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Resumo: Este artigo tem como principal objetivo explicar a noção de multiculturalismo no contexto da atualidade, tendo como ideia principal os efeitos provocados pelo fenômeno da globalização presentes na filmografia de Woody Allen. É usada como corpus a produção cinematográfica do diretor norte-americano, nos filmes Ponto Final – Matchpoint, Meia noite em Paris e Para Roma com Amor. Deles, desprendem-se cenas que caracterizam a diversidade cultural, o comportamento e os costumes que desenham os espaços cosmopolita, universal e contemporâneo.
Palavras-chave: Multiculturalismo, Filmografia, Woody Allen, Globalização, Contemporaneidade.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo principal explicar los principios del multiculturalismo en el contexto social actual. La idea principal consiste en mostrar los efectos provocados por el fenómeno de la globalización presente en la filmografía de Woody Allen. Es utilizado como corpus la producción cinematográfica del director estadunidense Woody Allen, en las películas La provocación, Medianoche en París y A Roma con amor. De ellas emanan escenas que caracterizan la diversidad cultural, el comportamiento y las costumbres que proyectan espacios cosmopolitas, universales y contemporáneos.
Palabras clave: Multiculturalismo, Filmografía, Woody Allen, Globalización.
Abstract: This article has as main objective to explain the notion of multiculturalism in the context of the present time, being its main idea the effects provoked by the phenomenon of globalization present in the filmography of Woody Allen. It uses as corpus the cinematographic production of the North American director Woody Allen in the films Matchpoint, Midnight in Paris and To Rome with Love. From them, scenes that characterize the cultural diversity, the behavior and customs that draw the cosmopolitan, universal and contemporary spaces are unfold.
Keywords: Multiculturalism, Filmography, Woody Allen, Globalization, Contemporaneity.
Introdução
As origens do multiculturalismo estão assentadas na própria cultura e na sua evolução, assim apresentam as imagens de grandes centros urbanos como Roma, Paris e Londres, que passaram por esse processo e que se converteram em objeto da lente e do roteiro de Woody Allen. Este trabalho foca no fenômeno do multiculturalismo presente na cultura contemporânea dessas grandes metrópoles do mundo. Decupam-se cenas dos filmes Ponto Final – Matchpoint (2005), Meia Noite em Paris (2011) e Para Roma com Amor (2012), que mostram a efervescência desse fenômeno em espaços, imagens e diálogos e que permitem a seus protagonistas interajam Em uma passagem pelo enredo e pelas formas com que o ser humano pensa e sente esses novos espaços, interpretam-se os traços mais evidentes do multiculturalismo na atualidade.
Assim, o artigo configura-se a partir do fenômeno do multiculturalismo presente na integração, fusão ou qualquer outro modelo de gestão da diversidade cultural na sociedade contemporânea, remetendo-se a conflitos como direito, liberdade e valores comumente aceitos e às ideias e práticas refletidas nos roteiros do diretor nova-iorquino. Sendo assim, da cultura 297 ao multiculturalismo apresenta o desenvolvimento do conceito até alcançar o processo de globalização. É usada a obra cinematográfica de Woody Allen, mais especificamente uma filmografia escolhida da chamada “fase europeia”, para interpretar alguns dos traços multiculturalistas refletidos na transposição literária, nos hábitos e costumes da cultura criticada pelo cineasta.
Dessa forma, o estudo se divide em três partes, a primeira: “da cultura ao multiculturalismo” traça uma trajetória que vai do próprio conceito de cultura até alcançar maior conotação no âmbito social, associado ao fenômeno da globalização e da indústria cultural; a segunda: “cinema e filmografia de Woody Allen” situa esse reconhecido diretor no esteio cronológico de sua produção e seleciona desse amplo repertório, os filmes da virada para o século XXI, os quais trazem a mudança de cenários, motivações e conflitos, assim como também dos comportamentos de protagonistas e personagens nos filmes escolhidos; e a terceira: “traços multiculturalistas nos filmes escolhidos de Woody Allen” indaga sobre o estilo presente tanto na forma quanto no conteúdo dessa produção, visando a experiência estética do espectador diante da proposta de identificação, projeção e imersão do próprio produtor no contexto multicultural.
Da cultura ao multiculturalismo
A palavra “cultura” é uma derivação do latim colere que significa cultivar, tornando o cultivo do solo a sua acepção mais original, labor agrícola. O conceito de cultura tem mudado ao longo da história, chegando a atingir múltiplos significados em relação à econômia, política e a arte, sendo esse último, a acepção que se refere também às “formações sociais”. Milton Santos (2008) fala da pertinência da questão espacial para entender a cultura como um espaço social, citando Aristóteles que afirma que “o que não está em nenhum lugar, não existe”, o que dá vida à cultura é o espaço destinado à interação. Desse modo, pode-se pensar que o espaço exerce um papel importante para a análise da cultura como formação social. O social compreende fatores elementares: o comportamento humano que revela padrões regulares e repetitivos dentro do espaço social. Esses aspectos repetitivos da ação humana explicam as regularidades aparentes dessa ação e dos fatos da vida social, a sociedade não existe sem cultura, e a cultura humana só existe dentro de uma sociedade.
Portanto, a importância da cultura reside no fato de que esta proporciona conhecimento e técnicas que permitem ao ser humano sobreviver, física e socialmente, e 298 dominar o mundo que o rodeia. Duas inferências até aqui são relevantes em relação à cultura, esta pode ao mesmo tempo, ser aprendida e compartilhada.
Esboçar um estado da arte do conceito cultura, exige um recuo no tempo que não se justifica, salvo para chegar à conclusão de que na base desses múltiplos sentidos da palavra cultura, podem ser consideradas as práticas, a criação, a difusão ou a apropriação cultural (LARAIA, 2001, p. 25). Entretanto, a concepção antropológica, que não é seletiva – perspectiva humanista do conceito –, aplica-se à trama da vida humana em uma sociedade.
Já o “multiculturalismo” ou pluralismo cultural é um termo que descreve a existência de muitas culturas em um mesmo espaço geopolítico – região, cidade ou país. Como contraponto ao multiculturalismo, existe o monoculturalismo, vigente na maioria dos países e ligado intimamente ao nacionalismo. Em seu sentido descritivo, multiculturalismo designa a coexistência de diferentes culturas em uma mesma entidade política territorial, mas pode ter um sentido prescritivo ou normativo e designar diferentes políticas.
O multiculturalismo é também uma teoria que busca compreender os fundamentos culturais de cada uma das nações caracterizadas por uma grande diversidade cultural. A política multiculturalista visa resistir à hegemonia cultural, principalmente quando essa hegemonia é considerada única e legítima, submetendo outras culturas ao particularismo e à dependência.
Charles Taylor (2005), autor de Multiculturalismo, acredita que toda a política identitária não deveria ultrapassar a liberdade individual. Indivíduos, no seu entender, são únicos e não poderiam ser categorizados. Taylor definiu a democracia como a única alternativa não política para alcançar o reconhecimento do outro, ou seja, da diversidade.
Esse termo surgiu no mundo anglo-saxão como um modelo de políticas públicas e como uma filosofia ou pensamento social de reação perante uniformização cultural em tempos de globalização. É, portanto, uma proposta de organização social que se localiza em termos teóricos dentro da filosofia antiasimilacionista – pensamento social de reação – do pluralismo cultural.
Com o adjetivo multicultural, costuma-se fazer referência à variedade que apresentam as culturas na sociedade humana para resolver as mesmas necessidades individuais quando todas elas deveriam possuir igualdade de possibilidades para se desenvolver social, econômica e politicamente com harmonia, segundo suas tradições étnicas, religiosas e ideológicas. De acordo com o multiculturalismo, assinalado por Taylor, os Estados deveriam 299 articular-se institucionalmente de maneira que reflitam a pluralidade de culturas existentes.
O mundo não está organizado por territórios culturais, há uma clara discordância entre etnias e estados. A tendência são os estados multiculturais. Hoje em dia, o multiculturalismo é uma condição normal de toda cultura, devido à globalização. A globalização é um processo econômico, tecnológico, social e cultural de escala planetária que consiste na crescente comunicação e interdependência entre os distintos países do mundo, unindo mercados, sociedades e culturas através de uma série de transformações sociais, econômicas e políticas que lhes oferecem um caráter global (UNESCO, 2001).
Como fenômeno, o multiculturalismo faz referência, de forma sintética e provisional, à coexistência de culturas diferentes em um mesmo tempo e espaço de convivência. Por sua vez, o fenômeno como problema faz referência às formas possíveis de articular essa pluralidade cultural em múltiplos âmbitos nos quais esse fenômeno produz conflitos nas sociedades democráticas contemporâneas.
Portanto, o multiculturalismo refere-se a uma vida social na qual a pluralidade tem-se afirmado com uma instantaneidade até agora desconhecida. Isto é, não é que essa pluralidade cultural e sua convivência constituam uma novidade, é simplesmente que a pluralidade opera a uma escala e velocidade nunca antes vista, manifestando-se naqueles Estados-nação modernos que até então haviam estado dominados por uma realidade ou aparente homogeneidade cultural.
A principal diferença encontra-se em que enquanto as teorias do terceiro cinema ‒ filmes produzidos na periferia mundial ‒ são teorias da enunciação, as teorias multiculturalistas são teorias da recepção. Coloca-se o acento não na produção, mas em como os espectadores se relacionam com os filmes e disto deriva a questão fundamental, o prazer do espectador. Nos anos oitenta começa a se falar do multiculturalismo no âmbito da cultura e da expressão criativa como formalização de certos posicionamentos políticos radicais, aquelas que se centram na denúncia de temas como o racismo, a homofobia e o sexismo, entre outros (SHOHAT e STAM, 2002).
O multiculturalismo coloca na mesa outra questão fundamental derivada do pósestruturalismo, a ideia das identidades múltiplas e mutantes. Cada indivíduo está formado por várias identidades com as quais se pode identificar em diferentes momentos. Isso faz com que o desenho das identidades seja complexo e variável, o que é aplicável às expressões culturais, como é o caso do cinema de Woody Allen.
Woody Allen é um crítico liberal de uma cultura administrada pela indústria 300 hollywoodiana. Sua reconhecida autoridade como produtor e diretor é exercida a partir de si mesmo e de sua familiaridade com a psicanálise, deixando como manifesto o traço judaico que o une tanto às teorias da produção cinematográfica quanto às teorias da recepção dos produtos culturais, filmes nos quais declara suas preocupações fundamentais sobre a vida e a morte, a civilização, as mulheres, a solidão e a existência.
Seu juízo aponta para a ideologia presente no discurso cinematográfico. Dos costumes e tradições procura resgatar aquilo que é recuperável, ou seja, por meio da análise da vida cotidiana desmitifica as relações humanas e, nessa análise do cotidiano, detectam-se formas de domínio às estruturas socioeconômicas prevalecentes na atualidade. A atuação diária, o ritual instituído e os costumes transmitidos constituem o veículo de expressão ideológica, isto é, a internalização das normas, a legitimidade da lei, a ordem e a garantia da sobrevivência das concepções do mundo. A ironia de Woody Allen vai contra a coisificação e a alienação, o superficial e o desnecessário. Por essa razão, vale a pena percorrer a sua trajetória que vai do cinema como um todo universal e artístico às partes que representam seu estilo e seu reconhecimento social dentro da cultura midiática e multiculturalista.
Cinema e a filmografia de Woody Allen
A proposta multicultural de Woody Allen é policêntrica, ou seja, tem vários centros de direção e decisão no que se refere a sua cinematografia. Esse policentrismo enfatiza os pontos conflitivos da cultura contemporânea expressa na sua cultura de origem, no eurocentrismo e nos “cinemas nacionais”, os temas mais candentes do multiculturalismo. Para o multiculturalismo o cinema é um ponto de conflito cultural no qual se impõem esses modelos que dizem respeito à diversidade cultural. Para isto, oferecem-se uma série de meios e pontos de vista críticos para enfrentar a teoria, a análise e a história do cinema, abordados na sua relação com a história do poder social e, desde aí, propõe-se uma crítica ao poder cultural e social dominante. Nesse sentido, trata-se de definir, em termos culturais, uma posição dos “frágeis” no cinema de Woody Allen, que aparecem como protagonistas e apostar em uma história compartilhada e conflitiva, aceitando que as identidades são múltiplas, instáveis e historicamente determinadas.
A partir desses princípios, Woody Allen aparece como diretor e realizador de uma vasta produção na qual critica tanto o cinema hollywoodiano quanto o eurocentrismo dos 301 filmes da chamada “indústria cultural”, dando atenção às minorias da diáspora. O tema do multiculturalismo é de uma ressonância profunda, uma vez que explora a solução para sua crise criativa e a de seus personagens na Europa. Esgotando-se o suposto privilégio da sua carreira nos Estados Unidos, pois o valor mercadológico de sua idiossincrasia como diretor e ator era a garantia de que poderia fazer filmes com total liberdade criativa no Velho continente (Soares, 2013, p. 81-97). Essa fase europeia converte-se em uma peregrinação em busca de produtores europeus interessados em financiar seus filmes em um momento de crise aguda do mercado norte-americano e mundial.
Allan Stewart Königsberg, mais conhecido pelo nome artístico de Woody Allen nasceu no dia 1 de dezembro de 1935, no Brooklyn, Nova Yorque. Quando criança estudou por oito anos em uma escola hebraica, dada sua origem judaica que ficará patenteada na maioria de seus filmes de tom autobiográfico. Desde jovem Allen desenvolveu um certo interesse pelo teatro, pelo cinema e pela música. No início da sua vida profissional, aos 15 anos, começou a escrever piadas para um jornal local, fato que o leva a escrever para talk shows. Pouco tempo depois, estreia seu próprio show de stand-up. Com o humor, o diretor faz uso da comicidade para derivar em uma forma de entretenimento e de comunicação em toda a sua trajetória cinematográfica.
Seu trabalho no cinema é conhecido e reconhecido, dirigiu mais de 50 filmes. Ele também tem um trabalho consistente assinando 76 roteiros de cinema e atuando em 44 filmes, entre outros feitos profissionais dentro do mundo do entretenimento.
Entre os estudos a respeito da obra de Woody Allen, destaca-se o de seu principal biógrafo Eric Lax (2009), que sinaliza características marcantes do cineasta no início que ficariam conhecidas ao longo de sua obra como a visão cômica a respeito da vida cotidiana e política, valendo-se de uma linguagem culta e acessível a todos os espectadores. Uma de suas grandes ambições era, segundo Lax, se converter em roteirista, salientando essa tendência literária de sua produção e não a técnica como o fizeram Copolla, Scorsese e Spielberg, entre outros da sua geração. Isto se deve à ênfase dada aos diálogos, pois é ele mesmo quem os escreve.
O crítico cinematográfico Richard Schickel (2004) atribui um valor intrínseco às próprias respostas de Woody Allen as suas entrevistas. Dos filmes, Schickel extrai muitas das frases que popularmente se atribuem a ele, sendo a partir dessa estrutura pela qual o filme oferece passo a passo detalhes de sua carreira, desde aquelas divertidas do princípio até seus últimos lançamentos. Outro crítico contumaz à filmografia do diretor é Vittorio Hösle (2002) 302 que destaca que tanto Aristófanes quanto Allen são testemunhas da dissolução da religião que durante anos tinha sido o fundamento da cultura: o politeísmo grego e o monoteísmo judaicocristão. E se Aristófanes ria dos deuses, agora o cineasta nova-iorquino ri de Deus. Em tempos de insegurança, a comédia e o humor pode compartilhar com os filósofos a tarefa de colocar em questão convicções fundamentais de sua época (HÖSLE, 2002, p. 117). Contudo, o humor não é apenas concebido na sua função crítica, também é considerado como uma forma de liberar tensões e inibições que provocam os mal-estares da cultura contemporânea.
Com acrítica das décadas que vão dos anos de 1970 a 1990, a figura vulnerável de Woody Allen converteu-se na principal característica dos seus protagonistas, que o próprio Allen interpretava. Baixo, magro e míope transformou-se em um gênio do cinema e um dos maiores cronistas da vida nova-iorquina do século 20, conforme comentários do jornalista brasileiro Ruy Castro (2006, p. 359) a respeito dos sonhos de Woody Allen descritos na biografia de Lax, autorizada pelo diretor, uma história que Woody gostaria que fosse oficial, mesmo se tratando de um gênio tímido, inseguro e neurótico (RIBEIRO, 2014).
Nessa linha, Luiz Bolognesi (2009, p. 148) acredita que a obra cinematográfica de Woody Allen seja a adaptação literária de Freud para o cinema, sendo a identidade judaica central no pensamento psicanalítico. Assim como o humor, repressão e memória, como afirma o crítico Harold Bloom (2012), essa questão vem ao encontro do tema do multiculturalismo abordado neste artigo porque se refere ao paradoxo da identidade que é, em última instância, uma mistura que pode ser observada em vários filmes.
Como diretor Allen é um dos cineastas mais produtivos e premiados de nosso tempo. Até 2015 ele já havia sido indicado vinte e quatro vezes para o Oscar dos quais ele recebeu os prêmios quatro vezes pelos filmes: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Anny Hall) de 1977 com os prêmios de melhor diretor e melhor roteiro original, Hannah e Suas Irmãs (Hannah and her sisters) por melhor roteiro original e Meia-noite em Paris (Midnight in Paris) de 2012 novamente ele ganhou como melhor roteiro original.
Lipovetsky afirma em A era do vazio (2005, p. 28) que o humor é uma chave essencial para compreender o mundo, que a sociedade contemporânea pode ser definida como fundamentalmente humorística e que o humor é um componente de máxima importância nessa dita sociedade. O fenômeno não pode ser circunscrito à produção expressa dos signos humorísticos, ainda que seja no nível da produção de massa; o fenômeno designa o devir inelutável de todos os significados e valores, desde a cultura até o político. Nessa linha,
Woody Allen é um grande humorista porque tem feito filmes dramáticos, sem um “sentido 303 trágico da vida”. “Rir para não chorar” é a essência do humor judaico, tradição à qual pertence por seus ancestrais russos, e que ele aplica nos seus filmes desde o começo de sua carreira e em toda a sua trajetória como diretor, realizador e roteirista.
Em enterevista a Richard Schickel (2004/2010), Allen confesa: “cada cem anos, você sabe, é como se alguém desse uma descarga no banheiro e de pronto todo o planeta mudasse”. “Todo tipo de gente que te preocupa agora e todos os problemas que tens; todos os terroristas e essa gente que te dá dor de cabeça e as relações com as mulheres que te fazem suspirar, e os maridos que têm abandonado a suas esposas”. “De tudo isso, passado o tempo, não resta nada”.
O humor e a ironia veiculados através da linguagem cinematográfica de Woody Allen partem da noção de ironia como uma afirmação de algo diferente do que se deseja comunicar, na qual o emissor deixa transparecer uma afirmação contrária por meio do contexto situacional ou da entonação, para mostrar como a estratégica irônica produz humor e crítica social.
São os filmes Ponto Final – Matchpoint (2005); Meia noite em Paris (2011); e Para Roma com amor (2012) que servirão para o rastreamento da noção de multiculturalismo, convertido em objeto de estudo deste trabalho. A escolha dos filmes deve-se ao reconhecimento da fase mais promissora do diretor, às experiências de vida pessoais nessas culturas e ao caráter cosmopolita das capitais que servem de referência ao mundo ocidental. Tanto o reconhecimento da diversidade cultural presente no mundo contemporâneo quanto a crítica de Robert Stam ao eurocentrismo servem de referenciais teóricos para a análise desses produtos culturais que fazem parte da filmografia do cineasta estadunidense.
Ponto Final – Matchpoint começa com um saque de tênis que bate na rede e uma locução em off masculina dizendo: “O homem que disse “Eu prefiro ter sorte a ser bom” entendeu o significado vida. As pessoas têm medo de admitir como grande parte da vida dependente da sorte. É assustador pensar que muitas coisas estão fora do nosso controle. Há momentos em um jogo em que a bola bate na parte superior da rede e atinge o topo, e por um milésimo de segundo pode ir para a frente ou cair para trás. Com um pouco de sorte, ela vai para a frente e você ganha ... ou talvez não, e você perde”. Está locução em off é a voz do extenista profissional que atua como instrutor em um dos clubes mais exclusivos da sociedade londrina, Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers), personagem principal do filme, amante da ópera e leitor de Dostoievski.
O filme aborda a alta sociedade inglesa e suas relações com outras culturas, através de 304 relacionamentos com personagens americanos e irlandeses. A obra é inspirada no livro Crime e castigo, de Dostoievski, que é envolvido durante praticamente toda a obra pela ópera na voz de Enrico Caruso.
O segundo filme da seleção é Meia noite em Paris, escolhido por apresentar a relação entre as culturas americana e europeia, mais especificamente a francesa. Começa e termina no mesmo lugar, nas ruas de Paris. Ele trata do relacionamento entre Gil (Owen Wilson), um jovem escritor de roteiros para Hollywood desiludido com o seu trabalho por acreditar que ele é superficial e mecânico, e Inez (Rachel McAdams), uma jovem fidalga. O casal, acompanhado de um casal de amigos e dos pais de Inez, está em uma viagem turística précasamento por Paris.
Gil está em uma crise existencial e mistura a realidade com o sonho durante todo o filme. Em seus sonhos, ele volta para Paris nos anos 20 e convive com diversas figuras culturais chaves que viveram em Paris, como Zelda Fitzgerald, Scott Fitzgerald, Cole Porter,
Ernest Miller Hemingway, Picasso, entre outros. Ele chega a uma das passagens a voltar para Belle Epoque onde encontra com Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec-Monfa, Eugène-Henri-Paul Gauguin e Edgar Hilaire Germain Degas.
Em seus sonhos, Gil também faz descobertas sobre a vida pessoal e amorosa, além de se deparar com a verdade na qual todas as gerações sofrem com a nostalgia, acreditando convictamente que as gerações anteriores tiveram uma vida mais feliz e animada. O seu relacionamento entra em crise, a dúvida que Inez tinha torna-se uma certeza absoluta. Já a cidade de Paris aparece discretamente como pano de fundo do enredo, suas ruas são retratadas constantemente, Notre Dame, Museu Rodin, Rio Sena e outros pontos pitorescos são aparições constantes do filme.
Para Roma com amor gira em torno de diversas histórias românticas e usa a cidade de Roma como protagonista, sendo apresentada toda a sua arquitetura, cultura e riqueza histórica durante todo o filme. Um aspecto importante é que, apesar de o filme ser constituído por quatro histórias que se passam na cidade, elas não se cruzam, e tão menos existe uma preocupação cronológica dos fatos.
Em Para Roma com amor, também se encontra a relação de diversas culturas interagindo entre si, já que os personagens apresentados têm relacionamentos e situações fora de seus contextos culturais esperados. Entre os personagens estão um americano que convive com um italiano, uma meretriz que tem a oportunidade de frequentar uma festa da alta 305 sociedade romana, e até homem de classe média e pai de família que se torna uma celebridade instantânea.
Com isso podemos observar que os três filmes selecionados têm como assunto o tema multiculturalismo. Os elementos culturais e seus aspectos são apresentados por focos distintos direcionados para os personagens, tendo como pano de fundo as grandes capitais europeias, apresentadas como modelos da civilização ocidental.
Traços multiculturais nos filmes escolhidos de Woody Allen
O filme Ponto Final – Matchpoint, do diretor Woody Allen, logo em seu início, demonstra traços multiculturais que estarão presentes em toda obra. Se atendo apenas à abertura, os traços multiculturais identificados ficam por conta da trilha sonora com a ópera italiana de L´elisir D´amore: Uma Furtiva Lagrima, de Gaetano Donizetti, cuja versão de Erico Caruso embala o filme. Como imagem inicial, a obra abre com uma partida de tênis, esporte que mantém uma estreita relação com as elites, além de incentivar a competitividade não apenas dos praticantes, mas também dos mais de 60 países que recebem as competições todos os anos do torneio ATP Word Tour (Campeonato Mundial de Tênis).
Ainda na abertura de Ponto Final – Matchpoint, descobre-se a locução inicial com o texto que trata de sorte, assunto carregado de significados dentro da cultura judaica que, por sua vez, é uma característica presente nos filmes de Woody Allen, dada sua origem hebraica. A sorte é um tema universal tratado nos mais distintos níveis do conhecimento humano, como religião, ciência, numerologia, jogos e demais. É feita por um Irlandês que acaba de se mudar para Londres para viver e trabalhar como instrutor de tênis, profissão que ele mesmo já havia exercido em Marbella, Espanha, e em Sardenha, Itália.
Já no filme Meia Noite em Paris, a abertura tem como trilha sonora a música de Si tu vois ma mere, de Sidney Bechet, clarinetista, saxofonista e compositor de Jazz americano nascido em Nova Orleans em 14 de maio de 1897. Ao fundo das cenas, vemos uma cidade Europeia com carros de comercialização mundial como Mini Cooper, Smart, Volkswagen Passat, entre outros. Ou ainda imagem do famoso Cabaré Moulin Rouge, este que está ligado diretamente ao universo do entretenimento voltado às classes sociais abastadas que costumam manter o consumo conspícuo. O Moulin Rouge ostenta em sua fachada um moinho, sabe se que os moinhos de vento, tem sua origem por volta do século V, no Irã com a finalidade de produzir farinha de trigo. Já a cor vermelha da luz do moinho é sinônimo de meretrício. O uso 306 da luz vermelha em prostíbulos se deve aos antigos guardas ferroviários norte-americanos, que usavam uma lanterna com luz vermelha para sinalizar aos maquinistas, porém, à noite, quando esses guardas iam a uma casa de tolerância, eles deixavam a luz na porta das casas, com a finalidade de demonstrar onde estavam, assim, caso alguém precisasse dos policiais, saberiam onde encontrá-los.
Um traço multicultural que não passa despercebido é o Arco do Triunfo de L´Étoile
(Arc de Triomphe de l’Étoile), em Paris, um dos elementos que também aparece na abertura. Estrutura arquitetônica presente em praticamente todo o mundo, os arcos do triunfo ou arcos romanos são usados há milhares de anos pelas mais distintas civilizações e hoje são marcos históricos do patrimônio urbano. Atualmente, os arcos estão presentes em: Roma (Itália), Berlim (Alemanha), Nova Yorque (Estados Unidos), Washington D.C. (Estados Unidos), Bucareste (Romenia), Pionquiangue (Coreia do Norte), Cidade do México (México), Mumbai (India), Vientiane (Laos), Bagda (Iraque), entre outros tantos espalhados pelo mundo.
Não passa em branco a imagem do museu do Louvre (Musée Du Louvre) com sua inconfundível pirâmide de vidro, remetendo a África setentrional, mais especificamente ao Egito.
Outros traços multiculturais importantes nessa abertura são o Rio Sena, com o famoso Bateau Mouche, ou ainda os parques arborizados de Paris, elementos naturais presentes praticamente em todas as capitais mundiais. Para fechar as referências multiculturais da abertura do filme temos a imagem de um centro religioso (igreja) como axis mundi da cidade de Paris. Centros religiosos, independentes se são cristãos, judeus, mulçumanos, xintoístas, budistas, zoroastras, hinduístas, entre outras religiões, sempre se prestam a ser o ponto central ou até mesmo de fundação das cidades cosmopolitas.
Para Roma com Amor abre o filme com uma música que está entre uma das mais emblemáticas e difundidas da cultura italiana, Nel Blu Dipinto Di Blue, de Domenico Modugno, cuja letra trata de um sonho que nunca mais vai acontecer, fala sobre uma felicidade desmedida, e usa a cor azul em duas situações diversas, uma dizendo que se pinta as mãos e o rosto de azul e outra falando do céu azul. A música reforça os estereótipos sobre a cultura e a sociedade italianas. Já a cor azul, na Itália, é símbolo da família real italiana.
Na sequência entra a locução de um policial de trânsito que diz: “Desculpe espero que vocês me entendam, eu sou de Roma, meu trabalho, como podem ver, é ter certeza que o trânsito ande muito bem. Eu fico aqui e vejo todas as coisas. Vejo todas as pessoas. Vejo a 307 vida. Nesta cidade tudo é uma história. Estão vendo aquele homem ali. Ele é romano. Michelangelo”. Dessa forma, é apresentado um dos personagens que vai indicar as praças e pontos turísticos de Roma a uma turista.
O policial de trânsito é uma figura presente em todas as capitais mundiais. Já o discurso do policial se encaixa em qualquer grande cidade, já que o trânsito não é exclusividade de Roma, bem como a onipresença da vigilância que o mundo moderno oferece com as câmeras de monitoramento no alto dos postes e prédios, que observam tudo e a todos.
O guarda está de frente para a Praça Veneza e o Monumento a Victorio Emmanuel II (La piazza Venezia et le monument à Victor Emmanuel II), patrono da unificação italiana de 1861, unificação esta, que recolocou a Itália entre as grandes nações europeias da época. Na atualidade os italianos chamam o prédio de monumento ao bolo, referindo-se a um bolo de casamento, traço também presente nas mais diversas culturas.
Uma das grandes contribuições de Woody Allen para o cinema de autor, no qual o diretor tem um papel importante ao realizar sua obra à margem das pressões e limitações que implica o cinema dos grandes estudos comerciais é a exploração do multiculturalismo como um conceito que coloca o cinema como lugar de discussão dos temas que configuram o imaginário econômico, político e cultural da sociedade contemporânea. O multiculturalismo, assentado na base da diversidade de culturas que fazem parte dessa sociedade, o posicionamento ideológico do diretor e realizador norte-americano, assim como seu estilo, refletido na sua trajetória filmográfica, são os componentes teóricos sobre os quais este artigo tratou, com vistas a uma análise da qual se desprenderam as categorias necessárias para a interpretação dos filmes escolhidos para esse propósito.
O estilo de Woody Allen de produção responde à sua trajetória pessoal e ao destino de seu povo de origem relacionado quase organicamente com a Sétima Arte. Toda sua filmografia, às vezes autobiográfica, revista os episódios mais contrastantes da cena cultural atual, trazendo à tona a ironia como recurso linguístico e visual capaz de dar movimento a cenas relacionadas com os costumes e hábitos do cidadão comum nas práticas do esporte, do turismo, da gastronomia e, sobretudo, nos modos de configurar seus comportamentos e subjetividades a partir das experiências ligadas à arte e ao consumo propostos pela indústria cultural.
Os subúrbios de Manhattan, Roma, Paris e Londres, entre outras grandes cidades do mundo, foram escolhidos para ser cenário da obra cinematográfica de Woody Allen desde a apropriação espacial que se transforma em um pretexto para falar da paisagem, dos seus 308 habitantes, dos hábitos e costumes até a pluralidade das origens de imigrantes. A filmografia do diretor expressa como o multiculturalismo faz parte da realidade, um dado de informação que funciona como uma espécie de moeda de troca ou de passaporte para viajar na trama dessas e de muitas outras ficções propostas na tela.
Woody Allen aborda um multiculturalismo crítico na base de uma linguagem irônica, mantendo sua postura liberal e estilo erudito, direcionados para um público seleto. Sob esses princípios, o tema do multiculturalismo é visto como um fenômeno a ser explorado, segundo Robert Stam, pelo viés da diversidade cultural e pela crítica ao eurocentrismo, sendo a primeira opção considerada até aqui.
Nessa linha, aplicaram-se três categorias para a análise dos filmes escolhidos: o contexto multicultural, que apresenta a diversidade cultural manifestada pelos personagens do filme, seja através de sua origem ou de costumes; a dialética intercultural que, nos filmes da fase europeia de Allen, é bem definida com personagens da cultura estadunidense que viajam à Europa com algum propósito; e a crítica do diretor que vem à tona de forma indireta, como um apelo ao espectador para avisá-lo sobre os fenômenos sociais que afetam o mundo. A partir desse procedimento os filmes foram interpretados, procurando indagar as motivações morais, políticas e estéticas que levaram Woody Allen a produzir e representar nos três filmes a riqueza multicultural na sua obra cinematográfica.
As cenas iniciais de Ponto Final – Matchpoint concentram-se no primeiro encontro do protagonista de origem irlandesa, instrutor de tênis de um clube frequentado pela alta sociedade londrina, que havia sido convidado a um encontro familiar. Em um jogo de pingpong conhece uma estadunidense aspirante a atriz, noiva do herdeiro da família Hewett. Agressividade, sedução e confiança presunçosa pairam no ar da sala de jogos da família. De práticas excêntricas, como a caça, o chá na biblioteca ou os passeios pelo jardim, a família apresenta aspectos tradicionais da cultura inglesa ancestral que o diretor mantém no roteiro, sobretudo na hora em que começa a aparecer a voz matriarcal que critica a noiva do seu filho, procurando fazê-la desistir de seu “sonho americano” de ser atriz.
A omissão dos homens da família e do visitante é eloquente a respeito da situação em que a mulher mais velha e com poder dá bronca na jovem que deseja interpretar. Fora desse âmbito familiar, ambos os protagonistas se encontram para conversar sobre seus passados, antes e depois de uma entrevista de emprego da imigrante estadunidense. Esta evidencia os verdadeiros interesses de ingressar na alta sociedade inglesa, por meio do relacionamento 309 amoroso.
Outro momento marcante é o do protagonista conversando com um amigo de profissão, é confessado a este a crise de consciência entre o amor conservador e o amor liberal; entre o econômico e o político; entre a cultura inglesa e a cultura estadunidense, aquilo que as duas mulheres na vida do protagonista representavam. A discussão entre os amantes na clandestinidade do subúrbio traz à tona a gravidez da mulher que pressiona e interpela de forma insistente, exacerbando justamente o homem que tem como livro de cabeceira a obra de Dostoievski. Da realidade da delegacia ao sonho revelador da tragédia, o espectador acorda para o desafio que representa julgar a ação do protagonista sob o ponto de vista da ética ou da moral de um crime sem castigo.
Meia Noite em Paris é protagonizada por um roteirista de Hollywood que vai à capital da França, em busca de inspiração, junto com sua noiva e família, todos provenientes da cultura estadunidense. Quase todas as cenas, assim como as do casal de amigos que encontram na cidade, são filmadas de dia, deixando entrever o posicionamento político de ultradireita da família da noiva que incomoda o aspirante a escritor.
À noite, em uma hora emblemática para o imaginário individual e coletivo, o protagonista empreende uma viagem à década de 1920, na qual “Paris é uma festa” e à qual comparece todo tipo de artistas, entre eles, Hemingway, cujos diálogos encarnam o espírito de um dos escritores da “geração perdida” – escritores estadunidenses exiliados em Paris no período de Entre guerras –, chamada assim pela crítica literária Gertrude Stein.
No meio dessa festa de encontros e desencontros, o protagonista conhece Adriana, por quem se apaixona. O conflito se dá entre a mulher sensível do passado e a mulher fria do presente que sofre de francofobia. O processo de reprodução junto à musa dos artistas de vanguarda permite ao protagonista entender que é uma ilusão pensar que “todo tempo passado foi melhor”. De volta ao presente, o protagonista vai a busca de informações a respeito de sua identidade literária, uma vez que no próprio rio Senna ajuda Zelda Fitzgerald a abandonar a ideia de suicídio. Dessa forma, ele desiste de Adriana que deseja viver na Belle Époque o sonho de ser figurinista.
No meio de todo esse enredo temporal, há a descoberta no presente dos bulevares de Paris, de um livro que havia registrado a história de um escritor estadunidense, impelindo o mesmo a voltar para receber a crítica matricial de Gertrude Stein que o adverte, pela indicação do amigo Hemingway, que estava sendo traído. Sem ter um final feliz, o roteirista agora escritor cruza a ponte e nela encontra a jovem da loja de discos, que já conhecia seus gostos 310 musicais, oriunda da cidade de Paris. Ele a convida para passear sob a chuva, e ela consente. Fim do enredo, sem ser Meia Noite em Paris.
Para Roma com amor traz no seu enunciado de abertura um travelling pela Piazza Venezia. Trata-se de um roteiro a respeito de quatro histórias de amor, cujo protagonismo se alterna entre personagens romanos e estadunidenses, acontecidas na capital italiana. A mais emblemática dessas histórias é a protagonizada pelo próprio Woody Allen que interpreta um diretor de ópera estadunidense aposentado, que está de visita à cidade com sua esposa, uma psicanalista, para conhecer o noivo romano e advogado de sua filha.
O episódio mais surreal é representado pelo pai do noivo, um tenor de ópera que canta apenas no chuveiro, seu ofício cotidiano é a de ser coveiro. É a família estadunidense ligada aos pressupostos do consumo de bens culturais tangíveis versus a família romana engajada com os bens inatingíveis da classe trabalhadora.
A outra história do enredo é a de Jack, um jovem arquiteto estadunidense que mora com a sua namorada. Eles recebem a visita de Monica, a jovem atriz amiga da namorada. John, um arquiteto também estadunidense completa esse núcleo com uma presença ambígua, representando uma espécie de “alter ego” de Jack. Mais uma vez o contraste, agora de geração e de interesses arquitetônicos, é discutido tanto no plano emocional quanto no profissional.
Outra história é interpretada pelos recém-casados romanos advindos do interior em busca de melhores oportunidades de emprego. Ela, perdida, encontra sua estrela de cinema favorita; ele torna-se cliente, sem querer, de uma garota de programa que serve à elite de homens importantes de Roma. Por fim, o último núcleo dessas histórias, refere-se à figura de Leopoldo Pisanello, um italiano que de um dia para outro fica famoso, graças à falta de assunto da mídia e de toda a aparelhagem manipulatória montada para o entretenimento do público.
Sobre a crítica, os três filmes da “fase europeia” de Woody Allen deixam em evidência a ligação deste com um multiculturalismo crítico e um interculturalismo proposital, direcionado para um público conhecedor das situações vivenciadas no mundo globalizado. Nele, o consumo e o espetáculo transformam-se nos eixos que pautam o comportamento histórico, político, social e econômico dos cidadãos do mundo. A cultura contemporânea abraça o multiculturalismo como uma resposta a esse fenômeno de globalização sendo a única
saída aos impasses da tolerância e aceitação. 311
O pluralismo da ética e da moral assinalada em Ponto Final – Matchpoint possibilita olhar para a situação daqueles que vivem sob a ameaça das classes dominantes, conservadoras e protecionistas. Entende-se, a partir disso, que a condição do emigrante – e de todo e qualquer estrangeiro – responde à nobre querela da sobrevivência e do respeito às escolhas pessoais de cada “cidadão do mundo”, com tudo o que estas trazem como consequência. A superação da culpa e a subversão da tragédia são sem dúvida um desafio criativo para um multiculturalismo mais humano. Woody Allen ironiza as causas desses fenômenos no filme e traz ao mesmo tempo um jogo, cujos efeitos fazem sentir a cultura que reconhece as diferenças de classe, de gênero e de direito social.
O tempo intersticial entre o imaginário individual e social, apontado em Meia Noite em Paris, favorece a internalização de um multiculturalismo crítico da arte em todas as suas formas e gêneros perante a globalização dos mercados, oferecendo alternativas ao prazer e ao gozo dos sentidos da produção da Indústria Cultural. Este é um dos desafios do cinema multicultural que passa pela necessária revisão da proposta Europeia e Estadunidense, abrir-se aos cinemas nacionais e à produção fílmica independente, dando ao espectador na sua diversidade um papel protagônico. Woody Allen advoga a favor de uma renovação do cinema de Hollywood não pela via da imitação do cinema europeu, e sim por uma revitalização da arte.
No filme Para Roma com amor, há uma desmitificação ou esvaziamento que a mídia tem colocado na recriação do mundo do espetáculo. Contra o efêmero e o passageiro, o protagonismo das identidades culturais segue sendo vigente para alguns produtores de cinema como Woody Allen que, por meio de sua crítica irônica dos costumes, reforça esse valor das representações filmográficas que redimem a falta de sentido, a inconsistência e a frivolidade dos novos constructos da mídia, na linha da pluralização das próprias teorias do cinema. Mais uma vez, o diretor nova-iorquino oferece uma saída aos impasses da realidade: o humor como forma de representação que liberta o espectador da tensão e lhe provoca uma catarse.
Conclusões
O multiculturalismo representa uma base disciplinar na qual o cinema assenta as bases de sua produção. Filmes são produtos da Indústria Cultural capazes de caracterizar a obra de um diretor como Woody Allen, que encarna a própria situação multicultural, saindo de Nova 312
Iorque para assumir o projeto de filmar na Europa. Guiado por interesses de mercado, na busca de patrocinadores, o diretor critica a produção hollywoodiana por não patrocinar seus roteiros e manipular seus enredos.
O multiculturalismo entende que a cultura estadunidense é uma continuidade da visão eurocêntrica que se cristalizou no mundo ocidental. Nessa “fase europeia”, Allen critica Hollywood afirmando que seu ponto de referência é a cultura de Nova Iorque, sobretudo, a de Manhattan que lhe confere identidade e a projeta ao mundo. Na Europa percebe o reconhecimento de sua obra e sente-se com liberdade para tratar os temas que o inspiraram, os conflitos que o desafiaram e as soluções criativas para os impasses multiculturais.
O multiculturalismo assim emerge como um fenômeno do pluralismo social, cultural e econômico que guarda estreita relação com a própria trajetória dos Estudos Culturais, corrente que não só cunhou o conceito, mas também deu vida ao mesmo. A fonte mais originária dos estudos sobre a cultura encontra-se na literatura, da mesma forma que o cinema de Woody Allen a utiliza com o propósito de mostrar os pormenores e determinantes da “condição humana” em toda a extensão que os gêneros, a língua e a imaginação alcançam.
Nessa mesma linha, a diversidade cultural converte-se em um instrumento normativo contra a homogeneização da cultura, promovido pelas mídias, a revolução tecnológica e o monopólio dos meios de comunicação social, tão contestados pelos Estudos Culturais. Woody Allen recria nos seus filmes a diversidade cultural e o absurdo desse projeto de igualar as pessoas sob a consigna do mercado, havendo sempre na trama dos filmes uma brecha para o humanismo e a humanização.
Dentro do contexto multicultural, o tema da migração não aparece de forma tão explícita na seleção, a não ser na figura protagônica de Chris Wilton, de Ponto Final – Matchpoint, que busca melhores condições de vida e sobrevivência em um país vizinho, em uma cidade cosmopolita como Londres. Já a imigração é explorada no que se refere à questão continental, mostrando com isto que a crítica da cultura só é possível quando existe distanciamento.
O fenômeno da globalização é determinante para a crítica de Woody Allen a partir de sua própria condição de autor e produtor, das escolhas das cidades capitais inseridas dentro do conceito do cosmopolitismo, uma idiossincrasia imperante na Europa, que tem convertido as mesmas em ícones de um espetáculo que pretende homogeneizar esses espaços urbanos. O poder econômico que tem como objetivo homogeneizar a cultura e convertê-la em mercadoria, também atinge o cinema no seu afã de expressar e representar a diversidade 313 cultural do mundo. Vale salientar que Allen não se preocupa tanto em tratar as causas de uma crise, mas sim os efeitos que estas são capazes de produzir.
Um problema que apresenta a obra de Woody Allen é deixar e manifesto o isolamento da informação a respeito do seu contexto social, estrutural. Tal isolamento se deve à personalização dos fatos sociais e à subjetivação dessa informação, na base do acumulo e do excesso, fenômeno que recebe o nome de human interest. O próprio Allen se diz desinteressado no social ou político, seu verdadeiro interesse reside na psicologia do indivíduo. Por isso, para ele não importa a classe social à qual pertencem os personagens dos seus filmes, lhe interessa as emoções e a capacidade de se comunicar entre eles. A falsa consciência ditada e impregnada pela mídia ‒ fake news ‒ é assimilada pelos seres humanos que a processam e logo se adaptam de maneira conformista à estrutura social. A comunicação pertence à esfera da produção, armazenagem e divulgação da informação e do entretenimento, sendo o cinema fonte de conhecimento e lazer no contexto da indústria cultural.
Para esses paradigmas sociais, consumo e espetáculo, criaram-se categorias de análises que pudessem contextualizar a narrativa ficcional em torno do fenômeno multicultural e o contexto das culturas convocadas a participar do enredo no filme; a dialética proposital e de interesse de Woody Allen na oposição, conflito originado pela contradição entre princípios e ações, que na prática mostram o caráter do verdadeiro protagonismo nos filmes; e a crítica do diretor capaz de examinar e avaliar comportamentos e costumes sociais para oferecer referentes de identidade e de identificação cultural para seus espectadores.
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