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A tríade das cores: reflexões sobre a individualidade no filme "A Liberdade é Azul" (Bleu)
La tríada de los colores: reflexiones sobre la individualidad en Trois Couleurs: Bleu
The triad of colors: reflections on individuality in Three Colours: Blue
A tríade das cores: reflexões sobre a individualidade no filme "A Liberdade é Azul" (Bleu)
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 1, pp. 275-295, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo
Resumo: Este artigo analisa o filme “A Liberdade é Azul” do diretor polonês Krzysztof Kieslowski para debater sobre os processos subjetivos de ressignificação identitária e da reflexividade do eu, centrado nas maneiras de agir e de pensar dos indivíduos. Com base em Georg Simmel e Anthony Giddens, relacionamos alguns conceitos como atitude de reserva, reflexividade, segurança ontológica, confiança e ansiedade existencial presentes no comportamento da principal personagem do filme, Julie, como “tons” de fundo para uma discussão sobre a liberdade e a vida moderna. O que se percebe é que Julie convive com a contingência entre libertar-se do passado e preservar sua individualidade na reconstrução da trajetória de vida e de sua autoidentidade após a morte de sua família.
Palavras-chave: Reflexividade, Confiança, Segurança ontológica, Individualidade.
Resumen: Este artículo analiza la película “La Libertad es Azul” del director polaco Krzysztof Kieslowski para debatir sobre los procesos subjetivos de resignificación identitaria y de la reflexividad del yo, centrado en las maneras de actuar y de pensar de los individuos. Con base en Georg Simmel y Anthony Giddens, relacionamos algunos conceptos como actitud de reserva, reflexividad, seguridad ontológica, confianza y ansiedad existencial presentes en el comportamiento del principal personaje de la película, Julie, como "tonos" de fondo para una discusión sobre la libertad y la vida moderna. Lo que se percibe es que Julie convive con la contingencia entre liberarse del pasado y autopreservar su individualidad en la reconstrucción de la trayectoria de vida y de su autoidentidad tras la muerte de su familia.
Palabras clave: Reflexividad, Confianza, Seguridad ontológica, Individualidad. 295.
Abstract: This article analyzes the film Bleu by polish filmmaker Krzysztof Kieslowski to discuss about the subjective processes of identity resignification and the reflexivity of the self, focused in the ways of acting and of thinking of the individuals. Based on Georg Simmel and Anthony Giddens, we relate certain concepts such as reserve attitude, reflexivity, ontological security, trust and existential anxiety that present in the behavior of the film's main character, Julie, as background tones for a discussion about freedom and modern life. What is perceived is that Julie lives with the contingency between freeing herself from the past and preserve her individuality in the reconstruction of her life-trajectory and self-identity after her family's death.
Keywords: Reflexivity, Trust, Ontological security, Individuality.
Introdução
Suponhamos um belo pedaço de paisagem, verdejante, avermelhado, com cambiantes coloridos, com as cores esbatidas em pó, tudo de uma forma natural; em que as coisas com a diversidade colorida [...] se encontram em perpétua vibração, que faz tremer as linhas e completa a lei do movimento eterno e universal. [...] O verde é profundidade natural, porque se liga facilmente com todos os outros tons. O que me chama a atenção é que, por todo o lado o vermelho enaltece o valor do verde; o preto, zero solitário e insignificante, solicita a ajuda do azul ou do vermelho. O azul resume em si todas as cores, essa grande sinfonia diurna, com eternas pequenas variações diárias; esta sucessão de melodias, em que a variação é sempre resultado da infinidade, a este hino complexo, chama-se a cor (BAUDELAIRE, 2015, p. 357).
De la Couleur, poema escrito por Baudelaire no livro Salon de 1846, foi um testemunho sobre a particularidade das exposições artísticas parisiense que enunciava novas tendências do ambiente cultural francês. A nova Paris, moderna e redesenhada, transitava das formas de vida tradicional para a cultura urbana moderna. O poema ressalta as vibrações das cores das paisagens naturais, focalizando o movimento eterno e universal dos fenômenos cromáticos.
Mas, para Baudelaire (2015, p. 357), “a cor é harmonia, melodia e contraponto”, e, ao estudála com uma lupa, percebemos a harmonização de tons preto, vermelho, azul, amarelo, verde etc. Essa harmonia melhor se compreende se combinada com as sombras, isto é, com as críticas 276 acerca da representação e da artificialidade daquelas obras. “A cor é o acorde de dois tons. O tom quente e o tom frio” (idem). Esse acorde, na vida cotidiana, implica um jogo de cores cuja natureza essencial não pode ser desafiada em sua forma absoluta, mas apenas de modo relativo, como as sombras e a luz.
O escritor francês foi considerado por muitos o “poeta lírico do alto-capitalismo” e, por outros, um arguto crítico à modernidade, às concepções positivistas e à ideia de progresso (BERMAN, 1986; BENJAMIN, 1989, 1997; FRISBY, 2013). Com certa repulsa e satírica exaltação, Baudelaire definia a cultura e o indivíduo moderno como românticos. Tal definição relacionada ao romantismo sugere que a oposição das cores perpassa sua crítica à modernidade capitalista e aos princípios da razão, da objetividade, do artifício, do cálculo e do mundano através de seus termos antagônicos como a imaginação, a subjetividade, o natural, a espontaneidade e o visionarismo. Acresce-se ainda a crítica à ciência através do fantástico e do sobrenatural (KUMAR, 1997).
A obra de Baudelaire tem profunda conexão com os escritos mais influentes da modernidade e traz uma percepção crítica sobre a cultura moderna nas grandes cidades. Na medida em que o modo de vida urbano de caráter racionalista intensificou a distância dos indivíduos, as “vibrações das leis naturais” das sociabilidades fundamentavam-se em dois eixos: a objetividade e a subjetividade do comportamento (KUMAR, 1997). Nosso foco não é sobre as exposições artísticas das grandes cidades como lócus da cultura moderna, mas a análise das relações interpessoais e da subjetividade urbana cotidiana, especificamente em uma metrópole como Paris.
Nas cidades, desenvolveram-se modos de ação específicos da cultura urbana moderna, disseminados através de um conjunto de comportamentos ao qual Georg Simmel atribuiu como característica principal o aprofundamento do espírito racional e defesa da individualidade em relação ao mundo exterior. Para o autor, “em vez de reagir emocionalmente, o sujeito metropolitano reage principalmente de modo racional, pelo aprofundamento da sua consciência e a criação de uma reserva mental” (SIMMEL, 1997, p. 32). A intensidade das interações sociais nas metrópoles tinha como especificidade a “distância social” decorrente do individualismo da vida moderna. Seu exemplo mais conhecido foi a chamada atitude blasé — indiferença ou alheamento deliberado perante a distinção entre as coisas. Esse estado anestésico seria reflexo subjetivo da monetarização da economia e da intensificação da racionalidade metropolitana e do cosmopolitismo. No entanto, apesar da grande contribuição de Simmel para o entendimento da sociabilidade urbana moderna, as noções de “retraimento psíquico” e no “distanciamento 277 social” não se aplicam necessariamente em todas as situações da vida social, pois perpassa, sobretudo, as rotinas instituídas pela divisão do trabalho.
Seguindo uma análise que infere de maneira menos rigorosa na postura racionalista dos agentes, Anthony Giddens (2002) dá importância à segurança ontológica do ser, como também às tribulações do eu, compreendendo que o indivíduo inscreve suas ações reflexivamente na vida cotidiana dada a capacidade das pessoas de admitirem as razões para suas condutas. Nesse sentido, a noção de segurança ontológica está ligada intimamente à consciência discursiva que constitui a autoidentidade do sujeito, assim como a consciência prática dos indivíduos está incorporada à continuidade das atividades rotineiras. Compreende-se que as situações triviais estão ligadas à ansiedade diante do mundo exterior e à “perda do sentido da realidade mesma das coisas e das outras pessoas” (GIDDENS, 2002, p. 40). Isso pode ocorrer com a ausência ou perda de um referencial compartilhado da realidade, da confiabilidade dos contextos de interação social diária.
Para abordar como essas “vibrações” são postas em movimento na vida social, temos como referência o filme A Liberdade é Azul (Bleu) — que compõe a “Trilogia das Cores”, juntamente a outros dois filmes: A Igualdade é Branca (Blanc) e A Fraternidade é Vermelha (Rouge) — da obra cinematográfica do diretor polonês Krzysztof Kieslowski (1999)[1]. A despeito das diferentes concepções de Simmel e Giddens acerca da modernidade, tentaremos construir um diálogo entre as concepções desses autores sobre as ações e as práticas sociais.
O objetivo deste artigo é apresentar uma análise sobre os processos subjetivos de ressignificação identitária e de questões existenciais individuais, centrada nas maneiras de agir e de pensar dos indivíduos relacionadas à atitude de reserva mental, à reflexividade do eu, à segurança ontológica, à confiança e à ansiedade existencial que se apresentam no comportamento da principal personagem do filme analisado, Julie — interpretada por Juliette Binoche —, como “tons” de fundo para uma discussão sobre a liberdade e a vida moderna. No filme em questão, Julie encontra-se diante de uma inesperada e conturbada realidade após um acidente de carro em que seu marido e sua filha morrem, mas ela, mesmo estando no veículo, sobrevive e precisa conviver com as lembranças ou se libertar delas. Na tentativa de reescrever o presente diante do doloroso passado, Julie convive com a contingência entre o encerramento das narrativas do eu e a busca da liberdade.
As questões existenciais vestem azul
A maneira correta de saber se um quadro é melodioso é examiná-lo o suficiente para não entender nem o assunto nem as linhas. Se é melodioso, já tem um significado, e já tomou seu lugar no repertório de memórias. O estilo e o sentimento na cor provêm da escolha, e a escolha vem do temperamento. Há tons alegres e divertidos, divertidos e tristes, exuberantes e alegres, exuberantes e tristes, comuns e originais (BAUDELAIRE, 2015, p. 359).
A Liberdade é Azul pode ser considerado um filme pertencente ao gênero do drama na medida em que aborda os conflitos existenciais e sentimentais humanos. Sua construção nos situa no espaço e no tempo contemporâneo, engloba diversos fatores que evidenciam a ressignificação identitária da personagem principal, Julie, após o acidente. A narrativa do filme é construída em torno do luto da personagem, ao mesmo tempo que ela busca a autopreservação da individualidade contra os fatores externos nos processos interativos.
O filme aborda, através de parâmetros semióticos e sociopsicológicos, uma importante problemática sobre a finitude e suas implicações para o reordenamento da vida dos indivíduos. A cor azul na construção estética do filme (iluminação e fotografia) torna-se a representação do
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estado emocional de Julie para demonstrar seus conflitos e ansiedade existencial. O uso das cores na Trilogia representa o texto e vai além dele. Assume o papel de informação que estrutura os códigos culturais carregados de simbolismos (GUIMARÃES, 2000) para o entendimento do roteiro proposto por Kieslowski, pois perpassa a estética do filme e a leva a uma concepção simbólica — linguística, cultural e psicológica[2]. O uso da película azul, que representa a liberdade na bandeira francesa, é, paradoxalmente, o mais elementar, mas também abstrato, pois se associa ao sofrimento, ao mesmo tempo que representa a liberdade de encerrar algo, de não ter nada ou de perder tudo.
O acidente ocorrido logo no início do filme resulta na apreensão do agir e do comportamento de Julie[3]. Após saber da morte do marido, Patrice, e de sua filha, Anna, ainda no hospital em que se encontrava internada, a sua primeira atitude é engolir várias cápsulas de remédios numa tentativa de suicídio, mas logo depois ela cospe o medicamento. Este momento é liminar para compreendermos as questões ligadas à ansiedade existencial e à finitude. Valores e questões existenciais podem contribuir para o indivíduo tomar a decisão de continuar ou não perpetuando sua existência no mundo. Mas um acidente de carro demonstra a contingência dos eventos diante das múltiplas possibilidades de fenômenos como a finitude, pois permite a quem 279 sobreviveu inferir a noção de que a vida é uma opção e uma oportunidade, uma vez que nem sempre é possível prever o necessário (GIDDENS, 2002).

Vejamos a reação de Julie quando o médico informa sobre a morte de sua família: “— Está em condições de falar? Durante o... estava consciente? Lamento informar... Já sabe? Seu marido morreu no acidente”. Julie fita-o com olhar pálido e lança sua última esperança, ainda diante do médico falando sobre o tempo em que ela ficou inconsciente: “— Anna?”. Foi sua única pergunta, e o médico confirma a fatalidade. A dor torna-se o eixo de sua questão existencial. Ela recosta no travesseiro e aperta os olhos fortemente, suprimindo seu sentimento, e após isso tenta o suicídio. A ausência é o sentimento em questão e torna-se duplamente crônica, pois Kieslowski usa o sofrimento como meio para ilustrar o tema da libertação catártica, como nos banhos periódicos de piscina de Julie. De modo contingente, ela descobre formas de encerramento de sua ligação interpessoal com Patrice — uma sinfonia inacabada e a transferência de uma propriedade rural da família para a amante, que está grávida. Além disso, a morte de sua filha Anna, de apenas 5 anos, expressa a tênue linha entre o amor e a dor, isto é, a busca de libertar-se de seu passado.
Patrice era um famoso músico e compositor que faria um concerto temático de grande importância mundial: a consolidação da União Europeia, em 1993. Diga-se de passagem, essa é uma das formas que o diretor nos situa no tempo e no espaço[4]. O recorte temporal dos 280 personagens é datado em apenas um momento do filme: a morte de Patrice e de Anna, em 7 de setembro de 1992, que aparece durante a cobertura da imprensa no enterro. A única referência temporal feita no contexto cotidiano de Julie é quando Olivier — um amigo próximo com quem ela dormirá posteriormente — a encontra em um café de Paris e diz que a procurava há três meses.
Ao assistir o enterro pela televisão, Julie depara-se com o discurso de autoridades francesas sobre o ocorrido: “Estamos reunidos hoje aqui para honrar a memória de um homem e de um compositor que o mundo inteiro reconheceu como um dos maiores... Ninguém pode aceitar a sua ausência. Lembremos, também, de sua filhinha de 5 anos que morreu ao seu lado. Patrice, milhões de homens e mulheres esperavam a música que você havia composto para a grande festa da Europa que esperamos poder celebrar em breve”. A cena seguinte confirma a preocupação dos “milhões de homens e mulheres” com o destino da música composta por
Patrice.
Uma repórter procura Julie para obter a sinfonia composta por Patrice, mas o desfecho do encontro provoca o início de um novo rumo para a vida da jovem viúva. Julie nega-se a dizer
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onde está e enfatiza que perdeu seu marido e sua filha em um acidente de carro. Apercebendose do “interesse de todos” pelo material, ela o recupera para então jogá-lo no lixo num ato de liberdade para não ter nada. Viver livre das reminiscências, do novo, do outro, do mundo exterior é uma possibilidade complexa como qualquer outra. Para Giddens (2002), o homem está sempre em relação com o mundo-objeto. Um simples ato de desfazer-se de fotografias, objetos específicos (como o piano, a cruz, um papel de confeito) e eventos particulares (a canção) tornam o foco de uma lembrança contemplativa mais distante.
Julie retorna a sua antiga casa para “despedir-se”, ou melhor, libertar-se de tudo o que estava “morto” ali. Observa atentamente os principais pertences, como o piano de Patrice e, principalmente, o lustre de cores azuis no quarto da filha. Ela experimenta o limiar entre a supressão de sentimentos e a diferença de comportamento que pode ser observado na passagem em que Marie, a copeira, está chorando e é interpelada por Julie: “— Por que está chorando? — Porque a senhora não chora”. Elas se abraçam e Marie comenta: “— Penso neles, meu Deus. Eu lembro de tudo. Como esquecer?”

Esse é um momento em que a necessidade de se sentir livre distanciando-se de contatos com o mundo-objeto exterior pode ser mais forte do que a possibilidade de seguir em frente, por exemplo, na realização de uma autobiografia. Quanto a Patrice, a “memória” não é somente pessoal, devido ao reconhecimento de sua música e talento em âmbito global. São exemplos liminares: a música tocada pelo flautista que a faz rever sua decisão de não trabalhar sobre a composição; a descoberta da amante e a relação com Olivier.
Com essa descrição sumária dos acontecimentos do filme, tentamos demonstrar alguns aspectos: primeiro, os diálogos são curtos, porém não são superficiais, decorrem antes de ações sutis, nos gestos ou na ausência deles. Segundo, Julie sofre profundamente e, por isso, tenta libertar-se sem chorar, sem demonstrar sentimentos, o que a faz parecer fria e indiferente. No entanto, a sutileza do olhar e dos gestos revelam sobretudo um estado de melancolia. Outro importante aspecto é que ela desiste de lutar pela propriedade rural, pois se sente incapaz de conviver com as memórias e busca encerrá-las para recomeçar a sua vida.
Segundo Giddens (2002, p. 39), “ser humano é saber, quase sempre, em termos de uma descrição ou outra, tanto o que se está fazendo como porque se está fazendo”, principalmente nas atividades diárias, pois o conhecimento das convenções sociais é reflexivamente 282 monitorado em diversas situações de nossas vidas. Além das ações que expõem as razões que orientam as condutas dos sujeitos, há aquelas mais implícitas motivadas por um “estado de sentimentos” dos indivíduos. Em outras palavras, mesmo que sejamos capazes de cognição e tenhamos considerável conhecimento das condições e das consequências do que é feito em nosso cotidiano, o agir humano sofre interferências externas ligadas às emoções e afetos mais inconscientes ou não, e que motivam as relações de confiança básica entre as pessoas. Esse mesmo agir humano é também produzido por um encadeamento mais racional das atitudes rotineiras.
Nesse sentido, para Giddens (2002), o comportamento humano no contexto da altamodernidade é autorreflexivo, sendo então a condição que permite aos homens monitorarem as circunstâncias de suas atividades e dos acontecimentos. Assim, devemos conceber que “a consciência reflexiva é característica de toda ação humana, e é a condição específica da reflexividade institucional do comportamento intrínseco da modernidade” (GIDDENS, 2002, p. 39). A noção espaço-tempo em A Liberdade é Azul constitui aspecto importante para a compreensão da reflexividade da modernidade. Julie é visivelmente uma mulher moderna, e isso a situa num momento de ruptura com os antigos referenciais do casamento substancialmente desintegrados. Essa afirmação nos remete a perceber seu agir diante de muitas situações que podem ser destacadas em passagens diversas do filme.
Lembremos que todo o filme é focado no cotidiano de Julie, que “veste seu azul”, daí que, ao destacarmos algumas passagens, temos como referência o fluxo contínuo das ações da protagonista: a recorrência ao anonimato quando se desfaz do nome de matrimônio; a venda da casa e de todos os móveis numa tentativa de libertar-se das lembranças; a amizade de Julie e a prostituta Lucille — em certo momento, esta a chama para ir ao prostíbulo em que trabalha, e Julie age indiferentemente às sociabilidades daquele espaço; a relação entre Julie e Olivier, que expressa uma tênue linha entre amor e dor. Essas passagens são exemplos que podem ser aplicados em nossa análise, para a qual recorremos à abordagem conceitual exposta por Giddens, em seu livro Modernidade e identidade, e ao célebre texto de Simmel, A metrópole e a vida do espírito. Antes de passarmos à análise teórico-conceitual, faremos uma breve análise semiótica do uso da cor azul como um dos fundamentos importantes para a apreensão das maneiras de pensar e agir da personagem, e que constitui a relação cor e comportamento no âmbito do filme.
Na classificação cultural das estruturas cromáticas, o azul expressa um sinal de equilíbrio entre as cores. O azul corresponde às cores frias com intensidade fraca e é constituído de tons suaves que influem, segundo Tiski-Franckowiak (1997), na construção cognitiva da pessoa. A classificação cromática divide-se em duas: quentes e frias. Em suma, as cores quentes, como o vermelho, o laranja e o amarelo, são consideradas excitantes, sensuais, despertando o calor humano; são favoráveis às noções de confraternização, interação mútua, proximidade, contato corporal, densidade e materialidade. As frias, como o azul e o verde, provocam a sensação de distância e abertura ao mesmo tempo, como que abrindo e fechando os espaços, dada uma relação mais transparente, porém impessoal, em que o comportamento emocional se torna menos explícito ou até mesmo suprimido. “O jogo das cores quentes e frias faz com que o espaço tenha vibrações rítmicas de profundidade, pelo sucessivo avanço e recuo das cores” (TISKI-FRANCKOWIAK, 1997, p. 168-169). Tal jogo, corresponde, portanto, aos sinais de equilíbrio das pulsações e controle dos impulsos e das emoções. Tal característica remete às pessoas mais reservadas em suas atitudes, ao mesmo tempo que são sociáveis e possuem facilidade na busca de aceitação e amizade. As cores vinculam-se ao comportamento, à personalidade e aos estados afetivoemocionais dos indivíduos. A autora explica que o azul também corresponde às pessoas que se identificam com o ideal de família, lazer, conforto, estabilidade pessoal e motivações para fazer as atividades práticas. É tida como a cor da paz pessoal, da comunicação, expressão e da intelectualidade, sendo a cor característica das pessoas ordeiras, voltadas a ambientes limpos e de forte sensibilidade estética. Ao mesmo tempo, há uma inversão em sua apreensão. O azul não é uma cor aconselhada para ser usada em quartos ou locais frequentados por pessoas com tendências depressivas. Desse modo, pode o azul estimular o indivíduo à rejeição do mundo que o rodeia, representar rigidez, introspecção, indecisão e crítica; ou o costume de reprimir os sentimentos em público, ostentando polida distância nas ações e atividades mais convencionais.

O uso da cor azul pode ser percebida em A Liberdade é Azul para “textualizar” as tribulações da personagem do filme em questão. “A experiência dos homens com as cores foi bastante profunda e significativa durante o processo civilizatório, dando origem a simbologias e significados psicológicos que funcionam como arquétipos” (TISKI-FRANCKOWIAK, 1997,
p. 107). Nesse sentido, a associação da “linguagem das cores” depende dos códigos culturais que intermediam os fatores cromáticos na vida cotidiana, levando em conta as diferenças culturais de cada sociedade, a exemplo da associação entre a cor vermelha e os sinais de perigo ou emoção, com o socialismo e a fraternidade, com a morte e o sofrimento, com calor e a sensualidade (GUIMARÃES, 2000).
O tom azul é destacado nas passagens do filme em que Julie usa a piscina e demonstra os momentos de emoção profunda. Certamente, a intenção de Kieslowski é enunciar a profunda tristeza em que Julie se encontra. Esse é um momento de ansiedade existencial e de busca do “casulo protetor”. Nesse caso, são inúmeros os exemplos que poderíamos traçar para a "Trilogia das Cores". Por isso, para não ser passível de afirmarmos que os títulos seriam uma mera associação de palavras pensadas por Kieslowski, temos que o foco da “Trilogia” é objetivado em aspectos simbólicos e com os signos presentes no uso das cores, tanto quanto nos aspectos biofísicos, linguísticos e culturais, como destaca, ainda que sutilmente, a esfera política no contexto dos filmes, a exemplo da referência à bandeira da França e ao lema da Revolução Francesa e, por fim, à Unificação da Europa.
É certo que em toda a “Trilogia” podemos notar a construção do filme no tempo e no espaço. Seja a questão de gênero que situa o contexto de Julie como mulher, viúva e em processo de redefinição de si; seja a despretensão de uma “metanarrativa” sobre os lemas da Revolução, o que situa essa obra na esfera do cinema pós-moderno. Os dois filmes que completam a trilogia são também necessários para justificar a intenção do diretor em situar os indivíduos do filme no tempo e no espaço, visto que os eventos ocorrem simultaneamente aos de A Liberdade é Azul.
A tríade das cores: segurança ontológica, confiança e atitude de reserva
Até aqui a análise compreendeu aspectos gerais em relação ao conteúdo do filme, à aplicação de categorias sociológicas pertinentes ao agir humano em relação ao mundo exterior e também uma breve exposição sobre a simbologia do uso das cores e de sua percepção na vida social. As noções de confiança e segurança ontológica conceituadas por Giddens e a de reserva mental concebida por Simmel podem convergir em um sentido sociológico específico: o aprofundamento da consciência individual de autoidentidade e do espírito racional. Os dois autores baseiam-se na noção de individualidade para demonstrar como a intensificação das interações sociais perpassa o sentido ontológico dos agentes.
Para Simmel (1997), os contextos de interações sociais estão associados à existência de estímulos aos quais os indivíduos são confrontados no curso da vida cotidiana. O excesso de estímulos amplia os mecanismos de autodefesa que o autor chama de atitude de reserva. Tal atitude, a reserva mental, pode ser concebida como uma forma de liberdade de movimento, emancipação e autopreservação da individualidade. Atento às circunstâncias da vida social nas metrópoles modernas, Simmel observou a preservação da individualidade do indivíduo metropolitano nos contatos públicos, provida de algum grau de distância, impessoalidade e indiferença. Tais características da vida metropolitana não são invólucros sólidos, mas um aspecto íntimo da individualidade face ao exterior, aos conteúdos práticos e ao dever moral — tensão ontológica entre a individualidade e o universo social (SIMMEL, 2006). Para o autor, a individualidade possui um duplo papel que se assenta na figura conflituosa do indivíduo centrado no eu e nas estruturas sociais coletivas.
O nosso espírito reage com um sentido apurado praticamente a todas as impressões causadas pelas outras pessoas. É a inconsciência, a transitoriedade e a alteração destes sentidos que parecem conferir-lhe apenas o estatuto de indiferença. Esta, no entanto, parecer-nos-ia tão pouco natural como insustentável seria a nossa imersão num labirinto de propostas indesejadas (SIMMEL, 1997, p. 36).
O autor indica que os indivíduos não se encerram nas convenções sociais que estruturam os traços psíquicos no curso da vida cotidiana. A atitude de reserva “assegura ao indivíduo um determinado grau de liberdade pessoal, sem paralelo em quaisquer outras circunstâncias” (SIMMEL, 1997, p. 37). É nesse sentido que o agir alheio de Julie pode ser confundido com uma atitude blasé, embora, de outro modo, exista aqui um esboço elementar da tragédia do indivíduo — a dualidade da estrutura vital individual e a inserção do indivíduo em um contexto social. Para Simmel (2006), a individualidade é situada num rol de fins e normatividades 286 particulares, mas sua coesão assume a forma peculiar da lei individual em contraposição à universalidade racionalista. Isto é, a totalidade da vida não se restringe ao dever moral, nem a esquemas objetivos pré-figurados. Assim, “a lei individual pode ser compreendida como a síntese entre a crítica à objetividade do conhecimento e o individualismo, pois ela remete à disparidade existente entre vida e forma” (CANELLA, 2017, p. 88).
Tal discussão pode contribuir para que certas distâncias possam ser compreendidas em contextos de interações sociais e culturalmente conflitivas, sendo expressivas da condição individual nos processos interativos. No caso de Julie, subsiste uma mulher polida, introspectiva, que ostenta certa distância e impessoalidade nas ações em público para não demonstrar claramente seus sentimentos ou opiniões como forma de autopreservação, a exemplo da passagem dela no prostíbulo a pedido de Lucille.
Julie recebe um telefonema da prostituta que está aflita porque seu pai está no local em que trabalha, o prostíbulo. Julie vai até o local e a encontra chorando. Elas sentam para conversar e, enquanto isso, um stripper pede para que Lucille o excite porque em seguida os dois iriam se apresentar. Ela começa a acariciar o pênis do rapaz, mas Julie não esboça reações ou gestos de reprovação, por exemplo. Indiferente às interações daquele ambiente, ela se reserva a questionar esse estilo de vida: (J) — Lucille, por que faz isso? (L) — Porque eu gosto. Acho que todo mundo gosta... Você salvou minha vida. (J) — Não fiz nada. (L) — Eu pedi, e você veio. É a mesma coisa.


apenas responde: “— Não fiz nada”. Depois não prossegue com o assunto que ela mesma começou ao questionar as razões porque Lucille vive da prostituição, mas apenas sorri com a resposta da amiga, o que nos faz lembrar da observação de Giddens (2002, p. 106) de que a vida é “um território de possibilidades contrafactuais”. É justamente aí que podemos perceber a atitude de reserva da protagonista que se encontra em dois momentos: 1) reserva-se a interagir com a prostituta tal como a conheceu. Exemplo de tal atitude é o momento em que uma vizinha de sua nova casa pede que ela rubrique um abaixo-assinado para expulsar Lucille do local porque esta recebia homens em seu apartamento, mas Julie se recusa alegando não ser um assunto de sua conta; 2) Julie demonstra a intensificação da racionalidade metropolitana, como também aparente indiferença perante as distinções entre as coisas, o que provém, segundo Simmel (1997), do reflexo subjetivo da monetarização da economia e das relações mediadas pelo dinheiro, a exemplo das relações em um prostíbulo. Ademais, todo o contexto expressa uma relação de confiança.
Na sociologia, foi Simmel quem primeiro tratou do tema da confiança em seu Philosophie des Geldes (1900). Inicialmente, ele abordou o tema para tratar sobre a economia de crédito e a importância desse fato para a modernidade. Conforme Mota (2017), Simmel estabeleceu inicialmente uma relação entre confiança e fé religiosa, mas a necessidade da confiança entre as pessoas amplia-se com o surgimento das metrópoles modernas e da autopreservação subjetiva através do uso do intelecto diante das forças sociais e da desconfiança natural à vida urbana. Simmel analisa a confiança como uma hipótese intermediária entre o saber acessível e o que não sabemos acerca do outro. Observa então que, nas interações sociais, não se pode conhecer o outro em absoluto, assim, o conhecimento torna-se acessível à medida que o conteúdo pessoal é informado, desvendando a personalidade individual. O limite entre o conhecimento mútuo é chamado de discrição e tal limite constitui os segredos individuais e até institucionais.
Neste processo, estão presentes dois tipos de conhecimentos, o do Ser (“quem se é”,
conhecimento de si próprio, experienciado unicamente em sua totalidade pelo próprio indivíduo) e da representação do Ser (conhecimento gerado pelo outro a partir das informações previamente selecionadas e repassadas pelo “sujeito agora objetificado”). Nesta troca de informações, o sujeito ao mesmo tempo se mostra e se oculta, se revela e engana... (MOTA, 2017, p. 31).
Neste sentido, somente o ser humano pode ocultar ou revelar sua personalidade. Nenhum outro objeto, mesmo que represente as memórias de uma pessoa, revela ou oculta uma identidade. Giddens (1991) considera a reflexividade do eu, que leva o indivíduo a autointerrogar-se acerca dos acontecimentos, delineia o nível de segurança ontológica que pode ser entendida como uma forma de sentimento de segurança do indivíduo, conhecimento e de confiança em relação ao mundo exterior. Conforme o autor, a segurança ontológica
[...] se refere à crença que a maioria dos seres humanos tem na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação social e material circundantes. Uma sensação da fidedignidade de pessoas e coisas, tão central à noção de confiança, é básica nos sentimentos de segurança ontológica; daí os dois serem relacionados psicologicamente de forma íntima. A segurança ontológica tem a ver com “ser” ou, nos termos da fenomenologia, “ser-no-mundo”. Mas trata-se de um fenômeno emocional ao invés de cognitivo, e está enraizado no inconsciente (GIDDENS, 1991, p. 84).
A disciplina define a rotina individual em contextos de interação. Ela envolve ainda um referencial ou lugar de partida no curso da vida cotidiana que “inclui orientações em relação a aspectos do mundo dos objetos que carregam resíduos simbólicos para a vida posterior do indivíduo” (GIDDENS, 2002, p. 42). Esses resíduos decorrem do enfrentamento individual com um mundo rodeado de tribulações cotidianas e ansiedades existenciais. Tais tribulações levam os indivíduos a adotarem, como suporte emocional, um casulo protetor, ou carapaça defensiva, em que reside a manutenção de sentidos e saúde física e psicológica das pessoas que, muitas vezes, se revestem de uma invulnerabilidade contra as possibilidades negativas da vida social através de uma confiança generalizada nos sistemas abstratos[5]. Tal casulo é o espaço defensivo da segurança ontológica dos indivíduos na interação social. Nesse sentido, em meio a riscos e suscetibilidades, “o casulo protetor é essencialmente um sentido de ‘irrealidade’, mais que uma firme convicção de segurança: é um parêntese, no nível da prática, em eventos possíveis que poderiam ameaçar a integridade corporal ou psicológica do agente” (GIDDENS, 2002, p. 43) e fecha as possibilidades de riscos que demonstram as contingências negativas.

Para ilustrar, citemos a passagem em que Julie conversa pela primeira vez com Olivier ao telefone depois de ter destruído as lembranças que restavam de seu marido e de sua filha: (J) — É Julie... Você me ama? (O) — Sim. (J) — Há muito tempo? (O) — Desde que comecei a trabalhar com Patrice. (J) — Pensa em mim? Sente saudades? (O) — Sim. (J) — Venha, se quiser. (O) — Agora? (J) — Sim, imediatamente. (O) — Tem certeza? (J) — Sim. Parece-nos correto dizer que Julie conhecia o interesse de Olivier, mas isso não é dito claramente no filme. Este prossegue com os personagens em seu primeiro contato íntimo e, na passagem seguinte, Julie despede-se de Olivier com palavras sóbrias, mas imersa em seu casulo — que também podemos chamar de atitude de reserva — na tentativa de esconder sua fraqueza: (J) — Foi bom o que fez por mim. Mas sou uma mulher comum. Eu transpiro, eu tusso, tenho cáries. Não vou desapontá-lo. Deve ter percebido. Não se esqueça de fechar a porta. (O) — Julie! Ao sair de casa com passos apresados Julie se encontra numa perspectiva de ser ultrapassada por sua ansiedade existencial. Fecha a mão e arrasta o punho contra um muro até sangrar. Sente uma dupla dor: física e psicológica. Essa passagem demarca a sensação de irrealidade que vivencia
a personagem. Tal perspectiva atinge a sensação de se “estar no mundo”, sendo que somente
[...] a consciência prática, junto com as rotinas diárias reproduzidas por ela, ajuda a pôr entre parênteses as ansiedades, tanto com o princípio de que há alguma estabilidade como pelo papel constitutivo na organização de um ambiente de “faz de conta” em relação às questões existenciais (GIDDENS, 2002, p. 41).[6]
Esse ambiente de faz de conta oferece certas respostas às orientações emocionais e cognitivas, permitindo aos indivíduos depositarem a confiança nos contextos práticos da atividade cotidiana. A ideia de consciência prática evoca o sentido imediato das passagens seguintes do filme quanto à nova realidade que Julie atravessará na busca de um porto seguro para si. No entanto, adquirir confiança e conviver com o sentido de ausência é compreender que “a realidade não é apenas o aqui e o agora, o contexto da percepção sensorial imediata, mas a identidade e a mudança do que está ausente — longe da vista no momento ou, de fato, nunca encontrado, mas simplesmente aceito como estando ‘lá’” (GIDDENS, 2002, p. 46). Desse modo, o significado de ausência, para Giddens (2002), é importante na trajetória e na experiência do indivíduo inclusive na confiança básica na interação com os objetos e com outras pessoas.
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Da mesma forma, conviver com as lembranças passadas, do que já está ausente em vida, torna os indivíduos menos capazes de manter uma referência mais sólida para “manter um claro sentido de continuidade da auto-identidade” (GIDDENS, 2002, p. 46). Por um lado, esse autor leva em consideração que o cotidiano é submetido a um tipo ou um referencial de segurança ontológica, pois, em certos contextos, o indivíduo necessita de sinais de confiança para agir e evitar as tribulações do eu. Por outro, observa que a ansiedade — a contrafactualidade da segurança ontológica — deve ser entendida em relação ao sistema total de segurança que o indivíduo desenvolve reflexivamente a um estado geral de emoções. Ela é difusa, flutuante e promove uma ausência de referências com o que originalmente a provocou, e pode estar relacionada a sintomas normais ou neuróticos.
A ansiedade difere-se do medo dos riscos e perigos eventuais. O medo só é sentido quando há um objeto ou situação específica que provoque ameaça à vida. No filme, a sensação de medo da personagem pode ser exemplificada na cena em que três pessoas agridem outra que corre e bate à porta da casa de Julie em busca de socorro e proteção, mas ela não abre. A ansiedade pode ser entendida como uma reação à dor do desamparo e revela tensões emocionais que se expressam como “perigos internos” conforme são sentidos a partir da interação e das 291 reações dos agentes e, ao mesmo tempo, das ações dos mesmos em relação ao mundo exterior.
Uma passagem do filme nos fornece pistas para compreendermos essas proposições conceituais: a cena em que Julie encontra uma ratazana e os filhotes recém-nascidos no quarto do apartamento demarca a liminaridade entre medo e ansiedade. Ela se desespera ao encontrar os filhotes que haviam nascido naquele momento. Sente medo e mal consegue dormir por qualquer barulho que os animais fizessem. É quando resolve procurar sua mãe, uma senhora que sofre de esclerose, mas, mesmo sem saber exatamente com quem falava, lembrou-se que sua filha sentia medo de ratos quando criança. Julie depara-se com uma situação que reflete sua vida: a finitude de um ser[7]. Ela toma emprestado o gato do vizinho e o põe no apartamento para que devore os ratos e, conseguinte, sente repulsa e emoção profunda, pois perpassa a “relação entre mãe e filhos”. Nesse momento de tensão, ela volta à piscina para nadar envolta de um jogo de cores de tons quentes e frios. Mas é Lucille quem vai fazer a limpeza dos animais mortos pelo gato.
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Na tomada seguinte, Kieslowski produz, paradoxalmente, uma passagem liminar:
quando Lucille sai de cena, dezenas de crianças aparecem correndo e bradando gritos de alegria perante uma simples oportunidade da vida — pular na piscina. Entre tantas tribulações na vida de uma pessoa, as questões existenciais são ontologicamente seguras quando temos no nível do inconsciente e da consciência prática
[...] respostas para questões existenciais fundamentais que toda vida humana de certa maneira coloca. Em certo sentido, a ansiedade vem com a liberdade [...] esta não é uma característica do indivíduo, mas deriva da aquisição de um entendimento ontológico da realidade exterior e da identidade pessoal.
Para entendermos certos rituais do cotidiano como formas de enfrentamento, devemos sobretudo conceber que a ansiedade, a confiança e as rotinas estão ligadas entre si. Por fim, o diálogo entre Julie e sua mãe torna-se um exemplo interessante de como a consciência discursiva e a prática estão interligadas aos sistemas abstratos: (J) — Agora entendi que só farei uma coisa. Nada. Não quero bens, presentes... amigos, amor ou vínculos. Tudo isso são armadilhas. (Mãe) — Tem dinheiro, minha filha? Tem do que viver? (J) — Tenho o necessário.
(Mãe) — É importante. Não se pode renunciar a tudo. Outra passagem do filme pode 292
finalmente atribuir um desfecho, entre tantos outros, às tribulações da protagonista. Julie sai do café e depara-se com o flautista na rua deitado e devolve-lhe a caixinha da flauta que estava “solta” (note-se que nesse momento Julie acabara de recusar a devolução da cruz que Patrice lhe dera — como também dera a sua amante): (J) — Você está doente? Tudo bem? (F) — É preciso agarrar-se a algo. (J) — O que disse?
Considerações finais
Neste artigo, buscamos analisar os processos de subjetivação e de ressignificação identitária no filme A Liberdade é Azul, que aborda os conflitos existenciais e sentimentais humanos, tais como a ansiedade, a ausência e a finitude; a dor, a indiferença, as tribulações do eu e a confiança, e suas implicações na vida individual e social dos sujeitos. Esse filme retrata características da vida cotidiana na modernidade e a tensão ontológica entre a liberdade, a individualidade e o universo social circundante.
Com base nas concepções de Simmel acerca do aprofundamento do espírito racional e da consciência dos sujeitos, tentamos compreender as reações emocionais e os mecanismos de autodefesa dos sujeitos em relação ao mundo exterior. Tal mecanismo de defesa é chamado de atitude de reserva, geralmente associado a um estado de aversão e estranheza mútuas das pessoas em suas interações sociais, mas que pode ser concebido como uma forma de liberdade de movimento, emancipação e autopreservação da individualidade sob “a cor” do anonimato e da impessoalidade.
Apresentamos também os postulados de Giddens sobre o aprofundamento da consciência individual de autoidentidade na vida cotidiana. Por um lado, a consciência de si, imbricada em contextos práticos e discursivos, conforma a capacidade das pessoas de construírem reflexivamente sua autoidentidade e gera os sentimentos de segurança ontológica. Por outro, as sensações opostas de “estar no mundo” e de ausência geram questionamentos e respostas às orientações emocionais e cognitivas e provocam atribulações na construção da trajetória e na afirmação das experiências identitárias.
Nesse sentido, diversas representações e percepções sobre o filme podem ser feitas e tomadas de forma crítica ou alusiva. Dito de outra forma, é preciso estranhar o que nos parece familiar. Destacamos Julie como indivíduo, mulher, viúva, que necessitou lidar com a liberdade de ser e seguir um caminho independente após a perda de sua família num acidente fatal. A busca pela liberdade e autopreservação da individualidade intensifica-se inclusive quando ela 293 se desfaz do nome de matrimônio. Nesse sentido, é uma pessoa que vive um constante monitoramento do eu, isto é, em estado de luta contra a profunda melancolia e em busca de reelaborar sua identidade.
Mas, no fim, Julie definitivamente chora! Esse é o momento em que as cores do roteiro finalmente se apresentam, pois o filme centra em apenas uma personagem e as contingências de seu cotidiano entre o trágico e a superação. É esse o ponto chave para enxergarmos a tonalidade de tal choro e traduzir sua cor, a harmonia, a melodia e o seu contraponto. Nesse sentido, retomamos o tom inicial acerca das mudanças e significados das cores da vida: “À medida que o sol é perturbado, os tons mudam de valor, mas, sempre respeitando suas simpatias e ódios naturais, continuam a viver em harmonia por concessões recíprocas” (BAUDELAIRE, 2015, p. 357).
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[1] A Trilogia das Cores pode ser considerada uma analogia crítica ao lema da revolução francesa “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e às cores da bandeira da França como o tema em si, o que não é necessariamente a proposta de Kieslowski, embora os aspectos simbólicos em referência às cores e ao lema existam em cada filme. Mas se constitui uma crítica poética à própria modernidade e à ideia de moderno.
[2] Podemos remeter ao gênero musical blues, que em inglês é sinônimo de melancolia. Apesar do vigor das canções e do ritmo, e da simplicidade das letras, sua origem vem da música religiosa da comunidade afro-americana moldada ao ambiente frio e hostil da cultura do algodão. Denota o estado de espírito no pós-Guerra Civil norteamericana como retrato do fim da escravidão (HERZHAFT et al., 1997).
[3] As descrições sobre o filme serão breves, visto que nossa análise é sobre o conteúdo do mesmo. As passagens foram escolhidas para esta análise com o intuito de aplicarmos as categorias sociológicas para os devidos contextos. Tentaremos aplicar as categorias centrais formuladas por Giddens e Simmel, autores principais utilizados neste trabalho, para descrever tais passagens.
[4] Os aspectos políticos e culturais presentes no “texto” (isto é, no roteiro do filme) estão sutilmente inscritos, demarcando as noções que situam identitariamente a relação dos indivíduos com as instituições modernas.
[5] Para Giddens (1991), a noção de sistemas abstratos, segurança ontológica e de confiança básica estão interligadas. Os sistemas abstratos são também relacionados aos meios no cotidiano e nas atividades práticas que ordenam a vida social em momentos de ansiedade pessoal.
[6] Giddens (2002) se refere principalmente aos processos interativos entre as ações individuais e as estruturas sociais mais amplas. Ele trata da capacidade reflexiva e dos projetos definidos nas ações dos agentes (consciência discursiva) e do condicionamento das regras e do impacto das estruturas na vida cotidiana sem um questionamento sobre seu significado e características (consciência prática).
[7] Conforme Giddens (2002), a finitude é o que nos permite discernir o significado moral em eventos de outra maneira transitórios, o que seria negado a um indivíduo sem horizontes finitos. O “chamado da consciência” que a consciência da finitude traz estimula os homens a perceberem sua “essência temporal como seres-para-a-morte” (GIDDENS, 2002, p. 52).
Referências
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______. (1997). “Paris, capital do século XIX”. In: FORTUNA, Carlos (Org.). Cidade, cultura e globalização: ensaios de sociologia. Oeiras: Celta. pp. 67-82.
BERMAN, Marshall (1986). Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.
CANELLA, Murilo (2017). “Georg Simmel e a crítica à objetividade do conhecimento. In: NORUS. Revista Novos Rumos Sociológicos. Pelotas, vol. 5, n. 7, jan-jul, pp. 65-97.
FRISBY, David (2013). Fragments of modernity: Theories of Modernity in the Work of Simmel, Kracauer, and Benjamin Studies in contemporary German social thought. London: Routledge.
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HERZHAFT, Gérard et al. (1997). Encyclopedia of the blues. 2nd ed. Fayetteville, AR: University of Arkansas Press.
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TISKI-FRANCKOWIAK, Irene T. (1997). Homem, comunicação e cor. São Paulo: Ícone.