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Resumo: Este artigo se debruçará sobre a análise da noção de indivíduo enquanto uma construção ocidental e outras formas de conceber o humano, sobretudo ao que é expresso no pensamento ameríndio do povo Kayapó. Para isso, parte de uma síntese teórica, que coteja temas e pensadores do domínio da filosofia com textos etnológicos (DUMONT, 1985; MAUSS, 2003; TURNER, 1991,1992). Tal empreendimento analítico almeja destacar que as concepções reducionistas (DESCARTES, 1979; ROUSSEAU, 2000) não dão conta de explicar a complexidade múltipla de conhecer e se conhecer no mundo, o que torna imperioso pensar a totalidade que se manifesta no mundo vivido ao passo que humanidade está para além dos domínios intradisciplinares.
Palavras-chave: Indivíduo, Subjetividade, Descentramento, Kayapó.
Resumen: Este artículo se centrará en el análisis de la noción del individuo en cuanto una construcción occidental y otras formas de concebir el humano, sobre todo a lo que se expresa en el pensamiento amerindio del pueblo Kayapó. Se parte de una síntesis teórica, que coteja temas y pensadores del dominio de la filosofía con temas etnológicos (DUMONT, 1995; MAUSS, 2003; TURNER, 1991,1992). Tal emprendimiento analítico anhela destacar que concepciones reduccionistas (DESCARTES, 1979; ROUSSEAU, 2000) no son capaces de explicar la complejidad múltiple de conocer y conocerse en el mundo, lo que hace imperativo pensar la 190 totalidad que se manifiesta en el mundo vivido mientras que la humanidad está más allá de los dominios intradisciplinares.
Palabras clave: Individuo, Subjetividad, Descentramiento, Kayapó.
Abstract: This article will focus on the notion of individual as a Western construction and other ways of conceiving human, especially to what is expressed in Amerindian thought of the Kayapo people. It’s from a theoretical synthesis, that matches themes and thinkers of domain of the philosophy with ethnological texts (DUMONT, 1985; MAUSS, 2003; TURNER, 1991,1992). Such analytical project aims to highlight that reductionist conceptions (DESCARTES, 1979; ROUSSEAU, 2000) not enough to explain the multiple complexity to know and to know yourself in the world, which makes it imperative to think of the totality that manifests itself in the lived world while humanity is beyond intradisciplinary domains.
Keywords: Individual, Subjectivity, Decentering, Kayapo.
Introdução
Desde que o homem desenvolveu um cérebro capaz de articular o pensamento pragmático, necessário para a sua manutenção enquanto ser biológico, com o pensamento simbólico passou a olhar para além das aparências e a praticar o que muitos pensadores consideram como o “que” distintivo entre este e os animais: a razão. Essa faculdade do espírito humano possibilitou ao homem pensar sobre ele mesmo e seu lugar no mundo. Daí surgem noções (conceitos) pensadas em sua totalidade e traduzidas em termos significantes que hoje naturalizamos em nosso cotidiano, como a de indivíduo.
O termo vem do latim, individuu, “indiviso”, “exemplar de uma espécie qualquer, orgânica ou inorgânica, que constitui uma unidade distinta” (FERREIRA, 2009, p. 1097). Já a noção de indivíduo como um ser autônomo, autossuficiente, centrado em si, é uma concepção ocidental nascida a partir das ideias de Descartes e a separação que o filósofo operou entre a coisa pensante e a coisa pensada, que culminou na razão dualista natureza/cultura. No entanto, pensadores como Dumont (1985) afirmam que essa noção nasceu, justamente, da experiência pessoal entre o homem e seu Deus, ou seja, do Cristianismo. O referido autor constrói um 173
percurso que vai do “renunciante”, figura “extramundana” presente no pensamento indiano, um ser que basta a si mesmo e que assim consegue olhar o mundo como desprovido de realidade, até o momento em que a experiência do protestantismo insere tal personagem no mundo, ou seja, o indivíduo torna-se um “renunciante intramundano”.
Essa ideia traduzida no termo indivíduo consolidou-se no pensamento ocidental, principalmente nas suas instituições e, como aponta Stuart Hall (2006), passou a fragmentar-se enquanto experiência na sociedade moderna. Além do mais, as ciências sociais, em especial a antropologia, mostraram que culturas possuem ideias únicas sobre si e que a pregada pela filosofia de um Ser universal era, na verdade, apenas mais uma dentre tantas concepções sobre o homem.
O tema deste artigo é a ideia de indivíduo enquanto uma construção do pensamento ocidental, uma categoria que não se traduz em um conceito, daí recobre vasto campo do saber, e outras formas de pensar o humano, dialogando com teorias sociais, como a concepção de pessoa de Mauss (2003), e com textos etnológicos que tratam do povo Kayapó (TURNER, 1991,1992; LEA, 1994, 1999, 2012; LUKESCH, 1976), termo genérico que engloba vários grupos indígenas brasileiros pertencentes ao tronco linguístico Jê (cujas palavras vernáculas encontram-se em itálico, em especial na última parte do texto) e que compartilham um corpo mítico e pensamento acerca de si e do mundo.
A reflexão que segue busca pensar a mais elementar questão: o que é o homem? Para tanto, parte-se do argumento de que a ideia de indivíduo é resultado da experiência ocidental de ‘ascese intramundana’ e, através das instituições liberais, torna-se a expressão da modernidade. Posteriormente, discorremos sobre a tese de Hall para quem, na conjuntura atual do mundo, o sujeito está mais para um ser fragmentado do que uno. Por fim, apresentamos a concepção indígena Kayapó de pessoa como um ser em relação, cuja noção de indivíduo/indivisível, nos modelos expostos, é inconcebível segundo seu modo de ser físico/cultural.
A gênese do indivíduo ocidental
Há um consenso de que a ideia de indivíduo como um ser autônomo, independente, centrado em si, assim como sua expressão, o individualismo, é uma das bases do pensamento ocidental moderno. O mesmo não se pode dizer sobre suas origens. A noção mais aceita é a de 174 que a ideia de indivíduo é uma decorrência da experiência pessoal homem/Deus proporcionada pelo Cristianismo e desenvolvida após o Renascimento, principalmente, pelos contratualistas. Para construir esse percurso, partimos da tese, apresentada por Louis Dumont (1985, p. 36), de que “algo do individualismo moderno está presente nos primeiros cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata do individualismo que nos é familiar”. Trata-se da origem ou aceitação de uma espécie que se transformou no decorrer dos séculos em outra, o indivíduo moderno. De acordo com o autor, ao nos referirmos a um indivíduo, designamos duas coisas ao mesmo tempo: “um objeto fora de nós e um valor” (ibid., p. 37). Disso decorre que há, por um lado, um “sujeito empírico” que fala, pensa, quer e que representa uma amostra individual da espécie humana e, por outro lado, o “ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador de nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna” (ibid., p. 37). Daí quando o indivíduo representa o valor supremo de uma sociedade, tem-se o “individualismo”. Já em sociedades onde o valor está nelas mesmas, há o “holismo”. A questão que Dumont apresenta e que difere de outros autores que tratam do tema é justamente saber como, a partir de sociedades holistas, pode desenvolver-se um novo tipo, a individualista.
O ponto central que permite esta digressão está no “renunciante”, personagem da sociedade indiana que, em busca da verdade última, abandona a vida em sociedade para consagrar-se ao seu próprio destino. Dessa maneira, esse homem consegue a distância necessária para ver o mundo que deixou como desprovido de realidade. O “renunciante” basta a si mesmo, com a diferença de que este indivíduo está fora do mundo e o indivíduo ocidental está inserido no mundo social. Essa concepção de “indivíduo-fora-do-mundo”, conforme Dumont, é encontrado na concepção cristã, um indivíduo em relação com Deus e essencialmente fora do mundo:
A alma individual recebe valor eterno de sua relação filial com Deus e nessa relação se funda igualmente a fraternidade humana: os cristãos reúnem-se no Cristo, de quem são os membros. Essa extraordinária afirmação situa-se num plano que transcende o mundo do homem e das suas instituições sociais, ainda que estas precedam também de Deus (DUMONT, 1985, p. 42-43).
Esse individualismo extramundano, visto que encerra uma comunidade de “indivíduosfora-do-mundo” que caminham sobre a terra, mas que possuem seus corações no céu, contamina a vida mundana unificando-a até que o holismo desaparece e esse indivíduo 175
“renunciante” se converte no indivíduo moderno, um “indivíduo-no-mundo”. O marco dessa transição está representado pela doutrina calvinista baseada nas concepções de Deus como
“vontade”, na predestinação e no objetivo da vontade do indivíduo expressos no cotidiano cristão.
Dumont esclarece que na “reforma protestante”, Lutero expulsa Deus do mundo ao rejeitar a mediação institucionalizada da Igreja Católica, sendo que Ele continua acessível pela fé, o amor e a razão. Já para Calvino, Deus é o “arquétipo da vontade, no qual pode-se ver a afirmação indireta do próprio homem como vontade e, para além, a afirmação mais forte do indivíduo” (DUMONT, 1985, p. 65) superior, inclusive, à razão. A vontade se expressa no dogma da “predestinação” que, conforme desvela Weber (2004), é o cerne do “espírito do capitalismo”.
Resumidamente, a doutrina da “predestinação” afirma que Deus, em sua vontade, elege certos homens à salvação e outros à condenação e não há como saber ou mudar isso. O eleito trabalha incansavelmente pela glorificação de Deus no mundo, que exerce sua vontade na ação, e a fidelidade dessa tarefa é a única prova da eleição. Portando, o indivíduo exerce uma intramundanidade ascética.[1] A partir desse amadurecimento da ideia de indivíduo, segue o seu aprimoramento nas instituições liberais, que consagra o individualismo como a grande marca da modernidade.
O individualismo e as instituições modernas
Se a ideia era um indivíduo no mundo, resta agora separar ontologicamente este mundo e inaugurar o domínio do indivíduo sobre a natureza, função exercida pela filosofia de Descartes. Na tentativa de construir um conhecimento seguro acerca do mundo que naquele momento havia sido abalado pelas incertezas dos sentidos, afinal, acabava-se de descobrir que a Terra não era o centro do Universo, Descartes construiu seu raciocínio em busca de verdades indubitáveis. De acordo com a filosofia cartesiana, o engano pode acometer, inclusive, o raciocínio matemático, os mais simples temas de geometria. Ao prosseguir, Descartes afirma que os pensamentos que temos quando acordados também possuímos quando dormimos sem que nenhum deles seja verdadeiro, dessa maneira afirma que “todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos” 176
(DESCARTES, 2001, p. 38). Com base nesse raciocínio, a única coisa que poderia ser afirmada como verdadeira era o fato do filósofo de estar pensando, ou seja, “penso, logo existo”. O pensamento, portanto, é uma realidade em si mesmo, uma substância distinta da matéria, uma coisa pensante (res cogitas) e uma coisa pensada (res extensa), uma alma e um corpo e, a partir disso, a separação ontológica entre sujeito e objeto, homem e natureza.
Ao partir sobre a “maturação” da ideia de indivíduo, as teorias sobre o Estado moderno trabalharam em prol de estabelecer o valor ocidental indiscutível: o individualismo. O homem já pode ser pensado como um objeto isolado e passível de análises objetivas. Dito isso, considera-se que Maquiavel promove a emancipação da ciência prática da rede holista dos fins humanos e, a partir dele, os contratualistas fundamentam o valor do individualismo e, consequentemente, da igualdade e da liberdade, os pilares do Estado moderno. Para Maquiavel (2001, p. 80), a natureza humana é má, perversa, e conforme o exposto: “Os homens são
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ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos, são ávidos de ganhar [...], têm menos receio de ofender a quem se faz amar do que a outro que se faça temer”. Em consequência dessa visão, todas as relações entre os homens são relações de poder, sendo que, nessa perspectiva, outros homens são considerados obstáculos ou instrumentos para a realização de determinados fins.
Enquanto Maquiavel concebe uma natureza humana mais realista, é Hobbes quem a sistematiza e pensa o Estado como um todo a partir da unidade da natureza humana. Na obra Leviatã (2008), Hobbes trata do “estado de natureza” humana como uma “guerra de todos contra todos”. É uma concepção de indivíduo associal, egoísta e movido por paixões. Não há segurança para viver nesse estado de anarquia. Daí a necessidade de se viver sob regras, leis e contratos, função exercida pelo Estado e que segue basicamente duas orientações: “É um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve se esforçar pela paz” (HOBBES, 2008, p. 101) e, decorrente desta, que “um homem concorde, conjuntamente com outros [...] em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo” (HOBBES, 2008, p.
102). 177
Há ainda uma noção de que o indivíduo precede a sociedade também trabalhada por John Locke alcançando, porém, resultados diferentes. Para Locke (apud GANEM, 2000, p.15), o “estado de natureza” inclui “a propriedade e a herança (seu corolário), como partes dos direitos de natureza, somando-as ao direito à vida, à liberdade e à saúde”. O homem possui o direito natural de se apropriar dos resultados do seu trabalho sobre a natureza e, nesse movimento, que busca assegurar a propriedade, passa de um “estado de natureza” para a sociedade civil, na qual o Estado lhe assegura os direitos naturais, inclusive, a propriedade.
Rousseau, por sua vez, considera a natureza humana boa em seu estado original. O ideal eudemonista é a busca da felicidade, o amor a si mesmo, “um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude” (ROUSSEAU, 2000, p. 65).
Para o referido filósofo, a soberania do governo é o povo, cuja vontade geral conduz às decisões do governante. Em um estado de natureza, a verdadeira felicidade está em satisfazer as necessidades simples como alimentação, abrigo e desejos sexuais, o gozo da existência – autarquia. A felicidade também pode se realizar no homem como cidadão de uma república. Por isso, concebe em sua teoria do Estado a ordem social, em que tal felicidade poderia se realizar de uma maneira diferente daquela do “estado de natureza”.
Uma vez que o homem sai do “estado de natureza”, da autarquia na qual possui o amor de si mesmo para o estado de sociedade em que realiza o amor próprio ligado ao desejo de honrarias e reputação, ainda pode escolher entre a miséria e a felicidade, desde que converta esse amor próprio em amor pela pátria. Isso significa que os homens podem direcionar suas paixões para o bem da comunidade, optando por agir em busca da vontade geral desta, uma ação de liberdade. O homem é livre quando submetido à vontade geral.
Depois de uma longa jornada, a concepção de indivíduo gerada em uma experiência religiosa e maturada numa relação com o Estado aparece com força na modernidade sendo, inclusive, o seu valor máximo. O individualismo torna-se o valor supremo buscado e empunhado como bandeira e “fardo” desse homem que agora se diz “civilizado”. Esse mesmo homem/indivíduo/civilizado cruzou os mares e imputou sua visão de mundo aos povos que encontrou em seu caminho e, para surpresa de todos, esses povos mostraram que tal concepção é mais uma dentre tantas concepções de “eu”. Porém, antes de adentrarmos numa dessas noções, a do povo indígena Kayapó, resta-nos mostrar o que ocorreu com esse indivíduo quando se deparou com um mundo que ele descobriu: ele se fragmentou.
Do indivíduo centrado ao fragmentado
A noção de sujeito fragmentado está relacionada com a concepção de mundo fragmentado, o mundo pós-moderno. Porém, antes de apresentar algumas descrições e designações do que comumente autores chamam de pós-modernidade, é necessária uma síntese dos movimentos que caracterizaram a modernidade, lembrando que, como afirma Bruno Latour (1994), esse projeto é um ideal que nunca chegou a alcançar a totalidade dos povos do mundo. A modernidade, segundo Néstor García Canclini (2011), é composta de movimentos básicos, projetos que o autor resume em:
- Um projeto emancipador: “secularização dos campos culturais, a produção autoexpressiva e auto-regulada das práticas simbólicas, seu desenvolvimento em mercado autônomo” (CANCLINI, 2011, p. 31);
- Um projeto expansionista: “tendência da modernidade em procurar estender o conhecimento e a posse da natureza, a produção, a circulação e o consumo de bens” (CANCLINI, 2011, p. 31). No caso capitalista, esta expansão está ligada ao lucro, como também ao desenvolvimento científico e industrial;
- Um projeto renovador: “de um lado, a busca de um aperfeiçoamento e inovação incessantes [...] de outro, a necessidade de reformular várias vezes os signos de distinção que o consumo massificado desgasta” (CANCLINI, 2011, p. 32);
- Um projeto democratizador: “movimento da modernidade que confia na educação e na difusão da arte e dos saberes especializados para chegar a uma evolução racional e moral” (CANCLINI, 2011, p. 32).
Em relação à pós-modernidade, o próprio termo é controverso, pois há aqueles que afirmam que a modernidade ainda não se consumou, outros dizem que a pós-modernidade também já terminou e deu lugar a “hipermodernidade”.
Para Lyotard (2002), a pós-modernidade é caracterizada, principalmente, pela incredulidade em relação aos metadiscursos legitimadores modernos do homem ocidental, nos aspectos econômicos, sociais e culturais. A partir da década de 1950, as transformações tecnológicas provocaram uma importante transformação na natureza do saber e da universidade. O que aconteceu foi, em resumo, um descrédito nas metanarrativas, pois o discurso filosófico moderno havia elegido como questão a problemática do conhecimento, 179 tornando-se um metadiscurso de legitimação da ciência. Assim, os conceitos que eram tão caros ao pensamento moderno entraram em crise, como “razão”, “sujeito”, “totalidade”, “progresso”. Essa crise começou com a perda da fé do ocidente em relação à ciência, visto que essa, com sua ideia de progresso, não foi capaz de solucionar os problemas sociais da humanidade, ao contrário, mostrou-se por vezes demasiadamente perigosa, como no caso das armas nucleares. Crise nos dispositivos modernos de legitimação e explicação da ciência, corrosão do “dispositivo especulativo” do idealismo alemão, em que a ciência se legitimava a si mesma, e do “dispositivo de emancipação” representado pelo iluminismo. Não só esses dispositivos, mas uma linguagem que escapa às determinações teóricas, como a noção de “acontecimento” e “acaso”, trazido pela física, biologia e história, causando uma crise na noção central dos
“dispositivos de legitimação e no imaginário moderno: a noção de ordem” (BARBOSA, 2002, p. xi).
A pós-modernidade com sua vocação informática e informacional deixou de ver as ciências como algo divino ou espiritual e passou a vê-la como algo quantificável em “bits” de informação. Podia-se “estocar” conhecimento. “Descobriu-se que a fonte de todas as fontes chama-se informação e que as ciências – assim como qualquer modalidade de conhecimento – nada mais é do que um certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações” (BARBOSA, 2002, p. ix). Assim, surgiu um novo discurso legitimador na pós-modernidade: o desempenho, a eficácia. Com isso, as universidades tornaram-se centros irradiadores de conhecimento produzido e estocável.
Já para Jameson (1996, p. 14), “na cultura pós-moderna, a própria ‘cultura’ se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto”. Dessa forma, cultura e capital são inseparáveis. O autor tece uma crítica a Lyotard sobre o conceito de descrédito nas metanarrativas, visto que a própria crítica é uma narrativa. Essa crítica parte do pressuposto que uma teoria nova, totalmente abdicada do antecessor, é mera especulação. Na prática, o que vemos é a “impossibilidade de emergência de uma cultura totalmente nova”, uma teoria sobre a pós-modernidade constitutivamente pura. Assim, “o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem social totalmente nova [...], mas é apenas reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo” (JAMESON, 1996, p. 16).
Como saber, então, se o presente é algo historicamente novo ou uma mera repetição do passado? Segundo o autor, não há como definir isso empiricamente. Há argumentos de uma ruptura total, ocorrida no fim dos anos de 1950 e começo de 1960, relacionada com a extinção, repúdio ideológico ou estético ao movimento moderno. Dessa maneira, o que vem depois “se 180 torna, de imediato empírica, caótica e heterogênea” (JAMESON, 1996, p. 27). Por que, então, o termo pós-moderno?
“Pós-moderno”, no entanto, parece estar à vontade nas áreas pertinentes da vida de todos os dias ou do cotidiano; sua ressonância cultural, apropriadamente mais abrangente do que o meramente estético ou artístico, desvia devidamente a atenção da economia, ao mesmo tempo que permite que fatores econômicos e inovações mais recentes (em marketing ou propaganda, por exemplo, mas também na organização das empresas) sejam recatalogados sobre novo título (JAMESON, 1996, p. 17-18).
Qual é o papel ideológico desempenhado pelo novo conceito? Para Jameson (1996)
“deve continuar a ser a de coordenar as novas formas de práticas e de hábitos sociais e mentais [...] e as novas formas de organização e de produção econômica que vem com a modificação do capitalismo – a nova divisão global do trabalho – nos últimos anos”. Aqui entra o que mencionamos, a inter-relação entre o cultural e o econômico, visto como uma via de mão única.
Assim, o “pós-moderno deve ser visto como a produção de pessoas pós-modernas”. Essa é sua proposta pragmática: a lógica cultural do capitalismo tardio, na qual a produção estética está integrada à produção de bens de consumo em geral. “O pós-moderno é, no entanto, o campo de força em que vários bens diferentes de impulso cultural [...] têm que encontrar seu caminho” (JAMESON, 1996, p. 31).
De maneira resumida, para Jameson (1996), as principais características do pósmodernismo são: 1) falta de profundidade: prolongada tanto na teoria contemporânea como na cultura da imagem e simulacro; 2) o esmaecimento do afeto: as ‘intensidades”, a dramatização exterior de um sentimento interior, a dicotomia metafísica dentro/fora; 3) enfraquecimento da historicidade: verificada na organização da temporalidade, tanto pública como privada, “o canibalismo aleatório de todos os estilos do passado, o jogo aleatório de alusões estilísticas”, o pastiche (como uma paródia, mas sem a intenção do riso junta, imita estilos), o simulacro “cópia idêntica de algo cujo original jamais existiu”; 4) esquizofrenia “como sendo a ruptura na cadeia dos significantes”, o exercício da descontinuidade; e 5) profunda relação de tudo isso com a nova tecnologia: uma das figuras de um novo sistema econômico mundial.
Enfim, o que há é um consenso de que os tempos atuais são “fluidos”, difusos, que prevalece a “lógica do efêmero”, conforme aponta Lipovetsky (2004). O autor identifica a sociedade atual e seu presenteísmo, ou seja, a ênfase no agora, como uma “sociedade moda”, em que “tudo que é novo apraz”. Isso significa “um presente que substitua a ação coletiva pelas 181 felicidades privadas, a tradição pelo movimento, as aspirações pelo futuro pelo êxtase do presente sempre novo” (LIPOVETSKY, 2004, p. 60). É uma lógica do efêmero e, como tudo o que é efêmero, acaba.
Por sua vez, o sujeito inserido nesse mundo, determinando e determinado por ele, não possui mais uma identidade unificada e estável e está se tomando fragmentado, pois comporta várias identidades que se conformam, como aponta Hall (2006, p. 12), “com as necessidades objetivas da cultura”. Para analisar esse sujeito, o “pai do multiculturalismo” utiliza o termo “descentrado”, ou seja, o seu centro se deslocou. Esses deslocamentos ocorreram por meio de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno que lhe servia de legitimação.
O primeiro “descentramento” no pensamento ocidental moderno do século XX referese às tradições do pensamento marxista, especialmente aos seus intérpretes na década de 1960 à luz da afirmação de que o homem faz a sua história, mas sob as condições que lhe são dadas. Isso leva a pensar que o homem não pode ser o agente ativo de sua própria história, pois só age sob condições históricas dadas. A consequência dessa interpretação é que o centro desse sistema teórico não é o homem, mas as relações sociais de modos de produção, exploração de força de trabalho etc. O sujeito/indivíduo enquanto essência ideal foi expulso de todos os domínios em que reinava até então.
O segundo "descentramento" é proveniente da descoberta do inconsciente por Freud.
Segundo sua teoria, “nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão” (HALL, 2006, p. 36). Isso acaba com o conceito do sujeito cognoscente, racional, com uma identidade fixa, una e centrada. Nesse sentido, a identidade de um sujeito é formada ao longo do tempo por processos inconscientes – e não algo inato.
O terceiro “descentramento” está relacionado à linguística estrutural de Ferdinand de Saussure. Para o pensador, o homem não é o autor das afirmações que faz ou dos significados expressos na língua. Assim, conforme aponta Hall (2006, p. 40), “Nós podemos utilizar a língua para produzir significados apenas nos posicionando no interior das regras da língua e dos sistemas de significado de nossa cultura. A língua é um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a nós.” Falar uma língua é ativar os significados que já estão embutidos dentro desse sistema pela cultura. Além do mais, os significados das palavras não são fixos ao objeto que referencia. Significado e significante são arbitrários.
O quarto “descentramento” é oriundo do trabalho do filósofo e historiador francês 182 Michel Foucault. O autor produziu uma espécie de "genealogia do sujeito moderno", na qual destaca um novo tipo de poder, que ele chama de "poder disciplinar". O poder disciplinar está preocupado com a regulação, a vigilância e o governo da espécie humana ou de populações inteiras em um primeiro momento. Em segundo lugar, com o indivíduo e seu corpo. O “poder disciplinar” se realiza nas instituições desenvolvidas ao longo do século XIX para vigiar e disciplinar as populações modernas, como quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas etc.
Essas instituições coletivas possuem técnicas de aplicação do poder que “individualiza” ainda mais os sujeitos e há nisso um grande paradoxo:
Não é necessário aceitar cada detalhe da descrição que Foucault faz do caráter abrangente dos "regimes disciplinares" do moderno poder administrativo para compreender o paradoxo de que, quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual (HALL, 2006, p. 43).
O quinto e último dos grandes “descentramentos” é o impacto do feminismo, tanto como uma crítica teórica quanto como um movimento social. Surgido na década de 1960 juntamente com uma gama de outros movimentos sociais, o feminismo em especial possui um papel importantíssimo no “descentramento” do sujeito/indivíduo. Hall (2006, p. 45-46) listou sua contribuição, resumidamente, a: 1) o feminismo questionou a distinção que vigorava até então entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e “público”; 2) isso abriu para a contestação política de áreas novas da vida social, como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, etc.; 3) o feminismo também politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas); 4) o movimento passou a incluir a formação das identidades sexuais e de gênero; 5) por fim, o feminismo trouxe à luz a noção de que tanto os homens como as mulheres fazem parte da mesma identidade, a “Humanidade”.
A partir desses “descentramentos” analisados por Hall, a ideia de um sujeito uno, centrado, racional e tudo o mais não é mais concebível para pensar o homem contemporâneo e suas múltiplas identidades. Na perspectiva de Agamben (2009), é necessário olhar o objeto, que pode ser também o homem, como algo difuso situado entre uma tradição que ainda não se esgotou e um virtual que ainda não se atualizou, um devir que ainda não se instalou.
“Mẽ”: uma noção de pessoa no pensamento Kayapó Mẽbêngôkre
Antes, porém, deste indivíduo se fragmentar ou “descentrar”, ele literalmente dominou o mundo e levou a todos os povos sua missão “civilizadora”. Estes povos com que teve contato eram “exóticos”, pensavam, agiam de outra maneira e tinham valores diferentes daqueles ocidentais. Nascia, então, a antropologia como uma ciência a serviço da dominação, pois os primeiros estudos consistiam em descrever e analisar a função das instituições sociais das colônias britânicas para que essa pudesse exercer sua dominação com maior eficácia.
Foi, justamente, a partir desses primeiros estudos que o sociólogo Marcel Mauss percebeu outras maneiras de conceber a pessoa além daquela promulgada pelo pensamento ocidental. Mauss afirma que, em clãs indígenas, a pessoa é atrelada aos laços de sua comunidade pelo nome que a liga dentro de um clã específico e que configura um conjunto total, conforme segue: “o clã é concebido por um certo número de pessoas, na verdade personagens; e, por outro, o papel de todos esses personagens é realmente figurar, cada um por sua parte, a totalidade prefigurada do clã” (MAUSS, 2003, p. 374. Grifo do autor).
Algo similar é encontrado em algumas populações indígenas brasileiras, como no caso Kayapó. Kayapó é o nome popular pelo qual grande número de etnias indígenas brasileiras são conhecidas, um etnômio dado por outros povos, o que é comum na literatura. O nome é de origem tupi e significa, com conotação pejorativa:[2] k’aya: macaco, po: parecido, semelhante (TURNER, 1991, p. 311). Pertencem à família linguística Jê, tronco Macro-Jê, subgrupo Jê Setentrional. Mẽbêngôkre (mẽ: gente, categoria; bê: indica estado, ser; ngô: água; kre: buraco) é uma autodefinição que significa “gente do espaço dentro da(s), ou entre a(s) água(s)” (ibid.), e é composto por vários grupos indígenas. Especificamente, cada etnia possui características que a diferencia de outros grupos, embora, de maneira geral, os Jê Setentrionais, especificamente os Mẽbêngôkre, partilham todo um corpo mítico e organização sociocosmológica, uma vez que faziam parte de um mesmo grupo que sofreu diversas cisões, algumas mais recentes que outras.
Conforme já mencionamos, este grupo específico se autodenomina Mẽbêngôkre e aí está a chave para a compreensão da noção de pessoa, de humanidade, que acaba nas fronteiras da própria tribo. “O termo genérico Caiapó para homem é meõ – me-õ, ser humano, ou apenas me. […] Consoante à atitude antropocêntrica para ambos os sexos é ser humano, no pleno sentido da palavra, apenas o habitante da própria aldeia” (LUKESCH, 1976, p. 126). “Mẽ” é utilizado como prefixo em todas as palavras que designam algo pertencente à sua comunidade, como mẽmu: homem, mẽnire: mulher, mẽtoro: festa da comunidade, mẽkaron: espírito e assim 184 por diante. Conforme Nimuendajú (1944 apud COELHO DE SOUZA, 2002, p. 192) explica, a humanidade inscreve-se no próprio significado do me: “me só se emprega diante de substantivos que se relacionam ao homem".
Os Kayapó Mẽbêngôkre apresentam uma noção de “eu” que destoa totalmente daquela apresentada até aqui. O mẽ possui uma carga semântica que identifica a pessoa juntamente com certas virtudes e modos de ser característicos daquele povo, fato percebido na maneira como nominam outros grupos indígenas, mesmo parentes, sem o prefixo mẽ. A autodefinição não se refere à humanidade enquanto essência, mas a pessoa enquanto um ser em relação. Para se compreender tal concepção, é necessário fazer uma incursão na organização socioespacial tida como ideal, uma vez que suas construções de pessoa, corpo e lugar são, de certa maneira, indissociáveis. Nesse espaço físico e simbólico o centro de uma aldeia mẽbêngôkre
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correspondente ao zênite solar é ocupado pela ngà, a “casa dos homens”, um polo político de origem mitológica onde os homens são educados desde meninos.
Para Lea (1994, p. 96), “a casa dos homens [...] direciona o olhar para além da aldeia, e os homens são os responsáveis por aquilo que diz respeito ao mundo exterior”, as caçadas, os inimigos, o Estado e tudo o que dele provém como saúde e educação. Sempre abertas para o centro, as habitações representam a “matricasa” que, cosmologicamente, encena o papel das mulheres na sociedade, que se ocupam com questões internas a esta, tanto a sua nutrição como a sua reprodução, no sentido ritualístico e simbólico, a transmissão de nomes, bens e prerrogativas herdáveis dentro de estruturas de parentesco matrilinear. A “matricasa” é dona de um determinado espaço físico no círculo da aldeia, em uma analogia ao formato de pizza, determinado pela posição da trajetória solar leste/oeste.
Quando uma criança mẽbêngôkre nasce, ela é um ser biológico unida por laços consanguíneos aos seus genitores, irmãos, avós. Esses laços permanecem por toda a vida e ditam os tabus relacionados ao corpo. De maneira resumida, genitores e seus filhos compartilham um mesmo “corpo biológico” ou “corpo social” de maneira que o que um ingere atua diretamente no corpo do outro. Em situações de doença, gestação e nascimento, aqueles 185 que pertencem a esse corpo abstêm-se de carnes e qualquer alimento considerado de difícil digestão e só se alimentam de beiju e peixes pequenos. Esse ser biológico, quando recebe um nome confirmado por um ritual de nominação e aceito pela comunidade, passa a ser um ser social. O nome recebido carrega informações sobre o papel que a pessoa irá desempenhar socialmente na comunidade. Nas sociedades Jê, a coisa se passa como se o corpo fosse dividido em aspectos internos e externos, onde “aspectos internos, ligados ao sangue e ao sêmen, à reprodução física e aspectos externos, ligados ao nome, aos papéis públicos, ao cerimonial – ao mundo social”, conforme analisam Seeger et al. (1979, p. 11).
A pessoa Mẽbêngokrê é construída socialmente por meio dos papéis que irá desempenhar por toda a vida. A partir do momento que um indivíduo assume seu papel social enquanto portador de nomes e prerrogativas, torna-se um “personagem”, conforme expõe Melatti (1976), cujas ações estão atreladas ao seu meio social. O antropólogo afirma que seria mais adequando utilizar a noção de personagem ao invés de pessoa. Os nomes pessoais seriam como nomes de um personagem com papel predefinido. A sociedade indígena seria “constituída por um conjunto de personagens que, tais como no teatro, seriam eternos, fadados a repetirem sempre os mesmos atos” (MELATTI, 1976, p. 146). Os atos de tais personagens seriam transmitidos junto com os nomes pessoais que carregam o roteiro a ser representado. Um ser humano nasce e, ao ser nominado, recebe, juntamente com o nome, seu papel social junto à comunidade. Os personagens são eternos, os atores não. Quando uma pessoa morre seu corpo se desintegra, mas seu personagem retorna para ser encenado novamente por aquele que receber tal incumbência, por aquele que receber o nome, visto que o nome é uma propriedade simbólica transmitida verticalmente dentro de uma “matricasa”. O biológico, o nome e o espaço, corpo/pessoa/lugar formam elementos complementares, indissociáveis na estrutura social, pois “[...] a transmissão de nomes é como que uma forma figurada de procriação, pois sua operação permite perpetuar os personagens. Por outro lado, a existência dos organismos não teria razão de ser, se não viesse encarnar um personagem”. (MELATTI, 1976, p. 146).
De acordo com o exposto, o termo indivíduo não parece fazer sentido para a concepção de “eu” indígena, uma vez que esse ser não é tido como algo uno, indivisível, mas um ser em relação com os outros. O termo mais apropriado é pessoa, persona, máscaras utilizadas para representar as diferentes posições que o sujeito ocupa na estrutura social. Isso se dá não pelos laços sanguíneos, mas pela aquisição de um nome, bens e prerrogativas ritualísticas que são herdadas dentro de uma linhagem uterina. Por exemplo: irmãos e irmãs possuem laços importantíssimos, pois um vai nominar o filho do outro. Não são os pais que dão o nome, mas 186 a irmã à filha do irmão e este ao filho da irmã. Não há como ser genitor e nominador ao mesmo tempo.
O mẽ remete ao coletivo, a valores e virtudes compartilhados, a língua, vestuário, adornos, práticas rituais, bens materiais e simbólicos, ao modo de ser mẽbêngôkre, a tríade corpo/pessoa/lugar, ao ser e estar no mundo povoado por potências e demiurgos com poderes criadores, assim como por seres maléficos (onde nós nos encaixamos, o kubẽ punure – outro/branco podre, que não presta, estragado). Essa maneira de ver a si, aos outros e ao mundo está em relação dicotômica com a maneira com que nós, ocidentais, pensamos e agimos sobre o mundo, fragmentando-o em prol da velha missão “civilizadora”, um projeto moderno superado ou ainda não consolidado.
Considerações finais
O artigo teve como propósito mostrar que a noção de sujeito moderno como algo uno, centrado em si, movido pela razão e outros atributos que aparecem reificados em nossa sociedade é uma construção de séculos e que tem suas origens na experiência religiosa homem/Deus. Tal ideia desenvolveu-se ou amadureceu, consolidando-se após a Renascença. A partir do Iluminismo passou a fazer parte da estrutura do Estado moderno e palavras como indivíduo, liberdade e igualdade passaram a ter vida própria. Essa reificação encobre o fato de que são construções sociais e que hoje se deparam com o fato de existirem mais no plano “ideal”
do que na realidade propriamente dita, uma vez que os sujeitos “descentrados” não correspondem mais a esse indivíduo.
Por outro lado, outras culturas mostram que todo povo constrói uma concepção do “eu”. Pessoas diferentes podem pensar (e pensam) de maneiras diferentes. Na cosmologia indígena, a pessoa só existe em relação com os outros. Os laços sociais que os unem são construídos por complexas redes de trocas de nomes, bens e prerrogativas ritualísticas. Se, contudo, pensarmos que a fragmentação do mundo também atinge essas populações e quebra suas redes, a pessoa indígena também se “descentra”, só que para eles isso significa a morte social, física e cultural.
Notas
[1] “Ascese, ascetismo ou ascética é o controle austero e disciplinado do próprio corpo através da evitação metódica do sono, da comida, da bebida, da fala, da gratificação sexual e de outros tantos prazeres deste mundo. Weber distingue dois tipos principais de ascese: a ascese do monge, que se pratica ‘fora do mundo’, chamada
‘extramundana’, e a ascese do protestantismo puritano, que é ‘intramundana’ e faz do trabalho diário e metódico um dever religioso, a melhor forma de cumprir, ‘no meio do mundo’, a vontade de Deus” (PIERUTI, 2004, p. 277278).
[2] Para Tim Ingold (1995, p. 39) “as noções de humanidade e de ser humano determinaram, e foram, por sua vez, determinadas, pelas ideias acerca dos animais”. O autor considera fundamental a distinção de humano como espécie e como condição, sendo que a segunda é uma concepção cultural do que é ser humano. É diferente perguntar o que é ser humano e o que significa ser humano (para quem?). Para Lévi-Strauss (1976), a humanidade, enquanto concepção local, acaba nas próprias fronteiras tribais. Esse fato é percebido na maneira como os grupos se designam, geralmente com termos que significam “homem”, ou “bons”, “perfeitos”, em relação aos outros que não participam das mesmas virtudes ou da mesma natureza humana. Em relação ao mẽbêngôkre, além da autodefinição há a definição do outro, o kubẽ, tido como o não mẽbêngôkre, o estrangeiro, “seres estranhos” (LUKESCH, 1976, p. 14).
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