Poesia
Destroçar a desesperança
Destroçar a desesperança
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 5, núm. 2, pp. 164-166, 2018
Universidade Federal do Espírito Santo

1. A ação dos ácidos
Depois do gozo (irrepetível),
a culpa
(desenfreada)? Nunca foi o que pretendi para mim, tampouco o que planejei
para nós:
que o gozo possa (que o gozo
se permita) pulverizar a culpa. Com seus transbordamentos.
Com suas
carências, o gozo que procuro — este onde
me posiciono — derrete
a
culpa devagar. Saboreando
bem a ação
dos ácidos liberados
sem alarde.
2. Novos relevos
Dar de comer com a mão;
o calor úmido da língua — o calor (único)
advinha novos relevos nas papilas da
atenção, prenhe de percursos: a saliva
— invocada pelo desvelo — avança sobre a manhã entre os dedos.
3. A fome onde me fundo
Não fosse tanta perturbação haveria tamanho impulso?
Conviver (e, no limite, colidir) com palavras
é ramificar um rasgo há
muito profuso. Que
desaloja — ou, arfando, dilata — a fome
onde me fundo: faca firme em farto fluxo.
4. Com os pés enterrados
Destroçar a desesperança, dançando com os pés enterrados em
alguma veia; destroçar
a desesperança
— e, no mesmo movimento, derreter
o desespero (régua
sempre rente):
a carne da apatia — agora separada
dos ossos — arde na boca gorda
de vinagre, entre vogais onívoras.
Casé Lontra Marques | Destroçar a desesperança |pp. 164-166