Dossiê
A hegemonia da resposta penal conforme as lógicas social, política e fantasmática de Glynos e Howarth: uma proposta de análise
La hegemonía de la respuesta penal conforme las lógicas social, política y fantasmática de Glynos y Howarth: una propuesta de análisis
The hegemony of the criminal response according to the social, political and fantasmatic logics of Glynos and Howarth: a proposal of analysis
A hegemonia da resposta penal conforme as lógicas social, política e fantasmática de Glynos e Howarth: uma proposta de análise
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 1, pp. 122-146, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo
Resumo: Este artigo propõe perscrutar o potencial heurístico do modelo teórico-metodológico proposto por Jason Glynos e David Howarth em relação a pesquisas que tenham por objetivo a análise da discursividade parlamentar, suas pressuposições ontológicas e as fantasias que tomam parte no fenômeno de “expansão do direito penal”. Para tanto, apresenta-se a estratégia de pesquisa idealizada pelos autores em “Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory”. Nesse sentido, o modelo de pesquisa e o tipo de racionalidade científica preconizada pelos autores serão debatidos. Ademais, a função desempenhada pelo conceito de articulação será problematizada. Finalmente, investigar-se-á se e como as unidades lógico-explicativas concebidas pelos autores podem contribuir para elucidar as representações implicadas no processo (discursivo) de construção do caráter hegemônico da resposta penal.
Palavras-chave: Pós-estruturalismo, Teoria do discurso, Hegemonia, Lei dos Crimes Hediondos, Discursividade parlamentar.
Resumen: Este artículo propone escrutar el potencial heurístico del modelo teórico-metodológico propuesto por Jason Glynos y David Howarth en relación con los tipos de investigaciones que tengan por meta el análisis de la discursividad parlamentaria, sus presuposiciones ontológicas y las fantasías que toman parte en el fenómeno de "expansión del derecho penal". Para ello, se presenta la estrategia de investigación ideada por los autores en "Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory". Para ese propósito, serán debatidos, el modelo de investigación y el tipo de racionalidad científica preconizada por los autores. Además, la función desempeñada por el concepto de articulación será problematizada. Finalmente, se investigará si y cómo las unidades lógico-explicativas concebidas por los dos autores pueden contribuir para elucidar las representaciones implicadas en el proceso (discursivo) de construcción del carácter hegemónico de la respuesta penal.
Palabras clave: Postestructuralismo, Teoría del discurso, Hegemonía Ley de los Crímenes.
Abstract: This paper intends to investigate the heuristic potential of the theoretical-methodological model proposed by Jason Glynos and David Howarth in relation to researches that aim for the analysis of parliamentary discursiveness, they ontological presuppositions and fantasies that take part in the "expansion of criminal law" phenomenon. Therefore, the research strategy proposed by the authors of "Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory" will be presented. In this sense, the research model and the type of scientific rationality advocated by them will be discussed. Furthermore, the role played by the concept of articulation will be problematized. Finally, it will be investigated whether and how the logical-explanatory units conceived by the authors can contribute to elucidate the representations implied in the (discursive) process of construction of the hegemonic character of the criminal response.
Keywords: Post-structuralism, Discourse theory, Hegemony, Law of the Hediondos Crimes, Parliamentary discursiveness.
Introdução
Inicialmente, cumpre tecer algumas considerações, a título de esclarecimento, acerca do processo teórico de investigação que culminou na elaboração do presente artigo. A ideia de utilizar a estratégia de pesquisa1 proposta por Glynos e Howarth para a análise da discursividade parlamentar brasileira decorre de uma primeira dificuldade enfrentada no estudo intitulado “Entre Práticas Populistas e Crimes Hediondos: uma proposta de análise a partir da teoria política de Ernesto Laclau” (RAMOS, 2016). Tal dificuldade dizia respeito, fundamentalmente, à verificação daquilo que se convencionou chamar de déficit metodológico das teorias pósestruturalistas (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 7).
A rigor, as reflexões articuladas pelo politólogo argentino ao longo de “A Razão Populista” (2013) se provaram extremamente úteis para colocar em xeque esse verdadeiro embargo teórico que ainda hoje pende sobre o fenômeno no âmbito dos estudos criminológicos, mesmo no âmbito daqueles que se alinham à uma perspectiva crítica[1]. Não obstante, tais reflexões, tomadas isoladamente, acabam por não representar grandes contribuições para a elucidação dos processos de coleta, análise e explicação dos dados empíricos que deveriam 123 permitir pensar – e melhor conhecer – esse irredutível e fundamental processo político refletido na construção/significação do “povo”. Diante de tal constatação, alguém poderia objetar: caberia, na esteira dessa ressalva metodológica, tomar a leitura laclauniana sobre o populismo como uma abordagem teórica quanto ao seu potencial explanatório?
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1 Um primeiro esclarecimento acerca do empreendimento teórico levado a cabo por Glynos e Howarth: os autores consideram que o “framework” analítico por eles desenvolvido não pode ser considerado um método em um sentido estrito, porque, no seu entendimento, “the term methodology tends to connote ideias like neutrality and theory independance” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 201). Por essa razão, os autores argumentam que o conceito de estratégia (de pesquisa) mostra-se mais adequado para fins de ressaltar a importância do fato de que a todo empreendimento científico, por mais neutro que pretenda ser, parte invariavelmente de certas pressuposições ontológicas, ou ontopolíticas, que informam não apenas a forma como o pesquisador enxerga o mundo político, mas também como ele coleta, analisa e explica os dados empíricos que problematiza: “the political analyst is already engaged in a hegemonic struggle, deploying political logics of rhetorical redescription in the very process of characterizing and explaining discursive practices” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 195).
A nosso juízo, essa forma de abordar a questão ignora as reflexões apresentadas nesse verdadeiro empreendimento teórico intitulado “Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory” (2007), de autoria de Jason Glynos e David Howarth.
Partindo, pois, da necessidade de enfrentar as críticas derivadas da explicitação dos déficits normativo e metodológico identificados nos trabalhos de Ernesto Laclau[2], bem como da pressuposição de que todo e qualquer método ou conjunto de técnicas de pesquisa encontra fundamento em um determinado conjunto de pressuposições ontopolíticas[3], Glynos e Howarth propõem, em “Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory”, um “framework” que, fundado na compreensão do caráter radicalmente contingente[4] das estruturas, relações e identidades sociais, seja capaz de conceber explicações não-essencialistas a problemas sociais e políticos empíricos.
De posse dessas considerações iniciais, procuraremos abordar, nos próximos tópicos, os vetores constitutivos, ou, dito de outro modo, as quatro proposições fundamentais que constituem a estratégia de pesquisa proposta por Glynos e Howarth. Já no tópico final deste artigo, procuraremos explicitar o conjunto de reflexões que as questões (sobretudo as de caráter metodológico) colocadas em “Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory” 124 parecem suscitar em relação ao problema do reconhecimento do caráter hegemônico da resposta penal no âmbito da discursividade parlamentar brasileira.[5]
Os quatro principais vetores da estratégia de pesquisa preconizada por Glynos e Howarth
O modelo da pesquisa orientada ao problema
Comecemos pela análise do modelo de pesquisa que, no entendimento dos autores, parece ser o mais adequado para a condução de pesquisas que fazem uso do aparato conceitual pós-estruturalista. Esse modelo teórico de investigação, fortemente inspirado na genealogia foucaultiana, é denominado por Jason Glynos e David Howarth de Pesquisa Dirigida ao
Problema (“Problem-driven Research”). A pressuposição básica que anima esse modelo de pesquisa alude à ideia de que as investigações alinhadas à corrente pós-estruturalista devem se ocupar da construção de uma melhor compreensão acerca do problema analisado pelo investigador, abdicando, destarte, da mera aplicação de métodos e de teorias particulares a um determinado objeto de investigação a pretexto de testar/validar hipóteses que buscam, no limite, se afirmar como leis causais gerais capazes de explicar e quiçá prever a ocorrência de fenômenos políticos e sociais (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 166).
De acordo com os autores, nas pesquisas dirigidas ao estudo de problemas específicos 125 o papel a ser desempenhado tanto por uma determinada formulação teórica, como por uma metodologia é, quando muito, ancilar, motivo pelo qual seu eventual protagonismo deveria dar lugar àquilo que os autores reputam ser o objetivo mais imediato de uma pesquisa científica: o aprofundamento das compreensões vigentes acerca do problema analisado:
[…] our problem-driven approach ought not to be confused with problem-solving research, as the latter tends to assume the existence of certain social structures or rules, as well as the assumptions of the dominant theories of such reality, and then operates within them. For us, by contrast, an object of study is constructed. This means that a range of disparate empirical phonomena have to be constituted as a problem, and the problem has to be located at the appropriate level of abstraction and complexity (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 167).
Para Glynos e Howarth, a abordagem da “Pesquisa Dirigida ao Problema” abdica do tradicional entendimento da ciência positivista que costuma atribuir à pesquisa científica a missão de servir como instrumento de teste/verificação voltado, unicamente, à validação de métodos e/ou de modelos teóricos constituídos a partir de postulações universais e pressupostamente neutras, isto é, livre de valores políticos. Assim sendo, construir o problema de pesquisa a ser investigado significa, na esteira do modelo teórico-metodológico preconizado pelos autores: (i) partir do pressuposto de que os dados analisados pelo cientista não constituem objetos dotados de um sentido positivo, é dizer, extradiscursivo; (ii) admitir que o processo de problematização7 compreende uma análise crítica[6] constituída por três etapas: uma primeira na qual são sondadas as formas através das quais os problemas investigados são comumente representados; uma segunda na qual são discutidas as diferentes soluções geralmente atribuídas a esses problemas e, finalmente; uma terceira na qual se procura compreender como tais soluções derivam de uma série de compromissos ontopolíticos assumidos, muitas vezes de forma inconsciente, pelo pesquisador (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 167).
A racionalidade científica retrodutiva
A seguir, apresentaremos a racionalidade científica que inspira a estratégia de pesquisa formulada por Glynos e Howarth. Trata-se, pois, da racionalidade retrodutiva. Tal racionalidade busca se afirmar como uma espécie de contraponto às racionalidades indutiva e dedutiva, fundadoras, respectivamente, dos métodos hipotético-dedutivo[7] e nomológico-dedutivo[8]
(GLYNOS e HOWARTH, 2007, p. 19). 126
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7 O conceito de problematização, amplamente utilizado por Glynos e Howarth, busca sua inspiração mais direta nos trabalhos de Michel Foucault, para quem: “Problematizar é um conjunto de práticas discursivas e não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso, constituindo essa coisa como um objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política etc.)” (FOUCAULT, 2010, p. 242). Nesse sentido, de acordo com Glynos e Howarth, a estratégia da problematização, que anima o modelo de pesquisa orientada ao problema, retrata um procedimento se caracteriza, no limite, pela busca das condições de possibilidade que permitem representar o como e o porquê de determinadas práticas que, por sua vez, constituem as formas através das quais determinados problemas são pensados (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 167).
O estabelecimento desse contraponto, no entendimento de Glynos e Howarth, é necessário na medida em que se constata, na esteira da advertência de Laclau e Mouffe[9], que as lógicas indutiva e dedutiva representam meios muito problemáticos de lidar com problemas e fenômenos relacionados aos universos do político e do social, sobretudo na medida em que priorizam a formulação de explicações causais e universalmente válidas acerca de uma variedade de objetos e relações sociais e políticas que são retratadas, “petitio principii”, como objetividades plenamente inteligíveis. Tal abordagem, no entendimento de Glynos e Howarth, pode ser considerada limitada, do ponto de vista do seu potencial heurístico, na medida em que exclui de antemão a possibilidade de o cientista social refletir acerca das condições históricocontextuais[10] de emergência e significação dos próprios objetos e relações que integram os fenômenos sobre os quais se debruça (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 19).
Mas no que efetivamente consiste a lógica retrodutiva preconizada pelos autores? Para Glynos e Howarth, qualquer tentativa de explicar a dinâmica da lógica retrodutiva deve partir do pressuposto que aponta para a necessidade de se relativizar o rigor do procedimentalismo metodológico inaugurado por Karl Popper (1980), cuja teoria enuncia, como passos inexoráveis
do método de explicação científico, o estabelecimento “a priori” de hipóteses e a sua verificação 127
(refutação ou comprovação) “a posteriori”, através da realização de sucessíveis testes empíricos (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 28).
A impossibilidade (advogada pela abordagem teórica pós-estruturalista) de serem descobertas ou concebidas, no campo das ciências sociais, leis causais fundamentais, capazes de explicar peremptoriamente ou de antecipar a ocorrência de fenômenos políticos e sociais, demanda do cientista (social) a adoção de outro entendimento acerca da dinâmica que se estabelece os contextos da descoberta e da justificação. Com efeito, ao lançar mão da lógica retrodutiva, o pesquisador não abandona definitivamente (como supõem os defensores do
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método popperiano13) o contexto da descoberta na medida em que avança em direção ao contexto de justificação; quando muito, as hipóteses originalmente concebidas passam por uma releitura na medida em que o investigador aprimora e usa a própria compreensão acerca do(s) fenômeno(s) investigado(s).
As unidades lógico-explicativas do modelo de Glynos e Howarth
Como argumentado, ao se deixar orientar pela lógica científica retrodutiva, o pesquisador abre mão da pretensão de formular argumentos e reunir evidências empíricas pretensamente capazes de atestar a capacidade preditiva de suas hipóteses. A esse pesquisador interessará, antes, verificar se as suas hipóteses, formuladas através de ciclos retrodutivos, logram tornar o objeto/fenômeno investigado mais inteligível. Para Glynos e Howarth, análises científicas empíricas fundadas na teoria do discurso de Laclau e Mouffe, devem se calcar, por uma questão de coerência epistemológica, em unidades de análise distintas daquelas geralmente utilizadas pelos teóricos filiados à cosmovisão do positivismo científico. Se as pesquisas derivadas do método hipotético-dedutivo preferem a formulação de explicações orientadas em 128 torno da descoberta de leis gerais, causais ou mesmo preditivas[11], as análises sociais ancoradas na teoria e ontologia pós-estruturalista poderiam ser mais adequadamente desenvolvidas a partir da utilização da noção de lógicas como unidades explicativas15. Oliveira et al. (2013) explicam
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13 Na compreensão de Glynos e Howarth, as teorias que tomam por base o método científico hipotético-dedutivo e a lei da explicação causal possuem, com efeito, seis características principais: (i) capacidade de explicitação – cada um dos aspectos da teoria deve ser inteiramente explicitável, ou seja, a sua compreensão não pode depender de juízos intuitivos; (ii) capacidade de universalização – a verdade pressuposta pela teorização deve poder ser comprovada a qualquer tempo e em qualquer lugar; (iii) capacidade de abstração – a teoria não pode ser estruturada a partir de exemplos particulares; (iv) capacidade de discrição – a teoria deve ser livre de elementos e variáveis contextuais; (v) capacidade de sistematização – a teoria deve constituir um todo formado por elementos nãocontextuais relacionados por regras e leis; (vi) capacidade de predição e poder de exaustão – a teoria deve ser capaz de fornecer uma descrição completa do domínio investigado, isto é, deve ser capaz de especificar todas as dinâmicas que operam no âmbito desse domínio como também de descrever todos os efeitos gerados por tais dinâmicas (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 21).
a razão pela qual Glynos e Howarth optam por guindar a noção de “lógicas” à condição de unidade explicativa central de sua estratégia de pesquisa:
As lógicas são apresentadas como uma alternativa às noções de lei ou hipótese causal e de autointerpretação contextual, ou seja, como forma de superação do determinismo generalista do positivismo e do particularismo predominantemente descritivo da escola hermenêutica. Em contraste com os mecanismos causais do realismo crítico, todavia, as lógicas são reconhecidas como sempre dependentes das construções discursivas e hegemônicas dos próprios sujeitos sociais, não como realidades – ou representações de realidades – externas ao campo discursivo e hegemônico (OLIVEIRA et al., 2013, p. 1341).
As unidades explicativas centrais do modelo de Glynos e Howarth se desdobram em três tipos específicos de lógicas: sociais, políticas e fantasmáticas. Antes, contudo, de discorrermos sobre cada uma delas, cumpre esclarecer acerca da função que a estratégia de pesquisa concebida por Glynos e Howarth lhes reserva. Para os autores, as lógicas sociais, políticas e fantasmáticas não visam apenas retratar os processos sociais investigados de modo a torná-los mais inteligíveis. Bem compreendidas, elas também fornecem ao pesquisador a
possibilidade de se engajar criticamente na problematização das práticas que se encontram sob
análise:
Indeed, all logics carve out a space for a critical conception of explanation because they all presuppose the non-necessary character of social relations. [...] this means that the very identification, characterization and naming of a discursive pattern as a social logic is already to engage in a process with a normative and political valence. (…) in fact, the process of invoking and deploying political logics to show the contingent institution of social practices is already to signal their non-necessary character, and to begin the normative task of contemplating alternative practices and regimes. But the same is true of fantasmatic logics [...], they also furnish the ontological resources with which to open up ethical possibilities and thus engage critically with the practices under investigation (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 153).
Feitos esses registros, iniciemos o estudo proposto pela análise da noção de lógica social.
Ao perscrutar as lógicas sociais em operação em um determinado contexto investigado, o pesquisar busca – no entendimento de Glynos e Howarth – caracterizar, partindo sempre da análise das autointerpretações contextuais subjetivas, as regras e os padrões constitutivos de um determinado regime de práticas sociais, cujo objetivo pode ser tanto a reprodução de uma determinada ordem (hegemônica) como a sua própria subversão (GLYNOS; HOWARTH,
2007, p. 140).
O estudo da lógica política, por sua vez, está mais diretamente relacionado aos processos de instituição ou, novamente, de contestação dos limites objetivos dessa realidade (ou horizonte, no sentido fenomenológico do termo) onde se inscrevem as práticas sociais abordadas pelas lógicas sociais[12]. Enquanto a noção de lógica social busca retratar as práticas características de um determinado regime discursivo, o conceito de lógica política pretende retratar as representações políticas mais elementares relacionadas ao processo de instituição do social[13]. As representações pressupostas por cada uma das referidas lógicas, por sua vez, estão sempre às voltas com a construção, fortalecimento ou enfraquecimento de um regime dominante através da produção de “fronteiras internas e com a identificação de um ‘outro’ institucionalizado”[14] (LACLAU, 2013, p. 182). Daí a dificuldade de se empreender pesquisas a partir de uma perspectiva conciliatória e neutra, tal como aquela pressuposta pela ciência positivista.
Glynos e Howarth enfatizam a importância de se reconhecer que a lógicas políticas não se limitam a ilustrar os processos de construção, sedimentação ou subversão de uma determinada ordem social. Com efeito, esse tipo de lógica expressa, igualmente, aquilo que, em termos psicanalíticos, se convencionou chamar de momento de deslocamento, situação que 130 alude à emergência da figura do Real lacaniano entre as fissuras da ordem simbólica, isto é, ao desvelamento de uma experiência traumática derivada de um evento desestruturador (geralmente recalcado) que abala substancialmente os processos de significação que alicerçam uma determinada ordem política, evidenciando os limites da sua hegemonia (MENDONÇA, 2012, p. 21). Em outros termos, o momento do deslocamento, retratado pelas lógicas políticas, pode representar não só o momento da consagração hegemônica de uma determinada ordem política; mas também pode ser encarado como “o momento no qual emerge a sensação de que
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as coisas não estão nada bem”, isto é, de que as fronteiras internas que antes delimitavam claramente o sentido dessa totalidade impossível porém necessária19, que recebe o nome de “sociedade”, já não são tão inteligíveis como antes (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 143).
A última lógica constitutiva do método explicativo proposto por Glynos e Howarth é a chamada lógica fantasmática. Derivada da teoria da fantasia lacaniana, a lógica em questão integra a racionalidade retrodutiva de explicação sob a condição de preencher a lacuna existente no âmbito da teoria do discurso proposta por Laclau e Mouffe relativamente à ausência de uma explicação mais clara acerca “do tipo de força que impulsiona a constituição, fixação e/ou ruptura das relações de articulação, identificação e oposição na formação de discursos e identidades”20 (OLIVEIRA et al., 2013, p. 1334).
Curioso notar que a noção de lógica fantasmática está, nesse sentido, intimamente ligada à noção pós-estruturalista de ideologia. Ao perquirir sobre a lógica fantasmática que ampara os discursos analisados, o pesquisador busca retratar não as ilusões que proveem aos sujeitos uma falsa consciência acerca do mundo, mas àquele conjunto de narrativas cuja função é ocultar a dimensão essencialmente contingente da realidade, uma vontade que nasce da necessidade de significar, colmatar, o vazio[15] que habita, desde o princípio, a estrutura das relações políticas e 131 sociais, bem como as identidades desses sujeitos que hoje reconhecemos como descentrados[16].
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19 A ambivalência entre as noções de “impossibilidade” e “necessidade” é, com efeito, apenas aparente. No intuito de demonstrar o funcionamento da lógica política que tem lugar no processo de construção dessa vontade coletiva fundamental denominada de “povo”, Ernesto Laclau argumenta que as noções em questão se relacionam de forma complementar no âmbito dos processos políticos de significação. Laclau observa, a propósito disso, que a noção de “povo” representa uma “totalidade fracassada” cujo significado – contexto-dependente – é forjado a partir de um “locus” discursivo marcado por uma tensão irredutível que se estabelece entre diferentes elementos não teleologicamente relacionados. Malgrado a sua porosidade semântica, o povo pode ser encarado como um significante político central nos regimes democráticos contemporâneos, sobretudo na medida em que o seu processo de nomeação dá vazão às pulsões sociais (no sentido freudiano) que reivindicam somente ser possível identificar o povo a partir da explicitação e exclusão daquilo que ele não o representa (LACLAU, 2013, p. 119). 20 No entendimento de Glynos e Howarth, a teoria lacaniana da fantasia busca elucidar a razão pelo qual os sujeitos tendem a se identificar e aceitar determinadas narrativas sobre a ordem das coisas em detrimento de outras: “for us, then, fantasmatic logics contribute to our understanding of the resistance to chance of social practices, but also the speed and direction of change when it does happen” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 145).
Nesse sentido, enquanto as lógicas políticas dizem respeito ao momento de construção/ subversão da objetividade dos limites que constituem a realidade social enquanto tal, as lógicas fantasmáticas[17] se revelam nas tentativas de suturar[18] o rasgo contingencial que torna impossível determinar em última instância o significado de demandas, identidades e relações políticas e sociais. Dito de outro modo, uma lógica fantasmática tem a ver, mais precisamente, com a tentativa de se conferir certa estabilidade ao significado de uma demanda, identidade ou relação social através do “apagamento” da sua dimensão de contingência. A propósito do funcionamento da lógica fantasmática, Glynos e Howarth argumentarão: “[...] a lógica fantasmática toma a forma de uma narrativa na qual um obstáculo interno (um ‘inimigo interno’) é considerado responsável por uma espécie de bloqueio identitário” cuja existência impede o atingimento de uma identidade (realidade) plenamente conciliada consigo mesma (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 150).
Tendo em vista os argumentos apresentamos até este ponto, podemos concluir, em suma: as lógicas sociais colocam ao pesquisador o problema da caracterização das práticas sociais em operação no âmbito do contexto empírico perscrutado. As lógicas políticas, por sua vez, dizem respeito à análise das pressuposições (ontopolíticas) mais elementares através das 132 quais essas práticas são defendidas ou desafiadas. O estudo das lógicas fantasmáticas, por fim, busca retratar as fantasias mobilizadas pelos discursos que integram o contexto investigado a pretexto de legitimar determinadas práticas (hegemônicas) através da sua representação como algo natural.
predicados definíveis “a priori”. Na antípoda dessa idealização, emerge a figura do sujeito descentrado, alguém que se percebe como um estranho que, como diria Freud, já não é mais senhor da sua própria casa (LACLAU, 1990, p. 40).
A função desempenhada pela ideia de articulação no modelo teórico-metodológico de Glynos e Howarth
Feitos esses registros é chegado o momento de avançarmos na direção do quarto e último vetor teórico-metodológico apresentado por Glynos e Howarth. No ponto, trataremos de explicitar as razões pelas quais o conceito de articulação emerge como um elemento central do modelo de explicação crítica proposto pelos autores.
Com efeito, para Glynos e Howarth, a noção de articulação opõe-se ao conceito de subsunção e pretende constituir um modelo alternativo de explicação científica que abdica da perspectiva tipicamente positivista que, como referido, aspira descobrir, através da realização de testes voltados ao falseamento de hipóteses previamente concebidas, a “verdade” sobre fenômenos sociais a partir da sua interpretação segundo um conjunto bem estabelecido de proposições gerais e abstratas[19]. Assim, a construção de uma explicação científica que se pretende alinhada às pressuposições mais elementares da tradição pós-estruturalista depende da proposição de articulações entre diferentes elementos teóricos e empíricos:[20]
[...] our more concrete object of critique was the subsumptive character of the dominant mode of social and political theorizing. Subsumption in the field of method is evident when mainstream social scientists either deduce explanations from higher order laws or generalization or deduce predictions which are subjected to exhaustive tests. Empirical objects are thus subsumed under the theoretical concepts, and do not modify or transform the latter […]. By contrast, our approach is developed by reactivating, deconstructing and reworking aspects of hermeneutics and naturalism into a wider poststructuralism frame. In this picture, the mode of explanation involves neither pure subsumption, nor mere description, but the articulation of different theoretical and empirical elements (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 211).
De acordo com os autores, o manejo da noção de articulação em detrimento da noção de subsunção reflete imediatamente sobre a forma como o pesquisador julga a “utilidade” de uma determinada proposição teórica (e. g. conceito, categoria, proposição analítica etc.) para
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servir como ferramenta na tarefa de explicação do objeto ou fenômeno perscrutado[21](GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 184).
O manejo do modelo explicativo calcado na ideia de “articulação” implica ainda, segundo Glynos e Howarth, a reedição dos parâmetros geralmente utilizados para aferir a validade e/ou o valor científico de um determinado estudo. Com efeito, levando-se em consideração que não há uma realidade externa ao discurso científico, sendo ele próprio responsável pela construção da realidade que investiga, o que de fato definiria o (des)valor científico de uma teorização seria não tanto (ou tão somente) a acuidade da descrição das dinâmicas causais verificadas no âmbito do contexto investigado, mas, antes, a sua:
[...] capacidade de (des)articular de forma o mais consistente e convincente possível – para a comunidade científica e para os próprios atores sociais – os elementos da realidade analisada, cumprindo o papel de crítica e/ou de sustentação de posições ou discursos que se apresentam no campo hegemônico do social (OLIVEIRA et al., 2013, p. 1343).
Em linhas gerais, são essas as quatro proposições fundamentais que constituem a proposta teórico-metodológica de Glynos e Howarth para construção de explicações críticas 134 empiricamente fundadas e radicadas, sob o ponto de vista teórico, na tradição pós-estruturalista.
A hegemonia da resposta penal no cenário da política legislativa penal brasileira: entre antagonismos e fantasias punitivas
Se na sessão anterior procuramos esclarecer no que consiste a estratégia de pesquisa proposta por Glynos e Howarth, na presente tentaremos articular[22] as ferramentas conceituais concebidas pelos autores em um contexto empírico específico, com o intuito de melhor compreender os traços – a nosso juízo constitutivos – desse fenômeno político- legislativo central para o campo da Ciência Criminal[23]: a expansão do direito penal.
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Antes de iniciarmos a análise, convém aduzirmos alguns esclarecimentos.
Por que o fenômeno da expansão do direito penal deveria servir como ponto de partida para a análise proposta? Vale lembrar, no ponto, que se há um consenso bem estabelecido entre teóricos das ciências criminais é o de que a política criminal brasileira se caracteriza, ao menos desde a década de 1990, pela produção sistemática de leis tendentes à intensificação da pressão punitiva, seja através da criminalização de novas condutas, seja através da ampliação das punições já previstas no âmbito do catálogo de sanções dispostas pelo direito penal brasileiro (TAVARES, 2008, p. 60). Tal realidade coloca em evidência, dentre outras questões, o caráter hegemônico da tutela penal no Brasil, compreendida, destarte, como resposta institucional preferencial em relação ao enfrentamento dos mais variados tipos de conflitos sociais.
Costuma-se dizer, nesse contexto, que a Lei dos Crimes Hediondos[24] constitui exemplo privilegiado[25] do tipo de racionalidade que rege a política criminal brasileira[26]. Existem boas razões para se comungar com tal entendimento. Nessa linha compreensiva, merecem destaque os resultados alcançados no âmbito do estudo referido no início deste texto (RAMOS, 2016), onde se constatou que os debates parlamentares realizados em torno da Lei dos Crimes
Hediondos e das suas subsequentes reformas parecem ter, de um lado, abandonado por 135 completo o ideal da ressocialização – consagrado ao menos desde a promulgação da Lei de Execução Penal (1984) como lastro ético de estruturação e legitimação das sanções penais – e, de outro, aderido, sem ressalvas, à pressuposição de que a única finalidade do cárcere é servir como instrumento de contenção (função aparente), quiçá de eliminação (função latente), de indivíduos considerados perigos em função da sua aparente irrecuperabilidade. A radicalização dos discursos parlamentares que gravitam em torno da Lei dos Crimes Hediondos constitui fato que justifica a prioridade da sua análise.
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à problematização e aprimoramento das categorias teóricas que organizam os processos de imputação e exoneração de responsabilidade decorrente do cometimento de uma infração penal; saber processo penal, voltado ao estudo dos procedimentos legalmente instituídos e regidos por uma autoridade pública investida de poderes jurisdicionais que tem por finalidade apurar a culpa de alguém a quem se imputa responsabilidade pelo cometimento de uma infração penal; saber criminológico, responsável pelo estudo do funcionamento do sistema de justiça criminal, suas funções latentes e declaradas, as determinações não determinantes da criminalidade e da reação social frente a esse fenômeno.
Pois bem, caracterizada essa realidade que nos parece digna de ser contestada publicamente 33, caberia indagar: quais práticas discursivas (lógicas sociais), pressuposições ontopolíticas (lógicas políticas) e fantasias (lógicas fantasmáticas) são mobilizadas pelos membros do Congresso Nacional para que se continue – a despeito do retumbante fracasso da instituição prisão relativamente à consecução dos seus objetivos declarados (v.g. prevenção da criminalidade e ressocialização do criminoso) – considerando a pena privativa da liberdade como instrumento preferencial de tratamento de conflitos sociais34.
Uma forma de conhecer as razões que determinam o caráter hegemônico da reposta penal, consiste em analisar os motivos usualmente apresentados pelos membros do Congresso Nacional[27] para justificar a necessidade de ampliação do rol dos crimes considerados hediondos[28].
Atentos aos limites deste artigo, tentaremos atingir o objetivo inicialmente proposto a partir da análise dos argumentos elencados no tópico exposição de motivos do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC) n.º 846/2015, proposição cuja aprovação incluiu no rol dos crimes hediondos os delitos de homicídio, de lesão corporal dolosa de natureza gravíssima e 136
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33 De acordo com Glynos e Howath, a noção de contestação pública alude à postura a ser adotada pelo pesquisador que opera suas análises a partir do princípio ontopolítico da contingencia radical. Dita postura traduz-se, pois, na evidenciação, problematização e, finalmente, desestabilização das fantasias que motivam, desde a obscena, a adoção, a preservação ou ainda a multiplicação das relações de exclusão e dominação existentes no interior do campo analisado, tudo isso através da reativação daquelas práticas, ideias e pressuposições alternativas, porém ideologicamente escamoteadas (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 198).
34 A partir desse ponto, nossas considerações priorizarão a articulação entre as unidades lógico-explicativas de Glynos e Howarth (lógicas sociais, políticas e fantasmáticas) e a realidade retratada pelo parlamentar que subscreve a exposição de motivos que acompanha o projeto de lei analisado. A ênfase atribuída às lógicas justificase na medida em que elas, a nosso juízo, representam os elementos explicativos de caráter mais operativo da estratégia de pesquisa concebida por Glynos e Howarth. Com efeito, o modelo da pesquisa orientada ao problema, a lógica retrodutiva de pesquisa científica e o próprio conceito de articulação espelham considerações de caráter epistemológico e metodológico que servem de fundamento para as próprias lógicas. A utilidade destas, portanto, é pensada na esteira daquelas outras pressuposições mais elementares. Daí que, ao pretender discorrer sobre as lógicas implicadas em um determinado contexto/discurso analisado, o cientista já está operando a partir dos marcos epistemológico e metodológico defendidos por Glynos e Howarth.
lesão corporal seguida de morte, nos casos em que praticados em detrimento de autoridade ou agente integrante das forças de segurança pública[29]. Comecemos o exercício proposto mediante a explicitação dos motivos invocados no âmbito do PLC n.º 3.131/08, cujas razões foram posteriormente incorporadas ao texto final do PLC n.º 846/2015, sob a forma de emenda parlamentar aglutinava:
[...] este Projeto vem num momento muito importante da segurança pública do Brasil e da sociedade brasileira. Não seria razoável que esta Casa não se posicionasse no momento em que policiais das diversas forças estão sendo abatidos no Brasil, por enfrentarem o crime, especialmente o crime organizado. O Parlamento tem que reagir na defesa daqueles que defendem o povo, que defendem a sociedade (BRASIL, 2015, p. 1-2).
Passemos agora à exposição de motivos do próprio PLC n.º 846/2015:
Com respeito aos princípios de individualização da pena, em tempos em que se almeja o efetivo combate ao crime organizado e a punição eficaz dos criminosos, urge penalizar com mais rigor, pessoas que cometem homicídio consumado ou tentado, na forma simples ou qualificada, se o crime for praticado contra autoridade e agente de segurança pública, descritos no artigo 144 da Constituição Federal, com o cristalino que atuam no “front” no combate à criminalidade [...] Como se sabe, o país tem vivido 137 escopo Estatal de tentar prevenir ou diminuir a prática do crime contra profissionais
uma escalada no número de ações de quadrilhas que se valem do uso de explosivos para subtrair os valores guardados em terminais de autoatendimento de instituições financeiras (os populares caixas eletrônicos ou caixas 24 horas) [...] A criação de causa de aumento de pena para este tipo de crime é crucial para fortalecer o Estado Democrático de Direito e as instituições legalmente constituídas para combater o crime, especialmente o organizado, o qual planeja gerar pânico e descontrole social, quando um ator do combate à criminalidade é vítima de homicídio tentado ou consumado (BRASIL, 2015, p. 1-2).
A leitura dos excertos transcritos permite iniciar a reflexão proposta a partir da problematização da “realidade” retratada pelos subscritores das justificativas anexadas ao PLC analisado.
A despeito da gravidade do tom empregado pelos subscritores das justificativas do PLC em questão, torna-se digno de nota o fato de que nenhuma pesquisa empírica ampara as seguintes afirmações: “Não seria razoável que esta Casa não se posicionasse no momento em
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que policiais das diversas forças estão sendo abatidos no Brasil”; “Como se sabe, o país tem vivido uma escalada no número de ações de quadrilhas que se valem do uso de explosivos para subtrair os valores guardados em terminais de autoatendimento de instituições financeiras”. Ambos os fatos são retratados como se fossem, pois, realidades autoevidentes.
Por falar-se em autoevidência, vale notar que a ampliação dos rigores da sanção penal, providência reputada como algo natural, quiçá lógico, através de afirmações como a seguinte “A criação de causa de aumento de pena para este tipo de crime é crucial para fortalecer o Estado Democrático de Direito e as instituições legalmente constituídas para combater o
crime”, é endossada e chancelada como se esse tipo de medida representasse a melhor solução dentre todas as possíveis. Não obstante, cumpre registrar os signatários da proposição legislativa analisada em momento algum ponderam acerca das graves consequências socioeconômicas que podem derivar da aprovação de uma reforma legal que, ao ampliar o tempo de cumprimento de penas na Brasil, estreita ainda mais o “output” de um sistema prisional que já no ano de 2014 registrava um déficit de 354 mil vagas[30].
Uma questão a ser investigada a partir da explicitação (e da consequente tentativa de desnaturalização) dessas duas lógicas sociais (v.g. legislar tendo por fundamento essa crença 138 essencialmente contrafactual na eficácia dissuasória do direito penal e legislar sem ponderar acerca das consequências socioeconômicas implicadas no agravamento das sanções penais[31]) é saber se tais práticas são ou não condicionadas pelo tipo de deliberação propiciada pela atual configuração do processo legislativo brasileiro, que, mesmo após o advento da constituição federal de 1988, tem se mostrado incapaz de promover um controle mais rigoroso acerca da conveniência e eficácia das proposições legislativas editadas em matéria de direito penal.
No plano das lógicas políticas, vale dizer, dos discursos que procuram instituir os limites da objetividade do social, caberia sinalizar que as justificativas ora analisadas ilustram a
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dinâmica e a qualidade (antidemocrática) do (re)corte antagônico que serve como superfície de inscrição para as duas lógicas sociais referidas no parágrafo anterior: há um nós que, apesar de ser retratado com povo, é constituído, fundamentalmente, pelas vítimas (reais ou potenciais) de uma criminalidade violenta, e há, consequentemente, um eles, que costuma ser identificado na figura dos criminosos40 que cujas ações atentam, como visto, contra o “Estado Democrático de
Direito e as instituições legalmente constituídas”. Esse tipo de oposição, acreditamos, insere-se na dimensão do político na justa medida em que a sua afirmação parece ser crucial para determinação do significado mesmo dessa totalidade incomensurável chamada povo brasileiro, cuja vontade os subscritores das proposições legislativas analisadas afirmam representar.
Parece ser esse o (re)corte antagônico que determina os limites (da objetividade) da comunidade política brasileira: de um lado, a cidadania, constituída, essencialmente, por subjetividades conformadas às prescrições normativas estatuídas pelo ordenamento jurídicopenal[32]; de outro, os inimigos internos42, cujas ações, quiçá a mera existência, colocam em risco de perecimento a ordem (hegemônica) protegida justamente pelas normas de direito penal. Mas o que se pode dizer acerca desse social que se (re)produz através da (re)afirmação desse tipo de
antagonismo? 139
Falta ao antagonismo representado pelos discursos em questão aquilo que, na esteira do trabalho de Chantal Mouffe, poderíamos chamar de consideração agonística, assim compreendido um tipo de ethos democrático que reclama das instituições de Estado, sobretudo do parlamento e de seus membros, a observância desse imperativo ético que consiste em atuar
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40 Interessante observar, no ponto, que os sujeitos reputados criminosos são retratados, no interior dos discursos analisados, como espécies de subcidadãos. Impostergável, portanto, relacionarmos a presente análise às conhecidas reflexões concebidas pelo sociólogo Jessé de Souza acerca da ralé brasileira. De fato, a atual dinâmica criminalizadora da política legislativa penal brasileira coloca-nos diante um cenário no qual membros da elite política brasileira assumem, sem qualquer embaraço, como petição de princípio, que um segmento não desprezível da sua própria população (mais de 720 mil pessoas) é constituído por sujeitos desprovidos de qualquer valor político, cujo único merecimento é ser contido pelos mecanismos formais de controle social (SOUZA, 2009, pp. 24 e 347).
visando “desarmar as forças libidinais que conduzem à animosidade, sempre presente nas relações humanas” (MOUFFE, 2015, p. 25). Lembremos que, para Mouffe, o que diferencia as noções de antagonismo e agonismo é a forma como cada tipo de relação traduz o conflito (irredutível) que anima o processo de construção de identidades políticas coletivas. No primeiro caso, o antagonismo é concebido em termos estritamente schmittianos: freund oder fiend. A naturalização de tal perspectiva culmina na sedimentação da percepção de que o outro – aquele que comigo não compartilha os mesmo valores políticos, éticos e morais – há de ser “tratado como um inimigo que deve ser erradicado” (MOUFFE, 2015, p. 19). No segundo caso, entretanto, a noção de inimigo é substituída pela de adversário através da incorporação do entendimento segundo o qual opositores, mesmo nas mais irreconciliáveis situações de dissenso, “pertencem ao mesmo ente político, partilham um mesmo espaço simbólico no qual tem lugar o conflito” (MOUFFE, 2015, p. 19).
De posse dessas considerações, podemos, enfim, explicitar no que consiste o déficit de consideração agonística identificado no âmbito dos discursos que embasaram as proposições legislativas analisadas: falta aos subscritores dos discursos estudados reconhecer que mesmo o mais vil dos criminosos partilha com os demais membros da comunidade a qualidade 140 inderrogável de sujeito de direitos, circunstância que impõe ao legislador o dever de observar que em regimes democráticos[33] a intervenção penal há de ser considerada legítima na exata medida em que o apelo (social) à necessidade de pena encontrar fundamento em argumentos que a apresentam-na como um instrumento de neutralização da animosidade destrutiva (de laços sociais) que hoje, como visto, define o tipo de antagonismo que estrutura as práticas discursivas em matéria da política criminal brasileira. Indo mais além, poderíamos ainda cogitar se em ordens democráticas não pende sobre o legislador um duplo ônus argumentativo relativamente ao exercício da atividade legislativa em matéria penal: (i) considerar o destinatário da sanção penal não como um inimigo a ser banido do convício social, mas sim como um sujeito de direitos sociais; e (ii) sustentar, mediante a apresentação de dados e argumentos empiricamente referenciados, a medida de adequação e a necessidade da tutela jurídico-penal em face das deletérias consequências provenientes do distanciamento social gerado pela realidade do processo de estigmatização penal que, como lembra Alessandro Baratta, “interrompe ou de
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qualquer modo prejudica o contato social do estigmatizado com o resto da sociedade” (BARATTA, 2004, p. 14).
Quer parecer, destarte, que está o que em jogo é a construção de uma política criminal baseada não mais em postulações e juízos morais, mas sim em considerações de natureza éticoagonísticas. Trata-se, pois, de envidar esforços para conceber, em resposta ao antagonismo moralista que anima o debate parlamentar, argumentos que possam servir de fundamentos éticopolíticos de legitimação da intervenção penal e que sejam capazes de impedir que o homem que defrauda as expectativas sociais tuteladas pelo direito penal seja tratado como um mero objeto de exercício do poder (punitivo). No ponto, bem entendida a contribuição da lógica política, busca-se melhor conhecer (e problematizar) o tipo de pressuposições que são mobilizadas no intuito de realizar essa tarefa (política) ao mesmo tempo impossível, porém necessária: representar a ideia de sociedade, a despeito da radical contingência dos seus elementos constitutivos, como uma totalidade coerente e harmônica.
Debrucemo-nos agora sobre as seguintes frases: “O Parlamento tem que reagir na defesa daqueles que defendem [...] a sociedade”; “A criação de causa de aumento de pena para esse tipo de crime é crucial para fortalecer o Estado Democrático de Direito”. O que ambas 141 evidenciam? Quer parecer que a sociedade, no entendimento dos subscritores da proposição legislativa em questão, representa uma espécie de corpo político cuja saúde depende, inelutavelmente, da exclusão de certos agentes patogênicos cuja mera existência ameaça todo um universo de anticorpos. Mas o que escapa a essa tentativa de sutura[34] do sentido da realidade social? O simples (porém decisivo) fato de que a ação dos anticorpos é pautada justamente pela violência patogênica que o corpo social, paradoxalmente, busca prevenir. Lembremos, a propósito disso, que a saúde do corpo social, vale dizer, que a segurança da
“sociedade”, tem sido garantida, em larga medida, pela atuação de uma força policial notabilizada pela letalidade das suas ações[35].
Esse tipo de constatação suscita, sob a forma de problematizações, duas indagações
(circunstância que a propósito evidencia o potencial heurístico da racionalidade retrodutiva que
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anima o presente trabalho46): tendo em vista essa outra realidade, por que razão os rigores da sanção penal recaem somente sobre aqueles que atentam contra a incolumidade dos agentes de segurança? Porventura a morte de um cidadão em virtude do (não incomum) excesso de força empregado por parte das polícias em suas abordagens cotidianas, também não constitui uma realidade aviltante, merecedora, pois, da tutela prometida pela Lei dos Crimes Hediondos? Interessante observar como esse tipo de questionamento só pode ser enunciado na medida em que consideramos a possibilidade de atravessar essa alegoria fantasmática[36] que representa a norma penal como sendo a principal fiadora da ordem que garante a existência mesma do “povo brasileiro”, da “sociedade brasileira”.
Explicitar a fantasia que contribui para a afirmação do caráter hegemônico da resposta penal pressupõe, destarte, a evidenciação daquelas duas outras realidades relegadas à obscena pela inculcação do dogma da solução penal: a legitimação sistemática da violência estatal e a instrumentalização do indivíduo como mero objeto do exercício do poder punitivo[37].
Considerações finais
A estratégia de pesquisa concebida por Glynos e Howarth mostrou-se de grande utilidade para a formulação de explicações críticas acerca das lógicas implicadas nos discursos
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46 Chega-se ainda, no ponto, à conclusão de que a racionalidade retrodutiva permite operar análises críticas a partir de uma perspectiva de investigação muito mais rica em termos de dinamicidade e complexidade que aquela ofertada, por exemplo, pela Criminologia Crítica e sua matriz argumentativa economicista. A mera possibilidade de serem concebidas novas hipóteses (falta de um compromisso ético-deliberativo por parte dos membros do Congresso Nacional) para velhos fenômenos (expansão do direito penal) já indica o claro ganho epistemológico resultante da incorporação da racionalidade retrodutiva às investigações criminológicas e político-criminais.
examinados ao longo deste trabalho. Prova disso são as reflexões articuladas na segunda sessão deste escrito, na qual se verificam presentes, a nosso juízo, as coordenadas de um novo programa de pesquisa passível de ser replicado noutros estudos.
Faz-se necessário ressaltar, todavia, o fato de que as tais reflexões ainda são bastante incipientes, posto que estruturadas a partir de um contexto de justificação bastante restrito. Não obstante, acreditamos que os argumentos concatenados possuem maturidade analítica suficiente para evidenciar, ao menos, os méritos e as potencialidades da tradição teórica pós-estruturalista para a realização de análises de corte antiessencialista[38] dos discursos constitutivos da política legislativa penal brasileira e da ordem hegemônica por ela justificada.
Notas
[1] Em síntese, atendendo ao convite realizado por Laclau, concluímos, naquele escrito, que a caracterização do populismo como lógica política relacionada ao processo construção do povo, e não mais como um fenômeno político abjeto e tendente, “tout court”, à descaracterização da racionalidade dos sistemas jurídico-penais contemporâneos, constitui, efetivamente, uma abordagem muito mais profícua para lidar com a análise dos discursos que constituem a dimensão legislativa do fenômeno da expansão do direito penal. O mérito da abordagem laclauniana em relação ao estudo do populismo punitivo, fenômeno que se acredita derivado da expansão contemporânea do direito penal, pode ser mais claramente percebido na medida em que se constata que ela, a despeito da maior parte das abordagens criminológicas contemporâneas, atribui a importância devida à investigação do processo (discursivo) de construção das identidades político-coletivas que caracterizam esse corte antagônico fundamental cuja consequência (política) mais imediata é a consagração da tutela jurídico-penal como resposta institucional preferencial à conflitividade social: “cidadãos de bens” versus “indivíduos perigosos”.
[2] Além da existência de autores que criticam o déficit metodológico das teorias pós-estruturalistas, existem ainda autores que cogitam a existência de um déficit normativo. É o que se verifica na crítica referendada por Simon Critchley à teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. Para o autor, o fato de Laclau não deixar claro como, no seu entendimento, o atual estado de coisas deveria ser, faz com que a sua teoria corra o risco de ser identificada como conivente com as sociedades capitalistas contemporâneas (CRITCHLEY, 2004, p. 117).
[3] O conceito em questão, extraído da obra de William Connelly (citada de modo recorrente por Glynos e Howarth), expressa que toda interpretação política é estruturada a partir de pressuposições ontológicas que “fix possibilities, distribute explanatory elements, generate parameters within which an ethic is elaborated, and center (or decenter) assessments of identity, legitimacy, and responsibility” (CONNOLLY, 1995, p. 2).
[4] A noção de contingência radical representa o axioma central em torno do qual se estrutura o “framework” analítico concebido por Jason Glynos e David Howarth. De acordo com os autores, o conceito em questão coloca em evidência a pressuposição de que identidades e formações sociais – significadas por intermédio de práticas articulatórias que não se submetem a necessidades lógicas ou leis imanentes – são marcadas por uma instabilidade fundamental que se expressa através da impossibilidade da sua representação como uma totalidade dotada de um sentido transcendental e extradiscursivo (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 110).
[5] Cumpre esclarecer que as tais reflexões serão realizadas a partir da análise dos argumentos que figuram no tópico da exposição de motivos do Projeto de Lei de iniciativa da Câmara dos Deputados n.º 846/2015, mais tarde convertido na Lei Federal n.º 13.142/2015. As razões que justificam a indicação desse projeto de lei, como ilustrativo das práticas discursivas que desejamos abordar, serão explicitadas na segunda sessão deste artigo.
[6] No entendimento de Glynos e Howarth, a principal tarefa de uma teoria crítica do discurso ancorada na ontologia pós-estruturalista consiste na explicitação das torções e dos pontos de indecidibilidade que habitam determinadas estruturas (ou sistemas de significação), que, naturalizadas pelas forças hegemônicas dominantes, amparam práticas de exclusão e dominação no interior dos contextos investigados (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 198). O caráter “crítico” das explicações elaboradas a partir do modelo teórico-metodológico de Glynos e Howarth adota como núcleo ou referente normativo os valores políticos da “democracia radical” preconizada por Laclau e Mouffe. A crítica, nesses termos, consiste na nomeação e contestação das relações de dominação existentes no âmbito de contextos históricos específicos através da mobilização de valores e ideais alternativos que, apesar da sua pretensão hegemônica, são irredutivelmente contingentes, contestáveis e sempre sujeitos à revisão (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 198).
[7] Método caracterizado pela tentativa de “deduzir [a partir de uma determinada formulação teórica ou método] predições sujeitas a testes exaustivos” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 210).
[8] Método caracterizado pela construção de explicações gerais a partir da formulação de máximas teóricas, tais como aquela preconizada por Popper e lembrada por Feyerabend: “todas as disciplinas, não importa de que maneira sejam constituídas, obedecem automaticamente às leis da lógica ou deveriam obedecê-las: ‘o que é verdadeiro na lógica é verdadeiro na psicologia... no método científico e na história da ciência’” (FEYERABEND, 2011, pp. 251-252).
[9] “Suponhamos que tentássemos analisar as relações sociais com base no tipo de objetividade construída pelo discurso das ciências naturais. Isto imediatamente colocaria sérios limites, tanto no que diz respeito aos objetos que se pode construir no interior daquele discurso, quanto no que se refere às relações que podem ser estabelecidas entre eles. Certas relações (política e sociais) e certos objetos são excluídos de antemão” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 183).
[10] Aproximando o debate do campo das ciências criminais, é importante termos em mente o teor da advertência elaborada pelo sociólogo Sérgio Adorno ao discorrer sobre as reais pretensões da arqueologia foucaultiana em relação à constituição de uma história [do presente] das prisões: “não existem [sob o ponto de vista de uma epistemologia das ciências sociais] fatos objetivos, porém construções históricas [...], imersas em regimes de verdade e poder” (ADORNO, 1998, p. 29). Partindo dessa pressuposição, Adorno argumentará que a pergunta “o que é a ordem social” deveria ser reformulada nos seguintes termos: “qual é, enfim, o regime de poder e verdade subjacente que sustém a atualidade das ‘demandas’ contemporâneas por ordem social?” (ADORNO, 1998, p. 29).
[11] De acordo com Glynos e Howarth, a noção de predição, quando confrontada com a lógica retrodutiva do modelo da pesquisa orientada ao problema, faz referência a um exercício de dedução que busca apurar o que acontecerá no futuro caso determinadas leis (dedutíveis, elas próprias, de uma teoria pura) ou condições previamente estabelecidas (também teoricamente) forem inteiramente satisfeitas (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p.3). 15 A noção de lógicas, tal como formulada por Glynos e Howarth, é, sob muitos aspectos, similar àquela utilizada por Ernesto Laclau. Para o politólogo argentino, a noção de lógica expressa um “sistema rarefeito de regras através das quais é possível realizar, num dado contexto, determinadas significações sempre a partir da exclusão de outras significações igualmente possíveis” (LACLAU, 2004, p. 83). Desenvolvendo a noção laclauniana, Glynos e Howarth argumentarão que a noção em questão também abarca o estudo tanto das “regras que regem uma determinada prática, como das condições que tornam essa prática possível ou vulnerável” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 136).
[12] Vale lembrar que para Glynos e Howarth “regimes têm uma função estruturante no sentido que eles ordenam um sistema de práticas sociais” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 106).
[13] Numa leitura mais apressada, a expressão “o social” – sistematicamente empregada no âmbito das análises de Laclau e Mouffe – pode dar a entender que se está a falar de uma realidade sem fissuras, de uma totalidade orgânica; na verdade, o sentido dessa expressão representa justamente o inverso. Assim como ocorre com os conceitos de “povo” e “sociedade”, o “social” representa o nome de uma ordem mais ou menos efêmera, imperfeita, pois irremediavelmente contingente, ou, ainda, o nome de uma plenitude ausente que é, a um só tempo, impossível (de ser apreendida por intermédio de uma descrição conceitual), porém necessária para todo e qualquer discurso político. Mendonça é claro ao alertar sobre o tipo de leitura que o termo procura substanciar: “quando mencionamos aqui o ‘social’, não estamos em absoluto falando de um social unificado ou mesmo de uma possibilidade de percebê-lo de forma totalizante. O social, segundo a teoria do discurso, não é passível de ser apreendido a partir de formas ou fórmulas gerais” (MENDONÇA, 2010, p. 480).
[14] É graças à formação dessas fronteiras, instituídas a partir daquilo que Laclau e Mouffe chamaram de lógica da equivalência, que um determinado regime político - a despeito dos inúmeros antagonismos que abriga - pode ser representado como uma totalidade simbólica ordenada, desprovida de fissuras, dotada de um significado estável, vale dizer, hegemônico (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 207).
[15] A noção de “vazio”, tal como se apresenta no âmbito da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e na proposta teórico-metodológica defendida por Glynos e Howarth, deriva da psicanálise lacaniana e denota aquilo que seria, para o psicanalista francês, o princípio que rege o processo (discursivo e relacional) de constituição de identidades sociais. O conceito expressa uma tensão fundamental que explica tanto a dinâmica de constituição da identidade dos sujeitos como a impossibilidade desse processo resultar na consolidação de uma identidade totalizada, suturada, plenamente conciliada consigo mesma. Em termos políticos, Laclau aproxima o argumento lacaniano da noção heideggeriana da diferença ontológica para afirmar que o vazio representa o hiato irredutível que habita, desde sempre, a ideia mesma de totalidade e suas várias encarnações concretas: a sociedade, o Estado, o povo etc. (LACLAU, 2011, p. 138).
[16] A noção de sujeito-descentrado, presente na obra de diversos pensadores alinhados à corrente pós-estruturalista do pensamento, constitui-se a partir da negação da figura do sujeito-racional preconizado pela tradição metafísica que, a seu turno, descreve este como sendo portador de uma identidade/essência fixa, imanente, constituída por
[17] Nas palavras de Žižek, as fantasias mobilizadas pelas discursividades política e social - a fantasia de uma sociedade segura, vale dizer, livre da criminalidade, por exemplo - “representam a base que garante consistência àquilo que chamamos de ‘realidade’” (ŽIŽEK, 1992, p. 44).
[18] De acordo com Chantal Mouffe, a noção de sutura, tomada de empréstimo da psicanálise de Jacques-Alain Miller, designa uma operação discursiva através da qual o vazio constitutivo de uma identidade é preenchido, contingencialmente, por algo que interrompe, apenas temporariamente, o movimento de deslizamento do significante sob o significado (LACAN, 1998, p. 506). Numa palavra: suturar significa fixar, de forma precária, contudo, o significado de um significante (MOUFFE, 1996, p. 103).
[19] A construção de uma explicação científica radicada na perspectiva teórica pós-estruturalista não constitui uma via de mão única, vale dizer, não resulta, enquanto corolário lógico, da aplicação de um conjunto de formas teóricas a um determinado objeto ou fenômeno social, afinal “não há como traçar uma relação de exterioridade rígida entre o campo discursivo social e os discursos teóricos ou científicos” (OLIVEIRA et al., 2013, p. 1343).
[20] No entendimento de OLIVEIRA et al. (2013), a principal vantagem decorrente da utilização da noção de articulação para a ilustração da “relação que se estabelece entre as formulações teóricas e a realidade”, consiste no fato de que tal abordagem garante ao pesquisador certa margem de liberdade e inventividade na construção de uma explicação original acerca do fenômeno analisado (OLIVEIRA et al., 2013, p. 1342).
[21] “As against the naturalist tendency to subsume, we favor an approach based on intuition, theoretical expertise, and the practice of articulation. This means that having immersed oneself in a given discursive field consisting of texts, documents, interviews, and social practices, the researcher draws on her or his theoretical expertise to make particular judgments as to whether something count as an ‘x’, and must then decide upon its overall important for the problem investigate [...]. These concepts – intuitions, theoretical expertise, judgments, and so forth – are internal components of what we call the practice of articulation, namely, the practice that which links specific theoretical and empirical elements together so as to account for a problematized phenomenon” (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 184).
[22] No sentido proposto por Glynos e Howarth, vide nota de rodapé 27.
[23] A Ciência Criminal constitui-se como campo de conhecimento que abriga reflexões oriundas de três ordens de saberes: saber jurídico-penal, orientado ao estudo dos fundamentos e das finalidades do direito de punir, bem como
[24] A Lei Federal n. 8.072/90, também conhecida como lei dos crimes hediondos, condensa um conjunto de regras cujo escopo é, no limite, a ampliação do rigor jurídico-penal dispensado aos autores deste tipo de crime através da criação de obstáculos para a sua reinserção no convívio social.
[25] Por privilegiado compreenda-se o momento (fenomenológico) no qual um determinado discurso encarna a função (hegemônica) de representação do horizonte do social, isto é, do “limite daquilo que é representável” no interior de uma determinada de uma sociedade (LACLAU, 2013, p. 134).
[26] De acordo com Salo de Carvalho: “a referida Lei representa o marco simbólico do ingresso do Brasil no cenário internacional do grande encarceramento” (CARVALHO, 2015, p. 631).
[27] Quando fazemos alusão ao advérbio usualmente temos em mente precisamente o fato, demonstrado por Laura Frade (2008), de que nos defrontamos com um conjunto de práticas legislativas repetidas sistematicamente ao longo das últimas décadas.
[28] Antes de avançarmos, contudo, convém aduzir ressalva no sentido de que o presente trabalho não pretende esgotar o debate acerca da verificação do potencial heurístico da estratégia de pesquisa formulada por Glynos e Howarth para a realização de análises acerca de um tipo específico de discurso jurídico, o discurso parlamentar. Procuramos explicitar as razões que embasam o entendimento segundo o qual é possível, quiçá desejável, a utilização a aludida estratégia de pesquisa – suas pressuposições ontopolíticas (contingência radical das identidades, relações e estruturas sociais), seu modelo científico de investigação (pesquisa dirigida ao problema), suas formas de construção e validação de explicações (articulação e retrodução) e suas unidades explicativas básicas (lógicas social, política e fantasmática) – em trabalhos empíricos que tenham como objetivo compreender, a partir da perspectiva teórica pós-estruturalista, as lógicas mobilizadas pelos discursos parlamentares relacionados à temática dos crimes hediondos.
[29] Alguém poderia objetar nossa escolha alegando que a problematização do discurso constante da amostra selecionada não permitiria extrair conclusões mais amplas acerca dos aspectos constitutivos da discursividade parlamentar relacionada à lei dos crimes hediondos – que, desde a sua promulgação, no ano 1990, foi reformada quase uma dezena de leis – ou do caráter hegemônico da resposta jurídico-penal. Todavia, reiteramos: nossa escolha se justifica na medida em que o projeto de lei em questão espelha (“pari passu” as demais proposições legislativas vinculadas à Lei dos Crimes Hediondos) a mais bem acabada expressão do tipo de racionalidade que impulsiona a maior parte das reformas legislativas penais no Brasil, conforme demonstramos noutra ocasião (RAMOS, 2016).
[30] Conforme levantamento realizado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), do Conselho Nacional de Justiça. Não foram divulgados dados atualizados após o ano de 2014. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-eexecucao-penal/cidadania-nos-presidios.
[31] Essa espécie de omissão, que deriva em grande parte do caráter sintético das exposições de motivos analisadas, há de ser considerada sintomática, sobretudo se levarmos em consideração os resultados obtidos em estudo publicado, no ano de 2010, pela Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do Ministério da Justiça: partindo de uma amostra constituída por cem proposições legislativas, apresentadas no intervalo dos anos de 1987 e 2006, constatou-se que 69% dos projetos de lei editados durante o período expressavam suas justificativas em até uma página. 18% lançaram mão de mais de uma página até o limite de uma página e meia para o registro dos fundamentos da proposição. Finalmente, apenas 13% das proposições investigadas fizerem uso de mais de duas páginas para essa mesma finalidade. Apenas 12% das proposições analisadas fizeram alusão a dados empíricos (PIRES et al., 2010, p. 32).
[32] Um antagonismo não democraticamente mediado como o ora representado encontra sua mais bem acabada expressão no pensamento do jurista alemão Günther Jakobs, para quem: “[...] a pessoa, sob a perspectiva do Direito, isto é, a pessoa titular de direitos e obrigações, só pode ser tratada enquanto tal na medida em que conduz as suas ações conforme as expectativas criadas pela norma; se, todavia, se comporta permanentemente como um diabo, a pessoa se converte em um inimigo, é dizer, em uma não-pessoa” (JAKOBS, 2003, p. 54).
42 Ao refletir acerca da permanência da noção de inimigo (“hostis”) no âmbito do direito penal, Eugenio Raul Zaffaroni realiza uma leitura que, a nosso sentir, sintetiza, como nenhuma outra, o caráter oblíquo (cínico) dos discursos que reivindicam, em face de determinadas ações excepcionais, a necessidade de um recrudescimento igualmente excepcional da reposta jurídico-penal: “Em geral, a categoria do inimigo não é expressamente introduzida ou não são feitas referências claras a ela no direito ordinário, visto que ao menos se intui sua incompatibilidade com o princípio do Estado de direito. Porém, com má consciência, legitima-se ou ignora-se o tratamento que, naquelas condições, é atribuído a um número enorme de pessoas” (ZAFFARONI, 2007, p. 190).
[33] Quando, no ponto, falamos em “democracia” temos em mente uma das principais pressuposições que fundamentam o modelo da democracia radical e plural preconizado por Laclau e Mouffe: “a questão principal da política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder compatíveis com os valores democráticos [liberdade e igualdade para todos]” (MOUFFE, 2003, p. 14).
[34] Vide nota de rodapé n.º 24.
[35] No relatório anual da Anistia Internacional referente aos anos de 2014 e 2015, a atuação das polícias militares brasileiras foi classificada como “extremamente preocupante”. O aumento considerável das mortes de civis durantes a realização de operações de ocupação e segurança, especialmente no estado do Rio de Janeiro, culminou na elaboração de requerimento para que governo federal iniciasse, imediatamente, um plano nacional visando à redução das taxas de homicídio em todo o País. Disponível em: <https://anistia.org.br/wpcontent/uploads/2015/02/Web-Informe-2015-03-06-final.pdf>. Acesso em: 15 de Outubro de 2015.
[36] A ideia de “atravessar o fantasma” relaciona-se explicitamente com a figura lacaniana da travessia da fantasia, momento final da análise no qual o analisado, confrontando-se com “mecanismos de produção das ilusões sociais” (SAFATLE, 2015, p. 53), se depara com a inexorável realidade humana: “a condição de estar sem amparo possível” (LACAN, 2008, p. 356).
[37] As críticas propiciadas pela utilização da estratégia de pesquisa proposta por Glynos e Howarth podem suscitar no leitor – reconhece-se – a impressão de que a explicitação das lógicas sociais, política e fantasmática que fundamentam o processo de hegemonização da intervenção penal sugere, como única alternativa possível, a defesa incondicional de um projeto político-criminal de corte abolicionista. Contanto que se tenha clareza quanto ao tipo de abolicionismo que se tem em mente, pode-se endossar tal interpretação. É certo que o abolicionismo penal, nas suas mais variadas formas e configurações, representa o mais original e radical projeto político-criminal das últimas décadas. As razões elencadas pelos seus principais teóricos para a abolição da prisão são, com efeito, de uma evidência inegável. Todavia, igualmente necessário reconhecer que a defesa da supressão imediata e irrestrita do sistema penal representa, no limite, uma espécie de idealização pueril, visto que definitivamente não se verificam presentes na sociedade brasileira os vínculos comunitários de simpatia pressupostos pelos teóricos abolicionistas, como demonstra, a propósito, a análise das representações (políticas e fantasmáticas) que constituem o imaginário dos autores dos discursos analisados. Nesse sentido, embora tenha o ideal abolicionista como meta política, o presente estudo, na medida em que busca conceber algumas formas específicas de racionalização do exercício do poder punitivo, acaba se vinculando ao campo das abordagens teóricas alinhadas ao que se convencionou chamar de direito penal mínimo (ZAFFARONI, 2010, p. 106).
[38] Quando argumentamos acerca da possibilidade de uma análise antiessencialista dos discursos jurídicos e da ordem hegemônica por eles suportada, estamos pensando em tipo de análise que se coloca entre os extremos representados por um determinado ramo da crítica (criminológica), que, pecando pelo excesso de crítica, recusase, “petitio principii”, a pensar alternativas de reforma para o sistema de justiça criminal e, por um determinado ramo da contracritica (dogmática), de viés funcionalista-sistêmico, que, pecando pela falta de critica, reduz a norma penal à condição de instrumento de afirmação da validade do Direito positivo e estabilização de expectativas normativas e sociais, excluindo, destarte, do seu escopo teleológico, a percepção do desviante como “destinatário de uma autêntica política de reintegração social” (BARATTA, 2004, p. 17).
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