Dossiê
Resumo: Estamos testemunhando na Europa Ocidental o que pode ser chamado de um “momento populista”, que emerge da proliferação de movimentos anti-establishment e sinaliza a crise da hegemonia neoliberal. Vários movimentos de resistência se ergueram contra a rejeição pósdemocrática da soberania popular e as devastadoras consequências da globalização neoliberal. Porém, em vários países europeus, essas resistências foram capturadas por partidos de direita, que articularam em um vocabulário nacionalista e xenofóbico as demandas dos setores populares. Para formular uma resposta política adequada, precisamos dar uma resposta progressista para essas demandas, o que deve ser feito através de um discurso que articule em uma direção democrática as multifacetadas demandas existentes em nossas sociedades. Uma estratégia política que eu chamo de “populismo de esquerda”.
Palavras-chave: Populismo, Democracia, Neoliberalismo, Hegemonia, Pós-política.
É inegável que estamos testemunhando na Europa Ocidental o que pode ser chamado de um “momento populista”. Este momento populista emerge da proliferação de movimentos anti-establishment que sinalizam a crise da hegemonia neoliberal. Se, por um lado, essa crise pode abrir o caminho para governos mais autoritários, por outro, ela pode também dar a oportunidade para recuperar e aprofundar as instituições democráticas, que vem sendo enfraquecidas pelas condições “pós-democráticas” decorrentes de trinta anos de neoliberalismo.
Esta condição pós-democrática é produto de vários fenômenos. O primeiro deles, que eu propus chamar de “pós-política”, consiste no borramento das fronteiras políticas entre direita e esquerda, resultado de um consenso estabelecido entre partidos de centro-direita e centroesquerda sobre a ideia de que não haveria alternativa à globalização neoliberal. Sob o imperativo de “modernização”, os social-democratas aceitaram as imposições do capitalismo financeiro globalizado e os limites que este impõe à intervenção estatal e às políticas públicas.
A política tornou-se uma mera questão técnica de gerenciamento da ordem estabelecida, um domínio reservado aos experts. A soberania do povo, noção que está no coração do ideal democrático, foi declarada obsoleta. A pós-política permite apenas uma alternância de poder 155 entre a centro-direita e a centro-esquerda. A confrontação agonística entre diferentes projetos políticos, crucial para a política democrática, foi eliminada.
Essa evolução pós-política se deu em um contexto socioeconômico caracterizado pela dominância do setor financeiro e com consequências desastrosas para a economia produtiva. A financeirização da economia, acompanhada por políticas de privatização e desregulação, conjuntamente com medidas de austeridade impostas após a crise de 2008, provocaram um aumento exponencial da desigualdade. Isto afetou particularmente os já desfavorecidos setores populares e a classe trabalhadora, mas também uma parte significante das classes médias, que entraram em um processo de pauperização e precarização. Pode-se verdadeiramente falar em um fenômeno de “oligarquização” das nossas sociedades.
Nos últimos anos, vários movimentos de resistência se ergueram contra a rejeição pósdemocrática da soberania popular e as devastadoras consequências da globalização neoliberal. Eles podem ser interpretados, conforme Karl Polanyi apresentou em The Great Transformation (a Grande Transformação, em tradução livre), como um “contra movimento” através do qual a sociedade reagiu contra o processo de mercantilização e pressionou por proteção social. Este contra movimento, ele enfatiza, pode assumir formas progressistas ou regressivas.
Esta ambivalência é também verdadeira no que diz respeito ao momento populista atual. Em vários países europeus essas resistências foram capturadas por partidos de direita, que articularam em um vocabulário nacionalista e xenofóbico as demandas dos setores populares, abandonadas pela centro-esquerda desde sua conversão ao neoliberalismo. Populistas de direita proclamam que devolverão ao povo a voz que lhes foi confiscada pelas “elites”. Eles entenderam que política é sempre “partidária” e que isso requer uma confrontação entre nós/eles. Além disso, eles reconhecem que precisam mobilizar afetos para construir identidades políticas coletivas. Elaborando a fronteira política de forma “populista” entre “o povo” e o “establishment”, eles abertamente rejeitam o consenso pós-político.
Essas são precisamente as atitudes políticas que a maioria dos partidos de esquerda estão impedidos de assumir por sua concepção consensual da política e sua visão racionalista de que paixões devem ser excluídas da política democrática. Para eles, apenas argumentos racionais e procedimentos deliberativos são aceitáveis. Isso explica sua hostilidade com o populismo, o qual eles assimilam à demagogia e irracionalidade.
Infelizmente, não será defendendo obstinadamente o consenso pós-político e lançando o anátema nos “deploráveis” que se poderá enfrentar o desafio apresentado pelo populismo de 156 direita. É vital entender que para combater o populismo de direita a estratégia da condenação moral e da demonização do seu eleitorado é totalmente contraproducente, porque reforça os sentimentos anti-establishment entre as classes populares. É a ausência de um projeto político capaz de prover um vocabulário diferente para formular o que são, em sua origem, reivindicações genuínas, que explica o crescente eco do populismo de direita em diversos setores sociais.
Classificar partidos populistas de direita como “fascistas”, representando-os como um tipo de doença moral, como o retorno da “praga marrom” e atribuir seu apelo à falta de educação ou à fatores atávicos é, certamente, muito conveniente para as forças da centro-esquerda. Isso lhes permite ignorar suas demandas, tal como evitar de reconhecer a responsabilidade por sua emergência.
Para formular uma resposta política adequada, precisamos entender que a única forma de combater o populismo de direita é dando uma resposta progressista às demandas que eles estão expressando em uma linguagem xenofóbica. Isso supõe reconhecer a existência de um núcleo demográfico nestas demandas e a possibilidade, através de um discurso diferente, de articular em uma direção democrática as multifacetadas demandas democráticas existentes em nossas sociedades. É esta estratégia política que eu chamo de “populismo de esquerda”. Seu propósito é a construção de uma “vontade geral” de um “povo” cujo adversário é constituído pela “oligarquia”, as forças que sustentam a ordem neoliberal.
O momento populista atual é a expressão de demandas muito heterogêneas, as quais não podem ser formuladas pela clivagem esquerda/direita como tradicionalmente configurada. Diferentemente das lutas características da era do capitalismo fordista, quando havia uma classe trabalhadora defendendo seus interesses específicos, no capitalismo liberal pós-fordista as resistências devem ser desenvolvidas em vários pontos fora do processo produtivo. Essas demandas não mais correspondem aos setores sociais definidos em termos sociológicos e pela sua posição na estrutura social. Muitas delas são reivindicações que tocam em questões relacionadas à qualidade de vida e tem caráter transversal.
As demandas ligadas às lutas contra o sexismo, o racismo, e outras formas de dominação também se tornaram crescentemente centrais. Para articular tamanha diversidade em uma vontade geral a fronteira tradicional esquerda/direita já não funciona. Agrupar essas diversas lutas requer o estabelecimento de uma sinergia entre os movimentos sociais e os partidos, com o objetivo de construir um “povo”, mobilizando afetos comuns em direção à igualdade e à 157 justiça social.
É este tipo de estratégia política que encontramos em movimentos como o Podemos, na Espanha, o La France Insoumise de Jean-Luc Mélenchon, na França, ou em Bernie Sanders, nos EUA. Está também demonstrada na política de Jeremy Corbyn, cujo empenho para transformar o partido trabalhista em um grande movimento popular, trabalhando “para muitos não para poucos”, logrou sucesso, tornando-se o maior partido de esquerda da Europa.
Esses movimentos buscam chegar ao poder por vias eleitorais, mas não para estabelecer um “regime populista”. Seu objetivo é lançar as bases de uma nova formação hegemônica, que irá criar as condições sócio-econômicas para recuperar e aprofundar as instituições democráticas. Essa formação hegemônica tomará diferentes formas de acordo com as trajetórias específicas envolvidas. Ela poderia ser chamada de “socialismo democrático”, eco-socialismo”, “socialismo liberal” ou “democracia participativa”, dependendo dos diferentes contextos nacionais e de tradições específicas. Não há um plano a ser seguido ou um ponto de chegada.
O que é importante, indiferente do nome, é que “democracia” seja o significante hegemônico em torno do qual a diversidade das lutas seja articulada e que as instituições políticas liberais não sejam descartadas. O processo de radicalização das instituições democráticas irá, sem dúvida, incluir momentos de ruptura e confrontação com os interesses econômicos dominantes. Essa é uma estratégia “reformista radical” que comporta uma dimensão anticapitalista mas que não requer a renúncia das instituições liberal-democráticas.
Eu estou convencida de que nos próximos anos o eixo central do conflito político será entre populismo de direita e o populismo de esquerda, e é imperativo que os setores progressistas entendam a importância de se envolverem nessa luta. Elaborado em torno de objetivos democráticos radicais, o populismo, longe de ser uma perversão da democracia – uma visão que as forças de defesa do status-quo estão tentando impor ao desqualificar como “extremistas” e “inimigos do pluralismo” todos aqueles que se opõem ao consenso pós-político –, constitui atualmente na Europa a estratégia política mais adequada para reviver e expandir os ideais democráticos.
Informação adicional
Tradução: Texto original: The populist moment Autora do texto: Chantal Mouffe Publicado orginalmente na Revista Simbiótica, v. 6, n. 1, jan.-jun., 2019. pp. 06-11.