Resumo: “Leite Derramado”, de Chico Buarque, é um romance narrado em primeira pessoa, onde a memória e suas representações se tornam o construto da narrativa. Nesse contexto, a memória se configura como representação do passado ou que o próprio indivíduo representa como passado. O presente artigo propõe analisar, no romance, a memória enquanto experiência. A pesquisa se fundamenta em uma fortuna crítica sobre a obra, bem como um levantamento bibliográfico de títulos que compõem o repertório temático sobre memória, a exemplo de Bosi (1994), Le Goff (1996), Bergson (1999), dentre outros. Para tanto, espera-se através da análise do objeto de estudo proposto, ratificar que a memória retratada na obra é fruto das experiências vividas pelo narrador–personagem.
Palavras-chave:literaturaliteratura,memóriamemória,experiênciaexperiência,representaçãorepresentação.
Resumen: “Leche Derramada”, de Chico Buarque, es un romance narrado en primera persona, donde la memoria y sus representaciones se tornan la base de la narrativa. En ese contexto, la memoria se configura como representación del pasado, o aquello, que el propio individuo representa como pasado. El presente artículo propone analizar, en el romance, la memoria como experiencia. La investigación se fundamenta en una fortuna crítica sobre la obra, así como un levantamiento bibliográfico de títulos que componen el repertorio temático sobre memoria, a ejemplo de Bosi (1994), Le Goff (1996), Bergson (1999), de entre otros. Se espera, a través del análisis del objeto de estudio propuesto, ratificar que la memoria retratada en la obra es fruto de las experiencias vividas por el narrador personaje.
Palabras clave: literatura, memoria, experiencia, representación.
Abstract: Chico Buarque's "Spilled Milk" is a novel narrated in the first person, where memory and its representations become the construct of the narrative. In this context, the memory is configured as a representation of the past or that the individual himself represents as the past. The present article proposes to analyze, in the novel, the memory as an experience. The research is based on a critical fortune about the work, as well as a bibliographical survey of titles that compose the repertoire on memory, such as Bosi (1994), Le Goff (1996), Bergson (1999), among others. For this, it is expected through the analysis of the object of study proposed to ratify that the memory portrayed in the work is fruit of the experiences lived by the narrator-character.
Keywords: literature, memory, experience, representation.
Artigos livres
Memória enquanto experiência do indivíduo em "Leite Derramado", de Chico Buarque
Memoria mientras experiencia del individuo em Leche Derramada, de Chico Buarque
Memory while experience of the individual in Milk Spilled, of Chico Buarque
Leite Derramado é romance publicado em 2009, que tem autoria de Chico Buarque, um já bastante reconhecido e reverenciado artista da Música Popular Brasileira (MPB). Porém, atualmente, ele dedica seu tempo à literatura, sendo considerado pela crítica literária brasileira um expoente autor de livros literários, ganhando cada vez mais notoriedade no cenário da literatura nacional.
Sendo assim, Chico Buarque e sua produção literária vêm aos poucos se tornando tema de pesquisas nos mais variados âmbitos do espaço acadêmico, na área de crítica literária e literatura comparada, justificando a relevância do tema aqui proposto. Entretanto, durante o levantamento de fortuna crítica sobre a obra, percebemos que poucos estudiosos se propuseram investigar a memória enquanto experiência do indivíduo.
Os estudos sobre memória fazem parte de diversas áreas do conhecimento, como a filosofia, a história, a psicologia, a sociologia, a antropologia e a literatura. Neste artigo, tomamos por base o romance para analisar o papel conferido às experiências humanas vividas
pelo protagonista como atributo que possibilita a narrativa. 219
Dessa forma, a análise tem como eixo norteador os estudos teóricos do filósofo francês Henri Bergson (1999) e sua teoria sobre a existência de uma memória pura e individual, seguido pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs ([1950]2006) e seu conceito de memória individual e coletiva. Além de estudiosos como Jacques Le Goff, autor do livro Memória e sociedade (1996), que insere o elemento “mnemônico” dentro de um contexto histórico, na medida em que também o define relacionando-o com elementos de caráter psicológico. Sobre o que ele diz:
A memória como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar as impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (LE GOFF, 1996, p. 423).
Além dos autores referenciados acima, trazemos para fomentar a discussão Éclea Bosi, com o livro “Memória e Sociedade: lembranças de velhos” (1994), em que a autora confere à memória outra perspectiva, que seria relacionar com a senhoridade, na qual a tarefa de lembrar é colocada para o sujeito em idade avançada como uma função social.
Para Bosi, o homem, ao atingir determinada idade, perde espaço no meio social, seu presente deixa de ter relevância, já que sua capacidade física e suas perspectivas de futuro se esgotam, restando-lhe como única possibilidade de tornar-se socialmente ativo, lembrar-se do seu passado, ser a memória do seu grupo familiar, promovendo-se por meio da ação de rememorar as lembranças dos fatos passados.
A partir das concepções de memória apresentadas pelos estudiosos aqui citados, notamos que o tema em questão é abordado em diversas vertentes, sejam elas históricas, psicológicas, sociológicas, e mais recetemente, literárias, da qual trataremos mais adiante. Logo, tomar a relação memória enquanto experiência do indivíduo, linha de pesquisa a ser desenvolvida nesse artigo, se justifica por ser algo propositivo e pertinente, face à obra escolhida.
O romance Leite Derramado está estruturado em 23 capítulos curtos, escritos de forma concisa e precisa. Narra a história de um velho com 100 anos de idade, chamado Eulálio d’Assumpção, que se encontra debilitado em um leito de hospital. Membro de uma família tradicional da sociedade carioca do século XIX, já em decadência, esse homem decide narrar suas experiências de vida ao longo de seu centenário.
Ali, os fatos descritos pelo narrador são frutos de sua memória que, embora esteja relacionada a um contexto social e coletivo, é narrada apenas por ele. Ao considerarmos o 220 fato de ser o próprio indivíduo quem promove a ação de rememorar os fatos do passado, a memória, tal como está relacionada na narrativa, tem caráter representativo, visto que ela é empregada na literatura como modo de representação, pois o narrador recorre à sua memória para narrar suas histórias.
Posto isto, iniciaremos esse artigo de modo a apresentar como o narrador-personagem se utiliza da memória para relatar suas experiências de vida, seja no plano invidual ou coletivo. Em seguida, nos deteremos nas especificidades da análise proposta, tendo como já dito anteriormente, o acarbouço téorico de estudos desenvolvidos por Henri Bergson, Maurice Halbwachs e Ecléa Bosi, principalmente. Por conseguinte, identificaremos que tipo de experiência é relatado por meio da memória, e como esta se configura enquanto experiência em Leite Derramado, por meio das histórias contadas pelo narrador-personagem.
Percebemos em Leite Derramado uma mistura de histórias orais com histórias escritas. Inicialmente, o protagonista inicia a narrativa oralmente, logo em seguida a mesma é transcrita para o papel, por sua ouvinte, a enfermeira (não nomeada no romance). A quem ele designa a tarefa de ouvir e transcrever tudo o que ele rememora.
Nesse ínterim, a enfermeira relata as circunstâncias e as experiências vivenciadas por ele até aquele momento. Como podemos ler na citação abaixo:
[...] E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes como meu palavrório (BUARQUE, 2009, p.7).
Sobre essa relação de falante-ouvinte, o crítico literário alemão Walter Benjamin deixa claro que: “Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos” (BENJAMIN, 1994, p. 198).
Não obstante, Benjamin estabelece que etimologicamente a palavra mnemosyne significa a deusa das reminiscências, sendo por meio delas que o narrador desempenha sua tradicional função que é a de transmitir os acontecimentos do passado a outrem. Tal como 221 pretendemos demonstrar no decorrer deste artigo. Ainda segundo o crítico literário, “A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1994, p. 207). Por esta razão, é a memória que se apropria dos acontecimentos e dos fatos.
As histórias contadas por Eulálio não seguem uma ordem cronológica dos fatos, nem uma linearidade, por se tratar de um idoso doente, que faz uso contínuo de medicamentos fortes, como morfina e sedativos para o alívio das dores. Por esse motivo, ele sente os efeitos colaterais ocasionados pelo uso dessas medicações, a saber, sonolência, perda de consciência e digressão mental, como podemos perceber em uma de suas falas:
Aquela que veio me ver, ninguém acredita, é minha filha. Ficou torta assim e destrambelhada por causa do filho. Ou neto, agora não sei direito se o rapaz era meu neto ou tataraneto ou o quê. Ao passo que o tempo futuro se estreita, as pessoas mais novas têm de se amontoar de qualquer jeito num canto da minha cabeça (BUARQUE, 2009, p.14).
Apesar da falta de lucidez, Eulálio consegue narrar para a enfermeira e a quem mais estiver disposto a ouvi-lo, as histórias de sua vida e da sua família. Os relatos descritos por ele vão desde sua infância na fazenda do seu avô, o casamento com Matilde, o nascimento da filha Maria Eulália, até o nascimento do seu tataraneto Eulálio d’Assumpção Palumba Neto.
Mesmo estando com as ideias embaralhadas, consequência do seu estado mental em desordem, o narrador faz questão que as pessoas prestem atenção e escreva tudo aquilo que conta, a ponto de reclamar com a enfermeira ao reparar que ela não está anotando o que ele lhe diz:
Mas a senhora não escreve nada, a senhora abana a cabeça e me olha como se falasse disparates. As pessoas não se dão o trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro (BUARQUE, 2009, p. 78).
Há, pois, no centro dessa narrativa, um personagem senil que já não dispõe de suas plenas faculdades mentais. Entretanto, faz questão de contar suas histórias a quem estiver por perto, sejam as enfermeiras durante o atendimento, seja sua filha durante as visitas, para que registrem seus relatos, a fim de conservar e preservar tudo o que narra. Até aqui verificamos que as histórias mencionadas pelo narrador-protagonista são frutos do seu passado, guardadas em sua memória, sendo por meio dela que ele consegue descrever todos os fatos narrados.
Nesse sentido, a memória aparece na narrativa como um elemento significativo em sua construção. Por definição, a memória (do latim memorĭa) é a faculdade psíquica através da 222 qual se consegue guardar e rememorar o passado. Em vista disso, compreendemos a memória como capacidade de reconhecer e evocar para o presente via lembranças de pessoas, objetos e experiências.
Esses elementos, por sua vez, são utilizados como caminho para o narrador- personagem contar suas histórias de vida. Todavia, o exercício de lembrar e descrever os acontecimentos, nem sempre se dá de forma consciente. Às vezes, o que o indivíduo narra não é memória do passado, mas que ele representa como passado. Como podemos confirmar no seguinte trecho da obra: “É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre” (BUARQUE, 2009, p. 117).
Em virtude do confuso estado de consciência do paciente, suas lembranças surgem de forma desordenada. Por isso, há explicitamente uma ação involuntária na retenção das muitas lembranças no momento em que as lembra, o que faz com que o narrador perca em alguns momentos a noção de tempo:
Não é culpa minha se os acontecimentos às vezes me vêm à memória fora da ordem que se produziram. É como se, a exemplo da correspondência do doutor Blaubam, algumas lembranças ainda me chegassem de navio, e outras já pelo correio aéreo (BUARQUE, 2009, p.188).
Ao partir do entendimento de que a memória é como faculdade que armazena as lembranças, é possível constatar que, por vezes, o indivíduo não consegue voluntariamente controlar a seleção daquilo que vai lembrar. Ocasionalmente, as lembranças trazidas à tona pela memória do narrador, não trazem boas recordações, para ele algumas recordações representam dor, mágoa, pesar. Como verificamos em mais um fragmento retirado da obra:
“E qualquer coisa que recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida” (BUARQUE, 2009, p. 10).
A memória tem por característica recordar o passado por meio do presente, mas ao retratar o passado, o narrador não consegue fazê-lo de forma precisa, isso se explica porque a realidade atual do sujeito é diferente do seu passado. Ele afirma que: “A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas” (BUARQUE, 2009, p. 41).
Podemos verificar na citação acima que, com passar do tempo, as referências memorialísticas do protagonista se destoam para além dos fatores externos, como o ambiente e o espaço físico (o hospital). Os fatores internos e biológicos também determinam a clareza e a precisão em que ele recordará de suas lembranças. Neste caso, lembrar-se do passado é um 223 exercício e a memória por assim dizer não é sonho, é trabalho.
Sendo o narrador um idoso, que já não possui o controle sob sua memória, nem possui o domínio de suas lembranças, o que faz com que ele associe uma com a outra. Portanto, se torna impossível essas lembranças não apresentarem distorções, porque as mesmas não têm continuidade lógica e coerente. Como podemos exemplificar na seguinte fala do narrador:
De bom grado tornarei a lhe falar somente dos bons momentos que vivi com Matilde, e, por favor, me corrija se eu me equivocar aqui ou ali. Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é um arremedo de lembrança anterior (BUARQUE, 2009, p.136).
Nesse trecho, o personagem-protagonista toma consciência de que suas recordações apresentam alguns equívocos, pois sua memória, na terceira idade, já não é mais a mesma, há uma mistura entre a ordem das lembranças dos acontecimentos passados, e, por isso, na tentativa de não se esquecer de nenhuma, ele acaba por repetir algumas histórias, a fim de manter uma sequencia em suas lembranças, mesmo que de forma incongruente.
Ao levar em conta o aspecto literário da obra em questão, é identificado que a memória é empregada na literatura como modo de representação, pois até aqui vimos que se entende por memória a forma de se reportar ao passado com base no presente. A natureza da representatividade surge por meio da percepção de imagens, lugares e objetos sobre os quais se toma conhecimento do passado, sendo todo esse processo desencadeado pelo ato de rememorar. Logo, as lembranças são reminiscências de imagens que estão interligadas por um conjunto de representações, nas quais se ocupa e atua o indivíduo.
Ao analisar o romance, reconhecemos como propriedade do gênero literário a construção de uma narrativa de cunho ficcional, em que a memória recebe caráter de representação, isto porque os relatos descritos pelo sujeito narrador comprovam uma relação de representação das imagens, ideias e percepções rememoradas, mesmo que de forma conturbada.
A respeito da natureza da representação, afirma Roger Chartier (1991): “A relação de
representação é, desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação, que faz com que se 224 tome o engodo pela verdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é” (CHARTIER, 1991, p. 185). Portanto, a memória é sempre atual mesmo representando um passado que pode ou não ter existido.
Segundo a definição de memória aqui apontada e a forma como ela se apresenta no romance em análise, pode- se afirmar que o indivíduo só consegue trazer à tona todas suas histórias, porque ele se encontra em um leito de hospital, cuja única coisa que o faz fugir da sua realidade é revisitar seu passado através da memória.
É nesse sentido que o filósofo francês Henri Bergson diz ser por meio do presente que a memória incorpora o passado, que recorre às imagens-lembranças. Por isso, em seu livro Matéria e memória (1999), ele ressalta a existência de uma memória regressiva. Para tanto, ele estabelece que:
A primeira registraria, sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural (BERGSON, 1999, p. 88).
Observa-se que no livro Matéria e memória, Bergson relaciona a matéria como propriedade que conserva o passado. Por isso, ele diz que o cérebro (matéria) é um depósito onde ficam guardadas as lembranças e imagens. Essas, por sua vez, estão atreladas a tudo àquilo que circunda o indivíduo, ou seja, os objetos, as pessoas, os lugares percorridos por ele, etc.
Nessa perspectiva, Bergson distingue dois tipos de lembranças: as espontâneas e as aprendidas. As lembranças espontâneas, também chamadas de lembranças puras são aquelas que não sofrem interferências do tempo e do meio. Noutras palavras, mantêm-se intactas, na sua forma natural e original; a segunda incorpora as marcas do tempo, como ele explicita na seguinte citação:
A lembrança espontânea é imediatamente perfeita; o tempo não poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la; ele conservará para a memória seu lugar e sua data. Ao contrário, a lembrança aprendida sairá do tempo à medida que a lição for melhor sabida; tornar-se-á cada vez mais impessoal, cada vez mais estranha à nossa vida passada. (BERGSON, 1999, p. 90-91).
Na análise sobre a existência de uma “lembrança pura”, Bergson acreditava em uma 225 memória pura e individual. Essa, por sua vez, se conserva de forma genuína e fidedigna, independente da ação do tempo ou da interferência do presente. Na mesma direção, Ecléa Bosi compartilha da teoria de Bergson sobre memória, em seu livro Memória e Sociedade: lembranças de velhos, ao afirmar ser através do presente e de suas percepções que o passado vem à tona pela memória.
Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1994, p. 47).
Para Bosi, a memória do indivíduo não é um fato isolado, ela só existe porque está ligada às pessoas, aos lugares, aos objetos, etc. E, é por essa razão que nos vem o desejo de lembrá-las. “Se lembramos, é porque os outros, a situação presente nos faz lembrar: o maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam” (BOSI, 1994, p. 54-55).
O que de fato podemos constatar em Leite Derramado, porque Eulálio só começa a lembrar do seu passado à medida que se encontra totalmente inerte, preso a uma cama de hospital, logo, lembrar é o único caminho que lhe permite “fugir” da realidade, vendo nas enfermeiras a possibilidade de repartir com alguém sua lembrança.
Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada, vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa (BUARQUE, 2009, p. 8).
Contudo, Bosi também destaca que, quando um idoso chega a uma determinada idade, lembrar não é uma ação isolada da memória, é mais que isso, pois esse ato cumpre uma função social. Ou seja, dar um novo sentido a vida de alguém sem muitas expectativas de futuro. Conforme pontua na citação a seguir:
Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade (BOSI, 1994, p. 63).
Dito isto, entendemos que a memória se apresenta em Leite Derramado como 226
resultado de um processo em que o indivíduo por meio do ato de lembrar, consegue recordar, ainda que de forma confusa, as histórias de um século de vida. Essa ação que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva, só consegue se realizar porque o homem é capaz de reter na memória os fatos do passado.
Como já dito na introdução desse artigo, outra vertente sobre memória surge com o sociólogo francês Maurice Halbwachs, desenvolvida no livro Memória coletiva (2006). Para Halbwachs, a memória está associada às nossas lembranças e recordações vivenciadas em grupos sociais, ou seja, coletivamente. Por isso, embora a memória seja própria do ser humano, ela só existe porque nós somos seres sociáveis. Assim, constata-se que a memória é individual porque o ato de lembrar é exercido pelo próprio indivíduo. Porém, é também coletiva, já que não há memória sem as lembranças dos fatos e acontecimentos do passado vividos no contexto social.
Diante disso, vemos a memória como um processo de reconhecimento e reconstrução das imagens e lembranças do passado. Neste caso, o sujeito traz consigo as lembranças dos momentos compartilhados em sociedade. Com isso, Halbwachs define lembrança como sendo:
[...] em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 2006, p. 71).
Assim sendo, as histórias contadas pelo narrador (Eulálio) estão presentes em sua memória na forma de lembranças. As mesmas dizem respeito às experiências que ele teve durante toda sua vida. As experiências aparecem na narrativa, transcritas em forma de relato oral. Portanto, as histórias contadas pelo narrador estão presentes em sua memória na forma de lembranças. As mesmas dizem respeito às experiências que ele teve durante toda sua vida.
Ao partir do pressuposto de memória não individual desenvolvido por Halbwachs, com relação ao conceito de memória coletiva, pode-se afirmar que em Leite Derramado, o narrador-personagem conta suas histórias a partir do que ele vivenciou coletivamente no seu grupo familiar. Desta forma, suas memórias se dão em decorrência das lembranças que lhe veem à mente no momento em que as recorda. Como constatamos no seguinte relato:
São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças, que já não sei em 227
qual camada da memória eu estava agora. Nem sei se eu era mais moço, ou mais velho, só sei que me olhava quase com medo, sem compreendera intensidade daquele meu desejo (BUARQUE, 2009, p. 138-139).
Em Leite Derramado, o narrador elege lugares de memória que contextualizam os costumes e os valores da cidade do Rio de Janeiro, no século XX. Esses espaços são representados pela fazenda do avô, o chalé de Copacabana, o casarão de Botafogo, além do hospital onde está internado. São nesses lugares que ele narra suas experiências desde a infância até os seus últimos momentos de vida. O que identificamos nos seguintes trechos:
[...] Às vezes também o chamava para ficar ali à disposição, porque a quietude da fazenda me aborrecia, naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava...Você me olha assim como eu na fazenda olhava um sapo, horas e horas estático, fito a fito no sapo velho, para poder variar com os pensamentos (BUARQUE, 2009, p. 19).
[...] E no fim de extensa caminhada cheguei de mangas arregaçadas ao casarão de Botafogo, onde vi o velho chofer de minha mãe encostado no capô do Ford. Entrei pelos fundos e subi direto para o banheiro tinha transpirado muito e carecia de um banho fresco (BUARQUE, 2009, p. 32).
[...] Porque todo dia é isso, acordo com o sol na cara, a televisão aos berros, e já compreendi que não estou em Copacabana, foi-se o chalé há mais de meio século. Estou neste hospital infecto, e aí não intenção de ofender os presentes (BUARQUE, 2009, p. 49).
Dessa maneira, em Leite Derramado, fica evidenciado que os lugares de memória aparecem enquanto localizações de experiências do narrador-personagem. Essas experiências são estruturadas na forma de relato pessoal, a partir da realidade do presente em que ele vive e das suas histórias mais remotas.
Por fim, a estrutura narrativa do romance estudado desencadeia a ideia de experiência, o que neste caso, se trata de experiências do indivíduo dentro de uma instância coletiva. Por isto, se tratam de experiências humanas e essas se tornam memória, haja vista que memória é a capacidade de evocar e experienciar tudo aquilo que foi vivido no passado.
Pretendeu-se nesse artigo, ainda que de forma breve, analisar memória e experiência, em Leite Derramado, de Chico Buarque. Em tempo, vale ressaltar a relevância da obra e de sua temática para os estudos literários a nível acadêmico, na contemporaneidade. Porém, o tema aqui apresentado se delimita enquanto experiência do indivíduo, vista a partir da análise
do romance. 228
Para essa discussão teórica utilizamos Henri Bergson e sua teoria sobre a memória puramente individual ligada à matéria. E, contrapondo-se a ele, apresentamos os estudos desenvolvidos por Maurice Halbwachs, no qual afirma que a memória se configura na relação do sujeito com o meio social, ou seja, a memória associada às experiências vivenciadas socialmente. Sendo assim, coletiva e não individual, como afirmava Bergson.
Desse modo, constatamos que a memória é empregada na literatura como modo de representação, pois, se entende por memória, o meio pelo qual o invidíduo consegue conservar e se reportar ao passado com base no seu presente, que leva em conta a natureza da representatividade, advindas da percepção de imagens, lugares e objetos sobre as quais se toma conhecimento do passado. Todo esse processo é desencadeado pela memória do narrador, por meio das lembranças e recordações que o mesmo traz à tona, como por exemplo, a fazenda do avô onde ele passou toda a infância.
Como visto, comprovou- se nesse artigo, a importância do narrador-personagem e da memória enquanto experiência, haja vista que é atrelada às experiências do indivíduo e trazidas à tona pela memória que o romance se constitui.
Leva-se em conta que o romance em primeira pessoa e todo relato oral é provido de lembranças e recordações do narrador, que mesmo fora de ordem, faz questão de rememorálas, dando-lhes caráter de experiências humanas.
Nesse contexto, ratificamos que na obra analisada, as histórias ditas pelo narrador são atribuídas aos fatos vivenciados por ele em sociedade. Os acontecimentos descritos por ele são consequências das suas experiências de vida, configurando-se em memória do passado, emanadas do presente, por meio de lembranças e recordações.
Entretanto, dadas às circunstâncias em que o narrador-protagonista estava exposto, essas lembranças não eram rememoradas por ele de forma cronológica, nem linear, já que se tratava de um senhor que naquele momento estava completando 100 anos de vida.
Assim visto, no romance estruturado em forma de monólogo, a memória e suas representações se tornam o construto da narrativa. A representação da memória se torna uma espécie de canal pelo qual se preserva imagens de um passado, atrelada às emoções, o inconsciente e a interferência do espaço físico, que na obra é representado por um leito de hospital. Logo, a memória se transforma em representação do passado, ou que, o próprio
indivíduo representa como passado. 229
Ao analisar uma obra contemporânea como Leite Derramado, é preciso evidenciar que o princípio literário da memória na contemporaneidade está ligado ao homem e seu interesse em narrar suas histórias de vida. Fundamentada na memória enquanto experiência e no uso de uma linguagem esteticamente elaborada. Por isso, seu estudo se enquadra dentro de uma perspectiva literária ficcional.
Em suma, a memória descrita no romance é individual e se constitui com base nas experiências humanas vivenciadas por seu protagonista. Por isso, a memória empregada no romance se torna a experiência do narrador-protagonista. E, ao considerar o conceito de representação na literatura, a memória assume caráter representativo por ser compreendida enquanto experiência, ratificando que a memória no romance é uma construção pautada na representação e o ato de narrar em si é memória.