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A lógica do social e a lógica do político: uma abordagem alternativa para a compreensão da intervenção do judiciário na política
Social logics and political logics: an alternative approach for understanding judicial intervention on politics
La lógica del social y la lógica del político: una visión alternativa para la comprensión de la intervención del poder judicial en la política
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 2, pp. 74-95, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo

Dossiê


Resumo: O presente artigo busca se debruçar sobre a chamada judicialização da política, articulando categorias da teoria do discurso desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe para compreender o fenômeno sob os conceitos de “social” e “político” desenvolvidos pelos autores. Para atingir seu objetivo, o artigo contextualiza o problema, apresenta sumariamente os principais conceitos desenvolvidos pelos autores utilizados e usa exemplos práticos e a contraposição a outras teorias para argumentar a respeito da utilidade do uso do referencial teórico apresentado. Por fim, são tecidas considerações metodológicas e normativas a respeito da adoção da perspectiva que o artigo defende.

Palavras-chave: Judicialização da Política, Teoria do Discurso, Laclau e Mouffe, Hegemonia.

Abstract: This article seeks to address the so-called judicialization of politics by articulating categories of the theory of discourse developed by Ernesto Laclau and Chantal Mouffe to understand the phenomenon under the concepts of “social” and “political” developed by the authors. To reach its objective, the article contextualizes the problem, briefly presents the main concepts developed by the authors and uses practical examples and the opposition to other theories to argue about the usefulness of using the presented theoretical framework. Finally, methodological and normative considerations are made regarding the adoption of the perspective that the article defends.

Keywords: Judicialization of Politics, Discourse Theory, Laclau and Mouffe, Hegemony.

Resumen: Este artículo busca abordar la llamada judicialización de la política articulando categorías de la teoría del discurso desarrollada por Ernesto Laclau y Chantal Mouffe para comprender el fenómeno bajo los conceptos de “social” y “político” desarrollados por los autores. Para alcanzar su objetivo, el artículo contextualiza el problema, presenta brevemente los principales conceptos desarrollados por los autores utilizados y utiliza ejemplos prácticos y la oposición a otras teorías para argumentar sobre la utilidad del uso del marco teórico presentado. Finalmente, se hacen consideraciones metodológicas y normativas con respecto a la adopción de la perspectiva que defiende este trabajo.

Palabras clave: Judicialización de la Política, Teoría del Discurso, Laclau y Mouffe, Hegemonía.

A lógica do social e a lógica do político: uma abordagem alternativa para a compreensão da intervenção do judiciário na política

Introdução: a controvérsia acerca da judicialização da política

Na década de 1990, C. Neal Tate e Torbjörn Vallinder sumarizaram alguns esforços intelectuais para compreender um novo contexto político que eles chamaram de “A expansão global do poder judicial” (TATE; VALLINDER, 1995). Nesses estudos, uma categoria explicativa surgiu e se tornou parte do vocabulário atual das ciências sociais em seus estudos sobre a intervenção dos tribunais na política: a categoria de “judicialização da política”. A judicialização, portanto, significa a obliteração das fronteiras entre Judiciário e demais poderes, com os juízes decidindo assuntos políticos e os poderes Executivo e Legislativo utilizando métodos típicos do poder Judiciário, ou ainda, recrutando membros do judiciário para suas composições internas, como ministérios. Essa segunda dimensão da judicialização não será diretamente focada aqui. Na verdade, eu pessoalmente prefiro o termo “tribunalização da política”, formulado por José Eisenberg (2003), para se referir a esse fenômeno. Sob essas diretrizes, eu gostaria de concentrar a minha reflexão sobre a “judicialização da política” nos termos de tribunais, assumindo algumas zonas de tomada de decisão tradicionalmente delegadas a instituições do governo que se espera serem mais 75 políticas, como o parlamento e a presidência da república.

Nesse contexto de judicialização, os juízes ganham mais poder na política. Um exemplo é o chamado “judicial review”, isto é, o controle de constitucionalidade das leis pelo Judiciário, no qual os juízes podem descartar regras aprovadas pelo legislador que não se encaixem na ordem constitucional vigente. Para além de uma observação analítica, essa expansão do poder judicial também é um objeto de controvérsia na teoria política normativa. É por isso que esse avanço de juízes no campo da política é por vezes caracterizado negativamente pela categoria de “ativismo judicial”. Trata-se de uma tentativa de destacar a inadequação dessa intervenção na política por um grupo que não está bem equipado para isso – por exemplo, que não é escolhido por um pleito democrático. Cabe ressaltar que existem ainda autores que entendem essa expansão do poder judicial na política não como um fenômeno novo, que deve ser interrompido ou celebrado, mas apenas uma constatação das ciências sociais acerca de um poder que os juízes sempre tiveram. Por exemplo, contra o uso da categoria de judicialização, Koerner et al. (2011) defendem que os juízes e os tribunais sempre desempenharam um papel importante na política brasileira.

Conforme destaca Ran Hirschl (2008, pp. 119-123), a expressão ‘judicialização da política” tornou-se uma espécie de termo “guarda-chuva”, utilizado para representar uma miríade de situações distintas. Ela se debruça, segundo o autor, especialmente sobre três processos inter-relacionados. Primeiramente, no nível mais abstrato, refere-se à disseminação do discurso, jargão, regras e processos jurídicos na esfera política e na formulação de políticas públicas – que muitos preferem se referir em termos de “juridificação”. Em segundo lugar, em um nível mais concreto, diz respeito à extensão da província de atuação dos juízes na formulação de políticas públicas e organização da burocracia e órgãos políticos, inclusive mediante atuação na defesa de direitos e garantias individuais, de forma a restringir a atuação dos poderes Executivo e Legislativo. Por fim, há ainda casos de judicialização da

“megapolítica”, em que juízes chegam a definir questões relativas à segurança nacional, planejamento econômico, processo eleitoral, etc.

A amplitude de temas relacionados ao guarda-chuva da judicialização gerou críticas, como a de que se trataria de um “conceito pouco preciso, mas de rápida circulação pública” (MACIAL; KOERNER, 2002, p. 131), ou mesmo, “um nome atribuído a partir do início dos anos noventa ao protagonismo político de juízes, o qual não apresentava qualquer novidade e não tinha implicações fundamentais para as democracias contemporâneas”, tratando-se de uma expressão “teoricamente inválida, porque apresenta deslizes conceituais, ao simplificar 76 as relações entre os tribunais e a política, revelando uma concepção estreita da jurisdição e do direito” e apresentando “uma abordagem parcial e enviesada sobre as transformações dos

Estados contemporâneos” e “ambiguidades sobre seu campo de aplicação” que a tornariam analiticamente inútil (KOERNER et al, 2011, pp. 176-177).

Consequentemente, estudos mais específicos, mesmo que não necessariamente descartem completamente a expressão, têm tentado lhe dar contornos mais críticos, ressaltando dimensões como a importância de processos de “juridificação”, por exemplo, capitaneados pelo Ministério Público, que, contudo, não chegam à efetiva “judicialização” ao não abraçarem a litigância formal (ASENSI, 2008). Ou então, chamando atenção para, pelo contrário, os efeitos posteriores e reflexos da efetiva judicialização, por exemplo, mediante a reação dos poderes Executivo e Legislativo às decisões das cortes constitucionais (POGREBINSCHI, 2012). Mesmo Luiz Werneck Vianna e Marcelo Burgos, cujos trabalhos pioneiros ajudaram a popularizar a expressão “judicialização da política” no Brasil (VIANNA et al, 1999), colocaram em destaque, em discussão mais específica sobre ações civis públicas, a noção mais precisa de “procedimentalização do direito” (VIANNA; BURGOS, 2003).

Tentando evitar ainda um certo viés “de cima para baixo” contido nos estudos sobre a judicialização, que dedicariam demasiada atenção à ação especificamente dos juízes e tribunais, há ainda autores, no Brasil (MACIEL, 2011; LOSEKANN, 2013) e fora do país, que apostam na noção de “mobilização do direito”. Tal noção visaria prestar mais atenção às demandas da sociedade civil, sob um ponto de vista, digamos, “de baixo para cima”, seja focando nos litigantes individuais, seja em frutífero diálogo com a literatura sobre movimentos sociais em demandas coletivas (McCANN, 2008, p. 523).

Tendo isso em vista, este artigo tem como objetivo oferecer uma nova abordagem a esse tema, que considera a intervenção dos juízes na política um potencial inerente aos tribunais, mas que nem sempre está disponível e é utilizado no mesmo grau pelas chamadas partes do processo. Para atingir o seu objetivo, este estudo irá fazer uso das categorias do social e do político, que surgem a partir da teoria social de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Argumento que essas categorias podem nos dar um ponto de partida mais interessante - ou, pelo menos, um caminho complementar - para pensarmos sobre a judicialização, tendo em vista outras abordagens mais tradicionais sobre o tema. Assim, este trabalho irá explicar as categorias do social e do político na obra de Laclau e Mouffe para finalmente discutir algumas consequências teóricas e analíticas da adoção dessa abordagem para entender a chamada

judicialização da política. 77

O social e o político na obra de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe

Como Laclau afirma, o maior progresso alcançado pelo estruturalismo foi o reconhecimento do caráter relacional de cada identidade social, mas seu limite foi transformar essas relações em um sistema, com existência objetiva, inteligibilidade e uma essência. No entanto, se mantemos o caráter relacional de todas as identidades e, ao mesmo tempo, renunciamos a fixação dessas identidades em um sistema, a sociedade vai se tornar o jogo infinito de diferenças, ou seja, o que, no sentido mais estrito do termo podemos chamar discurso, desde que se abandone a compreensão do discurso como algo estritamente ligado à fala e à escrita e se adira à noção foucaultiana de discurso como “regularidades em dispersão” (LACLAU, 2000, p. 104).

Há distinções importantes entre a noção de discurso em Foucault (2007) e a noção de discurso em Laclau e Mouffe, que radicalizam a ideia de formação discursiva da realidade social, não reconhecendo, contrariamente ao pensador francês, a existência de práticas sociais não discursivas. O principal ponto aqui, no entanto, é desvincular discurso e linguagem falada ou escrita: o fundamental é que se trata de uma totalidade significativa, articule ela palavras, objetos, pessoas, práticas ou o que quer que ganhe dimensão de inteligibilidade simbólica por meio de sua articulação nessa totalidade, e não por qualquer “essência” que tais palavras, objetos, pessoas e práticas poderiam ter.

Em todo o caso, uma formação discursiva não é caracterizada apenas pela impossibilidade de uma fixação definitiva dos significados e pelo fluxo infinito de diferenças. Lado a lado à sua falta de fixação final de significados, um discurso é sempre um esforço para produzir uma sutura que interrompe o fluxo de diferenças e estabelece uma totalidade inteligível - mesmo que temporária e precária. A impossibilidade de fixação definitiva dos significados implica que deve haver fixações parciais. Caso contrário, o fluxo de diferenças seria impossível. Mesmo para divergir, para subverter um significado, deve haver um significado. Se o social não pode ser fixado em uma realidade objetiva e apriorística e dotada de essência própria como “a sociedade”, ele existe, contudo, como um esforço para produzir tal objeto impossível. O discurso é uma tentativa de dominar o campo da discursividade, para interromper o fluxo de diferenças, de instituir um centro (LACLAU; MOUFFE, 2006, p. 152). Por isso, se uma totalidade, como a sociedade, não pode ser um pressuposto apriorístico,

mesmo assim, ela deve ser um horizonte (LACLAU, 2007, p. 95). 78

Assim, o discurso deve articular elementos do campo da discursividade, transformando-os em momentos de uma cadeia discursiva significativa que estabelece alguns pontos nodais. Essa organização discursiva também não é uma mediação que tem por objetivo reconstruir uma totalidade inicial que foi perdida (como Deus, a natureza, a razão etc.), mas uma atividade construtiva radical de articulação que muda os significados originais possuídos pelos elementos antes de sua assimilação discursiva. Finalmente, a presença de novos elementos na cadeia discursiva é limitada pelos pontos nodais que se reúnem e dão unidade a um conjunto de momentos já assimilados (LACLAU; MOUFFE, 2006, pp. 142-153).

Por exemplo, o formalismo jurídico[1] moderno articula uma série de elementos, tais como a previsibilidade, a racionalidade e a equidade, agrupando-os em torno do ponto nodal da aplicação da lei. Esses elementos, após a sua assimilação, têm significados específicos que não são os mesmos significados que eles têm fora desse discurso – por exemplo, a previsibilidade nas estatísticas, ou a equidade em um discurso político socialista poderiam significar algo completamente diferente – e tornam-se momentos do discurso. Um desses momentos é a aplicação silogística da legislação, um ponto nodal que está acima dos outros momentos e unifica suas equivalências – ou seja, você só poderá ter previsibilidade, racionalidade e justiça decorrente do direito, se você entender o próprio direito como uma aplicação da legislação. E, como ponto nodal, ele também bloqueia a presença de outros elementos no discurso, interrompendo a expansão infinita da cadeia discursiva - ou seja, se o direito é a execução de um sistema fechado de regras objetivas, ele não pode admitir, por exemplo, ser a concretização de um ideal de justiça, conforme podem almejar outros discursos concorrentes a respeito do que é o direito, como um discurso que vincule o direito à necessária consagração de um ideal substantivo de justiça.[2]

No entanto, o campo da discursividade contém uma grande quantidade de elementos, nem todos eles assimilados como momentos por discursos específicos, alguns deles flutuando entre diferentes discursos, e, como toda identidade é relacional, muitos deles funcionando como exteriores constitutivos para os outros. E se um exterior constitutivo é, por um lado, exterior, por outro lado, e igualmente, também é constitutivo. A consequência disso é uma dimensão inextricável de contingência inerente a todas as identidades sociais. Como a fonte da possibilidade de todas as identidades sociais é também a fonte de bloqueio da constituição 79 de suas identidades como plenitude objetiva, toda a identidade relacional também é uma fonte eterna de possíveis antagonismos (LACLAU, 2000, p. 49). Isso significa que a articulação discursiva do exterior constitutivo pode não ser vista apenas como fonte de identidade, mas também como o bloqueador de identidade, como um inimigo que deve ser desafiado. E se não há nenhum centro determinante da mediação discursiva sob a lógica da necessidade, o que resta é a possibilidade infinita de subversão discursiva e rearticulação promovida pelas relações antagônicas no âmbito da lógica – se é que assim pode ser chamada – da contingência. Retomando o exemplo do parágrafo anterior, o discurso alternativo ao formalismo jurídico, em torno de uma ideia de justiça substantiva, pode ser um concorrente antagônico à caracterização formalista do direito como aplicação da lei.

Assim, fazendo uso das categorias apresentadas anteriormente, podemos dizer que no formalismo jurídico, a "justiça" se articula com uma justiça estritamente formal, e, por causa disso, universalista. A forma de aplicação do direito é a sua dimensão jurídica real, e seu conteúdo substantivo é uma questão extrajudicial. O que exclui a discussão da justiça substantiva da aplicação do direito: o conteúdo material do direito deve ser definido pelo legislador. Mas é possível articular "justiça" necessariamente com "justiça substantiva", como vários discursos anti-formalistas fazem. Dessa forma, entendida como bloqueio da afirmação da justiça substantiva, a justiça formal pode ser vista como a sua força antagonista que deve ser enfrentada e, consequentemente, um novo discurso que caracteriza o direito pode ser articulado em contraposição e em substituição ao discurso tradicional. Dando ares mais concretos ao exemplo, se Max Weber (2004) pôs em destaque a importância do discurso formalista de caracterização do direito para a emergência e a consolidação do capitalismo ao longo do século XVIII, Mauro Cappelletti (1999) chega mesmo a dar centralidade à chamada

“revolta contra o formalismo” na renovação das relações entre direito e política no final do século XX.

Voltando à teoria do discurso de Laclau e Mouffe, de acordo com os autores, a instituição do discurso, o estabelecimento de seus pontos nodais, a exclusão de seus exteriores constitutivos e a articulação de seus elementos como momentos diferenciais são operações baseadas em exercício do poder, de exclusão e repressão de alternativas mantidas fora da cadeia discursiva. Isso faz com que a construção da totalidade precária e temporária da 80 sociedade seja uma atividade política, uma atividade que usa o poder e a repressão como o

único meio para lidar com a ontológica dimensão antagonista da vida social. Chantal Mouffe explicita bem esse ponto em seu livro mais recente, ao destacar que:

Como Ernesto Laclau e eu argumentamos em Hegemonia e estratégia socialista, pensar politicamente requer reconhecer a dimensão ontológica da negatividade radical. É devido à existência de uma forma de negatividade que não pode ser superada dialeticamente que a plena objetividade não pode ser alcançada e que o antagonismo é uma possibilidade sempre presente. A sociedade é permeada pela contingência e qualquer ordem é uma ordem de natureza hegemônica, isto é, sempre expressão de relações de poder (MOUFFE, 2013, p. XI).

De qualquer forma, algumas dessas exclusões e repressões de alternativas fora da cadeia discursiva hegemônica estão tão profundamente assimiladas que seu caráter político é esquecido e elas se tornam momentos incontroversos de certos discursos que permitem algumas referências bastante estáveis para a ação. No trabalho de Laclau e Mouffe, esses momentos “naturalizados" do discurso correspondem à dimensão do "social". Assim, a diferença entre o político e o social é estabelecida e o político recebe primazia sobre o social, tornando-se sua dimensão de definição (LACLAU, 2000, pp. 50-51).

Laclau e Mouffe dedicam especial atenção a essa lógica específica de determinação política do social: o momento em que uma nova formação discursiva surge para realizar uma nova sutura em um discurso fraturado, dando-lhe uma totalidade significativa temporária. Assim, podemos dizer que enquanto o social é um processo de sedimentação, a política é um processo de reativação. Esse processo ocorre em um momento de deslocamento fraturante, quando os discursos disponíveis não podem dar sentido para novos eventos ou dimensões sociais. Tal deslocamento cria um momento de instabilidade, quando o caráter contingente das formações discursivas se torna explícito e os seus elementos devem ser rearticulados para formar uma nova cadeia significativa (LACLAU, 2000, p. 60). No exemplo das transformações recentes no direito, podemos considerar como um momento de deslocamento a dificuldade do formalismo jurídico para lidar com algumas características do direito contemporâneo, como a prática atualmente comum de inserção dos direitos humanos de embasamento moral nos textos constitucionais, uma das dimensões da revolta contra o formalismo posta em destaque por Cappelletti.

E a articulação política que irá ocorrer em um momento de deslocamento será o que os autores chamam de uma articulação hegemônica. Já citada aqui algumas vezes sem maiores explicações, a categoria hegemonia ocupa posição central nos escritos de Laclau e Mouffe e diz respeito a uma articulação discursiva em que uma particularidade assume o lugar da 81 universalidade. Sem uma referência transcendental a ser mediada por práticas discursivas, essa referência será, necessariamente, uma particularidade, mas uma particularidade que pode assumir o lugar de universalidade, em um tipo de relação semelhante à relação de hegemonia na obra de Antonio Gramsci, em que uma classe social transcende seus interesses corporativos próprios para representar um grupo social mais amplo (LACLAU; MOUFFE, 2006, pp. 13-14). Em Gramsci, essa classe seria concretamente a burguesia, devendo ser, idealmente, o proletariado. Em Laclau e Mouffe essa relação se radicaliza e qualquer grupo passa a ter a possibilidade de “ocupar” essa posição de representante da universalidade.

Na retórica, a metonímia pode ser usada para expandir a cadeia discursiva de equivalências, articulando novas relações de contiguidade, e em um tipo específico de metonímia, a sinédoque, a relação de contiguidade representada é uma em que uma parte representa a totalidade.[3] Usando categorias da retórica, portanto, podemos dizer que a sinédoque é especialmente representativa do movimento de hegemonia, quando uma parte consegue representar o todo; quando, por exemplo, uma dimensão da prática jurídica, como a busca por justiça substantiva, ou a aplicação silogística das leis promulgadas pelo legislativo se tornam o significado do direito per se, excluindo outras possibilidades.

O social e o político nas práticas judiciais

Entendida nos termos acima, a decisão judicial pode ser considerada, em alguns casos, como uma espécie de decisão política, que visa responder a um deslocamento identificado como um antagonismo social que precisa ser resolvido mediante uma articulação que busca manter ou transformar o discurso hegemônico. Tomada em bases contingentes, essa decisão rearticula uma formação discursiva, que estabelece novas fronteiras e identidades coletivas que mudam o sentido do discurso, transformando o que era apenas um elo dessa cadeia discursiva em uma representação de sua universalidade. Essa operação estabelece uma hegemonia que é capaz de produzir uma interrupção precária no fluxo de possíveis significados dentro do campo discursivo afetado pela decisão. Por exemplo, uma decisão concedendo direitos a famílias homoafetivas rearticula o discurso sobre a família dentro do campo de discursividade do direito, instituindo nova hegemonia que se contrapõe, digamos, a 82 elementos biológicos e ao conservadorismo religioso, alavancando outros elos dessa cadeia, como as relações afetivas e as demandas do movimento LBGT. Ou seja, a decisão judicial não é tão diferente de outros tipos de decisões que dão identidade às demandas de movimentos sociais ou partidos políticos. Acredito que essa lógica poderia oferecer um terreno melhor para o entendimento das práticas judiciais do que outros entendimentos mais técnicos, que pressupõem decisões judiciais a serem feitas sob bases incontestáveis. A presente seção é dedicada a defender esse ponto de vista, defendendo, por conseguinte, a utilidade do uso das categorias analíticas desenvolvidas por Laclau e Mouffe para a análise da chamada

“judicialização da política”. Uso como ponto de partida uma analogia entre trabalho dos juízes e operadores do direito e o trabalho de médicos e profissionais de saúde.

Quando um médico aplica um medicamento no paciente, ele atua apenas para proteger esse paciente, com o fim de preservar sua vida como algo que se presume valioso. Os pressupostos dessa ação – por exemplo, que a vida é algo valioso em si mesmo e que o corpo humano pode ser medicado – não são questionadas e o conflito a ser resolvido entre paciente e doença deve ser resolvido em favor do primeiro. Essa atividade técnica tende a desdobrar-se dentro do que Laclau e Mouffe consideram o “social”, ou seja, práticas discursivas bem sedimentadas, que não sofrem deslocamentos constantes.

Claro que podem surgir possíveis situações de instabilidade nas suposições do médico do exemplo - ou seja, para fazer uso do vocabulário de Laclau, situações em que a emergência de um “real” lacaniano que não pode ser domado pelos discursos disponíveis provoca um deslocamento estrutural que coloca em disputa o significado do que outrora foi assumido como óbvio.[4] Pensemos, por exemplo, na controvérsia de casos de eutanásia, em que uma vida tida como indigna pode desestabilizar a suposição comum no tratamento médico de que a vida humana é algo valioso em si mesmo.

Essas decisões mais políticas do que técnicas não tendem a surgir com frequência na prática diária do médico que busca curar seus pacientes. No entanto, há boas razões para crer que essa emergência é muito mais comum na prática diária dos juízes que procuram resolver os conflitos trazidos ao tribunal. Como apontado por Martin Shapiro e Alec Stone Sweet, se o juiz não tivesse de escolher entre alternativas, ele poderia simplesmente fazer cumprir a regra prevista pelos estatutos e alcançar sua conclusão impulsionado por um raciocínio legal estrito. Nesse caso, ele não seria politicamente mais interessado do que uma máquina IBM, que poderia ser concebida para substituí-lo. No entanto, se reconhecemos que a escolha é inerente às fases do comportamento humano que tradicionalmente têm sido objeto de estudos 83 jurídicos, então o adjetivo “político” pode ser conectado a atividade judicial, que seria, portanto, uma atividade política (SHAPIRO; SWEET, 2002, p. 20).

Há casos jurídicos que geram decisões como a decisão que o médico deve tomar para curar a doença de um paciente. Nesses casos, o tribunal pode assumir um consenso estável sobre quem deve ser vitorioso no julgamento sob seu escrutínio. Porém, em princípio, um processo judicial envolve partes em igual estatura, cada uma alegando que a direito está a seu favor e não a favor de seu adversário. Mesmo uma defesa simplesmente protelatória, ou um pedido de redução de pena, ainda mobilizam um questionamento jurídico sobre o direito alegado pela outra parte. Os ditames do direito devem ser obedecidos e, assim, fazer parte do social, do garantido, presumido correto, do inconteste. Mas quando são desobedecidos e geram uma demanda judicial resistida, o direito passa a ser fonte potencial de antagonismos e suas decisões passam a ser potencialmente políticas.

Um exemplo comum para representar uma situação jurídica de fácil solução, isto é, que apenas reproduz as premissas estáveis do que Laclau e Mouffe chamam de social, é a penalidade por exceder o limite de velocidade de uma via. Se for sinalizado que o limite de velocidade de uma via é 60 km/h, viajar em tal estrada, por exemplo, a 80 km/h seria um ilícito passível de uma sanção. Mesmo assim, continua a ser possível questionar a justeza do limite de velocidade atribuída a essa estrada, tendo em conta as políticas mais amplas de organização do tráfego. Se um conjunto de estradas na mesma situação permitem o tráfego a uma velocidade mais elevada, uma pessoa que desobedecesse o limite de velocidade poderia questionar por que precisamente a estrada em que ele ou ela estava dirigindo tem um limite de 60 km/h, ainda que outras estradas na mesma situação - por exemplo, em linha reta, sem inserção em perímetro urbano ou interseções etc. – possam ser trafegadas a 80 ou 110 km/h. Ele ou ela poderia reclamar uma justificação para o tratamento diferenciado da sua situação e, na ausência de tal justificação, não seria impossível para o poder judiciário decidir em seu favor, entendendo que a igualdade entre o motorista penalizado e qualquer outro motorista que viajasse a velocidades mais elevadas em outras rotas do mesmo tipo, nesse caso, teria sido desrespeitada.

Devido a isso, a decisão judicial, especialmente quando se aceita que a sua formação envolve não apenas as regras, mas também princípios,[5] é algo mais próximo de decisões 84 políticas, que visam domar o político como uma ontologia do conflito, do que de decisões técnicas, que se destinam a reproduzir discursos sedimentadas como certezas. Voltando ao exemplo do médico, ele aplica a medicação, a qual é absorvida pelo paciente. O juiz não faz algo assim com a lei. A lei não é aplicada e assimilada pelo caso. Ela muda o entendimento desse caso - por exemplo, o que era uma disputa de vizinhos torna-se um caso jurídico - e também é alterada por ela - quando cria um precedente que influencia a sua interpretação futura. Assim, a lei e o caso permanecem independentes entre si, e só são contingentemente articulados, como em uma disputa política, em que diferentes grupos pretendem falar em nome da igualdade, ou da liberdade, ou de outro valor, permanecendo como unidades separadas umas das outras, de um lado tais valores e, do outro, os movimentos sociais ou partidos políticos que os mobilizam. Não por acaso, movimentos sociais e partidos políticos, cuja atuação no campo político é amplamente conhecida, têm tido escrutinadas também suas

atuações no ambiente judicial, com objetivos bastante próximos dos objetivos que buscam em sua atuação política tradicional.

Como em um antagonismo social não está previamente decidido quem deve ser o vencedor e quem deve ser o perdedor – ao contrário do confronto entre o paciente e sua doença – resta aos grupos envolvidos na disputa se articularem questionando qual dos lados fala em nome da universalidade, sejam esses grupos partidos políticos ou partes em um processo judicial. Da mesma forma, não importa se é um caso de um partido social democrata afirmando, em oposição a um partido liberal, que o liberalismo não promove a igualdade de consideração e respeito por todos, ou de uma pessoa no exemplo anterior, penalizada por desobedecer ao limite de velocidade, que usa a mesma ideia de igual consideração e respeito por todos para evitar um tratamento que é, em sua opinião, injusto. Uma contestação judicial ou uma oposição política no parlamento tendem a gerar decisões políticas, no sentido proposto por Laclau e Mouffe, uma vez que, de acordo com esses autores, a política é precisamente a dimensão social da amortização do político, que é baseado em uma ontologia fundada em conflito.

Nem toda decisão tomada na esfera política, tal como essa esfera é rotineiramente 85 entendida – ou seja, as decisões tomadas dentro da estrutura do Estado, ou dentro da manifestação de partidos políticos ou movimentos sociais etc. – é uma decisão política como entendida por Laclau e Mouffe. Um político, no sentido profissional, ou uma instituição política, como o Congresso Nacional, tomam, em sua rotina, decisões que são mais técnicas, ou mesmo voltadas a obter vantagens pessoais, como em transações econômicas. Um partido e um governo que buscam formar uma coalizão podem negociar posições, apelando apenas para as vantagens que essa operação poderia trazer para cada lado da negociação, sem redefinir identidades coletivas, apelar para valores universais ou confrontar projetos de uma sociedade melhor. Da mesma forma, há casos judiciais em que a tendência de a decisão ser favorável a uma das partes é tão forte, que o tribunal se torna mais um lugar para barganha econômica – por exemplo, para a negociação de uma dívida reconhecida pelo devedor – do que um lugar para um conflito entre diferentes modos de entender o direito do país, cada um dando razão a uma das partes no julgamento.

Não obstante tais casos, os tribunais e parlamentos tendem a ser um espaço de desenvolvimento de um conflito mediado por regras específicas, em que a decisão final sempre apresenta certa contingência. Se esses espaços fossem configurados de forma diferente, aqueles que jogam o jogo não iriam aceitar suas regras. Portanto, o direito tem um potencial inato para configurar antagonismos sociais. Ainda assim, temos a impressão de que só recentemente o direito se tornou propriamente político. Em certo sentido, isso é verdade, pois é nas democracias constitucionais contemporâneas que a dimensão política do direito é radicalizada.

De acordo com Andrei Koerner, Celly Cook Inatomi e Marcia Baratto, “a ativação do sistema judiciário por movimentos populares para fazer valer os seus direitos e a receptividade dos juízes para estas demandas não começou ontem”. Assim, de acordo com eles, as pessoas pobres, até mesmo os escravos, não estavam presentes nas cortes apenas como contribuintes ou objetos (no caso dos escravos) de disputa. Portanto, desde a época da monarquia no Brasil, não era incomum para esses grupos mobilizarem Judiciário brasileiro para defender ou promover seus direitos (KOERNER et al., 2011, p. 167).

Esse exemplo de fato histórico serve para demonstrar o potencial inato de instituições jurídicas para a promoção da ação política no sentido amplo. Mas é com a instituição das democracias constitucionais contemporâneas que essa situação é radicalizada. Afinal, como os mesmos autores apontam, nas democracias constitucionais contemporâneas (Ibidem, pp.

172-173): 86

A ordem política adota a forma de comunidade política instituída, regulada e voltada à realização do direito. A jurisdição judicial continua como uma forma especial de investidura, mas os seus papéis na ordem política são muito mais amplos, incluindo a garantia da ordem constitucional, das condições da democracia política, do pluralismo e da efetividade do princípio do direito nas relações políticas e sociais. Eliminaram-se restrições à jurisdição judiciária, baseada em prerrogativas, domínios reservados para o exercício da autoridade; modificam-se os processos judiciais, que admitem sujeitos coletivos, objetos abstratos e decisões com efeitos gerais, para garantir o acesso a todos e controlar abusos do poder político e econômico. Generaliza-se a forma do “devido processo legal” para a tomada de decisão na administração pública. Criam-se agências autônomas e especializadas para tratar as áreas de regulação da economia e os conflitos sociais, com importantes papéis na prevenção e resolução de litígios. Adotam-se compromissos internacionais de caráter jurídico e com efeitos vinculantes, cuja efetivação pelas autoridades nacionais é controlada pelos próprios juízes dos Estados. Desenvolvem-se as técnicas de interpretação sistemática e teleológica do direito baseado em princípios do Estado de direito, da democracia e dos direitos fundamentais.

O direito das democracias constitucionais contemporâneas é mais explicitamente político por ser mais radicalmente aberto à participação de vários setores da sociedade, como intérpretes de suas normas e usuários das suas instituições. Para promover essa abertura, a presença no domínio do direito dos "patéticos postulados éticos" da justiça e da dignidade humana que Weber condenara como inadequados para um direito que tende à formalização

(WEBER, 2004, p. 146), é fundamental. A presença desses significantes vazios nesse domínio

é, ao mesmo tempo, tanto um fator de instabilidade, quanto um fator de democratização, no sentido de abertura da jurisdição à sociedade. A garantia de que o direito servirá a todos é o que o impede de garantir seus resultados para alguns.

Consequências teóricas e metodológicas

Quais são as consequências teóricas e metodológicas de se compreender o direito e a judicialização da política tal como foram caracterizados nas seções anteriores? Em primeiro lugar, em termos teóricos, a presente abordagem nos dá alternativas perante outras perspectivas teóricas mais comuns sobre o direito na sociologia. Existem outras opções interessantes na teoria social para lidar com judicialização, seja nas diversas abordagens institucionalistas ou atitudinais da ciência política,[6] seja nas abordagens características da antropologia, ou ainda nas abordagens tipicamente sociológicas que serão meu foco. Abundam na teoria sociológica contemporânea, por exemplo, categorias que podem nos ajudar a entender o direito, e, especialmente, como, quando agem no mundo, os juízes lidam com as instituições jurídicas e políticas como estruturas sociais. Essas categorias poderiam ser 87 encontradas, por exemplo, na teoria da estruturação de Giddens ou na teoria do habitus de Bourdieu. ou mesmo em correntes teóricas mais atuais, como na teoria do ator-rede de Bruno Latour ou no pragmatismo francês de Luc Boltanski. Mas outros dois teóricos sociais são mais frequentemente usados para lidar com as novas relações entre direito e política, e eu vou concentrar minhas considerações nas obras dos dois. São eles Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. Meu ponto é que ambos apresentam uma teorização muito interessante e frutífera sobre a lógica do social que abrange práticas importantes relacionadas ao direito e à política. Na verdade, entendo que eles desenvolveram categorias e teorias para lidar com essas práticas que iluminam essa dimensão social sob luzes mais promissoras do que Laclau e Mouffe. No entanto, ao contrário de Laclau e Mouffe, eles não forneceriam bons instrumentos para lidar com o que aqui foi chamado de “o político”, que abrange uma dimensão importante da chamada judicialização da política.

Se a lógica do social abrange práticas sociais sedimentadas e os sistemas sociais, de acordo com Luhmann, diferenciam-se de seu ambiente por práticas recursivas de comunicação consolidadas ao longo do tempo, é possível identificar a autopoiese dos sistemas com a lógica do social. De acordo com essa abordagem teórica, a transformação dos sistemas sociais está relacionada a processos internos baseados em programas internos consolidados e as mudanças no sistema são parte da caixa preta do processo de autopoiese. Logo, as relações entre direito e política, em sociedades complexas, nas quais os sistemas jurídico e político são bem diferenciados, são relações entre dois sistemas fechados que só reagem um ao outro através de processos internos orientados por códigos e programas próprios, mesmo que o direito constitucional possa aparecer como um acoplamento estrutural entre os dois sistemas. A consequência é que os autores influenciados por Luhmann têm uma tendência a compreender as decisões políticas tomadas pelos juízes como algo próximo a patologias no sistema jurídico. Por exemplo, Guilherme Leite Gonçalves (2011, p. 89), afirma que:

Se, na ascensão do Estado Social, o direito era utilizado como “meio” para legitimar a ação política, em seu momento de crise, torna-se o espaço para o qual o sistema político delega, por meio da inflação legislativa, suas competências decisórias com a finalidade de se isentar da execução dos programas de bem-estar e repassar para o direito a insatisfação social. É dessa forma, que, pela discricionariedade que lhe foi concedida, o direito atua como político. O problema é que o sistema jurídico é dotado de uma unidade organizacional e operativa – coisa julgada, princípio da 88 inércia, “non liquet” [obrigação de decidir] – que o torna uma estrutura inábil para trabalhar com temáticas politizadas. (...) O esquema aqui apresentado é simples: a inflação legislativa e os conceitos jurídicos indeterminados, gerados pela crise do Estado Social, aumentam a polissemia das normas e destroem a unidade lógica do sistema jurídico. Ampliando-se a discricionariedade do magistrado, que passa a atuar politicamente, produzindo decisões que esbarram nas estruturas forjadas pelo direito.

Com certeza, podemos contestar esse tipo de uso normativo da teoria luhmanniana, tendo em vista os interesses exclusivamente analíticos do autor. Mas é uma abordagem possível para lidar com um problema que a teoria dos sistemas não nos ajuda a compreender de forma mais profunda. Se nós entendermos o político como uma dimensão que permeia toda a realidade social, incluindo os sistemas sociais, esperando para ser ativada nos momentos de crise, podemos repensar a judicialização da política de forma mais promissora. Como um sistema social, podemos entender que o sistema jurídico tem algumas estruturas e lógicas de operação regularizadas ao longo do tempo. No entanto, se somarmos a isso a dimensão do político como uma dimensão da emergência do real lacaniano contra estruturas bem sedimentadas, como proposto por Laclau e Mouffe, podemos entender a “politização da justiça”[7] – assim como de outros sistemas, tal qual a politização da arte, ou da ciência, ou mesmo, da própria política – como momentos de instabilidade dos sistemas que não podem ser evitados por meio de suas operações padronizadas, e que não apenas fazem os sistemas mudarem, como também tornam tais mudanças uma exigência.

Entendo que a teorização de Habermas vai mais longe quando ele acrescenta à realidade social sistêmica o locus do mundo da vida. No entanto, mais uma vez, não há um lugar aqui para a dimensão do político: tanto o mundo da vida, quanto os sistemas sociais, são parte do que Laclau e Mouffe chamam “o social”. Pois vejamos. Os sistemas econômico e político têm um funcionamento regular ao longo do tempo mediado por seus meios nãocomunicativos do dinheiro e do poder. Já o mundo da vida é um estoque de conhecimentos não imediatamente contestável, que as pessoas têm e que só pode ser parcialmente discutido em uma ação comunicativa. Ambos os conceitos são, portanto, referidos a práticas sociais sedimentadas, o que Laclau e Mouffe incluem sob a categoria do social.

O direito aparece nessa construção teórica como um híbrido: sua faceta sistêmica garante às suas normas que elas serão efetivadas, enquanto seu uso da linguagem comum assegura a sua legitimidade como reflexo dos consensos estabelecidos pelo mundo da vida na esfera pública, pelo menos, em democracias deliberativas. A judicialização da política é 89 aceitável na construção teórica habermasiana se ocorrer para impor esses consensos parciais do mundo da vida ou para garantir as condições processuais básicas de uma comunicação livre que possa influenciar o sistema político de tomada de decisão. No entanto, com base em razões sistêmicas ou do mundo-vida, essa judicialização é ainda completamente baseada na lógica do social.

É verdade que a chamada ação comunicativa desestabiliza algumas partes estáveis do mundo da vida. Mas essa forma de compreender a reativação da dúvida em contextos de certezas sedimentadas dá aos sujeitos muito controle sobre esse processo, além de sobrecarregar normativamente essa operação, submetendo-a à lógica da razão comunicativa como novo tipo de razão prática. Imaginemos um pai conservador tematizando o tema da homossexualidade, ao descobrir que o filho é gay. Até que ponto essa tematização responde a uma ação comunicativa e até que ponto ela responde a uma instabilidade mais profunda nos discursos que davam à inteligibilidade ao mundo desse pai? E mais: como compreender que essa instabilidade não precisa responder a influxos de uma racionalidade comunicativa, mas sim pode radicalizar uma identidade irracional, como uma identidade fundamentalista religiosa, por exemplo?

anteriormente explicado. Não está em jogo aqui, simplesmente, o caso em que se usa a ideia de “politização do direito”, da influência dos valores políticos dos juízes em suas decisões.

Entendo que a ideia do político como uma forma de lidar, pela via do antagonismo, com emergência do real contra o plano simbólico traduz melhor a agonia e a urgência do agir de um ator político que precisa atuar para restaurar a inteligibilidade do seu mundo ou sua própria identidade comunitária, menos pela racionalidade comunicativa do que pela oposição característica das identidades políticas entre um “nós” e um “eles”, conforme destacado por Chantal Mouffe (2103). Nesses termos, a judicialização não seria apenas uma maneira de impor consensos sociais, proteger os procedimentos democráticos e buscar a racionalização progressiva das normas de convivência humana, mas também uma estratégia política utilizada por alguns grupos para dar concretude a seus valores ou interesses por meio de uma articulação discursiva capaz de definir identidades políticas novas, ou reforçar as antigas.

No que se refere às consequências metodológicas do uso das categorias do social e do político para entender o direito e sua intervenção na política, vou fundamentar minhas reflexões especialmente no trabalho Logics of critical explanation in social and political theory, de David Howarth e Jason Glynos. Nesse trabalho, Howarth e Glynos abandonam a possibilidade de explicação por indução e dedução nas ciências sociais. Por conseguinte, eles se concentram em explicações por retrodução, em que mais do que mecanismos causais ou 90 contextualizações das auto-explicações dos sujeitos pesquisados, o analista estaria interessado na lógica subjacente às práticas discursivas que serão analisadas. Com isto em mente, baseados na teoria do discurso de Laclau e Mouffe e na psicanálise lacaniana, os autores sugerem como um parâmetro crítico de explicação nas ciências sociais as lógicas do social, do político e da fantasia (HOWARTH; GLYNOS, 2007, pp. 1-8).

Nesse ponto, Howarth e Glynos chegam a uma orientação metodológica também endossada por Marianne Jørgensen e Louise Phillips, como uma forma de considerar a posição do investigador que lhe permite escapar do senso comum e das auto-representações dos autores dos discursos que analisam. Essa orientação metodológica é o que Jørgensen e Phillips chamam de "redescrição analítica". De acordo com elas

Basil Bernstein sugere que pensemos as teorias como "linguagens de descrição" e a aplicação da teoria como tradução do material empírico para a sua língua. Através deste processo de tradução, alguns dos aspectos tomados como certos do material são desnaturalizados. Todas as abordagens de análise de discurso apresentadas neste livro fornecem a possibilidade de redescrever um material empírico. A teoria do discurso e da articulação de Laclau e Mouffe e seus conceitos de significantes flutuantes, mitos e assim por diante pode, por exemplo, ser vista como uma forma de linguagem que pode descrever o material empírico de uma maneira diferente da maneira em que ele se descreve a si mesmo (JØRGENSEN; PHILLIPS, 2002, p.189).

A sugestão metodológica de Howarth e Glynos também faz uso das categorias de Laclau e Mouffe como forma de possível descrição do material empírico, enquadrando-o sob a lógica social e política - para além da lógica fantasmática, tomada de psicanálise lacaniana. A categoria de “articulação”, também tirada das obras de Laclau e Mouffe, desempenha aqui, igualmente, um papel fundamental. Contra um legado positivista da ciência, que afirma que a explicação é uma subsunção de fatos à teoria, Howarth e Glynos chamam atenção para a forma como o pesquisador não opera tal subsunção, mas procede a uma articulação entre teoria e material empírico que transforma os dois lados articulados, formando um novo discurso em que teoria e dados empíricos não têm o mesmo significado que tinham antes de serem articulados pelo pesquisador. Eu acredito que a "redescrição analítica" como proposta por Jørgensen e Phillips, encaixa-se bem nessa perspectiva.

Assim, com base em como Howarth e Glynos operacionalizam essa redescrição, cujas fontes também são tomadas da teoria do discurso de Laclau e Mouffe, eu entendo que nós podemos nos concentrar na análise da lógica da política presente na construção das decisões judiciais de uma política judicializada, sem descuidar da lógica do social que também está por trás de algumas práticas judiciais importantes. Portanto, como nós começamos este estudo 91 pela consideração da decisão judicial como uma potencial decisão política, creio que podemos submetê-la a uma análise de discurso como a descrita acima, especialmente atenta a explicar como certas práticas sociais obedeceriam a uma “lógica política” tal como proposta por Laclau e Mouffe, não sendo diferente o caso das práticas jurídicas.

Considerações finais

Por que, por vezes, temos a impressão de que os juízes ignoram fronteiras judiciais para intervir na política? E por que, às vezes, nós pensamos que eles não o fazem? De acordo com o que foi desenvolvido neste artigo, isto ocorre porque às vezes a decisão judicial é tomada sob a lógica do político, e, às vezes, pelo contrário, ela é tomada sob a lógica do social. Isto é, por vezes, o que está sendo discutido em um julgamento vai além da mera repetição de padrões legais bem estabilizados que poderiam classificar as alegações das partes como lícitas ou ilícitas, conforme a clássica classificação realizada pelas comunicações do sistema jurídico, tal qual descrito por Niklas Luhmann. Nesses casos, tais julgamentos envolvem também a redefinição das fronteiras de identidades coletivas e antagonismos sociais. Estas são as situações em que Judiciário não atua sob a lógica do social, mas sob a lógica do político, no sentido que esses termos possuem na obra de Laclau e Mouffe. Nessa situação em que a esfera judicial é procurada por uma demanda política, eu entendo que podemos falar sobre “judicialização da política”.

Na seção anterior, foram discutidas as consequências teóricas e metodológicas dessa abordagem. Mas o que podemos dizer sobre as suas consequências normativas? Ela nos faz compreender a judicialização da política numa direção boa ou ruim? A meu ver, esse entendimento sobre a judicialização da política nos exige maior dedicação à avaliação dos casos concretos em que diferentes grupos sociais fazem uso do aparato judicial para manter ou transformar os discursos jurídicos sobre o lícito e o ilícito. Diferentemente de outras abordagens que poderiam compreender a judicialização como algo contra a natureza de um sistema político saudável e com fronteiras bem definidas entre as atribuições de juízes e políticos, aqui eu entendo que a judicialização da política é sempre uma possibilidade incluída em procedimentos judiciais.

Mesmo que esses procedimentos tenham uma dimensão social de repetição e padronização de parâmetros – como a distinção entre situação/oposição, a arena política, ou lícito/ilícito na arena jurídica – eles também possuem momentos em que precisam lidar com 92 deslocamentos discursivos e com a genuína ação política enquanto busca da hegemonia. E o surgimento desse caráter político - e, consequentemente, contestável – da ordem jurídica tem um potencial democrático que não pode ser negligenciado, ainda que a forte tendência de manutenção das estruturas sociais não possa ser desprezada e se apresente de forma vigorosa entre membros de uma elite, como os membros da elite jurídica. Por exemplo, o movimento gay poderia usar os procedimentos contra-majoritários do Judiciário para tentar redefinir discursos tradicionais sobre o que é uma família de uma forma mais bem-sucedida do que ele poderia fazer em uma arena de natureza majoritária como o Congresso Nacional.[8]

É por motivos como este que a abertura de mais uma arena para a disputa política - nesse caso, a arena judicial - pode ser vista como um ganho democrático, indo em direção a uma radicalização da democracia, tal como reivindicado no projeto de Laclau e Mouffe de “democracia radical” (LACLAU; MOUFFE, 2006, p. 222). Seguindo os autores, o pluralismo característico das sociedades modernas, que. mais do que factual, seria ontológico, faz com que a lógica democrática deva ser radicalizada e expandida para diferentes dimensões da vida em sociedade, incluindo não apenas as instâncias propriamente governamentais, mas também o ambiente familiar, do trabalho etc.

Ainda que a judicialização da política possa servir de proteção a elites contra os influxos democráticos populares – por exemplo, quando o “direito à propriedade” é mobilizado contra políticas redistributivas –, não há como negar que outras dimensões do discurso jurídico possam justificar medidas mais igualitárias e inclusivas, como no exemplo clássico da negação, pela Suprema Corte do Estado Unidos, da validade das leis de segregação racial existentes no país. No Brasil, ainda que numerosas decisões judiciais de perpetuação das desigualdades possam ser apontadas nas práticas de nossos tribunais, não é possível ignorar ao menos o potencial transformador que possuem ações como as ações constitucionais que permitiram o reconhecimento da união homoafetiva e a interrupção de gravidez de fetos anencefálicos no país. Sendo assim, apenas a análise dos casos concretos é capaz de responder a questões relativas às suas consequências. O que o presente trabalho buscou fazer foi oferecer, a essa análise de casos, um ferramental teórico que possa ser útil a

análises desse tipo. 93

Referências

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