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Sorôcos, suas mães, suas filhas
Sorôcos, sus madres, sus hijas
Sorôcos, his mothers, his daughters
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 5, núm. 2, pp. 115-127, 2018
Universidade Federal do Espírito Santo

Artigo


Resumo: O artigo analisa a adaptação para o cinema do conto "Sorôco, sua mãe, sua filha", de João Guimarães Rosa (1962). São objeto do trabalho os filmes Cabaret Mineiro, de Carlos Alberto Prates (1980), e Outras Estórias, de Pedro Bial (1999). O trabalho aborda essas duas adaptações, explicitando e comparando as diferentes escolhas tomadas pelos dois diretores para transpor a mesma obra para o cinema. Também analisa o próprio conceito de adaptação, e como as intenções de cada diretor influenciaram no resultado final da transposição da obra literária para as telas do cinema.

Palavras-chave: s: Rosa, Prates, Cinema, Literatura.

Resumen: El artículo analiza la adaptación cinematográfica de la historia "Sorôco, sua mãe, sua filha", de João Guimarães Rosa (1962). Las películas Cabaret Mineiro, de Carlos Alberto Prates (1980), y Outras Estórias, de Pedro Bial (1999), se analizan en este artículo. El artículo compara las diferentes opciones elegidas por los dos directores. Asimismo, se analiza el concepto de adaptación, y como las intenciones de cada director influir en el resultado final de la transposición de las obras literarias para la pantalla grande.

Palabras clave: Rosa, Prates, Cinema, Literatura.

Introdução

Lançado em 1962, o livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa, é composto de 21 narrativas curtas, pequenos contos que versam sobre assuntos diversos e universais, como loucura, morte, família, amor e desejo. O terceiro conto desse livro, intitulado “Sorôco, sua mãe, sua filha”, aborda um acontecimento trágico na vida de uma família: o dia em que um homem envia sua mãe e sua única filha para internação permanente em um hospício. O episódio, narrado através das lembranças de um dos moradores do local que testemunhou o embarque das mulheres, é carregado de tristeza. O personagem principal, Sorôco, é viúvo, e tem nas duas mulheres suas únicas parentes: “afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum” (ROSA, 1988, p. 18). Ele é descrito como sendo

(...) um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava (ROSA, 1988, p. 19).

A mãe de Sorôco, da qual não ficamos sabendo o nome, aparece no conto como uma mulher “de idade, com para mais de uns setenta” (ROSA, 1988, p. 18). No episódio do embarque, estava “de preto, com um fichu preto”, e “batia com a cabeça, nos docementes” (ROSA, 1988, p. 19). Já sua filha é retratada, pelo narrador, como uma moça que

(...) punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas - virundangas: matéria de maluco (ROSA, 1988, p. 19).

São estes três que surgem na estação apinhada de gente, moradores do local que tinham vindo para acompanhar o embarque das mulheres e demonstrar sua solidariedade para com Sorôco: “as muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. (...) Sempre chegava mais povo - o movimento” (ROSA, 1988, p. 18). Após a chegada do trio, e de Sorôco agradecer gentilmente pela demonstração de solidariedade de todos, sua filha começa a cantar, virada para o povo, uma cantiga que “ninguém não entendia” (ROSA, 1988, p. 20). Em seguida, sua mãe passou a acompanhar o gesto da neta, cantando junto com ela. É cantando que as duas embarcam no vagão, e ainda estão cantando quando este parte, levando as duas para Barbacena, de onde “elas não iam voltar, nunca mais” (ROSA, 1988, p. 19). Com a partida do trem, Sorôco se prepara para ir, a pé, de volta para casa. Mas ele para, de repente, e, para surpresa de todos, começa a cantar “a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando” (ROSA, 1988, p. 21). É então que, de forma espontânea e inesperada, todos os presentes passam a cantar a mesma canção, acompanhando o gesto de Sorôco:

E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. (...) A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga (ROSA, 1988, p. 21).

É assim, com esse cortejo incomum, que o conto é finalizado. Embora curta, a narrativa que acabamos de resumir apresenta um inegável apelo emocional, tornando difícil para o leitor não se comover com a situação do trágico personagem Sorôco. Essa característica do conto certamente contribuiu para que o mesmo fosse adaptado para o cinema por pelo menos duas vezes, fazendo parte de dois importantes longa-metragens nacionais: Cabaret Mineiro (1980) e Outras Estórias (1999). O presente artigo tem como objetivo abordar estas duas adaptações, explicitando e comparando as diferentes escolhas tomadas pelos dois diretores (Carlos Alberto Prates e Pedro Bial) para transpor a mesma obra para o cinema, de forma totalmente diversa. Neste artigo, iremos chamar a adaptação da literatura para o cinema de tradução intersemiótica, expressão cunhada por Roman Jakobson em 1959 para

(...) conceituar a transmutação ou interpretação de signos verbais por meio de signos não-verbais. Nesse sentido, a tradução intersemiótica inclui “a busca, em um determinado sistema semiótico, de elementos cuja função se assemelhe à dos elementos de outro sistema de signos” (GUALDA, 2010, p. 217, grifo do autor).

Assim, vamos abordar as estratégias adotadas pelos realizadores para traduzir o texto rosiano em linguagem cinematográfica, utilizando o primeiro capítulo para analisar o filme Cabaret Mineiro, enquanto o segundo será focado no longa-metragem Outras Estórias. O último capítulo será dedicado a explicitar as semelhanças e diferenças entre as duas obras audiovisuais.

Trem do Sertão

O trem do sertão passava às 12h45m (ROSA, 1988, p. 18).

Nascido em 1941, na cidade norte-mineira de Montes Claros, o cineasta Carlos Alberto Prates é considerado, por muitos críticos, um dos maiores diretores brasileiros de todos os tempos. Em 1980, Prates dirigiu seu terceiro longa-metragem, aquele que é tido como sua obra-prima, Cabaret Mineiro. Definido pelo próprio diretor como sendo um filme “etílico-musical” (PRATES, 2015), Cabaret Mineiro é um mergulho profundo na mente e nas lembranças do cineasta, segundo o qual “todas aquelas músicas vieram da minha infância e juventude” (PRATES, 2015). Ao assistir a película, temos a impressão de acompanhar um delírio, contendo reminiscências e fantasias de Prates. Assim, ao longo da projeção, vemos belas paisagens, belas mulheres, e escutamos belíssimas canções. Em uma rara entrevista, Carlos Prates falou um pouco sobre as influências musicais e literárias que podem ser encontradas em Cabaret:

Estamos em 1978. Uns dez anos antes, eu tinha levado o músico Tavinho Moura a Montes Claros, onde ele ficou conhecendo um pouco mais Zezinho da Viola, as festas da Vargem Grande, Antônio Rodrigues. De forma que, ao construirmos a trilha, nossas referências eram precisas. Com o entusiasmo dos drinks, o argumento de “Cabaret” foi se tornando musical. (...) Não faltaram, entretanto, infiltrações literárias: uma crônica de tio Geraldo Prates sobre a rua de baixo, o poema de

Drummond que seria musicado. Foi aí que percebi a necessidade de promover o encontro da marujada com Sorôco, de Rosa, transformando-o no principal delírio do personagem, para uma sequência a ser localizada no meio da fita (PRATES, 2015).

Carregado de várias influências, Cabaret Mineiro é um filme que proporciona a quem o assiste uma experiência única, por vezes incômoda. Nas palavras do crítico Jean Claude Bernardet:

No Cabaret você sente que tudo se realiza, explode, e ele tem um projeto visual, um projeto rítmico muito próprio. Não tem história, podia a qualquer momento cair, podia se desarticular. Mas não, ele vai, se renova a cada instante, a cada instante você tem elementos que vão enriquecer o plano e que você não esperava, uma originalidade de enquadramento, é belíssimo, é belíssimo... (BERNARDET, 1992) .

É, portanto, dentro dessa obra caótica, que “não tem história”, que está incluída a tradução intersemiótica do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, que ocupa os últimos minutos da película. A sequência tem início com a Marujada, um grupo folclórico-musical tradicional da cidade de Montes Claros que, inspirado pelos feitos dos navegantes portugueses, ganha as ruas durante as Festas de Agosto, comemoradas há mais de 100 anos no município. Os “marujos”, com suas típicas vestimentas azuis e vermelhas, surgem na tela cantando e dançando uma das cantigas típicas da região. É ao som da cantiga da Marujada que surge, pela primeira vez na tela, as figuras da mãe e da filha de Sorôco. Ambas surgem dançando, alegres, ao lado de um Sorôco taciturno e quieto. Assim como no conto, Sorôco está vestido de forma respeitável: “Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua melhor roupa, os maltrapos” (ROSA, 1988, p. 19). As duas mulheres trazem uma maquiagem pesada, não natural, que acentua o aspecto teatral da sequência.

Em seguida, surge uma narração em off, dizendo: “A mulher parecia de idade. A filha, só tinha aquela. Não ia sentir falta destas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio”. Estas frases, retiradas do conto (com ligeiras adaptações), fazem referência direta à obra literária. Na sequência, vemos o vagão, parado na estação. A câmera se aproxima lentamente do vagão, que passa a ocupar toda a tela. Podemos, então, ver as duas mulheres, que dentro do carro se olham, sorridentes. Volta a narração: “Iam para um lugar chamado Barbacena. Longe. Para os pobres, os lugares são mais longe”. As frases também são encontradas no texto do conto.

Vemos agora a imagem de Sorôco, que está andando em meio aos marujos, os quais cantam uma música triste, que traz, entre seus versos, a frase “dói coração”. Daí, vemos uma cena curta, em que Sorôco surge agachado no chão, no interior de uma casa, claramente incomodado, enquanto as duas mulheres riem e jogam coisas nele. Esse plano rápido traduz para a tela, sem usar palavras, a seguinte sequência do conto: “De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso” (ROSA, 1988, p. 19-20). A imagem agora é do trem chegando à estação. Esse é um exemplo da montagem fragmentada do filme, que não obedece à ordem cronológica, já que as duas mulheres já haviam aparecido dentro do vagão. As duas mulheres aparecem, agora, abraçadas, fora do vagão, cantando uma música sem letra.

A cena muda para o interior do vagão, que está bastante escuro. As duas mulheres estão lá dentro, olhando para fora, através das grades. A câmera se aproxima das duas, e vemos a figura de Sorôco, que está parado do lado de fora, olhando para o vagão. A iluminação do exterior faz um grande contraste com a escuridão do interior do carro, o que destaca ainda mais o rompimento entre os personagens, já que, a partir de agora, Sorôco vai viver no mundo da “luz”, iluminado pela “razão”, enquanto que as mulheres estarão, para sempre, condenadas ao mundo da “escuridão”, da “loucura”. A cena muda para o exterior, onde a câmera faz um zoom suave, em direção à janela do vagão, onde as duas mulheres olham para fora, acenando. O trem então começa a se mover, levando as mulheres em seu interior.

É a vez de Sorôco aparecer na tela, de perfil. Ele começa a cantar, de forma muito sofrida, a seguinte canção: “Adeus, adeus, minha querida senhora. Eu vou com dores, e sentimento, com pesar de te deixar”. Em seguida, a voz de Sorôco é substituída pela voz dos marujos, que começam a entoar a mesma canção, mas agora no plural da primeira pessoa: “Nós vão com dores (sic), e sentimento, com pesar de te deixar”. Esta pequena mudança na letra alude ao final do conto, quando a população pega para si a dor de Sorôco: “E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas!” (ROSA, 1988, p. 21). O último plano do filme traz a imagem de uma estrada, onde os marujos seguem em seu cortejo, cantando e dançando. Sorôco surge andando, no meio da Marujada. A câmera permanece fixa, acompanhando a passagem do cortejo. Este plano, provavelmente, faz alusão ao menino Carlos Alberto Prates, que tantas vezes deve ter visto a Marujada descendo a rua, nos agostos da vida. A música continua, enquanto a tela escurece e é tomada pelos seguintes dizeres: “De repente, todos gostavam demais de Sorôco. A gente agora estava levando ele pra casa, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde ia aquela cantiga. -Guimarães Rosa”. As frases, adaptadas do conto, são as que o encerram, assim como o filme.

A reverência para com a obra literária que dá origem à tradução intersemiótica aqui analisada fica clara na utilização de frases do livro, em forma de narração e também como linguagem escrita, no encerramento da obra. A admiração que o cineasta tem pelo trem de ferro, o qual aparece diversas vezes, ocupando um bom tempo de tela e ressurgindo, inclusive, no final dos créditos, é uma característica do diretor, que chegou a afirmar, em entrevista, que

(...) os filmes desprovidos de trem me causam grande enfado, chego a pensar que eles não mereciam ser feitos. Em “Crioulo Doido”, que reeditei há pouco, ocorria essa lacuna. A personagem era filha de um ferroviário, mas não havia a imagem do trem porque a linha férrea fora desativada em Sabará, a locação. Aproveitei a oportunidade e, na trilha sonora, usei com desenvoltura o inesquecível ruído de uma locomotiva chegando à estação (PRATES, 2015).

Concluindo essa curta análise de Cabaret Mineiro, podemos dizer que a tradução intersemiótica de “Sorôco, sua mãe, sua filha” contida nessa película apresenta, de forma cristalina, as marcas da autoria de seu diretor. Conforme comenta Gualda,

(...) há um processo de manipulação que existe em qualquer tipo de arte: quando o diretor interfere, ele prioriza um objetivo específico, pré-determinado e deixa claro sua ideologia. (...) Esses conteúdos que o diretor nos mostra, também conhecidos como elementos cinematográficos (o argumento, a ambientação, a escolha do ângulo de filmagem, a caracterização dos personagens, as técnicas de montagem etc.) relacionam-se às paixões do homem (GUALDA, 2010, p. 216-217).

Expresso do Rio

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação (ROSA, 1988, p. 18).

Quase duas décadas após o lançamento de Cabaret Mineiro, foi a vez do jornalista carioca Pedro Bial se aventurar na tradução do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” para a linguagem cinematográfica. Assim como na obra de Carlos Prates, a história da família de Sorôco foi escolhida para encerrar o filme Outras Estórias, que trazia, também, versões dos contos “Famigerado”, “Nada e a nossa condição”, “Os irmãos Dagobé” e “Substância”, todos encontrados no livro Primeiras Estórias. Além de encerrar, a triste história de Sorôco também serve como uma espécie de fio condutor de toda a película, já que as agruras que o homem sofria com a loucura das duas mulheres invadem os outros contos traduzidos para a tela. Além disso, o cortejo que acompanha Sorôco ao fim da projeção tem entre seus participantes todos os personagens rosianos que aparecem no filme (inclusive os mortos), integrando toda a obra em seus momentos finais.

A reverência de Bial para com o texto de Rosa aparece em várias de suas escolhas, como por exemplo, em sua decisão de utilizar um narrador para o episódio, o qual recita frases do conto. Esse narrador é um cego, interpretado por Sivaldo dos Santos, que surge na tela cantando a seguinte canção: “O que mais penso, testo, e explico: todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Ô Maria, leva eu pra lá. Eu num sou solteiro, eu não posso casar”. A letra da cantiga, que traz a afirmação “todo mundo é louco”, já é uma preparação para a história que será narrada a seguir e que traz, justamente, esse questionamento sobre a loucura e a sanidade.

Em seguida, a tela é tomada pela imagem e pelo barulho de um trem chegando na estação. O cego volta a narrar o texto de Rosa: “Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre”. Vemos, então, imagens do interior de uma casa simples, escura, contrastando com a luminosidade exterior, que entra pelas janelas. No interior desse casebre, vemos Sorôco, sua mãe, e sua filha. Chama a atenção à interpretação do ator Antônio Calloni para o trágico personagem. No texto rosiano, a figura de Sorôco é descrita como sendo a de um homem forte, fisicamente - “Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande” (ROSA, 1988, p. 19) - mas que deixa transparecer uma fragilidade emocional impressionante: “E estava reportado e atalhado, humildoso. (...) A voz de Sorôco estava muito branda (...). O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras” (ROSA, 1988, p, 19-21).

Calloni, que é um ator com porte físico avantajado, interpreta Sorôco como um homem que fala baixo, sem olhar nos olhos das pessoas, trazendo sempre um semblante triste, sofrido. Uma interpretação sutil, mas que demonstra com eficiência o sofrimento interior e a delicadeza do personagem no trato com suas parentes, aspectos que aparecem de forma muito contundente na cena em questão, ocorrida no interior da casa. Nessa sequência, Sorôco aproxima-se da mãe, em silêncio, e toca sua cabeça com a dela, delicadamente. A interpretação de Nilza Maria para a velha mãe de Sorôco é caracterizada por um suave bater de cabeça, retirado do conto, que assim descreve a personagem: “A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes” (ROSA, 1988, p. 19).

O cego reaparece, recitando mais uma vez o texto rosiano: “Para onde ia, no levar as mulheres? Era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe”. Sorôco, então, conduz a mãe para fora, para a luz do dia, onde encontra sua filha, e passa a levar as duas, “dando o braço a elas, uma de cada lado” (ROSA, 1988, p. 19). Surgem vozes, em off, de pessoas conversando. As frases trocadas por elas - “Sorôco tinha tido muita paciência”, “Não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio”, “Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais” - se encontram no conto rosiano. Logo, vemos os rostos, em close, das pessoas que estão conversando. Elas continuam dizendo as frases retiradas do livro: “De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava”, “Com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso”. As pessoas que conversavam surgem então em um plano geral. É aí que percebemos que elas estão na estação, que se encontra cheia de gente. A cena, portanto, alude à seguinte sequência do conto:

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas (ROSA, 1988, p. 19).

Volta o cego-narrador, que retoma o texto rosiano: “Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios”. Surge então a família de Sorôco, andando em uma rua de terra. O cego volta a narrar o texto do conto: “Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro”. A filha se solta do braço do pai e começa a dançar de forma estranha, e cantar: “No céu, no céu, café com pão, café com pão. Minha mãe, minha mãe, com minha mãe estarei. No céu, no céu, com minha mãe estarei. Tudo que ajunta espalha”. Sorôco pega a filha pelo braço e conduz as duas para perto do trem, enquanto passa pelas pessoas, dizendo em uma voz quase desaparecida, assim como no conto: “Deus vos pague essa despesa...”.

A mãe de Sorôco, então, se solta e passa a gritar, agarrada ao trem. Ele diz então, com uma voz branda, as seguintes frases, que também estão no livro: “Ela não faz nada”, e “Ela não acode, quando a gente chama”. Em seguida, é a vez da filha se soltar, e subir na frente da locomotiva, cantando: “Eu vou rodando rio abaixo, Sinhá. No céu, no céu, com minha mãe estarei, com minha saudade estarei. No céu com pão, café com céu”. A mãe, então, com um olhar de ternura para com a neta, passa a cantar junto com ela. A sequência é, assim, uma tradução da seguinte passagem do conto:

Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar (ROSA, 1988, p. 20).

Surge agora o interior do vagão, um lugar escuro, onde as duas mulheres entram. A porta se fecha, o trem parte, elas continuam cantando, baixinho. Vemos o trem indo embora. Sorôco sai da estação e passa a andar, sozinho. Escutamos uma voz, vinda de lugar nenhum (e que é a do diretor do filme), que diz a frase retirada do conto: “O mundo está dessa forma...”. Vemos então Sorôco parado, sozinho. O plano geral, com a câmera no alto, acentua a solidão do personagem. Suas roupas claras contrastam com o chão de terra. Ele começa a cantar, de forma sofrida, a mesma música das mulheres. Aos poucos, as pessoas da estação começam a se aproximar dele. Personagens dos outros contos presentes no filme surgem e passam a se juntar ao grupo. O plano geral, com a câmera no alto, é repetido, mas dessa vez há uma diferença: Sorôco não está mais sozinho, mas à frente de uma multidão. Todos, com Sorôco à frente, começam a andar juntos, cantando a mesma música. Volta o narrador-cego: “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga” (ROSA, 1988, p. 21). O cego então começa a cantar a mesma cantiga do início da narrativa: “Ô Maria, leva eu pra lá. Eu não sou solteiro, eu não posso casar”. Ele abaixa a cabeça e se senta, visivelmente abalado. A câmera, então, se afasta lentamente dele, subindo, mostrando a estação por cima e revelando, ao fundo, a multidão cantando e seguindo Sorôco ao longo da rua de terra, que é paralela à linha do trem. FADE-OUT.

Sorôcos, suas semelhanças, suas diferenças

Após realizar a análise dos filmes Cabaret Mineiro e Outras Estórias, podemos concluir que a mesma obra literária, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, deu origem a duas obras cinematográficas totalmente distintas entre si. Isso acontece, porque o processo de tradução intersemiótica - a adaptação de uma história de um sistema semiótico para outro - é um processo fundamentalmente criativo. É o que afirma Haroldo de Campos, segundo quem a “tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca” (CAMPOS, 2013, p. 35). Assim, a tradução é um tipo de criação, relacionada com a obra original, mas que sempre a modifica. T.S. Eliot, escritor e crítico literário inglês, afirma a necessidade de que o tradutor seja também criador. Para isso, ele deve possuir o chamado olho criativo:

Necessitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, tão cheio de vida que deverá parecer tão presente para nós como o próprio presente. Eis o olho criativo (apud CAMPOS, 2013, p. 36).

É, portanto, o olho criativo do tradutor aquilo que permite que a tradução não seja uma simples releitura de uma história, mas sim uma obra nova, fresca, que nasce do encontro da obra original com o talento e a visão de mundo do tradutor/autor. A tarefa de criar uma obra nova a partir da literatura de Rosa parece ter sido assumida abertamente pelo diretor Pedro Bial que, não por acaso, batiza seu filme de Outras Estórias, estabelecendo, desde o título, sua intenção de avançar além da obra original. Como comenta Maria Lúcia Dal Farra:

Mais do que uma interpretação ou uma apropriação da obra primeira, a realização de Bial se impõe como uma recomposição dessas estórias, refeitura que, muito embora conservando delas a espinha dorsal e o texto original, torna-as, entretanto, alheias, converte-as em “outras” - como, com vantagem, o explicita seu título. Não se trata, pois, de mera transposição de uma obra literária para o cinema, mas, antes, e de sobejo, de uma concepção dessa obra literária enquanto possibilidade cinematográfica (DAL FARRA, 2002, p. 300).

Assim como Pedro Bial, Carlos Prates também assume uma atitude livre em relação ao material original. No caso de Prates, seu objetivo parece ser o de criar uma obra carregada com suas referências pessoais. Sobre essa pessoalidade de sua obra cinematográfica, o próprio Prates comenta:

Serei apenas um cineasta mineiro fazendo filmes para mineiros? A resposta pode vir afirmativa, tanto quanto no caso de se dizer que James Joyce escreve para irlandeses. Quem viveu em Dublin talvez sinta uma proximidade maior com o universo dos dublinenses, é claro - o que não impede outras formas de leitura ou fruição. Ao joyceano cinema que eu não imaginava estar praticando - o fluxo da consciência, a associação de ideias, de sonoridades, de gestos, o jogo com a imagem e as palavras -acontecia mais ou menos a mesma coisa desde “Cabaret” (PRATES, 2015).

Bernardet também destaca o caráter memorialista e pessoal da obra de Prates, quando comenta sua obra cinematográfica:

Eu não conheço bem o próprio Carlos, mas acho que ele passou por várias fases e que é uma pessoa que trabalhou muito as suas raízes mineiras. Se você passa do Crioulo Doido, que é um momento de expressão lúdica, para Perdida, que é uma aproximação maior com o mercado, vai encontrar uma descrição mais precisa da ação, dos ambientes, do meio etc, e se continua até o Cabaret, passa a vê-lo agora de volta a uma atitude lúdica, mas já com as raízes definitivamente perdidas. Ele sabe que nunca mais vai encontrá-las e que não adianta chorar, é melhor fazer a festa em cima da perda (BERNARDET, 1992).

Temos, então, dois diretores que, dentro de suas características individuais, criaram seus próprios “Sorôcos”, diferentes entre si, seguindo propostas diversas. Um bom exemplo das diferenças existentes entre essas duas traduções intersemióticas pode ser encontrado no “canto sem razão” das mulheres, e em como ele é imaginado pelos dois diretores. É bom lembrar que, no conto de Rosa, não existe nenhuma indicação sobre a letra da cantiga. Ela é apenas descrita como sendo “um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois” (ROSA, 1988, p. 20). Assim, os dois criadores cinematográficos tiveram toda a liberdade para criar, cada um à sua maneira, a “cantiga de desatino”.

Na obra Outras Estórias, o diretor Pedro Bial escolheu misturar músicas religiosas católicas (“no céu, no céu, com minha mãe estarei”) com uma cantiga infantil, que faz alusão ao som produzido pelo trem de ferro (“café com pão, café com pão”). Já em Cabaret Mineiro, Carlos Prates retira, de suas memórias de infância, uma típica marujada de Montes Claros, não só na música, mas também nas vestimentas e no tipo de cortejo. Nas palavras do próprio diretor: “Foi aí que percebi a necessidade de promover o encontro da marujada com Sorôco, de Rosa, transformando-o no principal delírio do personagem” (PRATES, 2015). Vemos neste caso, de forma cristalina, as “digitais” de cada realizador. É como afirma Gualda, quando comenta sobre a responsabilidade do cineasta:

Esses conteúdos que o diretor nos mostra, também conhecidos como elementos cinematográficos (o argumento, a ambientação, a escolha do ângulo de filmagem, a caracterização dos personagens, as técnicas de montagem etc.) relacionam-se às paixões do homem (GUALDA, 2010, p. 217).

São as escolhas de cada cineasta, suas intenções, as responsáveis por dar, a cada tradução intersemiótica, o caráter específico, único, de uma obra de arte que podemos chamar de “original”, mesmo que inspirada em outra, advinda de outro sistema semiótico.

Conclusão

Entre nossas conclusões sobre as traduções intersemióticas analisadas, podemos destacar que a visão de mundo e o talento de cada diretor cinematográfico são fundamentais para se chegar à obra final, já que as modificações em relação ao texto literário são inevitáveis. Conforme explica Gualda:

O adaptador, por mais fiel que seja à obra de partida, suprime certos episódios para ampliar outros que lhe parecem bem mais interessantes a seus propósitos, já que a fidelidade é impossibilitada pelos diferentes meios de expressão do romance e do filme (GUALDA, 2010, p. 214, grifo nosso).

O autor Robert Stam vai mais além, afirmando que a fidelidade na transição literatura-cinema, além de improvável, é, além disso, indesejável:

A noção de “fidelidade” contém, não se pode negar, uma parcela de verdade. Quando dizemos que uma adaptação foi “infiel” ao original, a própria violência do termo expressa a grande decepção que sentimos quando uma adaptação fílmica não consegue captar aquilo que entendemos ser a narrativa, temática, e características estéticas fundamentais encontradas em sua fonte literária. A noção de fidelidade ganha força persuasiva a partir de nosso entendimento de que: (a) algumas adaptações de fato não conseguem captar o que mais apreciamos nos romances-fonte; (b) algumas adaptações são realmente melhores do que outras; (c) algumas adaptações perdem pelo menos algumas das características manifestas em suas fontes. Mas a mediocridade de algumas adaptações e a parcial persuasão da “fidelidade” não deveriam levar-nos a endossar a fidelidade como um princípio metodológico. Na realidade, podemos questionar até mesmo se a fidelidade estrita é possível. Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (STAM, 2008, p. 20, grifos do autor).

Partindo, portanto, da mesma obra literária, e não estabelecendo a “fidelidade” livro-filme como um alvo desejável, os dois realizadores conseguiram fazer obras novas, originais, embora ainda relacionadas com o texto de partida. É como afirma Gilberto Figueiredo Martins, quando comenta que a adaptação intersemiótica pode ser encarada como “transmutação, recriação e, mesmo, leitura crítico-artística da obra original, revitalizando-a e gerando uma outra informação estética, autônoma” (apud GUALDA, 2010, p. 215). A leitura crítica da obra original é, portanto, inerente à tradução intersemiótica, conforme explica Campos:

A tradução da poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) é antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico diverso. Por isso mesmo a tradução é crítica (CAMPOS, 2013, p. 43).

Assim, podemos encerrar este trabalho concluindo que tanto Carlos Prates quanto Pedro Bial foram bem-sucedidos em criar filmes relacionados ao belo texto rosiano que os inspirou e que, indo adiante deles como uma locomotiva (louco-motiva?), os rebocou para que passassem a existir como obras autônomas.

Referências

BERNARDET, Jean Claude (1992). Entrevista. Acesso em: 26/07/2015. Disponível em: <http://www.cinemadeprazer.art.br/#!uma-atitude-ludica/cpo0>.

CAMPOS, Haroldo de (2013). Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva.

DAL FARRA, Maria Lúcia (2002). “As primeiras e as outras estórias: de Guimarães Rosa a Pedro Bial”. Scripta. Belo Horizonte, v. 5, n. 10. Acesso em: 27/0/2015. Disponível em: <http://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta10/Conteudo/N10_Parte0 1_art23.pdf>.

GUALDA, Linda Catarina (2010). “Literatura e Cinema: elo e confronto”. Matrizes. São Paulo, Ano 3, n. 2, jan/jul. Acesso em: 31/07/2015. Disponível em: <www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/view/149/248>.

PRATES, Carlos Alberto (2015). Entrevista. Acesso em: 26/07/2015. Disponível em: <http://mostradofilmelivre.com/13/prates_entrevista.html>.

ROSA, João Guimarães (1988). Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

STAM, Robert (2008). A literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da adaptação. Tradução de Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Daniel Silva Moraes | Sorôcos, suas mães, suas filhas |pp. 115-127



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