Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar reflexões sobre experiências e vivências ocorridas no núcleo urbano, tendo como base o conceito de cenas musicais. As análises resultam de um recorte da pesquisa que investiga como surgiu a cena musical de rock autoral, a partir de seis vozes de indivíduos que movimentaram o cenário da cidade de Joinville - SC, durante a década de 1990, realizada junto ao Programa de pós-graduação da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE, mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade, na linha de Patrimônio e Memória Social. A investigação é sustentada pela Metodologia da História Oral, tendo por base o conceito de Sônia Maria de Freitas (2006), método em que a técnica da entrevista e procedimentos articulados entre si são utilizados para registrar narrativas da experiência humana.
Palavras-chave:Cenas MusicaisCenas Musicais,PráticasPráticas,CidadeCidade,IdentidadeIdentidade.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar reflexiones sobre experiencias y vivencias que ocurrieron em el núcleo urbano, teniendo como base, el concepto e escenas musicales. Los análisis son el resultado de un recorte de la investigación que estudia cómo se desarrolló la escena musical del rock autoral, a partir de seis voces de individuos que impulsaron el escenario de la ciudad de Joinville - SC, durante la década de 1990. Ésta investigación fue realizada junco con el Programa de pós-graduação de la Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE, maestria em Patrimônio Cultural e Sociedade, en la línea de Patrimônio e Memória Social. La investigación es apoyada por la metodología de la historia oral, basado en el concepto de método de Sonia María de Freitas (2006), utilizando la técnica de la entrevista y procedimientos articulados entre sí para registrar narrativas de la experiencia humana.
Palabras clave: Escenas Musicales, Prácticas, Ciudad, Identidad.
Abstract: This article aims to present reflections on experiences and practices, occurring in the urban nucleus, based on the concept of musical scenes. The analysis result of part of a research that investigates how was the music scene of independent rock, from six voices of individuals who moved the scenery of the city of Joinville - SC, during the 1990s, held in conjunction with the Postgraduate Program of the University of the Region of Joinville - UNIVILLE, master's degree in Cultural Heritage and Society, in the line of Patrimony and Social Memory. The research is supported by the Methodology of Oral History, based on the concept of Sônia Maria de Freitas (2006), a method that uses the technique of interview and procedures articulated among each other to record narratives of human experience.
Keywords: Music Scenes, Practices, City, Identity.
Artigo
Cenas musicais: Descortinando experimentos na cidade
Escenas musicales: Describiendo experimentos em la ciudad
Musical scenes: Unveiling the experiments of the city

As cenas musicais suscitam uma pluralidade de práticas. A partir desta constatação, este artigo propõe reflexões acerca de como este fenômeno cultural descortina experimentos diversos nas tessituras de uma cidade. As considerações que serão aqui expostas são decorrentes da pesquisa sobre a cena musical de rock autoral, na cidade de Joinville, durante a década de 1990.
A trajetória seguida na perquirição para decifrar o problema é sustentada pela Metodologia da História Oral, compreendida, conforme Sônia Maria de Freitas (2006), como um método que utiliza da técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si para registrar narrativas das experiências humanas. Estas narrativas podem ser interpretadas como um texto composto por desejos, normas, regras e fugas, passível de ser lido como articulador de discursos, inseridos em uma rede que lhe confere sentidos (GUIMARÃES NETO, 2012, p. 18).
Desta forma, foram entrevistados seis atores envolvidos nos processos estudados na pesquisa como integrantes de bandas, produtores culturais e público fã de rock. Não obstante, além das memórias relatadas, objetiva-se também operar um levantamento teórico sobre conceitos de cenas musicais abordando variações e pontos comuns.
A utilização do termo “cenas musicais” para referenciar movimentos que têm a música como núcleo remonta a primeira metade do século XX quando jornalistas cobriam shows de jazz. Já nas décadas de 1980 e 1990, a expressão popularizou-se, novamente, através do uso jornalístico nas coberturas e matérias que tratavam de práticas musicais distintas, não somente vinculada a um gênero específico (NASCIMENTO, 2014, p. 01).
Porém, academicamente, os estudos acerca do entendimento de cenas musicais foram deflagrados em 1991, pelo professor do Departamento de Comunicação e História da Arte da Universidade de McGill, Montreal-Canadá, Will Straw (BENNET, 2004, p. 225). Os apontamentos levantados por Straw remetem aos exercícios musicais flutuantes, existindo de maneiras diversas a partir da troca e da fertilização. Ou seja, não se trata somente de um estilo musical, mas, sim, as práticas que surgem a partir do apreço nutridos por pessoas que comungam de um tipo de música.
Em consenso com o autor (1991) uma cena musical é compreendida nestas reflexões, como um espaço cultural, onde coexiste uma série de práticas musicais interagindo umas com as outras em esfera variada de processos de diferenciação, e em conjunto com amplas trajetórias diferentes de mudança e fertilização cruzada.
O conceito de cenas musicais, portanto, se configura oportuno nas análises de unidades culturais constituídas por limites invisíveis e elásticos, as quais evocam, simultaneamente, o que tem de íntimo em uma comunidade e o cosmopolitismo fluido da vida urbana. Para a comunidade, é adicionada uma sensação de dinamismo e, para a vida urbana cosmopolita, revela os círculos internos e histórias secretas ou através de práticas e locais nada visíveis espetacularmente, ou da mídia (STRAW, 2006, p. 6).
Pontualmente, Wil Straw configura uma cena musical como:
(...) (a) a congregação recorrente de pessoas em um determinado lugar, (b) o movimento dessas pessoas entre este lugar e outros espaços de congregação, (c) as ruas em que esses movimentos acontecem (d) todos os lugares e atividades que cercam e nutrem uma preferência cultural particular, (e) os fenômenos mais amplos e geograficamente dispersos de que este movimento ou essas preferências são exemplos locais, (f) as redes de atividades microeconômicas que possibilitam a sociabilidade e ligam esta cena à cidade (STRAW, 2006, p. 6).
Os requisitos elencados pelo autor sintetizam o entendimento do que vem a ser uma cena musical, reforçando que essa não se limita apenas ao apreço por um gênero de música. Contudo, caracteriza pelos movimentos experimentados pelas pessoas a partir desse gosto por um estilo. Isto é, uma cena musical resulta de encontros, de eventos, de espaços de sociabilidade, consumo e assim por diante.
Desta forma, são essas vivências nos espaços constituídos por ruas, esquinas, bares, praças, tendo como ensejo determinado gosto musical, que demonstram as possibilidades que a ideia de cenas musicais oferece para mergulhar nas investigações acerca de como a cidade é experimentada, a partir de uma expressão cultural como a música. A relação das cenas com as cidades viabiliza perceber as suas múltiplas facetas, pois esses momentos de sociabilidade produzem tramas, projetos e identidades de grupos, concedendo um sentido estético da cidade como um espaço de sensações e teatralidades, revelando, assim, uma cartografia das regiões da urbe e sua interligação (STRAW, 2006, p. 8).
Will Straw (2004) ressalta que, com base no entendimento sobre o que vem a ser uma cena, é possível mapear o território da cidade com novos olhares, designando certos tipos de atividades cuja relação com o território não se afirma facilmente. As cenas são derivações dos excessos de sociabilidades que alimentam a inovação e a experimentação incessante da vida cultural das cidades, já que possuem um papel produtivo e prático da existência urbana, por serem infraestruturas para troca, interação e instrução. Portanto, o conceito de cenas musicais não se aplica somente para observar casos associados à música. Pode-se aplicar seu entendimento para os mais variados gêneros artísticos. Contudo, é na esfera musical onde encontra maior relação, tendo em vista que a produção e o consumo de música oferecem uma sociabilidade urbana móvel, intimando o público a sair pela cidade, consumir cultura, interagir coletivamente em mesas de bar, e conversar publicamente e em grupos (STRAW, 2004, p. 413). Portanto, o conceito é eficaz nas análises de unidades culturais que apresentam limites invisíveis e elásticos, podendo, ao mesmo tempo, evocar o que tem de íntimo em uma comunidade e o cosmopolitismo fluido da vida urbana. Para a comunidade, adiciona uma sensação de dinamismo e, para a vida urbana cosmopolita, reconhece círculos internos e histórias secretas através de práticas e locais sem visibilidade espetacular ou da mídia (STRAW, 2006, p. 6).
Como visto, as práticas realizadas no espaço estão estreitamente interligadas com a configuração de uma cena musical. A compreensão dos espaços e dos lugares segue aqui em conformidade com o que o historiador Michel de Certeau apontou em sua obra A invenção do cotidiano. Primeiramente, o autor apresenta uma distinção, salientando que “lugar é a ordem (...) uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade” (CERTEAU, 1998, p. 199). O lugar, nessa perspectiva, é o imóvel, aquele recinto estável, reconhecido fisicamente e facilmente demarcado, como uma praça, um bar, uma loja, um supermercado.
Certeau (1998) entende que o espaço se configura por intermédio das vivências praticadas dentro das fronteiras do lugar. Melhor dizendo, o lugar é transformado em espaço a partir das dinâmicas, dos fluxos, dos movimentos que cada indivíduo atua, conferindo potência e atualizado o lugar. O autor afirma que “o espaço é o cruzamento de móveis (...) animado pelo conjunto de movimentos que ai se desdobram (...) é produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente (...)” (CERTEAU, 1998, p. 200).
O lugar praticado é a junção da limitação física de um local com a mobilidade das atividades de locomoção de uma coletividade que, a partir dessas ações de práticas, promovem o significado do espaço, justamente pelas vivências e o contato físico dos indivíduos. Outrossim, o autor compara a relação do espaço e do lugar com a palavra e a anunciação, salientando que o espaço estaria para o lugar como a palavra falada que, ao ser efetuada, pode ser percebida sua ambiguidade, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções (CERTEAU, 1998, p. 200). Assim, os lugares praticados adquirem o status de espaços e estão vinculadas com os relatos, as descrições, as narrativas.
A partir dos relatos, das falas, das narrativas, produzem-se significados para os lugares e evidenciam como cada um deles é praticado de maneiras distintas, para além do simples estar e atuar presencialmente em um local. Assim sendo, o conceito de cenas propicia sintonizar com os momentos em que a sociabilidade, inicialmente subterrâneas, cria corpo, a partir de diálogos e objetivos comuns, viabilizando mobilidades de grupos que (re)desenham a cartografia da cidade.
As memórias narradas por atores da cena musical de rock autoral1 da cidade de Joinville - Santa Catarina durante a década de 1990 oportunizam a compreensão da relação que o conceito de cenas propõe com os lugares e as práticas. Em meio à cidade do nordeste catarinense, grupos de pessoas, a partir do gosto comum entre a música, especialmente, o rock, mobilizaram-se em encontros e outras formas de sociabilidade em diferentes locais da malha urbana.
A realização de shows, por exemplo, aconteciam em pontos distintos, não mantendo
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uma continuidade. Conforme o relato de Ricardo Borges2, que durante a década de 1990 integrou bandas e organizou eventos, não havia um lugar fixo para realizar eventos. Além disso, quando havia, era por pouco tempo. Desta maneira, diferentes bairros da cidade foram experimentados por cederem, ainda que uma única vez, locais para a realização destes concertos de rock.
a
Para Rafael Zimath3, os “espaços eram espaços alternativos”. Rafael também atuou incisivamente nos movimentos aqui estudados durante os anos de 1990, como músico ou produtor cultural. Sua narrativa vai ao encontro da proferida por Ricardo, isto é, assegurando que não havia um estabelecimento próprio para promover shows de rock, motivando estes atores a “ocupar os espaços que tinham na cidade”. E quais seriam estes espaços? Praças, bares, associações de bairros, galões de igrejas, entre outros.
Nesse sentido, José Carlos de Souza4 em seu relato ilustra essas buscas por alternativas de espaços para organizar shows. José, diferentemente dos anteriores, não foi integrante de nenhum grupo musical. Contudo, frequentou ativamente os eventos e, mais tarde, foi proprietário de uma casa destinada para shows de música. O ator afirma lembrar-se de eventos em lugares diversos. Diz: “lembro que rolou em algumas associações de bairro, rolou em um galpão de igreja lá no Aventureiro, show de metal ainda (risos)... Sangue de Jesus tem poder, em bares que abriam e fechavam em um mês, dois meses...”.
Conforme os levantamentos de Straw sobre o que vem a ser uma cena musical, há o movimento de grupos de pessoas entre lugares e espaços de congregação, além das ruas em que esses movimentos se realizam e as atividades que cercam e nutrem uma preferência cultural particular. Assim, apenas a realização dos shows em locais alternativos da cidade, não seriam suficientes para aproximar o conceito com as práticas ocorridas em Joinville na década de 1990.
Entretanto, as memórias narradas pelos atores entrevistados mediante a Metodologia da História Oral suscitam as observações aqui expostas. Conforme os depoimentos dos entrevistados foram destacados dois espaços em Joinville, no período pesquisado. O primeiro deles é a loja de discos Rock Total5, ponto de encontro e de práticas durante a década investigada. Marcelo Oliveira da Silva6, que trabalhou no estabelecimento, afirma que a loja foi fundamental para a cena musical de rock da cidade. Em suas palavras: “se não tivesse a Rock Total seria mais difícil por que ali era o ponto, né... Ali tu trocava ideia, tu colocava teu anuncio, tu encontrava o que tu queria”. Sem hesitar, Marcelo sentencia: “é, era referência né (...) virou um ponto de encontro”.
Posição reforçada por Thiago Fiuza7, outro ator ativo nos movimentos musicais em Joinville naquela época. Para ele, não restam dúvidas de que a loja de discos “foi um lugar importantíssimo” para a constituição da cena musical de rock da cidade. A loja Rock Total cedia seu espaço para as bandas locais apresentarem seus materiais sem qualquer contrapartida, além de permitir que as pessoas ficassem em suas dependências ouvindo músicas, trocando referências musicais, conhecendo novas pessoas, organizando eventos. Thiago relembra que “aquele negócio fervia na gente, era, né, então uma coisa muito intensa”.
O segundo local que surge a partir dos relatos, é um supermercado joinvilense
• 8 constantemente frequentado por estes atores da cena rock. Marcelo Oliveira da Silva8 conta como funcionava a peregrinação destas pessoas aficionadas pelo rock nesses espaços. De acordo com o entrevistado, tudo iniciava nas tarde de sexta ou sábado em frente à Rock Total. Posteriormente, após o horário de atendimento encerrar, as pessoas se locomoviam para o interior do supermercado, para continuar as conversas, os planos, as trocas. Esse percurso era traçado com certa constância ao logo daqueles anos.
A mesma percepção sobre o espaço praticado é reiterada por Marcos Maia9, outro integrante de banda e produtor cultural que atuou nessa cena. O supermercado, para Maia, “virou um antro da galera, a galera bem dizer underground”. Segundo o entrevistado, além dos espaços evidenciados pelos outros atores, estes indivíduos frequentavam uma praça em frente ao supermercado, estendendo os encontros por muito mais horas.
O conceito de cenas musicais é foco de reflexões de estudiosos brasileiros que, a partir de Will Straw, buscam reconfigurar o fenômeno. Para Simone Pereira de Sá (2012) é possível conciliar as cenas com as noções de espaço, território e lugar nos seus aspectos geográficos, possibilitando que o pesquisador cartografe as sociabilidades e as regiões de uma cidade, partindo das interconexões que apontam para a organização de grupos que comungam por um mesmo gosto por meio dos espaços metropolitanos. Isto é, o conceito de cenas permite sintonizar com as ocorrências em que a sociabilidade que, em um primeiro momento aparenta ser subterrânea e sem objetivos, ganha sustância, sujeita a identidades de grupo através de diálogos e objetivos comuns, revelando a multiplicidade de atividades e mobilidades destes que, através de seus movimentos, (re)alinhem as cartografias da cidade.
As práticas dos atores dessa cena especificamente tratada no presente trabalho caminham nessa direção, ou seja, as narrativas sinalizam a existência de um fator comum e, consequentemente, condutas que mapeiam espaços na cidade, praticados pelas vivências, experiências, trocas.
É importante salientar que o aparecimento dos estudos referentes às cenas musicais desponta em um período de intensas transformações urbanas. A última década do século XX presenciou um trânsito internacional de comércio, cultural, migrações e mídias variando a relação entre culturas locais entre si e com o mundo. Além do que, conceitos há tempos enraizados, oriundos da modernidade, como Estado-nação, comunidades, territórios, identidades fixas e estáveis, passam a ser problematizados (SÁ, 2012, p. 149).
Desta maneira, a investigação das cenas musicais, propicia oxigenar os olhares acadêmicos que vinham sendo direcionados para as interpretações de movimentos e aglomerações de grupos nas sociedades ocidentais a partir da segunda metade do século XX. Em consonância com João Freire Filho e Fernanda Marques Fernandes (2005) o termo cenas musicais faz parte de uma série de novas terminologias - como canais, subcanais, redes, comunidades emocionais, neotribos - que surgem a partir da revisão dos estudos e métodos levantados pelo Centro para Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham, durante a década de 1960 e 1970, acerca das subculturas, reavaliando, assim, a relação entre jovens, música, estilo, identidade, na esfera social do dinâmico contexto dos anos de 1990 que produzia novas e híbridas constelações culturais.
Este detalhe dos novos e flexíveis modos culturais considerados híbridos é uma particularidade relevante para a pesquisa sobre as cenas musicais de rock autoral na cidade de Joinville durante os anos 1990, por justamente ir ao encontro do entendimento do próprio conceito de cenas visto anteriormente. Assim, o hibridismo é alinhado às proposições do sociólogo Nestor Garcia Canclini e compreendido como resultante de “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e praticas” (CANCLINI, 2013, p. XIX).
Isto é, segundo Canclini (2013), estes processos são resultados dos fluxos migratórios, turísticos e de intercâmbios econômicos ou comunicacionais, que brotam a partir da criatividade individual e coletiva nas artes, na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico, sem um prévio planejamento. Assim sendo, o termo “hibridismo” engloba a comunhão intercultural como fusões raciais ou étnicas, o sincretismo de crenças e outras misturas modernas entre o artesanal e o industrial, o oculto e o popular, o escrito e o visual, constantemente proliferado pelas mídias. Portanto, para Canclini, não há fronteiras entre culturas, crenças, práticas ou raças, mantendo estes valores fixos e imutáveis não encontram subsídios nas propostas do sociólogo argentino. Há, ao contrário, uma pluralidade de elementos que alimentam uma heterogeneidade fluida. Daí, a expansão urbana, passa a ser um fator substancial na promoção da hibridação cultural, tendo em vista que, ao longo do século XX, o aumento da população que vive nos centros urbanos vem traçando uma trama disposta de ofertas simbólicas heterogêneas, sendo alterada pela interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação (CANCLINI, 2013, p. 285).
As cenas do rock demonstram o movimento cultural na cidade de Joinville, que de acordo com a historiadora Ilanil Coelho (2010), no início da década de 1990, a cidade tinha uma população total de 347.153 (trezentos e quarenta e sete mil cento e cinquenta e três) pessoas. Deste montante, 48% por cento era formado por pessoas não naturais da cidade, ou seja, 166.607 (cento e sessenta e seis mil seiscentos e sete) pessoas não nasceram na localidade10.
As informações indicam um crescimento populacional urbano e que praticamente a metade da população joinvilense era oriunda de outras regiões o que, desta maneira, demonstra a diversificação de valores e práticas culturais em um mesmo território.
Nesse sentido, Ilanil Coelho salienta
Joinville - como tantas outras cidades contemporâneas - pulsa (n)o tempo presente, marcado por disjunções, superposições e complexidades de fluxos de pessoas, tecnologias, finanças, imagens e informações. Seus paradoxos - visíveis e invisíveis - igualmente pulsam nos sujeitos (moradores da cidade) que vivenciam e promovem entrecruzamentos, mediações e hibridismos, desenrolando jogos entre semelhanças e diferenças (COELHO, 2010, p. 30).
A historiadora ressalta a pulsação da cidade, nos anos 1990, em acordo com aquele período histórico, marcado pelas mudanças, pelas trocas e transformações nas esferas econômicas, sociais e culturais. Isto iniciou em função da reestruturação das indústrias locais, aumentando assim a possibilidade de emprego, das incorporações de novas tecnologias em várias dimensões da vida urbana, e a criação de projetos políticos e empresariais que visavam a expansão do setor de serviços. Como resultado, ocorreu maior incidência de deslocamentos humanos para a cidade e de relacionamentos sociais sobre a urbe, ou seja, novos hábitos de consumo e lazer, processos de localização, encontros e desencontros, entre outros.
A cena musical de rock autoral ocorrida em Joinville/SC nos anos de 1990 deu-se em um cenário de nítidas movimentações. A expansão populacional urbana de Joinville, o aumento das possibilidades de emprego, das novas tecnologias, entre outros fatores desenharam um palco propício para diversas manifestações, práticas, vivências.
No jogo compartilhado entre cenas e os cenários constituídos pelas tessituras da cidade há, como temos visto, possibilidades de práticas. À vista disso, outra ponderação que aqui se faz é em relação às identidades em meio a essa conjuntura, aqui entendido em conformidade com o sociólogo Stuart Hall. Segundo o autor, a idealização de uma identidade unificada, completa, segura e coerente não encontra mais respaldo na contemporaneidade. Pelo contrário, com a multiplicação dos sistemas de significação e representação cultural, constantemente encontramos uma multiplicidade “desconcertante e cambiante de identidades possíveis”, com as quais podemos nos identificar, ainda que temporariamente (HALL, 2006, p. 13). As cenas musicais, desta maneira, podem representar uma destas identidades possíveis.
Ainda conforme Hall (2006) em detrimento da mundialização da cultura, as identidades consideradas estáveis e fechadas são contestadas e deslocadas, instigando variedades e novas posições de identificações, tornando-as mais políticas, plurais, diversas, menos fixas e unificadas. Relevante pensar que a troca de valores culturais se manifesta também em função do consumo de elementos de culturas diversas. Como consequência, o próprio processo de identidade perpassa pelo ato de consumir, criando tensões entre as culturas locais e globais. Por exemplo, os grupos de indivíduos nos movimentos que configuram a cena musical de Joinville durante a década de 1990, ou seja, o gênero musical rock. Ainda, conforme Jeder Janotti Júnior (2003), nesse contexto, este estilo é um mapa constantemente reconstruído, estando sujeito às inconstâncias do mercado, dos vazios entre gerações, da variadas formas de vivências juvenis e das negociações efetuadas entre a cultura mundializada e suas manifestações locais.
Para os atores da cena musical de rock autoral joinvilense, pertencer a um grupo mobilizado por um interesse comum e, apoiados a isso, praticar os espaços da cidade era uma forma de se identificar e expressar. O ator entrevistado Thiago Fiuza11 relata que aquelas pessoas pretendiam propor algo com aquele tipo de movimentação. Ele, que durante os anos 1990 foi integrante de duas bandas dessa cena, afirma: “a gente queria passar a nossa mensagem. A gente queria se divertir de uma forma diferente do mainstream de Joinville, sacou?”.
No caso relatado por Thiago, o processo de identidade se deu como uma maneira de transmitir algo diferente do que os jovens joinvilenses, eu seu entendimento, estavam acostumados fazer. Para isto, fazer parte daquela cena era um caminho. Ao ser questionado se fazer parte daqueles acontecimentos seria assumir uma identidade e um meio de expressão,
Rafael Zimath12 também acena positivamente. O entrevistado afirma que fazer parte de uma banda naquele período, participar dos encontros, buscar alternativas, criar as próprias composições, organizar eventos são maneiras de assumir uma identidade. Rafael assevera achar “um ato político você ter coragem de se expressar o que você sente, o que você acha sobre a vida, sobre o mundo, sobre seus próprios sentimentos assim, eu acho que é sem dúvida”13.
Já para Ricardo Borges13 estar em meio aquela cena era uma forma de se identificar e diferenciar, justamente pelo fato de gosta de música e viver em detrimento disso. Em sua percepção, era dificultoso, naquele período, estabelecer convívio com alguém com gosto diferente do seu e das outras pessoas que atuavam na cena. Em suas palavras “eu não sei se e proposital, mas isso acaba diferenciando as pessoas assim e muita gente busca isso, fazer parte disso, mostrar que ta ali ou simplesmente se sentir ali sem mostrar né”.
Acerca das identidades e diferenciações, o antropólogo francês Denys Cuche advoga que a identidade é constituída em uma relação que opõe grupos em contato, não havendo identidades em si, e nem unicamente para si, existindo sempre a partir de outra. Desta maneira, a identificação acompanha a diferenciação, sendo a identidade o resultado de um processo de identificação no interior de uma situação relacional. Contudo, ela também é relativa e pode evoluir conforme a situação relacional (CUCHE, 1999, p. 183).
Práticas, usos dos espaços, sociabilidades e identidades são apenas algumas das possibilidades que o conceito de cenas musicais oferece para interpretar um conglomerado em torno de uma manifestação cultural e artística. Além do mais, é necessário salientar que, sem o fenômeno da música, nada disso seria possível. Sendo assim, os prós em ter como objeto de investigação a música são, no mínimo, inspiradores para pensar a cidade em suas múltiplas faces.
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1
Entende-se por bandas de rock autoral aqueles grupos determinados em executar um repertorio musical constituído por músicas de suas próprias autorias, diferentemente dos grupos considerados covers, ou seja, os quais são especializados em tocar músicas de artistas já consagrados. O “rock” evidenciado no reconhecimento desta cena é justamente por se tratar de bandas que possuíam a sonoridade deste gênero e de suas vertentes.
2
Ricardo Borges (entrevista realizada em 25 de abril de 2016).
3
Rafael Zimath, (entrevista realizada em 03 de março de 2016).
4
José Carlos de Souza (entrevista realizada em 01 de abril de 2016).
5
Fundada em 1990, a loja existe até os dias de hoje. Foi e é especializada em vendas de variados artigos de rock, como discos de bandas em vinil, Cd's, camisetas, pulseiras, sapatos, lenços, bonés, chaveiros, canecos, cintos, entre outros.
6
Marcelo Oliveira da Silva (entrevista realizada em 22 de outubro de 2016).
7
Thiago Fiuza (entrevista realizada em 22 de outubro de 2016).
8
Entrevista já referenciada.
9
Marcos Maia (entrevista realizada em 16 de fevereiro de 2016).
10
As informações oferecidas pela historiadora Ilanil Coelho foram levantadas com base no Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
11
Entrevista já referenciada.
12
Entrevista já referenciada.
13
Entrevista já referenciada.