestam inconscientemente nas formas e nas linguagens locais do Círio. Esses conteúdos tratam da relação do Homem com a Vida e a Morte, com a Ordem e o Caos, com o Bem e o Mal, com a Luz e as Trevas. Especificamente, avaliamos com essa teoria que existe um mito maior, cosmogônico, mais profundo na roupagem regional e católica do Círio, que é criacionista, rememorando o dia da criação da Luz no Universo, fazendo com que os devotos do Círio retornem à memória bíblica da Gênesis.

Círio quer dizer “vela grande, acesa”, através da qual se projeta a Luz de Deus, de Cristo, e nesse instante, especificamente, de Maria. Nessa perspectiva, o Círio é uma procissão em homenagem à Luz divina através de Maria, resultando, portanto, na vivência do “mito do eterno retorno” que resgata o momento extraordinário em que Deus criou a Luz.

Conforme a reflexão do ilustre padre jesuíta Antônio Vieira, que escreveu o “Sermão da Natividade [de Maria]”, no século XVII, no Maranhão, “- Deus Pai viu a luz no terceiro dia e concluiu que era boa para ser filha; Deus Filho olhou para a luz e concluiu que era boa para ser mãe; finalmente, Deus Espírito-santo olhou para a luz e concluiu que era boa para ser esposa”.

O segundo olhar teórico dessa pesquisa apoiado nas ideias do antropólogo Victor Turner descobriu que os eventos e rituais do Círio podem ser sistematizados e articulados pelo pesquisador usando-se o modelo do Teatro. Nesse caso, adotamos o modelo do drama ao ar livre, o auto, com estrutura cênica própria contendo atos representativos de virtudes e de pecados, revivendo santos e demônios, e com forte preocupação moralizadora e salvacionista em seus diversos rituais abertos ao improviso e às interferências do ambiente externo em que se desenrola a dramatização ou vivência dos devotos.

A linguagem do auto não é estranha à formação da devoção cristã e mariana desde os primordios da colonização jesuítica brasileira. Nessa manifestação teatral ao ar livre, misturavam-se elementos sagrados e profanos que depois eram separadps pelo sermão dos próprios missionários nas categorias pedagógicas clássicas de luz e trevas, ordem e caos, nascimento e morte, Deus e Diabo. Também eram comuns as encenações teatrais com mascarados e brincantes ao redor da Igreja de Nazaré, em Portugal, na Idade Moderna.

A aplicação do modelo teatral nessa pesquisa reorganizou as performances ou desempenhos ritualísticos dos devotos em diversos momentos, e para surpresa nossa ficou claro que são dramatizados e festejados os principais ícones da biografia de Nossa Senhora de Nazaré do Desterro, em diálogo intenso com os apócrifos de Maria.

A ficção do pesquisador e a realidade social fundiram-se harmonicamente nessa pesquisa através da técnica de analogia, que foi bem-sucedida em dois aspectos: descritivo e crítico.

No aspecto descritivo, conhecemos de maneira diferente ou inovadora o começo, meio e fim do Círio, usando os apócrifos como roteiro qualitativo. Por sua vez, no aspecto crítico, descobrimos que existe uma relação de convergência entre os Apócrifos e os Evangelhos canônicos na dinâmica do Círio.

Ao ar livre, os devotos representam a Anunciação do Natal de Maria fazendo comentários no dia a dia, que alimentam a expectativa de chegada do grande evento brasileiro; semelhantemente, fazem a mesma divulgação a Mídia, o lançamento do Cartaz oficial do Círio, as peregrinações paralelas nos bairros e as procissões rodoviária e fluvial na manhã do sábado, entre outras manifestações anteriores ao domingo.

Além disso, encontra-se por analogia o banquete festivo do nascimento de Maria, acontecendo o almoço do Círio, com parentes, amigos e convidados saboreando os pratos regionais da Amazônia, festejando o nascimento de alguém (que pela ordem deve ser Maria, Jesus, e o devoto que renasce espiritualmente nessa data).

A expressão “Feliz Círio!” expressando o mesmo sentimento da frase “Feliz Natal!”, amplamente conhecido pelos antropólogos, reforça também a ideia de que estamos festejando o nascimento de alguém!

Completando o inconsciente natalino da procissão, existe a berlinda sobre quatro rodas, com a imagem peregrina do Círio que carrega Jesus em seu colo. Essa berlinda lembra, geometricamente, um grande útero, pintado de ouro, onde fica atrelada a corda com mais de 300 metros de extensão puxada pelos devotos.

Em muitos locais do Brasil, com exceção atualmente da capital Belém, os devotos puxam esse imenso cordão umbilical através da corda que se movimenta no vai-e-vem da multidão.

Entretanto, na procissão de Belém do Pará, recentemente, a corda recebeu uma extensa armação de metal dividida em várias seções ou estações que são ocupadas pelos devotos de forma controlada para puxar a berlinda, o que descaracterizou o tradicional aspecto do cordão umbilical em movimento coletivo, lembrando oportunamente as contrações explosivas do parto materno, o que se mantém, no entanto, em outras cidades paraenses e brasileiras onde ainda se pratica o Círio inspirado na antiga tradição amazônica da corda linear.

O sagrado desterro de Maria com José e o bebê Jesus fugindo do Rei Herodes repete-se também na procissão do Círio, sobretudo quando milhares de devotos puxam a corda da berlinda que fica no lugar do burro da cena bíblica, transportando Maria e Jesus, e consequentemente, nesse momento os devotos dramatizam o esforço de José na fuga para o Egito, tornando-se cada um deles um José à parte.

Da mesma forma se faz presente o ícone do Nascimento de Jesus, lembrado na procissão através da imagem peregrina, onde o filho é carregado no colo de sua Mãe. Lembrança mais contundente a esse respeito encontra-se na imagem sagrada e histórica de Portugal, com a Virgem da Lactação dando o seio materno ao recém-nascido Jesus.

Outro ato ou performance da procissão é o Retorno da Sagrada Família à Vila de Nazaré, pois semelhantemente quando termina a procissão do Círio, que vem do outro lado da cidade, a imagem de Nossa Senhora descansa e fica disponível à visitação do grande público no meio da Praça-Santuário, no bairro Nazaré, por 15 dias seguidos. No Evangelho, o retorno foi à Vila de Nazaré.

Finalmente, encerra-se a quadra festiva com a representação da morte, “dormida” ou “Assunção” de Nossa Senhora, coincidindo com o que ocorre no Recírio, quando a imagem original achada pelo devoto Plácido no século XVIII novamente sob ao altar-mor da Basílica-santuário, coroada por diversos anjos de Luz. Mais adiante, na mesma solenidade, a imagem peregrina retorna através de concorrida procissão com mais de 50 mil participantes à Capela do Colégio Gentil Bittencourt, onde começou a Transladação, quinze dias atrás. Por último, a imagem peregrina repousa ou “dorme” na Basílica Santuário até a realização do próximo Círio.

Por ser uma prática social regular desde 1793, representando a Cultura, a Religiosidade e a História da Amazônia, e reascendendo, inclusive, valores fraternos e ideais de uma sociedade justa e democrática, justificou-se recentemente, em 2013, o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade ao Círio de Nazaré, de acordo com a decisão da UNESCO, reconhecendo a sua regionalidade, nacionalidade, cristandade e universalidade. Entretanto, além dessas dimensões, apontamos nessa pesquisa mais outra dimensão significativa: a teatralidade ou dramatização que existe na estrutura ritualística do Círio de Belém do Pará, formando uma espécie de auto natalino-mariano.

Pela tradição local, costuma-se dizer que o Círio de Nazaré é o “Natal dos paraenses”. Entretanto, essa máxima regional é uma simplificação histórica equivocada a respeito da universalidade do Círio, pois o culto à natividade de Maria já era praticado em Jerusalém, na chamada Basílica de Santana, desde o século V. Além disso, o Catolicismo Apostólico Romano, na Idade Média, declarou o dia 8 de setembro dedicado à Natividade de Maria, igualmente adotado pelas igrejas Anglicana e Bizantina.

O Círio de Nazaré comemora o Natal não só dos paraenses, mas da Cristandade como um todo, onde se incluem também o Natal de Jesus Cristo e o de São João Batista, sendo que no caso amazônico o Círio é a maior procissão natalina-mariana do planeta em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré.

O diferencial do Círio amazônico consiste em dramatizar e festejar o Natal Mariano; o que até o presente momento passou despercebido pela totalidade dos pesquisadores e teólogos que participam desse grande acontecimento cultural.

Acreditamos nesse sentido que a amnésia histórica ou esquecimento social a respeito dessa data religiosa tenha se perpetuado por influência negativa das chuvas intensas na região, desde 1840, que empurrou o calendário para o mês de outubro.

A análise de conteúdo mostra, portanto, que o Círio é criacionista, iluminista, natalino e existencialista. Todos esses conteúdos se auto complementam e reforçam a ideia do Natal que propõe o dia 8 de setembro, dia da Natividade. A relação do Natal com a Luz pode ser lembrada na seguinte expressão popular: “A mãe dá à luz o seu filho”. Acreditamos, porém, que o tema criacionista aparece como carro-chefe mais profundo no inconsciente popular, pois Círio quer dizer luz de vela grande, acesa na época da Páscoa. Sendo assim, o mito do eterno retorno do Círio é Criacionista, pois está acima da Luz e do Nascimento.

A análise da performance mostra, por sua vez, que existe uma ordem biográfica descrevendo a vida de Nossa Senhora, com seu nascimento, vida e morte, o que segue perfeitamente a evolução dos rituais do Círio do começo ao fim da festa.

No Círio não se relembra diretamente o Natal de Jesus Cristo, mas sim o de sua Mãe, registrado pelos apócrifos. Por isso, a festa do Círio apesar de toda a retórica bíblica dos últimos tempos veiculada por diversos segmentos religiosos, acadêmicos e midiáticos, é uma procissão apócrifa, por natureza, pois reafirma um dado que não é descrito pelos Evangelhos aceitos pelos doutores da Religião Católica e pelo Cristianismo em geral.

Finalmente, juntando-se a análise de conteúdo com a análise da performance descobrimos dois aspectos inovadores.

Primeiramente, na procissão do Círio da Amazônia, em Belém do Pará, Brasil, acontece uma dramatização, um auto natalino-mariano, um teatro devoto invisível ao senso comum que revive a biografia de Maria, a Mãe de Jesus.

É oportuno ressaltar que a rememoração natalina de Maria é rara em outras sociedades do planeta, ao contrário do que ocorre historicamente com o Natal de São João Batista, no Brasil (em junho) e com o Natal de Jesus Cristo (em dezembro), badalados popularmente e reconhecidos em todos os países cristãos.

Em segundo lugar, descobrimos que os apócrifos fazem parte da religiosidade do Círio, e levados ao extremo, como foi o caso nessa pesquisa, complementaram e reforçaram a ideologia mariana do catolicismo oficial, confirmando o que foi dito pelo franciscano Jacir de

Freitas Faria (2014, p. 3), que considerou que “as tradições orais e escritas, sejam apócrifas, sejam canônicas, estão permeadas de interações recíprocas”.

Referências

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DAMATTA, Roberto (1994). O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco.

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MORAES, Patrícia Irina Loose de (2006). O auto da compadecida: do teatro à minissérie. Mestrado (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Marília). Marília, São Paulo.

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Outras fontes de internet:

<http://www.catolicismo.com.br/> Diversos temas.

<http://www.universocatolico.com.br/>. Protoevangelho de Tiago sobre a Natividade de Maria.

<http://www.autoresespiritasclassicos.com/>. Apócrifos da Assunção. Livro de São João Evangelista (o Teólogo).

<http://www.alexandrinabalasar.free.fr/>. Natividade de Maria, homilia de São João Damasceno. Tradução Seminário de Sintra (Portugal). Alexandrina de Bastasar, site oficial.

Heraldo Elias Montarroyos | O drama natalino do Círio de Nazaré... |pp.75-114

Notas

1

Informação disponível em: <http://www.autoresespiritasclassicos.com/>. Evangelho Árabe da Infância de Jesus.

2

Disponível em: .

3

Disponível em: <http://www.autoresespiritasclassicos.com/>. Apócrifos da Assunção. Livro de São João Evangelista (o Teólogo). Tratado de São João, o Teólogo, sobre a Passagem da Santa Mãe de Deus.

Material suplementario
Notas


“Nascimento de Maria”. Autor: Ghirlandaio, 1490.
Acervo: www.abcgallery.com


Nascimento de Maria”. Autor: Giotto, 1306.
Acervo Google.


“Anunciação do Nascimento de Maria”. Autor desconhecido
Acervo Google.


“Descanso na fuga para o Egito”. Autor: Caravaggio séc
XVII. Acervo: www.abcgallery.com


“Anunciação: a flor de Deus”. Autor: Sir Edward Burne-Jones, 1862
Acervo: www.abcgallery.com





“Madona e filho, com São Jerónimo, São José e Santana”. Autor Lorenzo Lotto, 1534.
Acervo: www.abcgallery.com


“Apresentação de Jesus no templo”. Autor: M. Broederlam, 1394-99
Acervo: www.abcgallery.com


“Assunção da Virgem”. Autor: Bartolomé Estebán Murillo, 1670.
Acervo: www.abcgallery.com


“Crucificação”. Autor: Antonello da Messina, 1475-76
Acervo: www.abcgallery.com





“A coroação da Virgem”. Autor: Fra Filippo Lippi, 1441-1447
Acervo: www.abcgallery.com


“Criação do Sol e da Lua”. Autor: Michelangelo, 1512;
acervo: www.abcgallery.com


“A Virgem, a Criança e Santana”. Autor: Leonardo da Vinci, 1516
Acervo: www.abcgallery.com


“O casamento da Virgem”. Autor: Fra Angélico, 1432-1434
Acervo: www.abcgallery.com
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