Resumo:
O presente artigo tem a proposta de trazer a arte como enfrentamento e problematização à violência doméstica contra a mulher, num contexto voltado ao entendimento do que pode a arte como caminho de fortalecimento da mulher que sofre violências. Trabalhamos aqui com o conceito de corpo transgressor feminino, não como subversão da ordem, mas como recomeço, e num primeiro momento, o reconhecimento da mulher como vítima e não a responsável pelas agressões vivenciadas e, com isso, ajudá-la a ser capaz de romper com o processo da violência em curso. Fazemos um diálogo com Foucault e Simone de Beauvoir. Seguimos as pistas indiciárias e chegamos às narrativas de vida, baseando-nos em Ginzburg e Ferrarotti, cujas narrativas nos dão mais do que meras informações, elas nos mostram onde a violência doméstica realmente dói, que seja, o interior do sujeito mulher.
Palavras-chave:ArteArte,Violência DomésticaViolência Doméstica,MulherMulher,TransgressãoTransgressão.
Resumen: El presente artículo tiene la propuesta de traer el arte como enfrentamiento y problematización a la violencia doméstica contra la mujer, en un contexto volcado al entendimiento de lo que puede el arte como camino de fortalecimiento de la mujer que sufre violencias. Trabajamos aquí con el concepto de cuerpo transgresor femenino, no como subversión del orden, sino como recomienzo, y en un primer momento, el reconocimiento de la mujer como víctima y no la responsable de las agresiones vivenciadas, y con ello, ayudarla a ser capaz de romper con el proceso de la violencia en curso. Hacemos un diálogo con Foucault, y Simone de Beauvoir. Seguimos las pistas indicias y llegamos a las narrativas de vida, basándonos en Ginzburg y Ferrarotti, cuyas narraciones nos dan más que meras informaciones, ellas nos muestran donde la violencia doméstica realmente duele, que sea, el interior del sujeto mujer.
Palabras clave: Arte, Violencia Doméstica, Mujer, Transgresión.
Abstract: The present article has the proposal of bringing art as a confrontation and problematization to domestic violence against women, in a context aimed at understanding what art can do as a way to strengthen women who suffer violence. We work here with the concept of a female transgressor body, not as subversion of order, but as a resumption, and in a first moment, the recognition of the woman as a victim and not the one responsible for the aggressions experienced, and with that, help her to be able to break with the ongoing violence process. We have a dialogue with Foucault, and Simone de Beauvoir. We follow the clues and come to the narratives of life, based on Ginzburg and Ferrarotti, whose narratives give us more than mere information, they show us where domestic violence really hurts, that is, the interior of the female subject.
Keywords: Art, Domestic Violence, Woman, Transgression.
Artigos livres
Enfrentamento à violência doméstica contra a mulher: o exercício experimental da arte como exercício experimental da liberdade
Enfrentamiento a la violencia doméstica contra la mujer: el ejercicio experimental del arte como ejercicio experimental de la libertad
Facing domestic violence against women: the experimental exercise of art as an experimental exercise of liberty
O artigo divide-se em três seções: a primeira disserta sobre a importância da arte com recortes de denúncia e fortalecimento na (re)construção da mulher como sujeito de direitos; A segunda disserta sobre a criação do termo corpo transgressor feminino; a terceira divide-se 257 em oito subseções, que trazem uma mostra do nosso trabalho de pintura sobre lona a partir das histórias de vida narradas pelas mulheres que aceitaram participar do projeto. Finalizamos com uma breve apresentação do Projeto FORDAN e um relato da metodologia aplicada nas oficinas por nós ministradas.
Analisando o processo de violência doméstica sofrido pela mulher na atualidade, sentimos a necessidade de buscar por alternativas e possibilidades de enfrentamento. Recentemente, o Brasil assumiu, assustadoramente, um lugar de destaque dentre os países que mais matam mulheres, e o Espírito Santo, segundo o Atlas da Violência 2017 (IPEA, 2017, p.37) foi o líder nacional em feminicídios. O Atlas da Violência 2018 (IPEA, 2018, p.38), nos mostra que o estado conseguiu sair desse fatídico primeiro lugar, mas, ainda assim, continuamos entre os primeiros, e com um agravante racial, pois, as mulheres negras são a maioria das vítimas dos crimes praticados. Essa questão grita por intervenção, sendo assim, também se faz necessário um olhar da arte voltado a esse trama/drama social, pois, a arte poderá ser empregada na socialização dos sujeitos e produzir efeitos de reconhecimento e pertencimento.
O artigo divide-se em três seções: a primeira disserta sobre a importância da arte com recortes de denúncia e fortalecimento na (re)construção da mulher como sujeito de direitos; A segunda disserta sobre a criação do termo corpo transgressor feminino; a terceira divide-se 257 em oito subseções, que trazem uma mostra do nosso trabalho de pintura sobre lona a partir das histórias de vida narradas pelas mulheres que aceitaram participar do projeto. Finalizamos com uma breve apresentação do Projeto FORDAN e um relato da metodologia aplicada nas oficinas por nós ministradas.
Para mostrar a relevância da arte como forma de denúncia e enfrentamento, citamos como exemplo, Artemísia Gentilesch, contextualizada por AGNATI (2000) como uma pintora italiana barroca do século XVII, que usou a sua arte como verbalização pictórica para denunciar as violências que havia sofrido e contar o seu drama “físico, privato, quale può essere quello di qualunque donna che abbia affrontato il trauma dello stupro” (AGNATI, 2000, p. 25), e assim, transgredir a um contexto cultural de uma época, na qual não era dado à mulher o direito de ser sujeito de direitos, pois, para o autor, a pintora buscava “costruire e recuperare la figura di un’eroina che trascende la norma femminile” (AGNATI, 2000, p. 21), cuja percepção, numa tradução nossa, seria “construir e recuperar a figura de uma heroína que transgride a norma feminina”, que seja, levar a público o drama “físico e particular vivido por qualquer mulher que tenha enfrentado o drama do estupro”. Sendo esse considerado um dos primeiros registros de violência doméstica contra a mulher, pois o agressor era pessoa que conviveu, por um certo período, na mesma casa que a vítima (AGNATI, 2000), buscamos analisar e entender o processo de fortalecimento que essa mulher encontrou na criação dos seus trabalhos artísticos. O sexo ainda hoje pode ser usado como forma de punição ou para reforçar a ideia da superioridade do homem sobre a mulher, incorrendo assim, numa violência sexual com efeitos muitas vezes devastadores sobre as vítimas. O corpo feminino pertence ao seu dono, pois “ele é capaz de causar sofrimento a outrem com a consciência de que está cumprindo um dever” (PIRES e RODRIGUES, 2016, p. 4), naturalizando assim o seu comportamento e desencadeando o medo como forma de controle sobre a mulher.
A partir dessa análise relacionada ao uso da arte como narrativa de história de vida, consideramos que a mesma tenha uma relevância significativa no processo da libertação interna da mulher vítima de violência doméstica, possibilitando um maior fortalecimento na sua reconstrução.
Mário Pedrosa, crítico de arte do século XX, em 1968 publicou um artigo no Correio da Manhã - Jornal carioca, criado em 1901 - conceituando a arte como um exercício 258 experimental da liberdade, sintetizando assim, o pensamento de que não é possível separar a arte da política e do enfrentamento, o que nos ajudou a pensar a arte como uma possibilidade de libertação de mulheres vítimas de violência doméstica. Pensamento esse, que nos levou a dialogar também com Jean Baker Miller, pois, da mesma forma, partimos do princípio de que “a criatividade pessoal é um processo contínuo de formular uma nova imagem de nós mesmos, e de nós mesmos, em relação ao mundo”. (MILLER, 1991, p.22). Partimos então, da hipótese de que a arte pode tornar-se um meio de sensibilização das diferenças, criando-se assim, uma possibilidade para o fim das discriminações étnicas e culturais, pois, sua composição diversificada abraça a música, a dança, o teatro e as artes visuais, e, seus elementos distintos possibilitam o diálogo frente às questões de fortalecimento e problematização voltados ao tema violência doméstica. Embasados nesse pensamento, criamos a partir da arte, estratégias de fortalecimento em prol de mulheres vítimas de violências atendidas pelo FORDAN: Cultura no Enfrentamento às Violências, projeto de extensão da UFES, criado em 2005, pela professora do Centro de Educação Física. Rosely Maria da Silva Pires.
Utilizamos-nos do método/paradigma indiciário proposto por Carlo Ginzburg (1989) no início da década de 1980 - cuja estrutura metodológica investigativa, tem como base os sinais, as pistas e os indícios - que nos auxiliaram na percepção e no entendimento das dores, não verbalizadas explicitamente, porém, observadas nas vivências artísticas realizadas com, e para, as mulheres que aceitaram fazer parte desse projeto. Utilizamo-nos também do método biográfico, num recorte de estudos do sociólogo Franco Ferrarotti (1988), que durante tais estudos percebeu o método como um recurso no qual “podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma práxis individual” (Ferrarotti, 1988, p.27), havendo assim uma integração que coloca o investigador na posição de investigado, o que resulta num estudo não somente sobre o outro, mas, também, sobre si mesmo, o que nos permitiu estabelecer uma relação de maior compreensão dos fenômenos comportamentais inerentes à mulher vítima de agressão. Porém, o método usado, a princípio, como forma de questionário, não nos trouxe resultados positivos, assim, utilizamo-nos, também, das narrativas de histórias de vida, o que foi crucial para o nosso trabalho de pesquisa e enfrentamento.
A construção do corpo transgressor feminino
Nessa pesquisa, trabalhamos com o termo corpo transgressor feminino cunhado por 259 nós, a partir do diálogo com Foucault (1997) e Simone de Beauvoir (1970). Para Foucault
(1997, p. 28), é “dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado...”, o que nos levou ao entendimento de que a transgressão do corpo feminino é o resultado dos recomeços a que toda mulher se propõe em relação àquilo que deseja superar, tendo em vista que a violência, principalmente a doméstica, acaba aprisionando mulheres em corpos dóceis. Nesse contexto, encontramos em Beauvoir embasamento para transgredir à condição de subserviência imposta pelas agressões a partir do esforço primevo, que seja, a vontade da mulher em sair da condição de vítima de violências, pois, para a autora “se a mulher se enxerga como inessencial que nunca retorna ao essencial, é por que não opera, ela própria, esse retorno” (BEAUVOIR, 1970, p.13). Entendemos então, que o eixo de fortalecimento de mulheres vítimas de violência doméstica seja prioritariamente desvincularse do estigma de corpo dócil (FOUCAULT, 1997) e reconhecer-se um corpo capaz de transgredir à violência.
O corpo da mulher simboliza a sua existência como ser, mutilá-lo ou agredi-lo é uma das formas mais cruéis de destituí-la da sua essência: a de ser mulher. O homem encara o seu próprio corpo “como uma relação direta e normal com o mundo [...] ao passo que considera o corpo da mulher, uma prisão” (BEAUVOIR, 1970, p.10). A violência doméstica é pautada na ideia do direito de propriedade que o agressor(a) tem sobre a vítima, ele(a) acredita ser o dono do seu corpo, sonhos, pensamentos, querer, desejos, e também, da sua alma, submetendo a vítima através das muitas formas de violências, com o objetivo de manter esse seu direito de propriedade. Assim, “o corpo deixa de ser o objeto por excelência e passa a ser o meio de chegar à alma” (FOUCAULT, 1997, p. 32). Subjugar o corpo é também subjugar a alma, não existe dicotomia corpo e alma, ambos comportam as cicatrizes advindas das agressões, mas, na sua concepção de proprietário, o agressor faz da alma, a prisão do corpo feminino.
As histórias de vida nos deram mais do que informações representativas da quantidade de mulheres agredidas, elas nos mostraram a dimensão dessa problematização ocorrendo exatamente onde a violência doméstica mais dói, que é no interior da mulher agredida. A importância da história de vida, segundo Kramer (2004, p. 498), acontece porque ela é a
“memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operativa para o futuro”, assim, fizemos o entrelaçamento das narrativas das mulheres que nos relataram seus 260 casos, e concluímos que suas histórias de vida são parte da construção do todo, pois, entendemos que, todas as narrativas são uma totalização sintética da origem das suas histórias.
Muitas mulheres, “se sentem responsáveis pelo sofrido, e, portanto, obrigadas a aguentarem tais situações”. (TERRA, D’OLIVEIRA e SCHRAIBER, 2015, p. 118), e com esse estigma de culpabilidade não verbalizam a sua real situação, tornando-se assim, mais vitimizadas ainda, tendo em vista que esse silêncio naturaliza a superioridade do agressor. Não queremos, com esse trabalho, levar ninguém a ter pensamentos voltados ao extermínio dos homens, mas, a desconstruir e exterminar o machismo, a misoginia e a concepção de superioridade masculina, e, a construir pensamentos de igualdade e respeito para toda mulher, seja ela preta, branca ou vermelha.
O desenrolar das oficinas nos levaram a pensar em como a arte poderia fazer mais por elas, assim, criamos oito trabalhos pintados sobre lona crua. As pinturas não são retratos fiéis dos seus rostos, pois, o objetivo não foi o de criar figuras realistas, mas o de transmitir os sentimentos explicitados nas histórias de vida. Essas obras foram expostas pela primeira vez na Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, em novembro de 2017 e depois em diversos eventos no decorrer do ano de 2018. Cada obra tem consigo particularidades inerentes a cada mulher por nós retratada, porém, todas tiveram suas histórias de vida entrelaçadas pelo tema violência doméstica contra a mulher. Uma porque abraçou a causa, outras porque foram vítimas, e outras, porque infelizmente, ainda são vítimas. No que toca os trabalhos de pintura, as mulheres retratadas receberam como carinho especial a nominação de flores, a escolha, porém, não se deu pela suposta fragilidade das flores, mas pela resistência que cada uma possui, algumas são árvores que florescem, outras, precisam de um cuidado maior no cultivo, outras, possuem poder curativo. Não foi delegada a nenhuma delas a função decorativa, ou estaríamos indo contra todo o nosso processo do despertar do empoderamento feminino. Essas pinturas trazem consigo correntes que aparecem em 7 das 8 obras, tais objetos fazem parte do contexto das histórias de vida narradas e representam os elos visíveis e invisíveis que aprisionam a mulher à sua condição de vítima. Essa mostra é parte do Projeto Artístico Juntando os Pedaços, cuja base central de representação é a decaptação dos sentimentos negativos advindos das violências sofridas. Cada figura exposta neste artigo está acompanhada de um texto específico que serviu como base inicial para a criação artística. Através da arte, derrubamos as barreiras da invisibilidade porque nos foi possível escutar as imagens e enxergar as vozes inerentes a cada uma delas, assim, percebemos que mesmo tendo tantos pontos em comum umas com as outras, cada uma de 261 nós, acaba criando o seu próprio método de juntar os pedaços. Retratar a nossa história e a das nossas flores foi a maneira que encontramos para juntar os pedaços de todas.
Na vida nos deparamos com situações ruins, e nem sempre conseguimos sair delas sozinhos. A violência doméstica contra a mulher faz parte da construção cultural, histórica e social do ontem, e que ainda respinga no hoje. Para uma vítima de violência entender isso, é preciso ouvir e assimilar, o que nem sempre se consegue, pois a mágoa e a revolta frente às violências sofridas, nos levam a querer fazer justiça com as próprias mãos. Agindo assim, estaremos reproduzindo e alimentando a construção de sujeitos agressores. O combate à violência doméstica contra a mulher precisa fazer parte da construção cultural e social do hoje, para que o amanhã não reproduza mais sujeitos agressores. Essa visão de futuro, que pode parecer utópica, precisa ser colocada em prática, justamente para que a utopia se torne realidade. E essa prática pode começar silenciosa, de mil maneiras, até num simples abraço de um Girassol.

Ser forte, decidida e corajosa, esse é o desejo dela. Por isso, busca por si. Antes era proibida de trabalhar; ainda é, mas decidiu não acatar mais essa proibição. Aos poucos está quebrando as grades da sua prisão. Seu olhar ainda tem muitas marcas, a violência ainda está presente na sua vida, e infelizmente, de uma maneira naturalizada. Ela ainda não entende como violência, a proibição de se arrumar, de se cuidar, de se sentir bonita. O prazer do seu companheiro é fazer com que ela se ache feia. E pra não ser agredida com palavras pejorativas, ela o acalma, dizendo-lhe: sou feia. Ele a quer invisível, ela não pode ter rosto, corpo e muito menos alma. A violência que sofre está sendo vivenciada silenciosamente, o grito de socorro do seu ser, ainda não foi escutado, mas está lá, nas marcas invisíveis do seu comportamento inseguro, na sua negação em se enxergar dentro de um espelho, na sua recusa em se reconhecer bela. As correntes precisam ser quebradas.

Um amor que sangra, um amor que morde, um amor que deixa marcas roxas, algumas bem roxas. Um amor que estupra, que espanca, que denigre, que tira de uma flor de lótus suas pétalas e a coisifica como se fosse sua propriedade. Alguns fetiches podem se tornar a prisão da alma, vendar os olhos, algemar o corpo. A violência pode chegar camuflada e matar em nome do prazer. Libertar-se é preciso. Tornar-se sujeito de si é entender o seu limite e fazer valer esse limite. Ao se tornar vítima dos seus prazeres, também se tornou vítima do seu agressor, no começo não entendia assim, até que a iminência da morte a fez despertar das correntes douradas do prazer, e aos poucos está rompendo os elos que a aprisionam ao seu algoz. A sua corrente está prestes a se quebrar, pois ela está enxergando em si o limite e o prazer em ser dona dos seus desejos, e não mais ser subjugada por eles. A vida é feita de escolhas, Flor de Lótus escolheu viver.

Dizem que os olhos são o espelho da alma. Os olhos nos contam histórias e nos revelam segredos. Alguns até nos dão sorrisos. Mas, existem uns olhos, que de tão doentes, só mostram sofrimentos. A voz diz que não, mas essa voz não consegue verbalizar o que os olhos doentes não conseguem enxergar. Essa Flor de Cerejeira era assim, ela não enxergava a violência que sofria, ela não enxergava que levar facadas era estar sendo agredida. Ela não enxerga que xingamentos são agressões. Ela não enxergava que ser posta pra fora de casa pelo seu companheiro era estar sendo agredida, simplesmente porque, depois quando ele estava tranquilo, apresentava-a aos amigos como esposa, como companheira. Isso ela enxergava como amor. E assim foi levando a vida, sem enxergar o que realmente lhe acontecia. De repente, mesmo sem se enxergar vítima de violência, começou a ser ver como sujeito de direitos. Aos poucos, está abrindo os olhos e os elos da corrente que a mantém aprisionada.

Os olhos, novamente os olhos, esses aqui estão abertos e nos mandam um pedido de socorro. Explicitam os seus desejos. Um dia será livre como um peixe, e poderá nadar onde quiser, mas hoje não. Hoje, ela tem que correr pra casa, seus filhos estão lá e ela tem medo do que ele pode fazer. Sua filha já está ficando mocinha, não dá pra confiar nele. Nunca sabe como ele está, e se estiver bebendo, só Deus pra segurar. O hoje da Flor de Lis nunca acaba, porque o medo dela não deixa isso acontecer, a violência ronda sua vida. Todos os dias é a mesma insegurança, ela teme chegar em casa e não encontrar mais as suas coisas, seus móveis. Mas o medo maior é de não encontrar seus filhos. A corrente que a aprisiona ao agressor, é a mesma que aprisiona algumas outras vítimas de violência doméstica, os elos dessa corrente são reflexos da divisão injusta, que faz da mulher pobre se sentir mais pobre e sem condições de sobrevivência. Flor de Lis tomou a decisão de transgredir a isso, encontrou o seu empoderamento, e com ele, encontrou também força para quebrar a corrente e fazer de si, o seu próprio lar.

Já se passaram tantos anos, mas os resquícios da violência continuam fazendo parte da vida dela. Estão lá, de forma invisível, porém, ainda muito consistentes. Eles não deixam Flor de Ipê Amarelo ser ela mesma. Eles a aprisionam ainda, roubam os seus sonhos, os seus desejos e tiram o seu brilho. O ciúme dizia, dissimuladamente, eu te proíbo, até o dia que ela não suportou mais. Saiu de casa com seus filhos, mas levou também, os resquícios da violência sofrida. As palavras dele colocando defeitos no seu corpo ainda incomodam, mesmo depois de muitos anos. Era praticamente uma criança quando se uniu a ele, e continua com um olhar meigo de criança, ainda não percebeu que pode usar um vestido e sair ao sol. Está livre, agora pode se deixar levar pelo vento. A corrente que a prende é abstrata, aprisiona a sua alma e não a deixa aproveitar o que a vida lhe trás de bom. Tem sonhos, desejos e vontades, mas também, tem insegurança e medo. Esses elos invisíveis, ainda a condicionam a não se enxergar como sujeito de si, fazendo com que seus sonhos, seus desejos e suas vontades, estejam ainda guardados na sua caixinha dos segredos.

Ser negra, ser mulata, ser mulher, a cor da pele da mulher escravizada de ontem, ainda é a cor da pele daquela que mais sofre violência doméstica hoje. Saíram das senzalas e das casas grandes e continuam acorrentadas ao passado. São parte da luxúria e figuras secundárias na sociedade. A sua voz está condicionada à sua cor de pele, mas a sua pele pede carinho, e não agressão. Querem ser vistas como sujeitos de direitos, e elas tem esse direito. Não podemos mudar o passado, onde os seus olhos eram arrancados e os seus corpos torturados, mas queremos o nosso hoje sem violência, para que não tenhamos medo do futuro. As correntes que aprisionam as rosas negras deixam marcas profundas, fazem delas objetos inanimados frente aos desejos e obsessões daqueles que sem ética humana as coisificam. São parte da estatística, que as coloca como mais um corpo vítima do feminicídio, mas a sua história, não é somente essa, elas são parte da construção dos sujeitos dessa terra, independente da cor da pele que as segregam dentro da sociedade. As suas correntes continuam aprisionando-as pelo que são, ou seja, mulheres. Pela condição que as colocam, ou seja, mão de obra barata. Pela representatividade que dão a elas, ou seja, objetos sexuais. É 268 necessário quebrar essa corrente

Ela não sabia seu destino, e quando criança, não entendia a diferença entre ser e estar, ela simplesmente era. O tempo passou, um dia ela se casou, mas ainda não entendia a diferença entre ser e estar, até que a violência doméstica começou a fazer parte da sua vida. O ser e o estar sumiram e o que ela era também sumiu. O tempo continuou passando e descobriu que o seu eu havia se transformado em vítima, mas ainda assim não entendia a diferença entre ser e estar. Perdeu-se no meio do caminho, o que ela era já não importava e o que poderia ser também não. Mas o seu estar lhe chamou a atenção, ele pulsava forte e foi assim que começou a entender a diferença entre ser e estar. Começou a conjugar os verbos da sua vida e percebeu que o ser e o estar haviam se fundido, perdendo o seu sentido e transformando-a num aquilo condicionado pela violência doméstica. Ouviu o grito do estar subjugando o ser, e ouviu o gemido do ser querendo dizer não. Decidiu fortalecer o ser e enfrentar o estar, e finalmente entendeu: estar vítima da violência doméstica, não quer dizer que queria ser vítima. Decidiu transgredir a isso. De corpo dócil se tornou um corpo transgressor, decapitou os sentimentos negativos que a sufocavam e resgatou o seu ser. Descobriu-se uma Rosa Vermelha no 269 despertar do seu empoderamento. Quebrou as correntes, e fez da sua condição de vítima, a construção do seu agora.

Esse projeto de pesquisa teve como suporte para campo o apoio do FORDAN: Cultura no Enfrentamento às Violências, projeto de extensão da UFES, criado em 2005 pela professora do Centro de Educação Física, Rosely da Silva Pires. O FORDAN é composto por dois setores que interagem através de recortes específicos de enfrentamento às violências, cuja solidez se dá a partir do diálogo entre os mesmos e as equipes de voluntários que os compõem, são eles: o FORDAN Espetáculo, cujo trabalho está voltado para apresentações de propostas artísticas que objetivam à problemática das violências com recortes de denúncia e enfrentamento, e, o FORDAN São Pedro, onde acontecem as ações extensionistas de atendimento a pessoas (crianças, jovens e adultos) em situação de vulnerabilidade social e que vivenciam vários tipos de violências. O FORDAN espetáculo tem como espaço físico uma pequena sala adjacente à sala de dança do CEFD/UFES, onde são realizadas reuniões e grupos de estudos dos bailarinos e coreógrafos, com pesquisas voltadas à construção de cada coreografia que comporá o corpo de dança e arte do projeto. O FORDAN São Pedro, é o espaço onde o núcleo sócio-jurídico e cultural faz acolhimento e encaminha as demandas às 270 equipes voluntárias que auxiliam no fortalecimento das pessoas que buscam por ajuda; seu espaço físico é cedido pela Fraternidade Espírita Fonte Viva, antigo Instituto de Educação
Social Joana D’arc, e está situado na Rua Manoel Rosindo, nº 72 no bairro São Pedro I em Vitória -ES. A intervenção é multidisciplinar com atuação no campo da Arte, Educação Física, Direito, Serviço Social, Fisioterapia, Psicologia e Psicanálise, o que permite atender as demandas dentro da complexidade que compõe a violência doméstica e as demais atendidas pelo projeto. O público alvo é constituído em sua maioria por pessoas da Grande São Pedro e adjacências, as quais podem contar com oficinas de dança, arte e aulas de violão, acesso a políticas sociais, orientação jurídica, fisioterapêutica, psicanalítica e psicológica, auxiliandoas no processo de autoconhecimento e autovalorização.
Nas oficinas práticas, ministradas por nós, usamos uma metodologia baseada na consciência corporal, sendo o corpo o foco principal de reconhecimento através do método enxergar-se para amar-se, cujo desenvolvimento consiste, basicamente, em fechar os olhos e tocar seu corpo, descobrindo em si aquilo que não consegue enxergar quando se está com os olhos abertos. Essas descobertas são literalmente pintadas. Usamos para isso encontros onde verbalizamos os nossos sentimentos frente às violências, e damos a essas mulheres a possibilidade de reconhecimento do seu próprio corpo através do seu entendimento interior do que venha a ser um sujeito de direitos, para que assim, possam transformar seus corpos femininos dóceis em corpos femininos transgressores para subverterem ao aprisionamento condicionado pela violência doméstica. O objetivo deste trabalho foi analisar como se dá o processo de violência doméstica vivenciado pela mulher, e refletir como o trabalho com a arte se coloca como uma possibilidade de problematização e enfrentamento dessa violência. Tais análises, foram cruciais para auxiliarmos, individual e coletivamente, essas mulheres nas suas conquistas de autoconhecimento.
Encontramos, nos momentos das narrativas das histórias vivenciadas, a base para a descoberta pessoal do fortalecimento feminino e a resiliência no enfrentamento aos sintomas provenientes das agressões; o que nos levou ao entendimento de que falar do assunto é o primeiro passo rumo à libertação do processo de violência, com isso, reforçamos também, o pensamento de que será a mulher a sua própria libertação frente à violência doméstica, encontrando em si o fortalecimento necessário para a sua reconstrução como sujeito novamente. Transformamos a vivência narrada pelas mulheres em algo comunicável, cujas informações coletadas nos deram os parâmetros sobre o assunto violência doméstica.
Buscamos nas oficinas práticas um maior contato com as mulheres vitimizadas e usamos a 271 roda de conversa para transpor as barreiras da falta de entrosamento inicial. Entendemos também, que a arte nos dá a possibilidade de verbalizar sobre o que nos atormenta, livrandonos do estigma de culpabilidade que muitas de nós carregamos. Através dela conseguimos dar uma dimensão de estabilidade à nossa instabilidade emocional relacionada às violências, tornando assim, natural, refletir sobre as nossas próprias vivências.
Somos parte de um mundo orgânico, e as nossas singularidades é que alimentam esse mundo. A formação da sociedade, ao longo dos tempos, remonta das histórias de vida narradas e vivenciadas; falar sobre si, principalmente para uma vítima de violência doméstica, é parte do trabalho social de combate à misoginia e ao domínio masculino, aqui também entendido como o pensamento machista de propriedade sobre a mulher. Ao verbalizar a sua situação, a mulher está colocando em pauta, mesmo sem ter conhecimento teórico sobre isso, o que muitas outras mulheres buscaram ao longo da nossa existência, que é a valoração pessoal feminina. Por isso, o trabalho com a Arte, como enfrentamento à violência doméstica praticada contra a mulher, faz-se importante na medida em que auxilia essa mulher a se (re)encontrar e se (re)construir como sujeito de direitos. Assim, o exercício experimental da arte se torna o exercício experimental da liberdade. É necessário nos enxergarmos como um coletivo, e fazer desse grupo a construção do sujeito mulher, independente de crença, raça, condição econômica, idade, maneira de se vestir, e outras diferenças que nos impomos para nos distanciarmos umas das outras, já que a sociedade ainda não nos forma para isso. A arte é um dos caminhos que podem nos fazer interagir como iguais, ela não faz distinção, só precisa ser criada para existir. Cotidianamente é reforçada a ideologia da objetivação da mulher, sua construção indenitária se encontra principalmente sob o rótulo de que a mulher apanha porque gosta de apanhar. Trabalhamos com a arte para romper com o estigma da mulher como objeto, auxiliando-a no despertar do seu empoderamento e no fortalecimento do seu corpo transgressor feminino, para que ela tenha a liberdade de narrar as suas próprias histórias e reinventar a si e o mundo onde vive.







