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Colonialismo e desigualdades sociais: ensaio teórico para a construção de um pensamento crítico pós-colonial
Colonialismo y desigualdades sociales: ensayo teórico para la construcción de un pensamiento crítico postcolonial
Colonialism and social inequalities: theoretical essay for the construction of a critical postcolonial thinking
Colonialismo e desigualdades sociais: ensaio teórico para a construção de um pensamento crítico pós-colonial
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 1, pp. 159-171, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo
Resumo: Antes de se consolidarem como debate crítico, os estudos pós-coloniais já contavam com contribuições de intelectuais anticolonialistas, tais quais, Aimé Césaire, Albert Memmi e Frantz Fanon, que desde a segunda metade do século XX influenciam as produções de textos acadêmicos relacionados à colonização e suas consequências nas sociedades contemporâneas. O presente texto é composto de reflexões teóricas sobre a influência do fato colonial na produção de desigualdades sociais, sobretudo, as produzidas em torno da ideia (sociopolítica) constituída de “raça”, utilizada para diferenciar sujeitos e hierarquizar as relações sociais, diferenciando e valorando as diferenças. Nesse contexto, apreendemos a teoria crítica póscolonial como uma chave teórico-interpretativa, imprescindível na compreensão dos efeitos nocivos deixados pelo colonialismo em nossas sociedades.
Palavras-chave: Colonialismo, Pós-colonialismo, Crítica pós-colonial, Desigualdades sociais.
Resumen: Antes de consolidarse como debate crítico, los estudios postcoloniales ya contaban con contribuciones de intelectuales anticolonialistas, tales como Aimé Césaire, Albert Memmi y Frantz Fanon, que desde la segunda mitad del siglo XX influencian las producciones de textos académicos relacionados a la colonización y sus consecuencias en las sociedades contemporáneas. El presente texto se compone de reflexiones teóricas sobre la influencia del hecho colonial en la producción de desigualdades sociales, sobre todo, las producidas en torno a la idea (sociopolítica) constituida de “raza”, utilizada para diferenciar sujetos y jerarquizar las relaciones sociales, diferenciando e jerarquizando las diferencias. En este contexto, aprehendemos la teoría crítica post-colonial como una clave teórico-interpretativa, imprescindible en la comprensión de los efectos nocivos dejados por el colonialismo en nuestras sociedades.
Palabras clave: Colonialismo, Post-colonialismo, Crítica post-colonial, Desigualdades.
Abstract: Before consolidating itself as a critical debate, post-colonial studies already had contributions from anti-colonial intellectuals, such as Aimé Césaire, Albert Memmi and Frantz Fanon, who since the second half of the 20th century have influenced the production of academic texts related to colonization and its consequences in contemporary societies. The present text is composed of theoretical reflections on the influence of the colonial fact on the production of social inequalities, especially those produced around the (sociopolitical) idea constituted of “race”, used to differentiate subjects and to hierarchize social relations, differentiating and valuing the differences. In this context, we understand the postcolonial critical theory as a theoretical-interpretative key, essential in understanding the harmful effects left by colonialism in our societies.
Keywords: Colonialism, Postcolonialism, Postcolonial criticism, Social inequalities.
Desiguais desde a modernidade
Em um complexo mundo de diferenças, onde os grupos sociais mais abastados classificam, inferiorizam e subalternizam os demais grupos em função de suas características fenotípicas e regionais, sujeitando-os ao invés de tê-los ou vê-los como semelhantes, faz-se cada dia mais necessário compreendermos as discussões propostas por intelectuais clássicos do pensamento crítico pós-colonial. Neste sentido, este ensaio foi elaborado com o intuito de apontar a importância de algumas dessas contribuições na descolonização de sujeitos e na desconstrução de hierarquias sociais causadoras de grande parte das desigualdades sociais em nosso mundo contemporâneo. Dado que, desde a modernidade, as sociedades dominantes inferiorizam, desqualificam e, até mesmo, desumanizam sujeitos portadores de diferenças e minorias sociais em nome de uma visão homogênea de mundo.
Deste modo, as sociedades dominantes idealizam o mundo de forma a constituírem parâmetros que determinam os sujeitos desejáveis e não-desejáveis das sociedades, cujos critérios de seleção, via de regra, obedecem à lógica sociopolítica de sociedades ideologicamente euronortecentradas (QUIJANO, 2000; GROSFOGUEL, 2007), em que os 160 parâmetros são definidos por critérios subjetivos, previamente definidos por grupos dominantes, em condições abastadas, que constituem o mundo de forma cartesiana sob padrões e critérios objetivos. Um mundo composto não por diferenças (pluriétnico-raciais), mas por diferenciações, que, há muito, tem mesclado interesses econômicos, políticos e sociais na constituição de sujeitos subalternos, expropriando-lhes desde riquezas e acessos a bens materiais até a humanidade e direitos sociais.
Todavia, mesmo com o fim dos períodos coloniais e a descolonização dos países de África, Ásia e das Américas, as marcas da colonização permaneceram presentes no imaginário dos povos que viveram a experiência colonial, quais sejam colonizadores ou colonizados. Esses processos são os principais fatores que influenciam na formação dos pensamentos das elites e dos grupos sociais dominantes, que, por meio de um complexo de superioridade (FANON, 2008), inculcam nas cabeças dos grupos subalternizados, e das demais representações da sociedade, a crença na existência de apenas um único mundo e modo de vida possível para se viver, nos quais os parâmetros são ditados por normas e valores consentâneos às ideologias dos grupos dominantes, responsáveis por (re)produzir comportamentos e políticas sociais excludentes.
Nesse sentido, é importante mencionar que principalmente nas sociedades ocidentalizadas os efeitos da descolonização foram apenas político-territoriais, pois, desde o início da modernidade, as relações sociais não apresentaram nenhuma mudança estrutural significativa, considerando que a lógica de dominação social estabelecida pelo sistema colonial – por meio de raça, classe e origem – permanece praticamente a mesma, distribuindo e restringindo vantagens conforme hierarquias sociais criadas a partir de um pensamento hegemônico que subjuga pessoas, grupos e, até mesmo, sociedades inteiras – como é o caso de algumas sociedades africanas –, em nome de uma suposta superioridade baseada em conceitos e valores sociais eurocêntricos.
Diferenciar e valorar é discriminar
Há muito, sabemos que não existem diferenças biológicas que justifiquem a constituição de desigualdades sociais ou a criação de hierarquias entre as pessoas, posto que as desigualdades sociais não são desigualdades naturais, ainda que sejam naturalizadas por alguns sujeitos em suas relações sociais. Assim sendo, é possível observar que, no curso de 161 seu desenvolvimento, as desigualdades sociais buscam explicações e fundamentos nas supostas diferenças existentes entre os “homens”, todavia, devido à complexidade desse fenômeno, só encontram ressonância e justificativas quando observadas por intermédio das relações de poder. Isso por que as desigualdades sociais são constituídas no seio das sociedades contemporâneas por meio de relacionamentos concorrentes (pré)determinados por atitudes e interesses politicamente excludentes.
Por intermédio de contribuições como as de Sergio Costa (2015) e Muniz Sodré (2015), realizamos ilações sobre a constituição de desigualdades sociais a partir da noção de três conceitos fundamentais: “diferença”, “valor” e “diferenciação”.
Nessa esteira, considerando os padrões hegemônicos vigentes em nossas sociedades, entendemos por “diferença” todas as características excedentes nos sujeitos que os tornam não idênticos àquilo que se toma por referência, ou seja, é toda característica que possibilita a um observador qualquer realizar distinções entre duas partes, ou pessoas, não semelhantes. Assim sendo, no que se refere aos seres humanos, “diferença” pode, também, ser compreendida como a inequidade de atributos físicos e sociais representados por marcas coloniais aparentes nos sujeitos em sociedade, representadas por categorias como “raça”, classe, gênero, etnia e etc. Logo, o que deveria ser apreendido como aspectos físicos e sociais capazes de evidenciar a diversidade e a multiplicidade humana é utilizado para constituir desigualdades sociais em desfavor de “minorias representativas”.
Para a noção de valor, acompanhamos a definição do sociólogo Muniz Sodré (2015), para quem “valor” é “a orientação prática do sujeito para a ação, obtida por comparação de termos dentro de um quadro em que se confrontam e se escalonam equivalências diversas” (SODRÉ, 2015, p. 17). Dizemos, ainda, que “valor” é a atribuição de importância simbólica a duas totalidades postas em comparação, podendo ser-lhes atribuída maior ou menor relevância, conforme o padrão de referência, previamente, estabelecido.
Das três noções fundamentais que apresentamos neste artigo, a noção de diferenciação é a que nos proporciona o melhor suporte de reflexão sobre os processos de constituição de hierarquias e desigualdades sociais, pois diferenciação é a valoração entre duas diferenças sociais por meio da atribuição de importâncias que evidenciam, qualificam ou desqualificam essas diferenças, constituindo as discriminações. Logo, valorar diferenças sociais é o mesmo que diferenciar, hierarquizar relações, e, consequentemente, discriminar e promover desigualdades sociais.
Compreendendo que “nenhum valor é neutro, pois espelha as convicções e as crenças 162 de um sistema particular” (SODRÉ, 2015, p. 17), podemos afirmar que toda forma de discriminação tem sua gênese na constituição de um “outro” inferior, fundamentado em conceitos e valores constituídos e transferidos para a sociedade a partir do pensamento de uma elite, que pode ser representada por um grupo, uma sociedade, uma nação ou qualquer outra forma de representação social, o que torna evidente a necessidade de estabelecermos análises sociais críticas da sociedade. Nesse momento, surge a importância dos estudos pós-coloniais, que funcionam como ferramenta de interpretação e desvelamento das causas e efeitos das desigualdades sociais, descolonizando desde sociedades a mentes.
Desigualdades e colonialismo
Qual a relação do colonialismo com as formas de produções de desigualdades sociais? Qual a relação do colonialismo com as desigualdades existentes nas periferias das sociedades modernas e contemporâneas? Foi em busca de respostas para essas perguntas que encontramos, ao mesmo tempo, o elemento condutor e o combustível que faltava para a produção deste texto, pois, na trajetória de sua elaboração, percebemos que até mesmo os sujeitos menos favorecidos das sociedades contemporâneas ocidentalizadas tendem a reproduzir as mesmas condições de desigualdades sociais mantenedoras de suas aflições, garantindo assim, ainda que de forma inconsciente, e por vezes malgrado seu, os privilégios das elites que há muito os oprimem.
Segundo a socióloga Adélia Miglievich-Ribeiro,
[...] os estudos pós-coloniais explicitam que os erros da modernidade vitoriosa nunca foram efeitos perversos, imprevistos, indesejáveis, produtos precoces da incompletude do projeto moderno, mas seus elementos intrínsecos. Combatem assim, na diversidade das correntes e abordagens, qualquer crença fundamentalista na universalidade totalitária (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 68).
Nesse contexto, julgamos pertinente e necessário evidenciarmos a importância de trabalhos produzidos por intelectuais como Aimé Césaire (1978), Albert Memmi (2007), Jean-Paul Sartre (1978) e Franz Fanon (2008) que desde a segunda metade do século XX questionam as formas e condições materiais de produção, por meio de crítica ao colonialismo e ao racismo, apontando outras possibilidades de se ver, sentir, agir e pensar o mundo e suas relações sociais.
Ao lançarem olhares revolucionários sobre as diferentes formas de existir e as 163 diferenciações estabelecidas pelos grupos dominantes por meio do sistema colonial, esses intelectuais apresentaram ao mundo a influência da situação colonial nas relações de poder e nas distribuições de vantagens – visto de dentro das sociedades ocidentais –, demonstrando que as relações sociais não são determinadas, apenas, por questões políticas e econômicas, mas, também, por processos histórico-econômico-político-sociais, e antropológicos, ou seja, em toda sua complexidade.
A perspectiva teórica inaugurada por esses intelectuais foi essencial para que se ampliassem essas discussões e os entendimentos acerca da constituição de determinadas formas de desigualdades sociais, em especial, as representadas por categorias como “raça", classe, gênero e origem. Haja vista que essas desigualdades não decorrem de fenômenos ontológicos e sim epistêmicos, posto que se encontram no cerne das relações de poder e não na natureza (biológica) dessas relações.
As obras de Aimé Césaire (1978), Albert Memmi (2007), Jean-Paul Sartre (1978) e
Franz Fanon (1968; 2008) denunciam não somente as desigualdades sociais, mas como essas desigualdades são produzidas por construções epistemológicas colonialistas e racistas, que necessitam não apenas de uma simples reforma ou revisão, mas de uma revolução; uma atenção especial, uma guinada radical e urgente, tendo em vista que:
A civilização dita “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver dois problemas maiores que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial (CÉSAIRE, 1978, p. 13).
Em seu “Discurso sobre o colonialismo” o poeta, dramaturgo e político Aimé Césaire (1978), considerado por muitos um dos precursores do pensamento crítico colonial, questionou a intelligentsia europeia quanto a sua forma de abordar os valores culturais e as relações sociais colonialistas racistas, questionando principalmente a noção europeia de civilização, devido às inúmeras desigualdades apresentadas pelo fato colonial.
Segundo o autor, a colonização é um processo degradante que desperta no colonizador os sentimentos mais espúrios possíveis, capazes de descivilizar o colonizador e desumanizar o colonizado, através da cobiça, do ódio, da expropriação, da negação e, até mesmo, da violação dos direitos e dos corpos dos colonizados – que são identificados pelo colonizador como os “outros”, os inumanos que necessitam ser retirados de sua selva e salvos de si mesmos (CÉSAIRE, 1978).
Outro ponto interessante no pensamento de Césaire (1978) é a relação que ele faz entre 164 os crimes cometidos por Adolf Hitler contra a humanidade, e as atrocidades realizadas pelo sistema colonial. O autor enfatiza que os crimes cometidos pelos países da Europa durante o regime colonial só receberam pouca importância por terem sido cometidos contra negros e indígenas, enquanto os crimes cometidos pelo ditador puseram em xeque muitos povos da sociedade europeia, é claro, em sua maioria branca.
Para o “poeta da negritude” a situação colonial fez com que “milhões de homens a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o temor, a genuflexão, o desespero e o servilismo” (CÉSAIRE, 1978, p. 26) se percebessem como seres inferiores, passando a olhar para os grupos hegemônicos como se fossem essencialmente superiores.
Para melhor compreendermos a chamada situação colonial, somamos às reflexões de Aimé Césaire (1978) textos de outros dois grandes intelectuais do pensamento crítico póscolonial, o tunisiano Albert Memmi (2007) e o martinicano Frantz Fanon (1968; 2008).
Na tentativa de compreender-se na qualidade de colonizado e, deste modo, identificar seu lugar entre os homens, Albert Memmi (2007) realiza em 1950 a releitura de um romance biográfico seu interpretando a cosmovisão do colonizado e do colonizador, que diante do fato colonial demonstram a existência de uma condição mútua de dupla alienação.
Sobre essa (mútua) relação, disse o autor: “a relação colonial, que eu tinha tentado precisar, acorrentava o colonizador e o colonizado em uma espécie de dependência implacável, talhava seus respectivos traços e ditava seus comportamentos” (MEMMI, 2007, p.
14). No entanto, mesmo admitindo essa dupla condição de dependência
(colonizador/colonizado), Memmi nunca negou a contradição existente nessa condição, pois, ao mesmo tempo em que odiava seu algoz, o colonizador, o colonizado o admirava incontestavelmente.
Ao prefaciar o livro de Albert Memmi, Jean-Paul Sartre demonstra apreender o colonialismo como uma forma de racismo, devido ao complexo fato de este negar ao colonizado o direito à humanidade, deixando claramente subentendido quem são e quais são os homens que devem deter ou não direitos.
Nos próprios fatos, nas instituições, nas naturezas das trocas e da produção, o racismo está inscrito; os estatutos político e social se reforçam mutuamente, uma vez que o nativo é um sub-homem e que a Declaração dos Direitos do Homem não lhe diz respeito (MEMMI, 2007, p. 28).
Visto por essa ótica, constata-se que o colonizador não é apenas um usurpador de [1]65 privilégios, mas um usurpador de direitos legais e, muitas das vezes, de dignidade, pois
A desvalorização do colonizado se estende assim a tudo o que ele toca: inclusive ao seu país, que é feio, quente demais, espantosamente frio, malcheiroso, de clima viciado, com a geografia tão desesperada que o condena ao desprezo e à pobreza, à eterna dependência (MEMMI, 2007, p. 104).
Nesse sentido, depreende-se que na cosmovisão colonizadora a desvalorização e a desqualificação do colonizado são quase um dever objetivo a ser alcançado pelo colonizador, que, ao impor sua vontade e sua lógica sócio-político-cultural, promove o esvaziamento do colonizado, conduzindo-o pouco a pouco a negar sua própria condição de existência. Posto que, em seu fundamento, o colonialismo possui fortes ligações com o racismo e as demais formas de produção de desigualdades, tais quais, classe, gênero e origem (étnica/regional/nacional), sendo que o racismo ocupa um lugar de destaque nesse pensamento colonialista1, posto que, o colonialista reivindica à desigualdade racial uma condição ontológica.
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Da mesma forma, “é notável que o racismo faça parte de todos os colonialismos, sob todas latitudes. Não é uma coincidência: o racismo resume e simboliza a relação fundamental que une colonialista e colonizado” (MEMMI, 2007, p. 107).
Nesse contexto, o racismo é, sobretudo, um
Conjunto de comportamentos, de reflexos aprendidos, exercidos desde a mais tenra infância, fixado, valorizado pela educação, o racismo colonial é tão espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que parece constituir uma das estruturas mais sólidas da personalidade colonialista (MEMMI, 2007, p. 107).
Por esse motivo, far-se-á necessário compreender que todo racismo é desumano e deve ser combatido com veemência, independente do grupo de pessoas que atinge ou da forma como se manifesta, quais sejam, por meio da raça, da etnia, da classe, da nacionalidade, da região ou do ambiente social, como é o caso dos racismos contra os povos tradicionais – o racismo ambiental.
Racismo é uma forma de desqualificar o “outro”, o diferente, bizarro, exótico, o inumano. A manifestação discriminada do racismo cerceia, restringe ou impede determinados 166 sujeitos de terem acesso à distribuição igualitária de bens, direitos e vantagens sociais; o racismo pode ser praticado em desfavor do negro, do índio, do pobre, do judeu, do nordestino, do amazônida ou do quilombola, desqualificando-os por fenótipos, modos de vida, nacionalidades, regionalidades ou pelos ambientes sociais em que vivem. Isso torna o racismo uma espécie de metamorfose social das relações coloniais, ou seja, uma versão pós-moderna das desigualdades sociais desenvolvidas desde a modernidade, desde o colonialismo. Dessa forma, tornando-se a mais perversa de todas as heranças deixadas pela experiência colonial, devendo ser combatida com o máximo de veemência.
Segundo Memmi (2007, p. 108), a análise da atitude racista revela três elementos importantes:
1. Descobrir e pôr em evidencia as “diferenças” entre colonizador e colonizado;
2. “Valorizar” essas diferenças em benefício do colonizador e em detrimento do colonizado; e
3. Levar essas diferenças ao “absoluto” afirmando que são definitivas e agindo para que passem a sê-lo (MEMMI, 2007, p. 110).
Assim, “no âmbito da colonização, nada poderá salvar o colonizado, ele nunca poderá entrar no clã dos privilegiados; ainda que ganhe mais dinheiro do que eles, que obtenha todos os títulos, que aumente infinitamente seu poder” (MEMMI, 2007, p. 110). Independentemente da situação que ocupe, ou passe a ocupar, na sociedade colonizada, para o colonialista, o negro será sempre um preto, o indígena será sempre um índio, o pobre será sempre um miserável, o judeu será sempre um semita, o árabe será sempre um terrorista, o nordestino será sempre um “paraíba”, o amazônida será sempre um caboclo e o quilombola será sempre um mero descendente de escravos em busca de terra. Ou seja, diante do fato colonial e da influência de relações sociais colonizadas, “um homem pode ser bom pai e bom marido, cidadão dedicado, amante das letras, filantropo e, além disso, antissemita (SARTRE, 1978, p. 5)”, também, um colonialista, racista, classista, machista, xenófobo ou sexista.
Certamente, as contribuições de Césaire (1978), Memmi (2007) e Sartre (1978) foram fundamentais para a melhor compreensão dos efeitos nocivos deixados pela colonização, posto que a aventura colonial gerou uma relação antagônica entre colonizador e colonizado, transformando de um lado o colonizador em colonialista (colono convencido de sua condição e destinação para o domínio) e do outro o colonizado em subalterno inato e alienado, que, em verdade, demonstram, apenas, duas formas distintas de alienação.
Para entendermos essas alienações, recorremos aos estudos do filósofo e psicanalista 167
Frantz Fanon (1968; 2008), que deixou grandes contribuições para os estudos sobre “raça” e colonialismo. Escritor de dois dos grandes clássicos da teoria crítica pós-colonial – “Os
Condenados da Terra” e “Pele Negra, Máscaras Brancas” –, Frantz Fanon denuncia que nenhum dos feitos do colonialismo foi por acaso, e que todos os esforços do colonizador são empregados para promover uma alienação cultural no colonizado.
Quando refletimos nos esforços empregados para provocar a alienação cultural tão característica da época colonial, compreendemos que nada foi feito ao acaso e que o resultado global pretendido pelo domínio global era convencer os indígenas que o colonialismo devia arrancá-los das trevas (FANON, 1968, p. 175).
A experiência colonial fez com que ao mesmo tempo em que o colonialista desenvolvesse um complexo de autoridade, “complexo de chefe”, o colonizado sofresse um sentimento inverso, o complexo de inferioridade.
As contribuições de Fanon (1968; 2008) foram tão significativas que, embora seus pensamentos tenham sido desenvolvidos a partir de questões étnico-raciais, suas reflexões ultrapassaram essas fronteiras, pois, até os dias atuais, demonstram ser aplicáveis aos estudos de quaisquer categorias sociais ou êmicas, abarcando todas as formas de colonialidades (BALLESTRIN, 2013).
Nessa senda, percebemos que a aventura colonial demanda dois processos distintos de alienação, os complexos de superioridade (do colonizador) e inferioridade (colonizado), que, segundo Fanon (1968), se manifestam por meio da negação do outro e de sua cultura. Assim, devido à aventura colonial, o sujeito abastado de pensamento colonizado (branco, rico, homem, europeu e etc), ainda que em “minoria”, nunca se sentirá inferiorizado. De modo contrário, o sujeito subalterno de pensamento, também, colonizado (negro, pobre, mulher, não-europeu), ainda que em condições materiais igualitárias, jamais se sentirá igual – ipse/idem – ao seu correlato “superior”, pois o processo discriminatório pelo qual passa o colonizado é a causa essencial de seu complexo. Esse processo faz dele, colonizado, um questionador de sua própria humanidade, ao perceber que sua alteridade só é constituída quando em contraste com o mundo colonizado, que não foi criado por ele, nem para ele. Como Frantz Fanon já dizia: “Todo o mundo já o disse, para o negro a alteridade não é o outro negro, é o branco” (FANON, 2008, p. 93).
Nesse contexto, para o judeu a alteridade não é o outro judeu e sim o anti-semita; para a mulher a alteridade não é a outra mulher e sim o homem; para o ribeirinho amazônico a alteridade não é o outro ribeirinho e sim o urbano; e assim por diante. Logo, “a inferiorização 168 é o correlato nativo da superiorização europeia (FANON, 2008, p. 90)”. Precisamos ter coragem de dizer: “é o racista que cria o inferiorizado” (FANON, 2008, p. 90). E mais, “judeu é um homem que os outros homens consideram judeu: eis a verdade simples de onde se deve partir... É o anti-semita que faz o judeu” (FANON, 2008, p. 90), assim como é o branco que faz o negro e o homem que faz a mulher.
Somente a partir desses entendimentos é que se podem constituir alteridades outras, tendo como referência não somente um parâmetro, o branco, mas toda forma de diversidade, a fim de que um dia se finde todo esse processo de exclusão social e discriminação. Mas para isso, é necessário que o sujeito de pensamento colonizado liberte a si mesmo, ou como diria Fanon (2008), é necessário que o homem negro se liberte de suas próprias amarras, o que só se torna possível quando se consegue negar a negação de que o racismo e as discriminações não existem, são coisas da cabeça do “outro”, assumindo de uma vez por todos que os racismos só existem por fazer parte de um sistema de relações racializadas, muito bem estruturado e apoiado por instituições (família, escolas, empresas, dentre outras) que difundem a ideologia racista.
Guisa de conclusão
Antes de se consolidarem como debates críticos, os estudos pós-coloniais já contavam com textos e contribuições de intelectuais anticolonialistas que, até os dias atuais, influenciam as produções de textos acadêmicos relacionados aos efeitos nocivos da colonização e suas consequências nas sociedades contemporâneas.
Apesar de sabermos que a crítica pós-colonial só se estabeleceu como teoria acadêmica após os anos de 1980, depois da publicação e difusão do livro Orientalismo (1978), de Edward Said, podemos afirmar que os estudos pós-coloniais, tais quais conhecemos hoje, são resultado de muitas outras reflexões, como se pôde observar no discorrer deste trabalho.
Indubitavelmente, textos como O Discurso Sobre o Colonialismo (1978), de Aimé Césaire Retrato do Colonizado Precedido de Retrato do Colonizador (2007), de Albert Memmi, e os clássicos Pele Negra, Máscaras Brancas (2008) e Os Condenados da Terra (1968), de Frantz Fanon, apresentados neste artigo, foram essenciais para a consolidação do debate pós-colonial como uma forma legítima de manifestação do pensamento crítico anticolonialista, influenciando, e muito, na elaboração de textos comprometidos com a 169 desconstrução de discriminações e comportamentos produtores de desigualdades sociais, desde a segunda metade do século XX.
Por fim, acreditamos que apreender o debate crítico pós-colonial como a chave interpretativa mais adequada para a compreensão das múltiplas realidades existentes no mundo pós-moderno é a solução mais viável a ser adotada enquanto corpo acadêmico que busca a redução de discriminações e dos problemas sociais causados pela experiência colonial.
Notas
[1] Segundo Memmi (2007, p. 83), colonialista é o colonizador que busca legitimar a colonização.
Referências
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