Dossiê

Três leituras sobre o dissenso na Arte Pública: antagonismo, heterotopia e ficção

Three readings about disense in Public Art: antagonism, heterotopia and fiction

Tres lecturas sobre lo disenso en el Arte Público: Antagonismo, heterotopia y ficción

Diego Kern Lopes
UERJ, Brasil

Três leituras sobre o dissenso na Arte Pública: antagonismo, heterotopia e ficção

Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 2, pp. 117-135, 2019

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: O artigo analisa o papel do dissenso e do conflito nas manifestações artísticas contemporâneas no espaço público a partir do exame de três elaborações teórico-conceituais. Apresenta as perspectivas das autoras Chantal Mouffe e Rosalyn Deutsche para debater a importância do dissenso em práticas artísticas democráticas, sobretudo, com ênfase no antagonismo. Além disso, examina o conceito de “heterotopia” de Michel Foucault e seus elementos relevantes para compreender a relação entre dissenso e instituição. A terceira abordagem teórica examinada é a ideia de “ficção” de Jacques Rancière e seu potencial crítico para as manifestações artísticas. Nestas análises do dissenso evidenciase, entre outros aspectos, o lugar contingencial, histórico e político das construções artísticas – aspecto fundamental na análise da arte pública.

Palavras-chave: Arte Pública, Dissenso, Antagonismo, Heterotopia, Ficção.

Resumen: El artículo examina el papel de la disenso y el conflicto en las manifestaciones artísticas contemporáneas en el espacio público a partir del examen de tres elaboraciones teórico-conceptual. Presenta los puntos de vista de los autores Chantal Mouffe Rosalyn Deutsche, y para discutir la importancia de lo disenso en las prácticas artísticas democrática, sobre todo, con énfasis en el antagonismo. Además, se analiza el concepto de "heterotopía" Michael Foucault y sus elementos relevantes para comprender la relación entre lo disenso y la institución. El tercer enfoque teórico que se examina es la idea de la "ficción" de Jacques Rancière y su potencial crítico para la expresión artística. En estos análisis del disenso se pone de manifiesto, entre otras cosas, el lugar de la contingencia, construcciones históricas y políticas del arte - aspecto fundamental en el análisis del arte público.

Palabras clave: Arte Público, Dissenso, Antagonismo, Heterotopia, Ficción.

Abstract: The article analyzes the role of dissent and conflict in contemporary artistic manifestations in public space by examining three theoretical-conceptual elaborations. It presents the perspectives of the authors Chantal Mouffe and Rosalyn Deutsche to discuss the importance of dissent in democratic artistic practices, especially with an emphasis on antagonism. It also examines Michael Foucault's concept of “heterotopia” and its relevant elements to understand the relationship between dissent and institution. The third theoretical approach examined is Jacques Rancière's idea of “fiction” and its critical potential for artistic manifestations. These dissent analyzes show, among other aspects, the contingent, historical and political place of artistic constructions - a fundamental aspect in the analysis of public art.

Keywords: Public Art, Dissense, Antagonism, Heterotopia, Fiction. .

Três leituras sobre o dissenso na Arte Pública: antagonismo, heterotopia e ficção

Introdução

Cada vez mais a contemporaneidade exige do artista e o do público atenção nas formas de produção e recepção das manifestações poéticas e artísticas. Essa atenção deve ser redobrada quando a manifestação se pretende minimamente crítica. Não raro, muitos trabalhos que se pretendem críticos resvalam desde sua execução, transformando-se, de pronto, em mera ilustração de um problema. Isso é perigoso. Principalmente pelo fato de que, muitas vezes, os alvos aos quais essas críticas se destinam representam forças instituídas totalmente aptas a digerirem, redirecionarem e reutilizarem a potência poética do trabalho em proveito próprio. Nesse sentido, o artista contemporâneo que pretende criticar as estruturas que formam o mundo da vida e, consequentemente, o mundo da arte, deve desdobrar-se constantemente na análise, reflexão e autocrítica de seus próprios meios.

O presente artigo tem por objetivo gerar uma reflexão teórica acerca do papel do dissenso e do conflito nas manifestações artísticas contemporâneas no espaço público. Nesse sentido, tratamos de realizar uma análise que permeia elementos dos campos de estudo teórico da arte e da política. Apresentamos e refletimos, a partir de três distintas elaborações teórico- 118 conceituais, o tema do dissenso na arte pública.

Para tanto, na primeira seção, analisaremos as perspectivas de Chantal Mouffe e de Rosalyn Deutsche para debater a importância do dissenso em práticas artísticas democráticas, sobretudo, com ênfase no antagonismo. Nessa aproximação que a teoria da arte contemporânea realiza com a teoria política, evidencia-se o lugar contingencial, histórico e político das construções artísticas – aspecto fundamental na análise da arte pública. Na sequência, propomos que o conceito de “heterotopia” de Michel Foucault traz elementos relevantes para se compreender a relação entre dissenso, instituição e espaço público. Do mesmo modo, examinamos a ideia de “ficção” de Jacques Rancière para sugerir como o dissenso pode se constituir em potencial crítico para as manifestações artísticas. No exame dessas diferentes abordagens, também serão apontados aspectos complementares, tais como questões relativas à instituição, à política, à identidade e aos elementos constitutivos do espaço público. No momento final, que chamamos aqui de “jogo de inscrições e apagamentos”, apresentaremos dois registros de casos que exemplificam os conceitos abordados. Esperamos que o presente texto permita que o leitor passe a reexaminar o meio sensível que o cerca.

A importância do antagonismo nas práticas artísticas

Uma das principais referências para a teoria da arte contemporânea, no que se refere à defesa da tese do dissenso, está na proposta da teórica política Chantal Mouffe. A proposta analítica que a autora elabora sobre o espaço público, a arte e, consequentemente, sobre a relação entre arte e política será fonte de fundamentação e inspiração para uma importante historiadora da arte, sobretudo, no que se refere ao conceito de espaço público no contexto da arte. Esta autora é Rosalyn Deutsche. Nesse sentido, faz-se relevante analisar inicialmente os pontos centrais da obra de Mouffe que dialogam com a teoria da arte.

Para Mouffe, “o político” é a dimensão dos antagonismos[1] onde se distinguem inimigos de amigos, sendo que tais antagonismos podem surgir em qualquer tipo de relação – uma possibilidade sempre presente e inerente às relações humanas. Aqui, “o político” se refere à impossibilidade de um mundo sem antagonismos, ou seja, à própria condição ontológica das sociedades humanas (MOUFFE, 1996). Por sua vez, “a política” é o conjunto de discursos, de práticas e instituições, também artísticas, que contribuem a uma ordem e a

reproduzem sendo, assim, sempre potencialmente conflituosas por serem afetadas pelo 119

“político” (MOUFFE, 2012). Esses dois conceitos estão sempre em condições potencialmente conflituosas por se apresentarem permeados ou atravessados pela dimensão “do político” (MOUFFE, 2007). Nesse sentido, não existiria possibilidade de neutralidade política nas manifestações poética e artística. Nas palavras da autora:

Como a dimensão “do político” sempre está presente, nunca pode haver uma hegemonia completa, absoluta, não excludente. Neste contexto, as práticas artísticas e culturais são absolutamente fundamentais como um dos níveis em que se constituem as identificações e as formas de identidade. Não se pode distinguir entre arte política e arte não política, porque todas as formas de práticas artísticas ou bem contribuem à reprodução do sentido comum dado – e nesse sentido são políticas – ou bem contribuem a sua destruição ou sua crítica. Todas as formas artísticas têm uma dimensão política (MOUFFE, 2007, p. 26).

Segundo a autora, as práticas artísticas podem desempenhar um papel na luta contrahegemônica sobre a dominação capitalista. Entretanto, para verificar como elas podem fazer uma intervenção eficaz, é necessário entender a dinâmica da política democrática que, segundo Mouffe, só pode ser alcançada mediante: (1) o reconhecimento do “político” em sua dimensão antagônica e (2) o “caráter contingente” de qualquer tipo de ordem social. Em outras palavras, não há elementos essenciais nas estruturações das ordens sociais, sendo que estas construções se desdobram no espaço e no tempo. A partir destas duas premissas, podemos compreender que é a luta hegemônica que caracteriza a política democrática, sendo nesse movimento, nessa luta, que as práticas artísticas podem desempenhar um papel decisivo.

Entretanto, segundo a autora, o antagonismo tende a ser mascarado, pois o liberalismo, no qual vivemos, defende a possibilidade de um consenso. Um dos princípios fundamentais desse liberalismo é a crença racionalista na possibilidade de um consenso universal baseado na razão[2]. Esse projeto de liberalismo tem que negar o antagonismo, pois este, ao trazer à tona o inevitável momento de decisão – no sentido próprio de ter que decidir em uma área indecidível – faz com que ele próprio (o antagonismo) revele o limite de qualquer consenso racional.

Nesse sentido, toda sociedade é o produto de uma série de práticas cuja função é 120 estabelecer ordem em momentos de contingência. Práticas que se pretendem hegemônicas. Assim, toda ordem é política e está baseada em algum tipo de exclusão (MOUFFE, 1996). Sempre existem outras possibilidades que foram reprimidas e podem se reativar. As práticas articulatórias mediante as quais se estabelece determinada ordem e se fixa o significado das instituições sociais são práticas hegemônicas. Toda ordem hegemônica é suscetível à impugnação por práticas hegemônicas contrárias – práticas que têm por objetivo desarticular a ordem existente e instaurar outra forma hegemônica.

Dessa disputa entre projetos hegemônicos, surge o que a autora denomina de “luta agonista”. Para a autora “o antagonismo é uma luta entre inimigos, enquanto o ‘agonismo’ é uma luta entre adversários” (MOUFFE, 2003, p. 115). Nessa luta, o que estaria em jogo seria a configuração das relações de poder em torno da qual se estrutura uma determinada sociedade. Mouffe defende que um dos espaços dessa luta seria o “espaço público”. Tal espaço não seria um campo de consenso, mas sim, um campo de batalha onde se enfrentam diferentes projetos hegemônicos, sem possibilidade de conciliação. Os espaços públicos são sempre plurais e a confrontação se produz em uma multiplicidade de superfícies discursivas.

Uma dessas possibilidades discursivas seria o das práticas artísticas e poéticas críticas no espaço público.

Direcionando esse debate de forma mais direta ao campo da arte, Rosalyn Deutsche, em seu trabalho intitulado Agorafobia, inicia perguntando: “o que quer dizer que um espaço seja público? O que faz com que o espaço de uma cidade, de uma edificação, de uma exposição, de uma instituição, seja público?” (DEUTSCHE, 2008, p. 3). A autora destaca que essa questão tem estado na pauta de acirradas discussões durante as últimas décadas e que a permanência e duração do debate, assim como a intensidade do mesmo, encontra origem na constatação de que “o modo como definimos o espaço público está intimamente ligado a nossas ideias relativas ao significado do humano, da natureza, da sociedade e do tipo de comunidade que queremos” (Ibidem, 2008, p. 3).

Entretanto, segundo a autora, apesar dos embates, um aspecto parece ser defendido pelos diversos posicionamentos sobre a questão, a saber, que o apoio e a defesa das coisas que são públicas promovem a sobrevivência e a expansão de uma cultura democrática (Ibidem, 2008). A autora ainda salienta que essa relação pode ser percebida na linguagem aplicada por parte dos órgãos, instituições, administradores e funcionários no tocante às questões das 121 políticas artísticas destinadas a algum tipo de espaço público. Não raro, perguntas tais como as obras de arte são para o povo, elas estimulam algum tipo de participação, são destinadas aos eleitores surgem e fazem alusão às relações entre arte e democracia enquanto forma de governo.

De forma semelhante, com a intenção de garantir algum tipo de ideal democrático, invariavelmente questiona-se se tais obras podem promover uma ampla acessibilidade perceptiva do público através da negação de qualquer tipo de caráter elitista. Entretanto, segundo Deutsche, devemos ficar atentos a estes discursos que, a partir do jogo entre os conceitos de democracia, arte pública, acessibilidade e elitização, argumentam que os aspectos excessivos dos governos, assim como a potência crítica de alguns trabalhos de arte pública podem comprometer o acesso da população aos espaços públicos.

Como exemplo, a autora cita o caso do desmantelamento e da remoção da obra Tilted Arc[3], de Richard Serra, onde o argumento principal daqueles que eram favoráveis à remoção da obra fundamentava-se no aspecto, literal, da acessibilidade democrática, uma vez que o trabalho forma uma espécie de muro ou parede que redefine o espaço da praça. Segundo o próprio artista, a intenção era a de trazer o espectador para dentro da escultura, sendo que, uma vez que a peça fosse instalada, o espaço seria compreendido como uma função da escultura.

Essa reorientação do espaço, ao mesmo tempo em que expunha a percepção de Serra sobre a Federal Plaza como uma representação do sistema judiciário dos EUA, fazia com que a obra não se integrasse como parte deste mesmo espaço – enquanto representação do sistema. Para manter sua integridade a arte tinha que ser de oposição Por sua vez, aqueles que eram favoráveis à manutenção da obra argumentavam que retirá-la era o mesmo que aniquilar o direito à liberdade de expressão do artista, o que comprometeria profundamente os mesmos princípios democráticos que estavam sendo usados como argumento por aqueles que defendiam a remoção da escultura.

Tilted arc: Richard Serra
Figura 1
Tilted arc: Richard Serra

Diante das questões e dos dilemas que surgem a partir do uso e da manifestação artística em espaços públicos (manutenção ou remoção das manifestações), Deutsche destaca um terceiro posicionamento, definido como democrático, que, invariavelmente, surge como forma de solucionar tais questões, a saber, a aplicação de princípios comunitários na seleção e na implantação das obras de arte em relação ao espaço que irão ocupar. Entretanto, segundo a autora, apesar desta perspectiva se demonstrar positiva em alguns casos, encará-la como uma fórmula para ser sempre aplicada a fim de solucionar as questões da arte pública implicaria presumir que a tarefa da democracia seja apenas a de acalmar e não expor e sustentar os conflitos sociais. Nesse sentido, a autora se junta a Mouffe na defesa do papel central do dissenso e do conflito para a democratização do espaço público e da arte.

A partir desta constatação é que, segundo Deutsche, a democracia tem sido uma realidade cada vez mais relevante para a arte pública, pois a relação da arte pública não se restringe somente a uma relação com o espaço, mas também, e principalmente, com os elementos que formam e se formam neste espaço. Segundo a autora, apesar das mudanças políticas ocorridas no transcorrer do século XX e início do século XXI, é preciso acautelar-se sobre o discurso que, principalmente após a queda do bloco socialista soviético, defende que a democracia tenha triunfado de forma definitiva como único sistema possível para a sociedade. Tal especulação encontra respaldo principalmente na defesa retórica de que o sistema democrático, por si só, tem a potência de eliminar as incertezas e consequentes injustiças sociais e políticas. Diante desta perspectiva, a autora argumenta que a democracia, antes de ser a única solução, ainda é uma questão que traz em si a construção do espaço público 123

(DEUTSCHE, 2008). O poder democrático encontra sua legitimação no movimento decorrente das relações de negociação que se desenvolvem neste espaço.

Sendo assim, a contribuição da autora é a de caracterizar o espaço público como, potencialmente, a institucionalização dos debates e conflitos inerentes à sociedade. Dessa forma, a democracia e o espaço público só existem quando as bases essencialistas são abandonadas e o corpo social se forma através da possibilidade de disputas abertas. Diante disto, a identidade da sociedade não é fechada. Ao contrário, é uma realidade mutável em função desses debates e conflitos que a constituem. Tal abertura faz com que, consequentemente e simultaneamente, os elementos que formam essa sociedade também não apresentem identidades essenciais, ou seja, fechadas e completas.

Assim, Deutsche ressalta e concorda com Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1985) na definição de que essa relação de impedimento, causada por esse “exterior constitutivo[4]”, que deixa as identidades abertas, incompletas e precárias – contingentes – é designada como uma relação de antagonismo. Entretanto, essa impossibilidade de totalidade e completude social não deve ser encarada com desesperança, mas como a principal causa ou ponto de partida para o constante desenvolvimento de políticas e práticas democráticas. Nesse sentido, Deutsche defende que ao se pensar arte pública na contemporaneidade como forma de manifestação de uma cultura democrática, deve-se ter por base e objetivo essa estrutura aberta e incerta.

A partir dessas constatações, Deutsche alerta sobre o quanto a arte pública oficial, através de programas de apoio oriundos das instituições, tem funcionado como elemento importante na manutenção das positividades e discursos subordinadores. Segundo a autora, ao utilizar-se de elementos como a “continuidade histórica, a preservação da tradição cultural, do embelezamento cívico e do utilitarismo”, a arte pública contribui para a construção de espaços onde os aspectos de conflito da sociedade são suprimidos (DEUTSCHE, 2008, p. 14). Dessa forma, o dissenso é apresentado como a única possibilidade de que os espaços não sejam neutralizados.

Nessa perspectiva, a arte pública sempre participa e cria um espaço político, fazendo 124 com que se torne impossível não assumirmos nossas identidades políticas – que se constroem, assim, nessas relações de associação e antagonismo. Decorre, então, que o espaço público, segundo a autora, não é, por si só, suficiente para garantir a prática democrática. É preciso lembrar que esse espaço também é criado de forma política e que as noções de legitimidade que o cercam e o constituem – assim como a sociedade – são frutos do conflito. Desse jogo resulta que o espaço público é sempre exclusivo e que é justamente essa característica que mantém o jogo – uma espécie de condição ontológica da sociedade, como sugere Mouffe.

Para Deutsche, portanto, o que devemos nos esforçar em manter ativos, enquanto práticas democráticas, são a manifestação e a exposição dos conflitos no/do espaço público através da arte pública. Tais manifestações públicas devem servir para manter e expor o espaço aberto, o que não significa um espaço isento de resistência, mas, pelo contrário, que justamente é aberto por oferecer resistência, pois mostra que, efetivamente, não é constituído por elementos positivos e fechados, mas sim por elementos negativos e incompletos que precisam, necessariamente, lutar, constantemente, para existir.

relação do tipo nós/eles, seja religiosa, étnica, nacional, econômica ou outra, torna-se o centro de um antagonismo político” (MOUFFE, 1996, p.13).

Dessa forma, o espaço público e a arte pública devem ter por objetivo a exposição do sistema de intenções que constituem a sociedade e, consequentemente, que o constituem, objetivando rechaçar as ideias de elementos essenciais como criadoras do conceito de público, pois permitir tais verdades, tais essências, é permitir a existência de poderes autoritários.

Heterotopia e Ficção: as transformações do dissenso na relação entre espaço público e instituição

Retomando a questão dos problemas referentes à apropriação positiva do espaço público, faz-se necessário verificar possíveis formas de ação e reação das estruturas hegemônicas neste campo. Identificamos duas possibilidades de ação/reação oriundas do poder hegemônico no tocante à construção de elementos positivos e fechados na arte pública. Ambas, apesar de se diferenciarem quanto à estratégia, se completam em objetivo. São elas:

(1) a imposição de símbolos e estruturas e (2) o controle através de dispositivos de disciplina e vigilância destes espaços. Sobre a primeira estratégia, destaco a afirmação de Anne

Cauquelin no que diz respeito ao uso institucional do espaço público: 125

[...] a atividade artística sempre foi requisitada pelo poder para dar visibilidade aos conceitos que lhe servem de princípios. Arcos do triunfo, castelos, planos urbanísticos, avenidas em perspectiva, jardins e parques reais, teatros, essas realizações sempre responderam a uma concepção definida pelo comanditário; é ele que escolhe a execução desse ou daquele projeto, o que melhor corresponde à ideia que faz de sua própria imagem – do que ele pretende exibir como imagem (CAUQUELIN, 2005, p. 162).

Seguindo esta premissa, abre-se no espaço público, no que se refere aos monumentos, a possibilidade de uma leitura sobre os desdobramentos dos valores constituídos no espaço e no tempo. Tais desdobramentos refletem-se na forma e função destas construções. Submetidos às mudanças históricas, os monumentos trazem em si o conjunto das relações sociais, políticas, econômicas e culturais de seu tempo. Se antes funcionavam apenas como faróis a iluminar – ou cegar e ofuscar – destinos e fins ideais, contemporaneamente podem também servir de suporte para críticas e reflexões de um determinado status quo. Ou seja, os monumentos (principalmente os que fazem referência a personalidades e fatos históricos) trazem sintetizados, condensados em si, a massa de conceitos, o encadeamento narrativo idealizado, as intenções, realizações e projeções de um poder institucionalizado com pretensões hegemônicas. Essa pretensa hegemonia reside no ato de inserir essa marca

(monumento – condensação de conceitos) no espaço público, no espaço que deveria ser aberto

e de todos. A inserção de um símbolo, de uma materialidade ideológica perspectiva cuja função é firmar e reafirmar, constantemente, uma determinada ordem.

Podemos desdobrar, também, que não só o monumento, mas o espaço do monumento, a praça, os espaços de memórias e construções, os museus, bibliotecas, podem ser igualmente percebidos como formas de estruturação de redes discursivas. Como Foucault definiu, poderiam ser compreendidos como espaços heterotópicos.

No texto Outros espaços, Foucault (2009) apresenta uma breve história sobre as mudanças ocorridas na noção de espaço. Inicia descrevendo que, na Idade Média, o espaço era percebido como hierarquizado em função dos lugares. Estruturas dialógicas indicavam a situação espacial, o mundo dividia-se, por exemplo, em lugares sagrados e lugares profanos, lugares protegidos (fechados) e lugares desprotegidos (abertos), lugares urbanos e lugares rurais, lugares supracelestes e lugares celestes.

Segundo o autor, o espaço medieval podia ser entendido como um espaço fundamentado na localização. A partir de Galileu e de sua teoria heliocêntrica, ocorre uma mudança. Ao deslocar o centro do sistema e do universo (da Terra para o sol) o espaço tornase infinito e infinitamente aberto (a humanidade não era mais o centro da criação). O lugar das 126 coisas tornava-se relativo e não fixo. O espaço passava a ser percebido não mais em função da localização, mas sim da extensão. A alternativa encontrada para codificar a percepção do espaço em função da extensão foi começar a perceber o espaço em função do posicionamento.

Para Foucault, “estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos” (Ibidem, 2009, p. 413).

Apesar das mudanças de percepção do espaço (localização – extensão – posicionamento), na prática, segundo Foucault, ainda podemos perceber que o espaço não foi inteiramente dessacralizado. Certos jogos de oposição como espaço privado e espaço público, espaço da família e espaço social, espaço da cultura e espaço do útil, espaço de lazer e espaço de trabalho, ainda são tidos como naturais (não criados). No fundo, o que estes jogos de (o)posição revelam são as relações que definem os posicionamentos nos quais vivemos. A análise destas relações poderia trazer à tona os elementos que, ainda, sacralizam o espaço e estruturam o mundo, entre, por exemplo, aquilo que deve ser incluído e aquilo que deve ser excluído na delimitação deste espaço.

Seria possível, segundo o autor, empreendermos uma lista descritiva que fosse abarcando, um por um, os tipos de relação de posicionamento existentes. Entretanto, apesar desta possibilidade, Foucault se propõe a analisar um tipo especial de relação de posicionamento (de espaço), que tem a “curiosa propriedade” de estar em relação com todos os outros posicionamentos. Esta tipologia de posicionamento é subdivida em duas formas de classificação: utopias e heterotopias. Segundo Foucault:

As utopias “são posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que, fundamentalmente, são essencialmente irreais (FOUCAULT, 2009, p. 415).

Talvez pudéssemos pensar que as utopias e suas versões negativas, as distopias, encontram sua existência apenas nas projeções e superlativações dos ideais do discurso que constitui a sociedade e residiriam apenas em espaços mentais (imateriais). Por sua vez, as heterotopias poderiam ser conceituadas da seguinte forma:

Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos 127 quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias (FOUCAULT, 2009, p. 415).

O que podemos desdobrar destes conceitos (retomando Mouffe) é o fato de que os espaços heterotópicos são espaços de materialização e sedimentação de práticas hegemônicas. Em outras palavras, relações de posicionamento constituem uma hegemonia e a heterotopia é o espaço onde estas relações, que constituem a hegemonia, se encontram. Foucault, após expor a definição de heterotopia, elenca seis princípios que estariam presentes em sua formação e existência. Dentre estes princípios, gostaríamos de destacar dois: um que relaciona a heterotopia à heterocronia, e outro que revela as características de abertura e fechamento heterotópicos.

O primeiro princípio refere-se ao fato de que, invariavelmente, as heterotopias estão relacionadas com recortes de tempo. Quando isto acontece, estes espaços também podem ser chamados de heterocronias. Segundo Foucault, as heterotopias só funcionam plenamente quando os homens que ali se encontram sentem-se desconectados de seu tempo tradicional (podemos elencar alguns espaços como o cemitério, o cinema, a prisão...). Essa mudança em relação ao tempo tradicional, também pode se dar de forma cumulativa. Em nossa sociedade, museus e bibliotecas são bons exemplos de heterotopias. Nestes espaços, o objetivo é que o tempo se acumule infinitamente sobre si, acumulando todos os tempos, todas as épocas, todos os gostos, todas as formas. Pretende-se que aí estejam todos os tempos num espaço fora do tempo e “inacessível a sua agressão (projeto de manutenção), o projeto de organizar assim uma espécie de acumulação perpétua e infinita do tempo em um lugar que não mudaria” (FOUCAULT, 2009, p. 419).

O segundo princípio, remete à característica que as heterotopias apresentam, na forma de um sistema de abertura e fechamento que, de maneira simultânea, as isola e as torna penetráveis. Em outras palavras, “não se chega num posicionamento heterotópico como a um moinho” (ibidem, 2009, p. 420). Existem ritos, purificações, obrigações, processos que levam às heterotopias. Não se pode simplesmente chegar à caserna, à prisão, ao templo, à sauna, e, até mesmo, ao museu. É necessário submeter-se aos processos e práticas que constituem o poder destas estruturas hegemônicas.

Nesse sentido, argumentamos que os espaços heterotópicos, a partir da elaboração conceitual de Foucault, ao gerarem um deslocamento e descolamento espaço temporal neutralizam o dissenso, impondo uma percepção consensual sobre o mundo que nos cerca.

Tais processos e práticas podem ser conceitualizadas como dispositivos – e aqui chegamos à 128 segunda estratégia de ação/reação do poder hegemônico nos espaços públicos.

Para Foucault, dispositivos são os operadores materiais do poder, ou seja, as técnicas, as estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. Eles se apresentam de forma heterogênea, como discursos, práticas e instituições (REVEL, 2005). Nas palavras de

Foucault, um dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, filantrópicas” (FOUCAULT, 2004, p. 244). Partindo desse ponto, podemos pensar em algumas situações de clara percepção destes dispositivos. Em museus e galerias, esses dispositivos, num tipo de hibridismo, se alternam entre níveis de disciplina e vigilância a fim de criar a característica sacralizante e de abertura e fechamento – quase mítica – que os constituem.

Entretanto, estes dispositivos não se constituem apenas como estratégias de controle externo. De fato, parte fundamental de seu êxito reside nas poderosas estruturas discursivas instaladas, historicamente, nas construções epistemológicas que nos formam. É através dessa instalação que um projeto hegemônico é implementado. Essas estruturas discursivas constituem/infiltram as bases, os postulados dos campos do conhecimento instituído. Sendo assim, uma possibilidade para pensarmos algum tipo de ação artística que antagonize com o projeto hegemônico poderia iniciar-se justamente por uma reflexão sobre alguns desses conceitos impostos e tidos como, naturalmente, balizares.

Nesse sentido, num interessante paradoxo – reconstituidor e fomentador da potência crítica da manifestação da arte enquanto antagonismo – poderíamos refletir que é justamente essa estrutura que se pretende totalizante e hegemônica que oferece a matéria, a energia e os recursos para o surgimento do dissenso. Numa alusão ao coeficiente duchampiano (DUCHAMP, 1965) um jogo de intenções e velamentos que, ao originar-se na criação, tornase potência da posteridade – a ação crítica somente é ativada quando instaura e rompe a imposição do consenso por intermédio do dissenso (como igualmente sugere Andrea Fraser (2008) em “Da crítica às instituições a uma instituição da crítica”, sobre como o alargamento do campo da arte faz com que não exista lado de fora). Poderíamos pensar que práticas artísticas críticas e dissensuais teriam o poder de neutralizar os elementos sacralizantes e heterocrônicos dos espaços públicos heterotópicos.

Um jogo de inscrições e apagamentos

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A consolidação e sedimentação das práticas discursivas trazem consigo uma carga valorativa que, consequentemente, acaba indexando sob parâmetros morais essencialistas as ações e manifestações que se pretendem antagônicas, como se essas não representassem nenhum tipo de realidade ou verdade. A fim de questionar essa abordagem, trazemos aqui as palavras do filósofo Jacques Rancière:

Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências, opiniões e utopias (RANCIÈRE, 2012, p. 74).

Para Rancière (2012, p. 64), determinados artistas usam como estratégia a proposta de mudar os referenciais do visível e do enunciável – mostram aquilo que não era visto, articulando e rearticulando elementos a fim de criar “rupturas no tecido sensível da percepção e na dinâmica dos afetos”. Para o autor, esse é o trabalho da ficção. Entretanto, devemos ressaltar que, segundo o filósofo, “ficção” não é a criação de um mundo imaginário que se opõe ao mundo real. Para Rancière, a ficção é que realiza dissensos, “que muda os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação [...]” (ibidem p.64). Ainda de acordo com o autor: “A ficção artística e a ação política sulcam, fraturam e multiplicam esse real de um modo polêmico” (RANCIÈRE, 2012, pp. 74-75).

São essas premissas que podem, de forma totalizante, definir e instaurar a realidade – ficção tornada “verdade” – do outro como sendo o “vândalo”, “o bárbaro”, “o que está fora”. O cerco institucional e de dispositivos transforma este espaço público, literalmente, em um espaço heterotópico. A ação e a reação da instituição podem oscilar desde o apagamento – encarado como limpeza – até a prisão do indivíduo que esteja inscrevendo (noção-tentativa elaborada em trabalho anterior – LOPES, 2013). Esse espaço representa exatamente o que Foucault definiu como heterotopia, pois, ali, o indivíduo, além de ser deslocado de seu tempo – remetido a outro momento histórico e fundacional – se vê obrigado a entender que aquela representação, por exemplo, um monumento, ao mesmo tempo em que, supostamente, o constitui, e por isso ele deve respeitá-lo, não está acessível a ele, pois a interação pode ser passível de repreensão e castigo. A título de exemplificação desta articulação teóricoanalítica, apresentamos dois momentos através dos quais este processo torna-se observável.

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Foto
Figura 2
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Diego Kern Lopes

Situado na Praça Getúlio Vargas, na Cidade de Vitória, Brasil, encontra-se um monumento em homenagem ao presidente Getúlio Vargas. O monumento, no caso uma estátua – categoria clássica do campo artístico –, apresenta em seu pedestal o fragmento final da carta testamento deixada pelo então presidente que se suicidara. Nela lê-se: “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História" [5]. Merece destaque o fato de essa carta ser a segunda versão. Uma versão datilografada pelo assistente pessoal do então presidente. Essa segunda versão foi política e estrategicamente editada, diferindo-se perceptivelmente da versão original e manuscrita. Isso se torna importante para esse relato, pois, dessa forma, o que temos como texto oficial no monumento oficial é explicitamente uma construção deliberada.

Igualmente importante é o fato de em determinado momento alguém ter ido até o monumento e tê-lo pichado, inscrito a palavra “estória” no pedestal da estátua. A palavra estória, pouco utilizada contemporaneamente, tem como significado ser uma narrativa em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou o leitor.

Geralmente uma estória é tida como algo não baseado em fatos verídicos, uma ficção.

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Figura 3
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Diego Kern Lopes

Entretanto, no presente caso, a ação poética de inscrever a palavra “estória” no monumento, e logo abaixo da palavra “história”, se apresenta como um excelente ponto de tensão discursiva e simbólica – o que lhe garante potência e atualização poética, possibilitando, assim, a leitura das categorias até aqui apresentadas. A partir dessas peças do jogo discursivo, o que poderíamos chamar de “história” e o que poderíamos chamar de

“estória”? Não teríamos aqui ficções que se passam por realidade e tentam instaurar heterotopias ou heterocronias que são desveladas pela manifestação dissensual?

Desse embate o que resultou foi o acionamento das diversas engrenagens de manutenção discursiva, no presente caso, da manutenção estética desse espaço público. Alguns dias depois da pichação ter sido realizada, entraram em cena os trabalhadores do departamento de limpeza pública e, munidos com seus equipamentos, removeram a inscrição

“estória”. Mesmo assim, num segundo gesto poético, é possível perceber, sem muito esforço

– figura 2 – a permanência do espectro da palavra “estória” no monumento histórico. Vale lembrar, como aqui já foi dito, que é preciso desnaturalizar e perceber a construção do que é esteticamente sensível no espaço tido como público, como uma intervenção do discurso político dominante – o que configura e constitui um monumento. Da mesma forma é necessário desnaturalizar a pichação, essa aplicação de tinta, e percebê-la como discurso

reativo, no caso uma intervenção contra-hegemônica. 132

Essa perspectiva se torna ainda mais interessante quando invertemos os gestos dos agentes participantes desse jogo de inscrição e apagamento. Em 2017, circularam vídeos pela internet e outros meios de comunicação em que o então prefeito de São Paulo, João Dória, munido de rolos, pincéis, compressores e tinta cinza decidiu, no intuito, segundo ele, de deixar a cidade mais limpa, pintar as paredes e os muros públicos de cinza, cobrindo, assim, a vasta coleção de grafites e pichações que existiam ali. Como esperado, essa atitude estético política acionou as engrenagens dos defensores (artistas e públicos) dos grafites e pichações. Como estratégia/ação contra-hegemônica, descobriu-se que a tinta usada pelo prefeito e suas equipes era solúvel em água e sabão. Num gesto reativo, grafiteiros foram às ruas munidos de equipamento de limpeza, esponjas, água e sabão.

Fizemos uma edição, reunindo os dois vídeos em um[6] só. Nele é possível ver, à esquerda, o prefeito com sua tinta spray pichando os muros. À direita, posteriormente, temos o registro de um dos grafiteiros removendo a tinta do prefeito a fim de revelar as camadas com as inscrições anteriores. Dessa inversão de papeis desprende-se, novamente, o jogo das ficções presente na materialidade sensível que nos cerca. Cremos que esses são apenas dois casos dentre inúmeros que podem ser lidos e registrados nos espaços públicos que nos rodeiam.

Still do vídeo
Figura 4
Still do vídeo
Diego Kern Lopes

Reflexões finais

Nossas reflexões finais refletem não conclusões, mas sim o ponto onde paramos provisoriamente. Não obstante, é inegável observar que o dissenso se apresenta hoje para a arte contemporânea como uma questão inescapável. Conforme observamos nas análises de Mouffe e Deutsche, se as sociedades contemporâneas se pretendem democráticas é fundamental compreender que isto só é possível na medida em que exista um espaço público aberto para o contínuo questionamento das ideias vigentes. É nesse sentido que as práticas artísticas, ao invés de buscarem, simplesmente, a realização de uma experiência estética que conforta e reforça o status quo, podem ganhar um papel muito mais importante e transgressor, ao possibilitar experiências que revelem os aspectos contingenciais e dissensuais da vida e das relações de poder às quais estamos submetidos.

Além da dimensão do antagonismo, propomos que o conceito de “heterotopia” de Foucault traz outros elementos relevantes para compreender a relação entre dissenso, instituição e espaço público, assim como nos mecanismos e dinâmicas que envolvem as instituições de arte e suas formas de incorporar o dissenso. Essa linha de argumentação pode se tornar uma perspectiva promissora para compreender os movimentos que o dissenso produz nas próprias instituições e no espaço público. E, como neste processo elementos são ressignificados, construindo novos discursos hegemônicos. Finalmente, ao trazer a ideia de “ficção” de Jacques Rancière, pretendemos colocar o dissenso do ponto de vista de seu potencial crítico para o trabalho do artista. Sendo assim, nosso trabalho, longe de esgotar a discussão, objetivou levantar questões a partir da reunião das três perspectivas abordadas aqui.

Referências

CAUQUELIN, Anne (2005). Arte contemporânea – uma introdução. São Paulo: Martins Fontes.

DEUTSCHE, Rosalyn (2008). Agorafobia. Barcelona: MACBA.

DUCHAMP, Marcel(1965) in: BATTCOCK, Gregory. A nova arte. Coleção “Debates”.

FRASER, Andrea (2005). “Da crítica às instituições a uma instituição da crítica”.

Concinnitas, Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, Ano 9, vol. 2, nº 13, 134 dezembro de 2008.

FOUCAULT, Michel (2004). Microfísica do poder. São Paulo: Edições Graal.

______. (2009). Ditos e escritos. Vol. III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense Universitária.

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal (1985). Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso Books.

LOPES, Diego Kern (2013). A inscrição pública como manifestação antagônica no campo institucional da arte. 112 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.

______. (2003). O paradoxo da democracia. Barcelona: Editorial Gedisa.

______. (2007). Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona.

______. (1996). O regresso do político. Gradiva: Lisboa.

______. (2012). “Para un modelo agonístico de democracia”. In: MOUFFE, Chantal. La paradoja democrática: el peligro del consenso en la política contemporânea. Barcelona: Gedisa, pp. 93-118.

______. (2013). “Democracia, cidadania e a questão do pluralismo”. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 1. n. 3, pp. 11-26. Acesso em: 10 de novembro de 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/viewFile/2015/1763>.

RANCIÈRE, Jacques (2012). O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes.

REVEL, Judith (2005). Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Editora Claraluz.

[1] Segundo Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1985), somos entidades necessariamente incompletas, com uma identidade estrutural falha que depende de um processo de identificação para existir. O antagonismo é um tipo de relação que emerge entre estas identidades. Sendo assim, relações clássicas da lógica como de negação (A - não A) ou de diferença real como em A diferente de B, não representam antagonismos, pois pressupõem identidades completas. Assim, na lógica do antagonismo “somos confrontados com uma situação diferente: a presença do ‘Outro’ faz com que eu não seja eu mesmo completamente. A relação não surge de totalidades completas, mas da impossibilidade de sua constituição” (ibidem, p. 125 [Tradução nossa]). Em outras palavras, a presença do que “não sou eu” torna a minha identidade precária e vulnerável; a ameaça do que o “outro” representa transforma o próprio senso de mim mesmo em algo questionável.

[2] Mouffe realiza um acirrado debate com autores defensores de propostas liberais de consenso, tais como Habermas e Giddens. Para uma leitura avançada sobre este tema, conferir Mouffe (1996; 2013).

[3] Subvencionado pelo governo dos EUA, Tilted Arc era um site-specific elaborado para a Federal Plaza em Nova Iorque. Foi instalado em 1981 e retirado após um embate judicial que orbitava em torno de questões como acessibilidade, espaço público, propriedade privada e liberdade de expressão, em 1989.

[4] “Se aceitarmos que todas as identidades são relacionais e que a condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, determinação de um ‘outro’ que desempenhará o papel de ‘elemento externo constitutivo’, torna-se possível compreender a forma como surgem os antagonismos. No domínio das identificações colectivas, onde o que está em causa é a criação de um ‘nós’ pela delimitação de um ‘eles’, existe sempre a possibilidade de esta relação nós/eles se transformar numa relação do tipo amigo/inimigo; por outras palavras, pode sempre tornar-se política, no sentido que Schmitt dá ao termo. Isto pode acontecer quando o outro, que até aí só era considerado sob o prisma da diferença, começa a ser compreendido como negando a nossa própria identidade, como pondo em causa a nossa própria existência. Desse momento em diante, qualquer

[5] Disponível em: <https://www.correioims.com.br/carta/cartas-testamento-de-getulio-vargas-duas-versoes/>.

[6] Vídeo realizado por Diego Kern Lopes (2017). Acesso em: 05 de dezembro de 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIkovjNtiTs&feature=youtu.be>.

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