Ensaio
Resumo: Este ensaio tem por objetivo apresentar uma interpretação da obra Esperando Godot, de Samuel Beckett, à luz da teoria política de William Connolly e da filosofia de Friedrich Nietzsche. O ensaio procede a uma análise dos personagens, dos diálogos e de alguns temas centrais abordados na peça, como as problemáticas do tempo e da razão. Para a análise, são mobilizadas algumas ideias centrais do pensamento de Connolly e Nietzsche, como as formulações sobre o niilismo, a tese da morte de Deus e a crítica às ontoteologias. Tomando o niilismo como tema central de análise, o ensaio sustenta uma interpretação de Esperando Godot como representação da espera pela realização do projeto moderno que visa à abolição de todo e qualquer sofrimento humano.
Palavras-chave: Niilismo, William Connolly, Friedrich Nietzsche, Samuel Beckett.
Resumen: Este ensayo tiene por objetivo presentar una interpretación de la obra Esperando a Godot, de Samuel Beckett, a la luz de la teoría política de William Connolly y de la filosofía de Friedrich Nietzsche. El ensayo procede a un análisis de los personajes, de los diálogos y de algunos temas centrales abordados en la pieza, como las problemáticas del tiempo y de la razón. Para el análisis, se movilizan algunas ideas centrales del pensamiento de Connolly y Nietzsche, como las formulaciones sobre el nihilismo, la tesis de la muerte de Dios y la crítica a las ontoteologías. Tomando el nihilismo como tema central de análisis, el ensayo sostiene una interpretación de Esperando a Godot como representación de la espera por la realización del proyecto moderno que apunta a la abolición de todo y cualquier sufrimiento humano.
Palabras clave: Nihilismo, William Connolly, Friedrich Nietzsche, Samuel Beckett.
Abstract: This essay aims to present an interpretation of Samuel Beckett’s Waiting for Godot, in the light of William Connolly’s political theory and Friedrich Nietzsche’s philosophy. The essay proceeds to an analysis of the characters, dialogues and some central themes addressed in the play, such as the problems of time and reason. For the analysis, some central ideas of Connolly and Nietzsche’s thinking are mobilized, such as the formulations on nihilism, the thesis of the death of God and the criticism of ontotheologies. Taking nihilism as the central theme of analysis, the essay sustains an interpretation of Waiting for Godot as a representation of the waiting for the realization of the modern project that aims at the abolition of all human suffering.
Keywords: Nihilism, William Connoly, Friedrich Nietzsche, Samuel Beckett.
Introdução
Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better. BECKETT, 1980 Este ensaio, de estilo livre, tem por objetivo apresentar uma interpretação da célebre obra Esperando Godot, de Samuel Beckett, à luz da teoria política proposta por William Connolly, especialmente na interface das suas discussões e apropriações do pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche. William Connolly (1938-...) é um teórico político americano, influenciado pelo pensamento nietzschiano e pelo pós-estruturalismo. Apesar de pouco conhecida no Brasil – inexistem traduções dos seus trabalhos em língua portuguesa –, sua obra é amplamente discutida e influente no cenário internacional, o que explicita a relevância de introduzirmos o pensamento e as formulações de Connolly no debate acadêmico brasileiro. Connolly pode ser definido como um teórico não substancialista, que atribui centralidade ao devir e às contingências na experiência humana e na política. O autor se vincula a uma proposta de democracia agonística, que reconhece o conflito como uma característica elementar e necessária da política. Suas discussões sobre o paradoxo da identidade/diferença (CONNOLLY, 1991), o pluralismo (CONNOLLY, 2005) e o secularismo (CONNOLLY, 1999) carregam as marcas do pensamento de Nietzsche, sendo influenciadas também pelo contexto de introdução do pensamento pós-estruturalista – como o de Michel Foucault e de Gilles Deleuze, dentre outros – nos Estados Unidos a partir da década de 1960. Connolly (1993) irá propor a utilização do pensamento de Nietzsche como uma “caixa de ferramentas”. A perspectiva agonista de Connolly se mostra bastante profícua para a análise de temas pertinentes à teoria política, à filosofia e à condição humana. O autor não irá se restringir ao contexto do pensamento de variados autores e, nesse sentido, irá utilizar o arsenal teórico nietzschiano para questionar as teorias políticas clássicas. É interessante o fato de Connolly não ser um assecla de Nietzsche, questionando o próprio filósofo alemão a partir de problemas relevantes da atualidade, o que possibilita, por consequência, uma problematização acerca da própria modernidade e da experiência humana no presente. Inspirado por esse espírito agonista, proponho-me a utilizar William Connolly e Friedrich Nietzsche como caixas de ferramentas para a análise da obra-prima de Samuel Beckett. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 319 Esperando Godot (BECKETT, 2005), foco da análise deste ensaio, foi publicada originalmente em 1952, sendo considerada uma obra clássica da literatura, e certamente o trabalho mais importante e conhecido do escritor irlandês e Nobel de Literatura, Samuel Beckett (1906-1989). Trata-se de uma peça de teatro, em dois atos. A trama se constitui nas desventuras de dois vagabundos, que esperam por um homem chamado Godot, que acaba por nunca aparecer. A espera por Godot representa uma parábola amoral e executa um questionamento voraz à condição humana. Escrita originalmente em francês, a obra carrega as marcas do contexto pós-Segunda Guerra Mundial, caracterizado pela desolação e pelo ceticismo em relação ao projeto racional de realização do bem-estar e da eliminação do sofrimento humano, através do progresso e do desenvolvimento da ciência e da técnica. Tratase de uma obra sobre a espera, ou melhor, sobre o dessentido da espera da plena realização humana. Esperando Godot é uma obra minimalista, que se constitui por meio de diálogos absurdos1. Beckett está vinculado ao teatro do absurdo e a correntes modernistas de sua época, e pode-se dizer que exerceu grande influência posterior na estética pós-modernista. Em Esperando Godot, paira a impossibilidade de qualquer representação da verdade ou da virtude em moldes clássicos e coerentes; a obra é permeada pelo nonsense, que a partir do absurdo cria o sentido, sempre em devir. A peça de Beckett, por mais que mínima e simplória, constitui-se como um veículo de intensidades e significações grandioso. Retornar a Esperando Godot, assim, pode nos auxiliar a pensar a experiência humana no presente, que aparenta nostalgia em relação a valores supremos e a princípios unificadores, e que ainda padece da influência de princípios teológicos. Nesse sentido, a partir de uma análise cuidadosa dos personagens e dos diálogos contidos na peça, este ensaio propõe uma interpretação de Esperando Godot como uma representação da espera pela realização do projeto moderno que visa à abolição de todo e qualquer sofrimento humano, tomando o niilismo – na acepção nietzschiana – como tema e objeto central. 1 Não obstante, a peça de Beckett articula uma série de referências filosóficas, por meio do absurdo e do nonsense, o que a torna ainda mais interessante para a análise neste ensaio. Dentre as referências, Beckett mobiliza Heráclito – “Nunca se desce duas vezes pelo mesmo pus” (BECKETT, 2005, p. 118) – e a máxima latina de São Tomás de Aquino – “Memoria praeteritorum bonorum” (idem, p. 178), ou seja, “o passado é lembrado para ser bom”. Sobre essa última referência, ver Voigt (2017, p. 129). As referências filosóficas mobilizadas na peça serão alvo de análise no ensaio, sempre que se mostrarem pertinentes. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 320
A peça
Esperando Godot é uma peça sobre a espera, a imobilidade, a repetição, a indecisão, o fracasso, o cansaço, a indefinição, a oscilação, o dessentido. É uma obra sobre o niilismo. Em vários momentos, a obra adquire um caráter meta-teatral, com os personagens se referindo aos seus diálogos como se estivessem, de fato, encenando uma peça de teatro. Os diálogos são interrompidos por silêncios, e a ação é freada pela imobilidade. Os diálogos são incoerentes e desconexos. As conversas se repetem. Os personagens constantemente procuram lembrar o que faziam ou do que falavam, mas, apesar de todo o esforço de concentração e rememoração, sucumbem ao esquecimento. Quando o diálogo se desenvolve momentaneamente, logo ele cai no vazio. “Vladimir: Isto está cada vez mais insignificante. / Estragon: Não o suficiente. Ainda.” (p. 138).2 Desde o início do primeiro ato, podemos perceber o dessentido que impera na experiência dos dois personagens principais, o par de vagabundos Vladimir e Estragon – ou Didi e Gogô, segundo os hipocorísticos que os próprios personagens evocam. Eles não têm o que fazer, e não conseguem agir. Todos os personagens demonstram fragilidade em determinado momento da peça, e costumam reclamar da solidão. Em Esperando Godot, Vladmir seria o personagem mais próximo de uma definição clássica de “humano”, isto é, aquele que conserva minimamente a memória, que sabe da necessidade de esperar por Godot. É provavelmente o personagem que mais sofre de angústia existencial. Estragon já é uma árvore, um vegetal. Se Vladimir é consciência, Estragon é o puro esquecimento. Estragon é um ex-poeta. Parece nunca se importar, e beira o cinismo. Ambos são vazios, ocos – como expressam as metáforas da bota e do chapéu. Didi e Gogô estão juntos há muito tempo. Às vezes pensam que seria melhor caso se separassem. Mas nunca se separam. Vladimir cuida de Estragon, e representa segurança para ele. Estragon constantemente apanha, é violentado. Mas Estragon consegue dormir, tem o sono leve. O sono é mais difícil a Vladimir. Os dois reclamam da vida, suplicam. Vigiam. Beiram a paranoia. Se xingam, e se reconciliam. Outros dois personagens, o par senhor-escravo, são Pozzo e Lucky. Eles entram sempre na metade dos dois atos. Pozzo é o dominante, aquele que tem poder, que possui 2 A edição considerada neste ensaio é da Cosac Naify (BECKETT, 2005), e todas as citações referem-se a ela, exceto quando indicado. O texto foi traduzido pelo crítico e professor de teoria literária da Universidade de São Paulo, Fábio de Souza Andrade, especialista em Beckett. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 321 escravos e que é seguro de si mesmo – até o momento em que fica cego, no segundo ato3. Assim, passa a depender de quem antes queria se ver livre, seu escravo. Pozzo adora o raciocínio lógico. Considera-se um homem feliz e superior. Tem alimentos, e um chicote. É autocentrado e egoísta. Pozzo encarna ora um tipo meio capitalista, ora feudal. As terras onde estão Vladimir e Estragon são dele. Lucky é seu escravo, sempre cansado, que nunca se defende. Lucky aceita plenamente sua condição de inferioridade. Ele carrega a mala e os pertences de Pozzo, e é amarrado e puxado por uma corda. Temos ainda um quinto personagem, o Menino, que nos dois atos anuncia a não chegada de Godot. Esse personagem funciona como uma metáfora da juventude e da vida perdida. Ao esperarem por Godot, dia após dia, Vladimir e Estragon se tornaram dois velhos vagabundos, vivendo uma vida de adiamento, de inação e de não realização. É muito significativo que a não chegada de Godot seja anunciada por uma criança. Quase de imediato, nos vem à mente uma associação à parábola do camelo-leão-criança formulada por Nietzsche (2011). Com base na leitura de Deleuze (1981) sobre Nietzsche, Voigt (2012) argumenta que: Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche narra a trajetória humana a partir da parábola do camelo, do leão e da criança. O camelo é aquele que carrega os fardos da sociedade sem questionamento; o leão é aquele que se nega e permanece nesta negação; a criança é a afirmação da vida. A Willst zu Machen (vontade de potência) é o desejo de vida, a aceitação e afirmação do eterno retorno do mesmo, do que não pode ser mudado. (VOIGT, 2012, p. 269). Se Lucky, o escravo, é uma representação ideal do camelo, isto é, do sujeito que carrega o nada e todos os fardos desnecessários – a mala que carrega, afinal, está cheia de areia –, a criança serve como uma metáfora do renascimento do homem. Na filosofia de Nietzsche, há uma proposta que visa restabelecer a inocência do vir-a-ser, representada pela metáfora da criança. O Menino diz aos personagens que Godot não virá. Talvez, isto signifique que seja inútil esperar pela eliminação do sofrimento existencial, que talvez seja o momento de agir, de se alegrar, de afirmar a vida e de reestabelecer a inocência e a coragem frente à vida. 3 Não é ocasional Pozzo ter ficado cego. As referências à cegueira na literatura grega clássica são frequentes. Na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, Édipo representava a consciência e a sabedoria; ao descobrir a verdade sobre sua relação incestuosa, acaba se cegando (SÓFOCLES, 2006). Em Esperando Godot, Estragon pergunta se Pozzo pode prever o futuro, agora que está cego. Pozzo diz que os cegos não têm noção do tempo, e que não se pode contar que ele esclareça nada. É uma clara menção – e inversão – do papel profético dos cegos na mitologia grega, como Tirésias na Odisseia, que é visitado por Odisseu no Hades, em seus esforços para encontrar o caminho de volta a Ítaca (HOMERO, 2011). Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 322 Por fim, alguns apontamentos sobre o cenário da peça. Ele se resume a uma árvore. Uma árvore seca, podre, sem folhas ou frutos, perdida na paisagem de desolação do pósguerra. Uma árvore que serve no máximo como plataforma de um suicídio – e até nisso falha. No segundo ato, a árvore está coberta de flores. Essa metáfora nos remete à esperança; uma esperança que, no entanto, não se realiza. Uma interpretação Vladimir e Estragon esperam Godot. A Godot, dirigem um tipo de prece. Uma súplica. Mas Godot não promete nada. Godot disse: Vladimir: Que precisava pensar mais. Estragon: Dormir sobre o assunto. Vladimir: Consultar a família. Estragon: Os amigos. Vladimir: Os agentes. Estragon: Os correspondentes. Vladimir: Os registros. Estragon: O saldo do banco. Vladimir: Antes de se pronunciar (p. 40-1). Isto, concluem Didi e Gogô, é normal. Nessa passagem e durante toda a peça, vemos menções alegóricas a elementos característicos da vida moderna, em toda sua pequeneza. Os personagens estão sempre preocupados com pequenos problemas, numa demonstração da importância atribuída às coisas desimportantes nos tempos modernos. O sofrimento e a angústia de Vladimir e Estragon são inflados pela imposição de morais, de regras, da burocracia e do sistema econômico, isto é, daquilo que Vaslav Nijinsky chamava de as “forças da morte”: “[...] valores, morais, pátrias, religiões e certezas privadas” (apud DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 452). Em vários momentos da peça, Beckett opera uma passagem do efêmero e do trivial para o existencial. Preocupações banais e pequenas admoestações de ordem cotidiana desencadeiam e se relacionam a um sofrimento muito maior, de ordem existencial e humana. É assim que podemos compreender várias passagens da obra: quando Estragon come a cenoura e diz que ela é igual à vida, isto é, que quanto mais se come pior fica; a bota de Estragon que lhe aperta e constrange; a corda no pescoço de Lucky que o deixou em carne viva; a preocupação de Pozzo com seus pulmões, quando fuma cachimbo; e assim por diante. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 323 Godot carrega o futuro de Vladimir e Estragon nas mãos. “Vladimir: [...] Pode ser que hoje à noite durmamos na casa dele, aquecidos, secos, de barriga cheia, sobre a palha. Vale a pena esperar, não vale?” (p. 44). Godot representa, assim, a eliminação do sofrimento existencial; estar com Godot é ver-se livre das contingências da vida. Godot representa a salvação. Godot é o futuro, a felicidade, a segurança, a promessa do projeto moderno. Mas Godot não deu certeza de que viria. Vladimir e Estragon esperam Godot até o anoitecer. A noite sempre demora a chegar. Mas para eles, não há nada a temer, basta apenas esperar. Se Godot não chegar, então decidirão o que fazer. Em certos momentos, Vladimir e Estragon querem ir embora, mas se lembram de Godot. Estragon chega a perguntar: “e se deixássemos para lá”? Mas Vladimir responde que Godot os puniria. Assim, os dois vagabundos sempre obedecem ao imperativo da espera e do seu suposto compromisso. Sempre estão no lugar e na hora marcados. Após longas esperas, Vladimir começa a se questionar: Vladimir: Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada? Que esperei Godot com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite? Que Pozzo passou por aqui, com o seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisso tudo?4 (Tendo pelejado em vão com as botas, Estragon volta a se encolher. Vladimir o observa) Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (Pausa) Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto dos nossos gritos. (Escuta) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha para Estragon) Para mim também, alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (Pausa) Não posso continuar. (Pausa) O que foi que eu disse? (p. 188). Nessa passagem, em que a vida na espera por Godot é equiparada ao adormecimento, Godot parece operar como uma metáfora para a morte. A vida adormecida é uma não vida; esperar Godot é ver a vida passar, não vivê-la, é uma condição de morte. Nesse perpétuo adormecimento, não se afirma a vida. Não acordar para a vida é, em certo sentido, estar morto. A morte, auxiliada pelo trabalho do coveiro com o fórceps, é um aborto da vida. O coveiro dá apenas o tempo “justo” para envelhecer, oferecendo uma quantidade limitada de tempo, que se esvai; mas não garante vivência, nem experiência. Como argumenta Andrade (2005), a própria natureza de Esperando Godot, marcada pela incerteza – diálogos sem consequência, indefinição de espaço –, gerou uma série de 4 Ao perguntar a quantidade de verdade que sua memória pode engendrar, o personagem Vladimir nos remete à inenarrabilidade da experiência, discussão que se tornou célebre a partir das formulações de Walter Benjamin (1994). Sobre esse ponto, ver Voigt (2017, especialmente p. 55). Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 324 leituras distintas da obra. “Houve quem buscasse um deus oculto em Godot; outros, uma eterna e absurda condição humana; outros ainda procuravam alusões mais diretas a um contexto histórico determinado” (ANDRADE, 2005, p. 9). Na minha leitura, a obra joga com todos esses elementos de forma interligada. Ela é profícua para uma análise filosófica da condição do homem, pois seu caráter dúbio e incerto estimula uma leitura livre da obra, tendo em mente que o quadro de referências e a estrutura da narrativa não estão fechados. Dito isso, podemos adentrar propriamente no objeto deste ensaio: a mobilização do pensamento de William Connolly e de Friedrich Nietzsche em uma leitura livre e não exegética da peça de Samuel Beckett. Não se trata, no entanto, de lutar pela definição verdadeira do que venha a ser Godot ou de uma tentativa de estabelecer uma interpretação definitiva da obra, mas valer-se da parábola sobre a existência humana representada pela peça para pensar as implicações existenciais e filosóficas da espera por Godot, isto é, da espera pela concretização do projeto moderno, pela instauração de princípios organizadores e valores absolutos, e pelo estabelecimento daquilo que Connolly definiu como “ontoteologias”5. Na minha leitura – seguindo a ideia de que o autor está morto (BARTHES, 2004) –, Godot é o futuro, é o progresso, é o sucesso, é a realização de todas as promessas da modernidade. Godot é a vida, ou melhor, a busca por sentido pleno e absoluto na vida; e assim, é também a morte, a válvula de escape dessa procura por sentido, que jamais se efetivará. Godot é a promessa de “Homem”, que se transforma em “húmus” – no sentido de adubo, mas também de excreção – após o ponto culminante do projeto moderno, na Segunda Guerra Mundial. O Menino da peça de Beckett é uma metáfora da juventude pintada com alguns retoques superegóicos: ele demonstra a passagem do tempo em virtude da espera inútil por Godot, enquanto lembra que ele virá amanhã; em outras palavras, o personagem atesta o dessentido na busca por sentido e o absurdo inerente à espera pela concretização de um projeto de “Homem” que não existe, não existiu e não existirá. Se parece bastante claro – e até mesmo literal – que Godot representa a eliminação do sofrimento existencial e, além disso, atesta o absurdo da espera da realização do projeto racional moderno6, é necessário que explicitemos de que forma Godot representa Deus. O próprio Beckett, em carta, teria afirmado que “[...] if by Godot I had meant God I would [have] said God, and not Godot”. (apud KNOWLSON, 1996, p. 412). Não obstante, a 5 A formulação de Connolly sobre a “ontoteologia” será explicitada a seguir. 6 Este ponto será analisado em maiores detalhes a seguir, quando os personagens de Beckett evocam o problema da razão. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 325 proximidade e a analogia entre as palavras Godot e God são bastante sugestivas, independentemente das alegadas intenções do autor. Todavia, é fato que Godot não opera como metáfora de um Deus no sentido religioso. Trata-se, antes, de um “Deus” secular. Godot é God se considerarmos – seguindo a célebre formulação de Nietzsche – a tese de que, apesar de Deus estar morto, a moral cristã continua influenciando a vida e o pensamento humanos. Godot é, assim, um Deus secular, sua expressão na razão, na crença no progresso e num princípio de sentido geral. Em outras palavras, Godot é o Deus representado pelo Iluminismo. Independentemente da intenção de Beckett, podemos sustentar que Godot representa um princípio único; não Deus, mas seu substituto secular, que ordenaria o mundo, atribuindo-lhe harmonia, sentido e propósito. Assim, Godot é uma “ontoteologia” no sentido proposto por Connolly (1993), isto é, uma concepção do mundo e do homem que – ainda que secular e até mesmo antirreligiosa – acaba por estabelecer um princípio organizador para a realidade, visando eliminar o sofrimento existencial humano. Segundo a formulação de Nietzsche, a morte de Deus não se trata da comprovação da sua inexistência, nem da sua negação. Deus morre e o homem toma seu lugar, tornando-se o centro da vida moderna. Matamos Deus, mas a tentativa de criar um princípio unificador e explicativo para a realidade permanece. Como mostra Connolly (1993), os empreendimentos para a definição da verdade são procedimentos necessariamente teológicos. Assim, a morte de Deus não implica o fim de concepções religiosas na vida e no pensamento. Os niilistas modernos ressentiriam o mundo e negariam Deus como um princípio organizador, mas buscariam outras formas teológicas de dar sentido, unidade e verdade ao mundo por meio da razão. (CONNOLLY, 1993). A tese nietzschiana da morte de Deus serviu para demonstrar que os filósofos não haviam percebido as consequências do declínio do cristianismo, e a correlata necessidade de abandono de qualquer modelo organizador ou pretensão transcendentalista. É nesse sentido que Connolly (1993) qualifica pensadores como Hobbes, Rousseau, Hegel e Marx como “niilistas”; apesar de terem superado Deus, suas teorias ainda buscavam sentido, unidade e desígnio. A crítica de Connolly às ontoteologias – especialmente à teoria política de inspiração ontoteológica – se direciona à negação que operam das contingências, das indefinições e do acaso próprios e constitutivos da experiência humana. Uma ontoteologia parte da suposição da existência de uma unidade no mundo, do pressuposto de que haveria razão e ordem no cosmos. Esse tipo de teoria supõe uma essência para o ser, e dessa essência Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 326 derivaria um mandamento ético. Nesse sentido, as ontoteologias implicam uma metafísica, isto é, uma suposição sobre a realidade e sobre o homem, com pretensões de verdade. No entanto, na perspectiva de Connolly e de Nietzsche, não haveria um princípio ético único e verdadeiro, nem uma ação moral substancialmente adequada, pois o mundo é constituído em devir, e inexistem princípios absolutos. Em tal perspectiva, não se pode mais defender qualquer “solução” – ou “redenção final” – para a existência humana; a verdade é o resultado de uma correlação entre forças, e inexistem essências e valores morais absolutos. A discussão sobre identidade proposta por Connolly (1991) é realizada nos mesmos marcos filosóficos. Inspirado pelo que define como os dois problemas do mal de Santo Agostinho, Connolly argumenta que Agostinho – defendendo a onipotência de Deus em face de um mundo permeado pela maldade e pelo sofrimento – trata o pecado original como uma brecha entre a responsabilidade de Deus e a existência do mal, atribuindo ao homem o livrearbítrio e a responsabilidade pela imperfeição do mundo. Ao tratar os maniqueístas e os pagãos como hereges, Agostinho demonstra que a construção do outro como “inimigo” implica uma forma de garantir uma identidade própria, unívoca e essencialista (CONNOLLY, 1991). Assim, a busca por uma identidade substancialista e a eliminação da diferença são influenciadas pela crença em um princípio unificador e verdadeiro, e pela negação das contingências da experiência humana. Enquanto as teologias e as ontoteologias seculares visam à harmonia e ao equilíbrio, a perspectiva agonista de Connolly insere o conflito como um elemento indispensável à vida, ao pensamento e à política, e a experiência humana passa a ser entendida como um jogo de forças e de perspectivas. Diferentemente de teorias como o marxismo, não haveria para Connolly uma incompletude histórica do homem, mas uma incompletude ontológica. A reflexão de Connolly (1991) no tocante às fontes do sofrimento existencial é bastante elucidativa nesse ponto. A partir das ideias de Nietzsche, Connolly (1991) executa uma crítica às tendências socialistas e anarquistas, para as quais todos os problemas da humanidade e todo o sofrimento existencial poderiam ser superados por meio de uma transformação nas estruturas sociais e políticas. Para Connolly, o ponto é: a vida humana inevitavelmente envolverá alguma carga de sofrimento. Trata-se de não ressenti-lo, mas de afirmar a vida e suas contingências. Portanto, na perspectiva de Connolly e de Nietzsche, Deus está morto, e não pode ser substituído por outro princípio organizador supremo. Disso decorre o elemento de fatalidade na vida humana. Nas palavras de Nietzsche: “Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 327 eternamente?” (NIETZSCHE, 2012, §125). Para os personagens de Beckett, certamente o anoitecer se repete dia após dia, e Godot não chega. Vladimir e Estragon reagem negativamente à falta de um princípio ordenador. Em outras palavras, estão presos em um “niilismo passivo”. Para Nietzsche, a morte de Deus não gera sentimentos tristes, mas felicidade e leveza. É através do desprendimento de um ideal de verdade, da negação de qualquer pretensão de um modelo organizador, que se produz a intensidade da vida e a vontade de potência. No entanto, na peça de Beckett, o ressentimento e o sofrimento existencial de Vladimir e Estragon desencadeiam a busca e a espera por uma ordenação da realidade, representada por “Godot”. A expectativa de abolir o sofrimento e o devir se consolida em Godot, um princípio de verdade, de salvação e de sentido. Contudo, é impossível que Godot funcione como um “remédio radical” para as contingências da vida, especialmente na medida em que os personagens estão em um contexto onde o projeto racional moderno já demonstrara toda a sua fraqueza e suas consequências trágicas. Isto é, ainda se espera por Godot, mas ele não chega; se espera por um Godot que, depois da produção racional e em série de cadáveres e do Holocausto, não pode mais chegar. O homem ainda espera por Godot, em um contexto onde a contingência se acirra e se globaliza em larga escala. Vejamos alguns trechos da peça, para examinar o niilismo dos personagens. A todo o momento, Vladimir e Estragon reclamam do escuro, do cansaço, da fraqueza, da espera. Não há nada para fazer, ver, dizer ou ouvir. “Estragon (levantando-se): Nada acontece, ninguém vem, ninguém vai, é terrível.” (p. 85). Os personagens sentem que tentaram e fizeram de tudo. Estão sempre entediados e angustiados. Por isso, tentam preencher o nada e o vazio. “Estragon: [...] Vazio é que não falta.” (p. 132). “Estragon: Estamos sempre achando alguma coisa, não é, Didi, para dar a impressão de que existimos?” (p. 140). Estragon sugere que observem o céu, mas Vladimir responde que não há nada de extraordinário nele. Não se sentem satisfeitos no lugar onde estão. “Estragon (repentinamente furioso) Reconhecendo! Reconhecendo o quê? Passei minha vida de merda rastejando nesta lama e você vem me falar de nuances! (Olha ao redor) Repare bem nessa imundície! Nunca pus os pés fora daqui!” (p. 120). Constantemente os personagens dizem que não aguentam mais. Estragon fala que não deseja mais respirar. Em alguns momentos, os personagens manifestam um desejo pela morte, e parecem se arrepender de terem nascido. Estragon diz que eles estão no inferno, e pergunta se Deus o está vendo. Pedem piedade. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 328 Para Didi e Gogô, o dia acaba antes mesmo de começar. Vladimir e Estragon oscilam a todo o tempo. A tarde ora está boa, ora é sofrível. Ora se sentem bem, ora estão de mau humor. Os personagens ora exprimem sua infelicidade, ora não sabem se são felizes ou não7. “Estragon: Sou infeliz. / Vladimir: Não brinque! Faz tempo? / Estragon: Tinha esquecido.” (p. 101). Didi e Gogô vivem em um tempo onde não se ousa mais rir, em um tempo em que rir é proibido. Quase não há troca de afeto entre os personagens, que se mostram bastante insensíveis. Estragon, por exemplo, rejeita o abraço de Vladimir. No entanto, os personagens demonstram dependência um do outro. Às vezes dizem que se sentem melhores quando estão sozinhos, e que nem sabem porque estão juntos. Mas a solidão é muito mais insuportável e assustadora. Assim como Pozzo depende de Lucky, Estragon precisa de Vladimir. Desse modo, ambos se consomem. Sua relação, talvez, seja mais um consumo recíproco do que uma amizade autêntica. A espera por Godot, em certos momentos, funciona como uma desculpa para a hesitação de Vladimir e Estragon. Os personagens querem tomar ações, mas permanecem imóveis. Como representação literária de indivíduos, pode-se afirmar que Didi e Gogô se constituem enquanto unidades sociobiológicas, compostas por impulsos e forças divergentes. Na tensão entre suas forças internas, a hesitação sempre sai vitoriosa. “Vladimir: Então, que fazemos? / Estragon: Nada. É o mais prudente. / [...] Vladimir: Vamos esperar até estarmos completamente seguros.” (p. 38-9). Como se vê, Didi e Gogô são covardes. Nietzsche falava do privilégio da vida perigosa frente à autoconservação. Os espíritos livres se oferecem à aventura, não vivem segundo uma moral, dever ou missão. Um espírito livre é corajoso; Vladimir e Estragon são covardes e catatônicos. Assim, Didi e Gogô representam um niilismo passivo por meio de suas lamentações, sofrimentos e hesitações. Eles esperam que a vida mude e, enquanto isso, a ressentem; esperam que Godot os salve e os livre do sofrimento, ao invés de afirmar a vida e suas contingências, e de se alegrar com ela. Esperando Godot representa um processo de décadence externa (da cultura) e interna (dos personagens). O niilismo, nas formulações de Friedrich Nietzsche, se refere a uma desvalorização dos valores supremos, ao processo de autodissolução da moral judaico-cristão e de crise da metafísica tradicional. Associado a esse processo, os indivíduos experienciam 7 Em certos momentos, os personagens não manifestam propriamente um niilismo passivo, mas estão mais próximos do que o sociólogo alemão Georg Simmel (2005) chamava de caráter blasé do homem moderno, isto é, o embotamento dos sentidos e a indiferença frente à vida decorrente da “intensificação da vida nervosa” nos tempos modernos e nas grandes cidades. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 329 uma décadence, isto é, uma desorganização das suas forças internas e da sua capacidade organizadora. No nível da cultura, a décadence se refere ao declínio e à desagregação da unidade e harmonia do mundo. Esperando Godot representa ainda a décadence de um ideal de humanidade. O homem retratado por Beckett é aquele que espera Godot. Quando Pozzo está cego e cai no chão junto com Lucky, Vladimir e Estragon tentam levantá-lo. Os personagens vão caindo um a um. Um breve diálogo da peça – quando os quatro personagens centrais de Beckett estão caídos no chão e se veem impossibilitados de levantar – resume o escárnio do autor frente ao “Homem”: “Pozzo: Quem são vocês? / Vladmir: Somos homens. Silêncio. / Estragon: É bem isso, homens sobre a terra.” (p. 167-8). Em uma frase, não nos resta mais nada. Os homens estão caídos, derrubados. Sem Deus e sem ideais absolutos. “Homens sobre a terra”, decaídos do plano transcendental e destituídos de quaisquer possibilidades de verdade ou de princípios organizadores. O que constitui a humanidade é o compartilhamento de uma vida rastejante no chão. Nos tempos modernos, os homens tomam consciência de sua condição existencial, de suas limitações e de seu abandono; não recebem auxílio, e não conseguem se auxiliar. Frente ao processo de décadence e da morte de Deus, há dois tipos de ação e conduta possíveis. Uma, como se vê com Vladimir e Estragon, implica o sofrimento e a inação frente à perda de uma referência absoluta. “Estragon: Não, não se tem certeza de nada.” (p. 109). Essa descrença em relação a valores e verdades, essa perda das referências estruturantes que relega o indivíduo ao nada, é vivenciada como sofrimento, como negação do mundo e da vida. Tal niilismo passivo se caracteriza como uma incapacidade de lidar com o sofrimento existencial. Outro modo de encarar a décadence, defendido por Nietzsche (2012, 2014), é um “niilismo ativo”. Em face ao sofrimento, afirma-se a vida. Nietzsche é um filósofo crítico do enfado da vida e da infelicidade, do espírito de gravidade que encara a experiência no mundo como algo pesado e sofrível. A filosofia de Nietzsche expressa vontade de vida, sendo marcada pela defesa de uma moral nobre, caracterizada pela afirmação das contingências, das diferenças e das forças em tensão, e não pela sua negação ou ressentimento. Sua filosofia é uma defesa da coragem, da saúde e da abundância. O espírito livre e nobre é aquele que diz sim à vida em face ao sofrimento, à dúvida e à incerteza, e a liberdade é considerada uma superação das resistências. Uma constatação do niilismo que impera após a morte de Deus é o eterno retorno do mesmo, daquilo que não pode ser mudado, a eterna contradição entre o hoje e o amanhã (NIETZSCHE, 2011). Para Nietzsche, um niilismo corajoso deve afirmar o eterno retorno, Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 330 superando o ressentimento. Vladimir e Estragon vivem a impossibilidade de ir embora, são imóveis; vivem negativamente o eterno retorno. Na parábola do camelo-leão-criança, Vladimir e Estragon representam o leão – em um estágio senil e cansado –, isto é, a postura de negação e de rejeição da vida. Para que superem o eterno retorno da espera e da não vinda de Godot – que não veio hoje, mas prometeu vir amanhã –, necessitam afirmar a vida; precisam de coragem e alegria. Obviamente, pouco nos importa Vladimir e Estragon. No entanto, eles são uma representação de personas e modos de conduta humana característicos do nosso tempo. Nesse sentido, apesar de encarnarem um tipo ideal do niilismo passivo, todos os personagens de Esperando Godot – até mesmo Pozzo – têm alguns momentos de lucidez extrema e de falas marcadas por intensidade, que talvez representem o pensamento e os afetos de Beckett e sua leitura da condição humana: Pozzo: [...] As lágrimas do mundo são em quantidade constante. Para cada um que irrompe em choro, em outra parte alguém para. Com o riso é a mesma coisa. (Ri) Não falemos mal, então, dos nossos dias, não são melhores nem piores do que os que vieram antes. (Silêncio) Não falemos bem, tampouco. (Silêncio) Não falemos. (Silêncio) Verdade que a população aumentou (p. 67). Uma característica significativa de Esperando Godot é que não há piedade ou caridade por parte dos personagens. Os personagens constantemente expressam indiferença, e oscilam de lapsos incipientes de piedade à crueldade. Mesmo Lucky, o escravo, quando recebe auxílio do vagabundo Estragon, revida com violência. Como fala Pozzo, em função das circunstâncias, ele poderia não ser escravo, mas mestre. Pozzo implora piedade, inúmeras vezes. Estragon também. Ninguém os salva, pois estão sozinhos. Todos os personagens são insensíveis em relação aos demais, todos se aproveitam, todos exercem violência. Apesar de representar um cinismo e uma dessensibilização, é interessante que a piedade, a vitimização e o ressentimento cristão não estruturam a peça. Há uma leitura realista da experiência humana, em todas as suas imperfeições. E a experiência humana é marcada pela crueldade, pela violência e pelo sofrimento. Em suma, em Beckett não se verifica um apreço pela moral do escravo, que valoriza o sofrimento e vê na opressão e no sacrifício um valor moral positivo – que, na versão teológico-cristã clássica, seria recompensado com a salvação após a morte. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 331
O tempo
No segundo ato de Esperando Godot, a cena recomeça na mesma hora e no mesmo lugar. A estrutura da peça dá a entender que Vladimir e Estragon voltam dia após dia, na esperança de que Godot apareça. Embora Didi e Gogô lembrem-se da espera por Godot, nunca têm certeza sobre o tempo e o lugar do encontro. Não sabem qual o dia da semana. Não conseguem identificar o horário do dia. Estão em dúvida se é a aurora ou o poente. Os personagens estão sempre perdendo a noção do tempo, estando constantemente em um estado de “desterritorialização”. Vladimir e Estragon sentem uma necessidade angustiante de preencher o tempo. “Estragon: Estava sonhando que era feliz. / Vladimir: Ajuda a passar o tempo.” (p. 186). Há várias metáforas sobre o vazio na obra. Todas as ações e interações servem para passar o tempo que, via de regra, passa muito devagar. Assim, Didi e Gogô praticam a conversação. Decidem cantar. Estragon vai provar suas botas. Começam a fazer exercícios físicos. Conversam para não pensar. E para não ouvir “Todas as vozes mortas”. Vladimir: O certo é que o tempo custa a passar, nestas circunstâncias, e nos força a preenchê-lo com maquinações que, como dizer, que podem, à primeira vista, parecer razoáveis, mas às quais estamos habituados. Você dirá: talvez seja para impedir que nosso entendimento sucumba. Tem toda a razão. Mas já não estaria ele perdido na noite eterna e sombria dos abismos sem fim? É o que me pergunto, às vezes. Está acompanhando o raciocínio? (p. 163). Didi e Gogô reclamam do tédio. Tentam fazer algo original e autêntico. Sentem que precisam de alguma experiência verdadeira8. “Vladimir: Como o tempo passa quando a gente se diverte!” (p. 153). Mas eles deixam as diversões apodrecerem. Então tentam tomar alguma ação. Mas temem que, num instante, estarão na solidão novamente. Quando o tempo volta a fluir, Vladimir tem um lapso de esperança. Podemos constatar que a questão do tempo – enquanto uma unidade da experiência definidora da condição humana – afigura-se como um tema central na peça de Beckett: 8 Conforme discute Simmel (2005), a intensificação da vida nervosa, provocada pelos estímulos crescentes da modernidade – isto é, provocada pela aceleração do tempo –, pode produzir um embotamento dos sentidos nos indivíduos, e a sensação de impossibilidade de experiência. Deve-se pontuar, não obstante, que a perspectiva de Simmel, diferentemente de Connolly e de Nietzsche, aparenta uma relativa nostalgia em relação ao tempo desacelerado anterior à modernidade. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 332 Pozzo: (subitamente furioso) Não vão parar de me envenenar com essas histórias de tempo? É abominável! Quando! Quando! Um dia, não é o bastante para vocês, um dia como os outros, ficou mudo, fiquei cego, um dia, ficaremos todos surdos, um dia, nascemos, um dia, morremos, no mesmo dia, no mesmo instante, não basta para vocês? (Mais calmo) Dão a luz do útero para o túmulo, o dia brilha por um instante, volta a escurecer. (Puxa a corda) Adiante! (p. 185). Como vemos, a vida é concebida como um breve período de tempo que flui antes da morte. Em certo momento, em função de determinada contingência, ela termina. E o tempo antes da morte não garante uma vida de experiências. Vejamos outro trecho da peça, sobre a passagem do tempo: Estragon: Mas a noite não vem. Vladimir: Vai cair de uma vez só, como ontem. Estragon: E então será noite. Vladimir: E poderemos ir embora. Estragon: E então será dia mais uma vez. (Pausa) O que fazer, o que fazer? Vladimir: (parando de andar, com violência) Quer parar com essa ladainha? Estou até aqui do seu choramingo (p. 144-5). Tais passagens nos remetem a um eterno retorno do mesmo, como foi discutido há pouco. No entanto, à concepção de eterno retorno implícita nos personagens da peça subjaz uma concepção cíclica do tempo. Espera-se Godot, num eterno retorno, sempre. E ele não vem. E então a vida é plena de monotonia, repetição e enfado. Não obstante, deve-se assinalar que a concepção de tempo em Nietzsche não é cíclica. Connolly (2002), ao analisar o impacto da aceleração do tempo sobre a democracia, irá rejeitar uma série de concepções sobre o tempo – cíclico, linear, teleológico ou progressivo. Os processos de globalização na modernidade aceleram cada vez mais o tempo. Para Connolly – pensando sobre a política e as formas de deliberação – deve-se reconhecer a aceleração da vida, ao invés de buscar uma volta ao passado, caracterizado por um “tempo lento”. É assim que, influenciado por Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, Connolly irá propor a ideia do tempo como uma brecha e um devir: A rift as constitutive of time itself, in which time flows into a future neither fully determined by a discernible past nor fixed by its place in a cycle of eternal return, nor directed by an intrinsic purpose pulling it along. Free time. Or, better, time as becoming, replete with the dangers and possibilities attached to such a world. (CONNOLLY, 2002, p. 143). Discutindo sobre o problema do tempo, Connolly (2002) faz aproximações interessantes entre Nietzsche e uma série de pensadores, como Gilles Deleuze e Hannah Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 333 Arendt. Na formulação de Connolly, o tempo seria uma brecha entre o passado e o futuro, marcado pela contingência, uma bifurcação que pode gerar novas possibilidades. Nesse sentido, o autor propõe a afirmação do eterno retorno em uma filosofia acíclica do tempo. Isso implica dizer que ocasionalmente o tempo bifurca em novas e surpreendentes direções, e que uma experiência autêntica e intensa é possível, desde que se supere o niilismo e a ética do ressentimento. A razão
A razão
Outro tema sensível em Esperando Godot é a problemática da razão. Para entreter Vladimir e Estragon, Pozzo faz Lucky dançar, e depois, pensar em voz alta – esse monólogo é a única fala de Lucky durante toda a peça. Lucky precisa do seu chapéu para pensar. Quando o coloca, ele monologa: Lucky (exposição monótona): Dada a existência tal como se depreende dos recentes trabalhos públicos de Poinçon e Wattmann de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca quaqua fora do tempo e do espaço que do alto de sua divina apatia sua divina athambia sua divina afasia nos ama a todos com algumas poucas exceções não se sabe por quê mas o tempo dirá e sofre a exemplo da divina Miranda com aqueles que estão não se sabe por quê mas o tempo dirá atormentados atirados ao fogo às flamas às labaredas que por menos que isto perdure ainda e quem duvida acabarão incendiando o firmamento a saber levarão o inferno às nuvens tão azuis às vezes e ainda hoje calmas de uma calma que nem por ser intermitente é menos desejada mas não nos precipitemos e considerando por outro lado os resultados da investigação interrompida não nos precipitemos a investigação interrompida mas consagrada pela Academia de Antropopopometria de Berna-sobre-Bresse de Testu e Conard ficou estabelecido sem a menor margem de erro tirante a intrínseca a todo e qualquer cálculo humano [...] (p. 87). O monólogo continua, com frases desconexas, repetições e dessentido. Trata-se de uma crítica ao modelo de pensamento racionalista, e de uma representação da prática e do discurso acadêmico, marcados pela pretensão de certeza, pela verborragia e por um vocabulário específico. Lucky pensa quando coloca o chapéu; o intelectual representa o saber quando coloca sua beca. O monólogo de Lucky demonstra que a vontade moderna e iluminista de conquistar o mundo pela ciência pode levar a um produto inócuo e numerosos quaquaquaquas. Lucky “sabe pensar”, fala e articula autores, mobilizando o conhecimento – científico e religioso – em um discurso elegante, insignificante e inútil, demonstrando como um discurso formalizado e pretensamente embasado pode, na verdade, não significar muita coisa. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 334 É interessante o fato de Lucky ter ficado mudo no segundo ato. Na tragédia clássica de Sófocles (2006), Édipo representava o homem sábio, aquele que resolveu o Enigma da Esfinge. Quando adquire conhecimento em excesso e em desmedida, isto é, quando descobre a verdade sobre sua família – que matou seu pai e estava casado incestuosamente com sua mãe – acaba cego. Lucky, o grande pensador de Esperando Godot, fica mudo. Em tempos de produção científica acelerada e da proliferação de discursos de verdade, não há por parte do intelectual uma autoconsciência e um reconhecimento das limitações do seu saber. Assim, Esperando Godot opera como metáfora para a produção de conhecimento no tempo presente: não vemos um conhecimento em excesso que leva à cegueira, mas um excesso de nãoconhecimento que só pode ser contido pela mudez compulsória. Está implícita em Esperando Godot uma visão da falência do projeto racional e da dificuldade de pensamento nos tempos atuais. “Vladimir: Não corremos mais o risco de pensar.” (p. 126). Essa crítica à razão, usualmente rotulada de “pós-moderna” – rótulo utilizado para eliminar a complexidade de tal perspectiva, negando sumariamente suas formulações –, evoca as consequências desastrosas do desenvolvimento da ciência e da técnica, como a eugenia, a industrialização da guerra e o Holocausto. Tal perspectiva é mais sensível quanto às limitações do conhecimento humano e suas pretensões de verdade, ao poder exercido pelos sistemas de saber, à disciplina, à biopolítica e às novas formas de controle possibilitadas pela modernidade. 9 Vejamos de que modo Beckett lida com as consequências do projeto moderno racional, que se fizeram sentir paradigmaticamente em seu tempo: Estragon: Para fazer direito, seria preciso me matarem, como o outro. Vladimir: Que outro? (Pausa) Que outro? Estragon: Como bilhões de outros. Vladimir: (sentencioso) A cada um sua pequena cruz10. (Suspira). Um piscar de olhos e um rápido adeus. (p. 121). [...] Vladmir: O terrível é já ter pensado um dia. Estragon: Mas será o nosso caso? Vladimir: De onde vêm todos esses cadáveres? Estragon: Essas ossadas. Vladimir: Isso! Estragon: De fato. Vladimir: Devemos ter pensado um pouco. 9 Sobre tais questões ver, por exemplo, Foucault (2000). 10 Aqui temos uma referência à doutrina cristã, que valoriza e impõe a necessidade de suportar o sofrimento. Há várias referências a passagens bíblicas e elementos da cultura cristã em Esperando Godot. Estas são sempre marcadas pela ironia, e tratadas com o mesmo absurdo e idiotice que caracterizam todos os diálogos da peça. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 335 Estragon: Bem no princípio. Vladimir: Um ossário, um ossário. Estragon: Basta não olhar. Vladimir: Mas atrai a visão. Estragon: É verdade. Vladimir: Mesmo que tenhamos. Estragon: Como? Vladimir: Mesmo que tenhamos. Estragon: Devíamos ter mergulhado profundamente na Natureza. Vladimir: Tentamos. Estragon: É verdade. Vladimir: Ah, com certeza, não é o pior. Estragon: Pior, o quê? Vladimir: Ter pensado. Estragon: De fato. Vladimir: Mas podíamos ter passado sem essa (p. 127-9). O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1998), em Modernidade e Holocausto – talvez sua única obra relevante em termos teóricos – contrariou as análises em voga até então, que interpretavam o Holocausto como uma deturpação do projeto racional. Segundo o autor, o Holocausto é uma consequência do desenvolvimento da ciência e da técnica, e somente poderia ter ocorrido em sociedades altamente desenvolvidas e modernas. Não obstante, não se pode culpar peremptoriamente a “razão” ou o “pensamento”, enquanto unidades da experiência humana, pelas atrocidades do século XX. A desolação que se verificou durante e após a Segunda Guerra Mundial foi consequência do projeto político racional engendrado na modernidade. Como argumenta Connolly (1993), a modernidade implica o controle do mundo, uma ordem dirigida pelo ímpeto de domínio. Nesse sentido, o projeto racional visou à dominação e ao controle pleno da natureza. Esse projeto moderno, que atribuiu uma onipotência à razão, que visou eliminar todas as contingências e atribuir um sentido transcendental à existência humana, foi o responsável por produzir as ossadas de que nos falam Vladimir e Estragon. De fato, talvez esta seja uma das grandes questões do nosso tempo: a busca por controle, por um princípio ordenador absoluto e por definições de verdade – as origens do culto à deusa razão, empreendimento essencialmente ocidental e “humano”. O homem retratado por Beckett é alguém desolado em um mundo de cadáveres empilhados, produzidos racionalmente durante os tempos áureos dos projetos eugenistas e modernistas de engenharia social – não apenas o nazista. Um homem que definitivamente não encontra mais sentido, e que – como Didi e Gogô – “não aguenta mais”. Assim, toda a obra de Beckett – caracterizada pelo minimalismo e pelo absurdo – está alinhada à ideia de uma “consciência comedida”. O espírito de modéstia da consciência é Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 336 defendido por William Connolly, com base em sua leitura da filosofia de Nietzsche. A modéstia da consciência, que relativiza o peso da razão, serve como uma crítica ao projeto político racional de dominação do mundo, que postula a supremacia da razão sobre os sentimentos. Em suas formulações sobre o secularismo, Connolly (1999) postula a impossibilidade da exclusão do papel da crença na política e na filosofia e, por consequência, da limitação da religião à vida privada. Tal crítica ao racionalismo parte da suposição de uma indissociabilidade entre razão e sentimento, reforçando o papel dos instintos na vida humana, que operariam abaixo do nível da linguagem e da razão. Segundo a perspectiva de Connolly, o racionalismo visa eliminar os elementos paradoxais e contingentes da experiência humana, através de modelos e sistemas que partem de concepções teológicas sobre o mundo e sobre a natureza do homem. É nesse sentido que as teorias de Connolly e de Nietzsche atribuem grande peso às fatalidades e ao acaso, duvidando de qualquer pretensão de verdade do conhecimento filosófico ou científico. Como argumenta Connolly (2005), o próprio exercício intelectual também é influenciado por elementos de crença, o que implica abandonar a primazia da razão, e assumir um espírito de modéstia da consciência, que pode ser bastante salutar à ação e ao pensamento humano nos tempos modernos. Em sua análise sobre o pluralismo, a política e a democracia, Connolly (2005) irá criticar as possibilidades de uma ação política na vida pública nos marcos estritos do racionalismo, defendendo um pluralismo profundo (“deep pluralism”) que incorpore os elementos valorativos e da experiência na ação política, abrindo o espaço público a crenças plurais que deveriam se orientar por meio de um respeito agonístico, em que cada crença reconheça a possibilidade de ser questionada pelas demais11. Na perspectiva do autor, é central levar em conta que a vida pública não é secular, baseando-se em comportamentos coletivos que envolvem crenças, valores e componentes religiosos que, portanto, extrapolam os limites estritamente “racionais”. 11 Não cabe, no contexto deste ensaio, uma apreciação da proposta de Connolly (2005) no tocante à abertura do espaço público às distintas religiões e crenças. Segundo o autor, esse processo contribuiria para o fortalecimento do pluralismo. Apesar de concordar com sua leitura sobre o secularismo (CONNOLLY, 1999) – isto é, que a ação dos sujeitos na vida pública não pode ser dissociada das suas crenças –, considero que a proposta do autor comporta riscos imensos à democracia, podendo fortalecer o fundamentalismo e o desrespeito à liberdade individual. Simbiótica, vol.6, n.1, jan.-jun. Vitória, Brasil, 2019 Lucas Voigt│ Revisitando “Esperando Godot” à luz da teoria política... │pp. 317-339 337
O fim
Cansados da espera por Godot, Didi e Gogô – já no primeiro ato – cogitam de suicidar. Vladimir diz que essa talvez seja uma forma de se ter uma ereção. Isto é, de ter alguma experiência autêntica, de se sentir vivo. Assim, os personagens começam a racionalizar a forma e as chances de sucesso do seu suicídio, por enforcamento, em um galho da árvore. No entanto, Estragon lamenta, pois eles não têm uma corda. Estragon, que sempre quer ir embora, talvez alcance seu objetivo metaforicamente por meio do suicídio. No segundo ato, após a não chegada de Godot, Didi e Gogô olham para a árvore, e começam a calcular seu suicídio. Mas, novamente, não têm corda. Pensam na corda que Estragon utiliza como cinto A discussão sobre os métodos para o suicídio dos dois protagonistas da peça é, no mínimo, tragicômica. Os personagens duvidam da sua capacidade de se suicidarem sozinhos, caso seu amigo já tenha previamente se suicidado. Eles resolvem tentar. Ao tirar o cinto, as calças de Estragon caem. Tentam, mas a corda é muito curta, e arrebenta. O enforcamento é frustrado. As contingências da vida fazem os niilistas Didi e Gogô falharem até mesmo no suicídio. O livre-arbítrio em Esperando Godot é tão frágil, que nem mesmo o suicídio – expressão máxima de uma escolha do sujeito – está isento das contingências e das fatalidades da condição humana. Vladimir e Estragon são incapazes de superar a hesitação e a vida sem sentido. Nem pelo suicídio, muito menos por meio de uma recusa à espera por Godot. Amanhã, quando forem esperar Godot novamente, se lembrarão de trazer uma corda decente. Assim, se enforcarão amanhã, a não ser que Godot venha. Se vier, estarão salvos. Didi e Gogô decidem ir embora, mas não se movem. A peça acaba.
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