Prosa

Menino afeminado

Renan Gomes de Moura
Universidade do Grande Rio, Brasil

Menino afeminado

Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 5, núm. 2, pp. 161-163, 2018

Universidade Federal do Espírito Santo

O sol já havia ido embora. A noite sorria. Uma brisa fresca trabalhava, enquanto as cigarras iam aos poucos baixando suas vozes. Era verão, os insetos já festejavam sob a lâmpada da rua. E eu não sabia para onde eu ia.... Sentia-me como uma bicicleta de rodas

quadradas. Estava engasgado com a angústia. Era o mundo inteiro, e eu só. Sem rumo. Acendi um cigarro, e olhei para o nada. Eu nem sabia fumar; mas à fumaça eu confiava meus medos. Sentei-me numa pedra daquela rua deserta, e cruzei as pernas. Não, não posso cruzar as pernas assim. Isso não me pertence, meu mundo é o que me oferecem, e não o que eu conquisto. Depois desse gesto me vieram lembranças. A cada tragada uma cena se fazia em meu coração que se contorcia. Eu era só um menino curioso. A boneca me parecia tão real, queria fingir que eu era pai dela e lhe oferecer um mundo incrível. Doce inocência. Meu pai, de repente apareceu, e ali me mostrou a crueza desse mundo. Ele me bateu e me puxou a orelha, simplesmente, por eu estar brincando de boneca. Era coisa de menina. E eu era um menino. Minha mãe, na vã tentativa de me condicionar, me ofereceu um carrinho. Brinquei com o carro, como se eu fosse seu pai. O jeito era imaginar para fugir da realidade. Fugir da minha realidade, e me esconder. Outra lembrança: na escola levei uma bordoada de um garoto sem entender. Chorei por dentro. Mas desde sempre precisava me fazer forte. Precisava de coragem, mesmo se só houvesse medo.

Eu queria ir para casa. Dormir talvez, sonhar, sei lá.... Olhava as horas como quem

espera o fim do mundo, ou seu recomeço. E o problema era esse: as horas! Meu relógio não era moda para garotos. Era moda para garotas. Levei outra bordoada e revidei. Fui parar na diretoria. A esperança de que o outro fosse punido tentava se acender, mas se apagou assim que a diretora confiscou meu relógio. Ele era de menina! Depois, simplesmente, o dei de presente para minha amiga. Eu só tinha amigas. Elas me acolhiam, como a cadela que acolhe o gato abandonado. O cigarro acabara. Continuei andando a deus dará, uma chuva ameaçava chegar. Os relâmpagos revelavam paisagens escondidas no escuro da noite. Eu esperava o momento de um relâmpago me revelar, me tirar daquela escuridão.

A chuva caiu fraca e logo se foi, efêmera. O cheiro de terra molhada, e o ar quente se fizeram presente. Estava eu num bar, corri até sob seu toldo para fugir daquela chuva traiçoeira de verão. Aproveitei e comprei uma bebida. Quando saía dali, senti alguém me empurrar. Era um bêbado. Livre de medos e consciências ele disparou a me chamar de desviado. Fiz o que sempre fui bom em fazer: ignorei! Andei até minha casa e parei no portão. A essa altura meus pais já haviam lido a carta que deixei. Hesitei em entrar, meu cachorro me denunciou, então, entrei. Os olhos rasos d'água da minha mãe; a respiração forte do meu pai; meu irmão de braços cruzados. Ninguém disse nada, o silêncio foi a melhor forma de expressão. Fui dormir, e dormi um sono pesado. Sintoma do alívio de me revelar. Finalmente um relâmpago em mim.

O despertador gritou a hora de ir trabalhar. Havia eu sonhado com o dia em que me assumi. A vida real me chamava: mais um dia para enfrentar olhares e cochichos. Mais um dia para ser eu. Bom dia, mãe! Bom dia, pai! Bom dia, irmão! O abraço que me deram naquele dia me reconstruiu. Eu que achei que fosse ser julgado. Mas sou um cara de sorte. Café? Hora do ônibus. No trabalho, sempre há aqueles que contam vantagem por ser branco, rico, magro, macho e babaca. O ser humano vive de contar vantagens que não existem. O dia estava ensolarado para mim, mas não para aquele que me provocava. Bicha, viado, boiola! Acho que eu era uma nuvem sob seu sol. E tinha de dar a notícia de que ele fora demitido. Seu olhar me fuzilou. E eu apenas lhe desejei boa sorte!

O expediente acabou. Uma chuva forte caía. Eu não carregava guarda-chuva. E então a enfrentei. Deixei que aquela água me lavasse o corpo e alma. Eu não queria mais me esconder. Agora me permitia encharcar sob a tempestade. Cheguei em casa molhando o caminho por onde eu passava. E minha mãe me abraçou assim mesmo. Ele me ofereceu um presente. Meu pai e meu irmão me olhavam ansiosos de um canto da sala. Peguei o embrulho

e questionei com o olhar o que estava acontecendo. Pediram que eu simplesmente abrisse. Rasguei o papel, e dei o maior dos sorrisos quando vi que era uma linda boneca. Um novo mundo me era oferecido, foi só perder o medo de encarar as chuvas, que eu sei, nunca cessariam.

Renan Gomes de Moura | Menino afeminado |pp. 161-163

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