Ensaio
Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos: uma “democracia post-mortem”
Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos: a “post-mortem democracy”
Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos: una “democracia post-mortem”
Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos: uma “democracia post-mortem”
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 2, pp. 328-343, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: Este ensaio visa analisar a obra cinematográfica de Marcelo Masagão, Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, abordando as opções analíticas do cineasta, os paradigmas “científicos” adotados e o gênero escolhido para trabalhar com o material visual. O próximo passo foi definir o objeto analisado pelo filme, fio condutor que tecerá toda a obra. Feito isto, serão abordados os principais elementos de montagem, tais como intertítulos, trilha musical, relação imagem/realidade, dentre outros. A seguir, discutirei o desenvolvimento dos blocos temáticos do documentário, além dos significados dentro dos mesmos, buscando na conclusão amarrar a argumentação do cineasta dentro do ponto considerado o cerne da discussão. Por fim, proponho uma discussão sobre aquilo que defini como sendo o mito da democracia post-mortem.
Palavras-chave: Documentário, Democracia Post-Mortem, Século XX, Realismo.
Abstract: This essay aims to analyze the documentary of Marcelo Masagão titled Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, and discuss the filmmaker's analytical options, the "scientific" paradigms adopted and the genre. The next step was to define the object analyzed by the film, the documentary’s guiding thread. Once this is done, it will be approached by this work the main elements of assembly, such as intertitles, soundtrack, image/reality relation, among others. Next, I will discuss the development of the thematic blocks of the documentary and the meanings within them. The conclusion aims to tie the argumentation of the filmmaker within the point considered the core of the discussion. Finally, I propose a discussion of what I have defined as the myth of post-mortem democracy.
Keywords: Documentary, Post-Mortem Democracy, Twentieth-Century, Realism.
Resumen: El objetivo del trabajo es analizar la obra cinematográfica de Marcelo Masagão, Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, abordando las opciones analíticas del cineasta, los paradigmas "científicos" adoptados y el género escogido para trabajar con el material visual. El siguiente paso fue definir el objeto analizado por la película, hilo conductor que tejer toda la obra. Hecho esto, se abordan los principales elementos de montaje, tales como intertítulos, banda musical, relación imagen/realidad, entre otros. A continuación, discuto el desarrollo de los bloques temáticos del documental, además de los significados dentro de los mismos, buscando en la conclusión atar la argumentación del cineasta dentro del punto considerado el núcleo de la discusión. Por último, propongo una discusión sobre lo que definí como la "democracia post-mortem"
Palabras clave: Cinema Documental, Democracia Post-Mortem, Siglo XX, Realismo.
Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos: uma “democracia post-mortem”
Ao recostarmo-nos nas confortáveis poltronas ou no frio concreto para apreciarmos ofilme de Masagão, não seremos poupados de uma intensa crítica que se faz presente desde oinício e percorrerá todo o longa-metragem.Nos primeiros segundos, nos deparamos com os primeiros de uma série de intertítulos quesurgem na tela, fazendo menção ao que será tratado no filme e como este será trabalhado. Asduas primeiras legendas, “O Historiador é o Rei, Freud a Rainha”, insinuam a projeção de umfilme (até então difícil de diagnosticar qual o possível gênero) que se pautará pelo império dahistória, com seus diversos fatos narrados, apoiada na realeza da psicologia, presente nosurrealismo, no expressionismo e na psicanálise. O próximo intertítulo a surgir sistematiza edelimita mais o campo de análise e produz a clara percepção de que a análise histórica estáembasada no paradigma da Escola de Annales, que se apoia em elementos da micro-história,utilizando pequenos recortes biográficos que privilegiarão não somente as “Pequenas Histórias,Grandes Personagens”, mas também os“Pequenos Personagens, Grandes Histórias”.O próximo intertítulo cristaliza qual o tema e o gênero explorados pelo cineasta:“Memória do Breve Século XX”, já preenchendo boa parte dos locis na obra2, além de incitar oespectador a assistir o filme a partir de uma leitura documentarisante3. A utilização do termo
“breve século”, até então uma incógnita, só nos é explicitado ao longo da exposição do filme.Retornarei ao mesmo em outro momento do trabalho.A primeira sequência de imagens soa como uma metáfora, na qual somos guiados do céuaos fatos que marcaram o século em questão. E dentro desta viagem aos primórdios do século,serão introduzidos os primeiros recursos de montagem que marcam grande parte do filme,artifícios esses que enfatizarão a tônica do século, qual seja, a de ter sido belicoso (pois nosdeparamos com a imagem de um soldado postado frente a uma coluna de caminhões militares),marcado pela violência (imagem de dois homens sendo fuzilados a queima-roupa pelas costas), ede muitas mortes (tomada em close de um túmulo).Antes de deter-me sobre o desenvolvimento do filme, gostaria de destacar algunsartifícios utilizados pelo cineasta para a melhor compreensão do deslinde de imagens que serãoacompanhados nos próximos sessenta minutos.Um dos recursos utilizados é o abandono da narração em voz over4, típica dosdocumentários expositivos5, empregando uma “narração” que ficou a cargo, em grande parcelado filme, de personagens mortos, como se a voz de Masagão6 optasse pelo legado dedeterminadas memórias póstumas, conclamando a eles que se manifestassem através de suas oratrágicas, ora encantadoras histórias, num apelo para que o público reflita sobre os excessos edescalabros da humanidade, e para que estes não tornem a se repetir. Dentro deste formato, elefez grande esforço para não amenizar a importância dos pequenos personagens ou
sobredeterminar os mais célebres, o que gera uma forma de conhecimento que tende a atenuar osefeitos de conceitos abrangentes, como era o caso da montagem baseada numa lógicaparticular/geral que visa produzir informações que:
(...) não diz respeito apenas àqueles indivíduos que vemos na tela, nem a uma quantidademuito maior deles, mas a uma classe de indivíduos e a um fenômeno. Para isto, para quepassemos do conjunto das histórias individuais à classe e ao fenômeno, é preciso que oscasos particulares apresentados contenham os elementos necessários para ageneralização, e apenas eles (BERNADET, 1985, p. 15).
A trilha sonora é de fundamental importância ao documentário, pois marca e delimita osblocos, além de operar a passagem de um a outro. Também é lícito salientar que a trilha éutilizada muito próxima dos preceitos estabelecidos por Andrei Tarkovski, os quais “(...) paraintroduzir uma distorção necessária do material visual na percepção do espectador, tornando-omais pesado ou mais leve, mais transparente ou mais grosseiro e sutil, ou, pelo contrário, maisgrosseiro” (TARKOVSKI, 1998, p. 190). Uma análise que serve de exemplo aqui se baseia natrilha que ouvimos durante o bloco que trata sobre os ditadores, causando uma sensação dedesconforto e angústia, enquanto no bloco sobre a família Jones ouvimos uma trilha de maiorapelo emocional, que nos causa comoção e tristeza pelas perdas humanas. Um último processo aser apontado sobre a trilha musical, e também destacado por Tarkovski, é sobre a interrupção damesma para gerar e intensificar determinadas sensações. Ouçamo-lo novamente: “Pode acontecerque para dar maior autenticidade à imagem cinematográfica e levá-la à sua máxima intensidade,seja preciso abandonar a música” (TARKOVSKI, 1998, p. 191). Exemplo que ilustra essa técnicaé novamente encontrado no bloco sobre a família Jones, no exato instante em que um militarvietcongue pega a perna do que seria supostamente um soldado americano e a arremessa comoum pedaço de carne, tudo isto marcado por um silêncio musical, capaz de intensificá-lo e, assim,chocar-nos pela frieza do gesto.Os intertítulos, também presentes, funcionam em alguns momentos como uma “muleta”,tendo em vista que certas opções de montagem produzidas pelo cineasta tornam-seincompreensíveis, implicando em ter de “chamar a linguagem escrita em socorro da visual, comose esta fosse incapaz” (CARRIÉRE, 2006, p. 112). Um exemplo capaz de ilustrar o acimaexposto é percebido na sequência de cenas em que vislumbramos pai e filho (Yuri Gagarin), e aênfase na absurda velocidade do desenvolvimento através de uma geração, em que teríamos
33grande dificuldade de compreender estarmos diante de progenitor e prole, a não ser através dorecurso escrito, asseverando o argumento que privadas de força para transmitir ou fazer menção aum significado, algumas imagens prostram-se à escrita para não se tornarem vagas ou caóticas.Outra questão a ser levantada sobre os intertítulos é o de incutir certas características em umaimagem que a própria não contém, tal como a afirmativa apresentada na cena em que a mulherestá sentada com uma expressão de desolo, e nos é transmitida a seguinte mensagem: “e adepressão”, como se realmente estivéssemos postados perante uma mulher deprimida, o que équestionável, pois ela poderia apenas estar cansada ou adoecida. Isto posto, notamos a forçaexercida pelas palavras sobre a imagem, criando uma hierarquia que coloca a visualidade numpatamar inferior ao da escrita. Um último apontamento sobre os intertítulos será tecido sobre acriação de “ruídos” que estes ecoam em grande parte do documentário, pois reverberam umamensagem que já se fizera explícita, por exemplo, quando vemos a sobreposição das fisionomiasde Picasso, Freud, Einstein e Lênin e a reafirmação: “os quadros já eram Picasso, os sonhos jáeram interpretados, na Rússia, E=mc2”. Ou mesmo na cena do alfaiate, que tinha a pretensão devoar e, para descrever este ato, Masagão, que já utilizara a sobreposição da imagem de umpássaro capaz de concluir o significado dialético da imagem, novamente “peca” ao inserir ointertítulo ruidoso que reafirma “objetivo imediato”, apostando na fragilidade da construçãovisual, ou, quem sabe, na ignorância de nós vãos expectadores.Sobre o roteiro adotado pelo cineasta, notamos desde o início a recusa pela adoção de umanarrativa linear ou de uma articulação de espaço/tempo sustentado num formato cronológico caroao cinema naturalista hollywoodiano7, parecendo à primeira vista desordenado, desprovido dequalquer sentido racional, como se estivéssemos presentes diante de um videoclipe de imagensou blocos temáticos, que seguem uns após os outros sem qualquer encadeamento coerente.Porém, a adoção dos blocos temáticos parece ser um recurso adotado por Masagão para aludirtacitamente a uma característica marcante do século em análise. O cineasta enfoca a ideia doquão fragmentada é a nossa percepção sobre o mundo, em que nossa compreensão sobre os
acontecimentos é sempre pautada de forma parcial, estando divorciados dos macroprocessosestruturais. Dito em outras palavras, o roteiro é um convite às entranhas das modernas indústriase corporações racionalizadas, com suas linhas de montagem e aparatos burocráticos produzindoindivíduos alienados e heterônomos. A sensação que sentimos com o desfile de blocos temáticosserializados não deixa de ser análoga à divisão do trabalho com suas especificidades, em quereconhecemos tão somente frações do processo, incapazes que estamos de identificarmo-nos como resultado social da produção. Vemos os diversos blocos temáticos como se fossemindependentes, encerrados em suas características parciais, que não se associam uns aos outrosnuma cadência lógica. Todavia, tal como toda linha de produção gera um produto social acabado,o documentário também resulta numa mercadoria coesa, capaz de compor todas as parcelas esistematizar a proposta, qual seja, a ênfase num século marcado pela tragédia, pela destruição emmassa, pela depressão e angústia, pela desqualificação da vida e até mesmo da morte,representada na cena da perna arremessada pelo vietcongue, ou pela imagem da mão decepadaque é tratada como um objeto exótico. Essa interpretação da visão fracionada é reforçada pelarecorrência das imagens que tratam em vários instantes do filme sobre o tema, como nas cenasexibidas sobre o Fordismo, em que o tempo de produção de um carro teria sido reduzido decatorze horas para uma hora e meia, de Daniel Escobar, que nos anos 70 na Argentina, teriaapertado 9.879.441 parafusos para os veículos Renault, ou na cena das mulheres que passaram aproduzir armamentos bélicos durante a 2ª Guerra Mundial.Porém, não é verídica a afirmativa de inexistência de qualquer relação entre espaço etempo, já que é passível de registrar a existência dessa relação dentro dos blocos temáticos, comoa adoção de decupagem no tempo, tal como o recuo no tempo indefinido e elipse indefinidocunhado por Noel Burch (1992), perceptível por intermédio de elementos de montagem, taiscomo alguns raros intertítulos que não geram ruídos. Um destes elementos é a digressão notempo no bloco que versa sobre o trabalho, quando somos conduzidos da Serra Pelada em 1985para o Japão em 1977, recuo este perceptível pelo intertítulo que pontua o contexto. Percebemostambém a existência de decupagem no espaço, marcada pela mudança de plano com continuidadeespacial, por exemplo, ao vislumbrarmos a tomada final no cemitério, que produz um raccord dedireção, frisado pelo movimento da câmera que na passagem de um quadro a outro nos conduz àsua saída.
Outro recurso passível de análise concerne à relação imagem/“realidade”8, sendo patente aopção do diretor em não fazer menção à imagem como um produto da “realidade”, mas sim umaconstrução desta. Em outros termos, a sequência de imagens utilizadas não é feita para nosressaltar a existência da “verdade” pelo período que transcorre o filme, mas uma possibilidade dese narrar os fatos históricos por meio da organização e articulação de imagens, que empregamuito mais uma linguagem opaca9, o que o aproxima do modo de representação reflexivo10. Paradar bases sólidas a essa assertiva, recorro a algumas construções edificadas pelo diretor. Umadelas foi a adoção da “montagem figurativa” eisensteineana11. Basta aqui lembrarmos novamenteda sequência do alfaiate suicida e sua justaposição com a cena seguinte do ônibus espacial emchamas, para obtermos a mensagem que trata sobre a incapacidade e a impotência humana dedomínio sobre a natureza.Notamos também a recusa no tratamento da obra cinematográfica como “realidade”através da utilização de personagens fictícios durante grande parte do documentário, método estereconhecido e apontado por Masagão ao final do filme, o que desconstrói qualquer tentativa decrítica à existência de uma “verdade” imanente na história. Entretanto, problematizar a concepçãode “verdade” não resulta na afirmação de que se trata de um filme de ficção, mas sim que é umaconstrução da história produzida pelo próprio diretor, que constrói elementos e cria discursospara reforçar sua percepção violenta sobre o século. Porém, isto é feito de forma sutil, porquetambém é observável a tentativa de Masagão de criar um discurso polifônico sobre o século, poisdentre as dezenas de personagens presentes, vemos desfilar todas as classes, gêneros, etnias,
credos e nacionalidades, refutando maniqueísmos e humanizando elementos historicamenteendemonizados, como os japoneses na Segunda Guerra Mundial, aliados ao Eixo Nazi-Fascista,na cena em que o Enola Gay despeja bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, quandopodemos perceber a existência de uma excelente cozinheira (Mariko Takano 1923-1945), alémdo “exímio carteiro” Tókio Takano, 1920-1945, sem contar as duas crianças que não tiveram aomenos tempo de terem sido algo (Takao, 1944-1945 e Noki, 1943-1945). Dentro da opção deconstrução da “realidade”, Masagão recorre aos extratos de filmes clássicos como Berlim, ASinfonia da Metrópole de Ruttmann e O Homem com a Câmera de Vertov, fotografias como asde Sebastião Salgado, além de imagens de arquivo, utilizando o recurso da câmera apenas emalgumas tomadas sobre um cemitério que não nos é situado geograficamente. É válido destacarque essa opção do cineasta problematiza novamente a questão da imagem enquanto detentora designificados em si mesma, como é possível recuperar no célebre experimento do Mosjúkinrealizado por Lev Kulechov12 que, dependendo do encadeamento das imagens propostas, poderiasugerir diferentes interpretações. Além disso, a utilização das mesmas imagens em contextoshistóricos, culturais e sociais diversos também pode gerar diferentes significados e leiturasdestas13. Para corroborar este argumento, recorro à sequência inicial que tematiza sobre odesenvolvimento urbano e tecnológico utilizando-se de imagens de Vertov (Homem com aCâmera) e Ruttmann (Berlim, A Sinfonia da Metrópole), em que estes têm uma visãocompletamente apologética sobre os frutos do progresso e as suas consequências para a sociedadedurante o período em que filmaram (início do século XX). Entretanto, essas imagens, tratadas nofinal do século XX, e analisadas no conjunto sequencial do documentário, podem ser captadascomo um processo que culminaria na alienação e na morte de muitas pessoas, tendo em vista aincapacidade humana de controle sobre a natureza, como nos alerta Masagão nas palavras deFreud: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo temporal, ele
mesmo parte desta natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitadacapacidade de realização e adaptação” (FREUD, 1996, p. 93).Tendo destacado aqueles que considerei como sendo os principais recursos presentesdurante todo o transcorrer do filme, resta imperioso ater-me sobre o desenvolvimento dassequências temáticas.Marcelo Masagão, de início, despeja-nos na capital francesa, em maio de 1912, num dosmomentos que seriam o marco de transição para a modernidade, pois “no dia seguinte o balé14 jánão era clássico”, estando os homens imersos no processo da urbanização, em que “a cidade jánão cheirava a cavalo”, da tecnologia e da comunicação: “pelo túnel, o metrô, pelo fio preto, afala”, de novos paradigmas científicos (psicologia), artísticos (surrealismo) e comportamentais(as mulheres abandonam os afazeres domésticos para se inserirem no mercado de trabalho). Essasequência de imagens cria um bloco que faz referência aos progressos tecnológicos dahumanidade, mas que não deixará de ressaltar as suas consequências paradoxais (haja visto opersonagem Alex Anderson que, apesar de ter trabalhado durante doze horas diárias na Ford,incluindo os sábados, jamais pode desfrutar do resultado de sua extenuante produção), e funestas,como a explosão do ônibus espacial Challenger, que causou a morte de todos os tripulantes.O segundo bloco aponta para as principais guerras do século, narradas ficcionalmente peladinastia americana dos Jones, que teria seus entes presentes nos conflitos mais encarniçados doséculo, como a primeira e a segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã e a Guerra do GolfoPérsico. Esse é um dos raros blocos em que o século não está sendo ilustrado por (parafraseandoMachado de Assis) “defuntos narradores”, eis que Robert Jones Júnior (1966), ainda vive.Seguindo os blocos temáticos, nos deparamos com um desfile de imagens sobre otrabalho, e como este esteve imensamente envolvido em fatos marcantes do século em todos oscantos do planeta. O destaque inicial fica por conta das conquistas trabalhistas, simbolizadas nosvários bigodes dos trabalhadores do metrô em 1903 (que não pude identificar o país). A seguir,ao percorrermos as linhas de produção de uma fábrica de cigarros na Rússia, deparamos-nos coma figura de Martha Vertovska. Vertiginosas cenas dos arranha-céus de Nova Iorque, símbolo depoder das modernas cidades que crescem para o alto, resultam de uma pequena parcela da labutade George Gatman. Os gulags siberianos da Revolução Russa não pouparam a vida do
funcionário-padrão Lev Pankratov. A construção do famigerado Muro de Berlim, marcosimbólico da “Guerra Fria”, no filme ficou a cargo dos alemães Hermann e Rainer. A RevoluçãoCultural na China sob a égide de Mao Tse Tung, visando exterminar a intelectualidade do país,tem uma pequena parcela de atribuição ao montador de bicicletas Leng Yan. No Brasil vemos a“Corrida do Ouro” em Serra Pelada narrada por 8.237 Joãos, 12.668 Pedros e 9.525 Josés.Quando a nossa viagem alcança o Japão, somos apresentados ao fenômeno da cultura de massacom a figura pop de Elvis Presley idolatrada por Midori Uyeda, que trabalhava na produção detelevisores. Também nos é introduzido o processo de globalização, quando somos conduzidos àArgentina, encarnado no montador Daniel Escobar e seu labor nas linhas de produção da fábricafrancesa Renault. A escala continua agora com destino à Índia, que irá nos sensibilizar diante davisão das formas precárias de trabalho nas minas de carvão realizadas por Nehru Gupta. NaBolívia presenciamos também a precariedade do trabalho no campo e a falta do desenvolvimentotecnológico, mas isso jamais foi empecilho para as grandes corporações globais e suasmercadorias, afinal, Juan Domingues poderia desfrutar prazerosamente de sua Coca-Cola. Porfim, somos conduzidos a um cenário de depressão quando percorremos as ruas de New York noano de 1929, marcado pelo desolamento da quebra da Bolsa de valores, e dentre as dezenas dehomens com seus semblantes amargurados no meio-fio, nos deparamos com a figura doengenheiro Paul Davis, vendendo maçãs para sobreviver.Em um novo bloco, somos apresentados ao paradoxo do desenvolvimento tecnológico,que no intuito de favorecer a vida dos homens, tornou-se um fator de destruição e morte emproporções incomensuráveis. As figuras de Hans e Anna se encarregaram de apresentar o rol dosequipamentos bélicos produzidos (que vão desde bombas, armas químicas, passando por navios eaviões de guerra, até a mais nociva e arrebatadora das armas, a bomba nuclear), não deixando deressaltar as sequelas deixadas nos homens, tanto em suas carnes como em suas almas.O conjunto temático seguinte incumbe-se de apontar-nos os traumas e dilemasenfrentados por pessoas que estiveram presentes nos conflitos armados ou que tiveram seusfamiliares, amigos e patrícios envolvidos. Heinrich Stroken vale-se de seu tempo livre entrecombates para ilustrar a angustiante e tediosa rotina de um soldado a espera incerta da morte quelhe espreita. Já Pierre Ledoux surge na tela com violentos espasmos que retorcem seu corpo,provocados por traumas destes períodos beligerantes. O kamikaze Kato Matsuda nos emociona
com seu dilema sobre a certeza da morte por uma causa maior, a pátria, e a ruptura do ciclonatural da vida, em que os filhos devem enterrar seus pais. No Sudeste Asiático, somos assoladospela chocante imagem do budista Toshi Tungtin, que ateia fogo em seu corpo até transformar-senuma massa disforme para protestar contra a Guerra do Vietnã. As duas cenas que seguemparecem estar em descompasso temático com o restante do bloco, tendo em vista que o chinêspostado no caminho de uma coluna de carros blindados e o índio brasileiro com chapéu nãodizem respeito às guerras, sensação esta reforçada pela ausência da trilha sonora nas duasimagens, o que gera a crença de estarmos presenciando cenas que estão desestruturadas.A seguir, Masagão tematiza as figuras ditatoriais que marcaram o período, tais como MaoTse Tung, Mobutu, Franco, Salazar e outros, recorrendo a um recurso de distorção de imagenspara retratar aquilo que seriam os seus desvios psicológicos, ou “paranoias” como ele nosinformou. As figuras que dominam grande parte do bloco são Hitler e Stalin.O próximo bloco funciona como complemento do anterior, versando sobre o Nazismo ealgumas de suas consequências, como a proibição de divulgação de ideias, representada naimagem de queima de livros de autores como Kafka, e a passividade e sujeição dos homens aosímpetos vorazes dos déspotas, corroborada pela frase de Freud: “O homem já não é senhor dentrode sua própria casa”.Mas nem tudo no documentário resulta em morte, conflito ou tirania. Existe nessa alturado filme um plot point15, uma virada fílmica que nos conduz a quatro pernas numa incursão aoesporte e à dança, guiados pelos passos de Fred Astaire e pelos dribles de Mané Garrincha, quebailam em total compasso, proporcionando momentos afrodisíacos, capaz de desatolar-nos dosgrotões trágicos e dar um tom otimista ao século narrado.Masagão novamente brinda-nos com ares de otimismo, quando recebemos a imagem domilionário Timothy Leary que, descontente com os rumos da vida terrestre, tem por último desejoter suas cinzas arremessadas à lua, mas lá chegando depara-se com os personagens históricos CheGuevara, Ghandi, Luther King e John Lennon, que em vida criaram utopias e lutaram paratransformar a Terra num lugar para se viver em plenitude, sem guerras, sofrimento e miséria, eacabaram tragicamente assassinados.
No bloco dedicado às mulheres, jorram diversos temas como suas conquistas políticas(simbolizadas pelas sufragetes dos anos 20), comportamentais (Woodstock), estéticas (minissaia),culturais (as mulheres não aceitam mais as imposições masculinas, chegando a “matá-los e ir aocinema”) e sociais (ocupando novas funções tais como as linhas de montagem de armamentosbélicos), além de destacar momentos em que estas foram censuradas ou perseguidas pelovanguardismo de suas posições, como a prisão de Margareth Sanges, que instituíra clínicas decontrole de natalidade, uma clara afronta à moral cristã ocidental.Em seguida, somos lembrados de alguns elementos que modificaram a forma de vida doshomens, como a luz elétrica, o rádio e a aspirina. Dentro deste bloco temático, creio estar maismarcante o tema destacado no início deste trabalho que Masagão denominou de O Breve SéculoXX, pois aqui vemos o enorme salto tecnológico que poderia parecer fruto de séculos e séculos deamadurecimento, mas que se cristalizou no período de uma geração, que foi a introdução da luzelétrica à casa de um camponês na Rússia em 1931, e a viagem ao espaço pelo filho deste em1961, ou seja, trinta anos de interregno que marcam o período de aquisição da luz elétrica e umsalto que redunda na conquista do espaço. Importante frisar também que o termo “breve século”foi um resultado de consulta à obra de Eric Hobsbawn A Era dos Extremos, que pontua o séculocomo tendo iniciado no ano de 1914, com a 1ª Guerra Mundial, e terminado em 1991, com o fimda União Soviética e da Guerra Fria. Um paradoxo apontado no bloco é o de Paul Norman, queapesar da inexistência da eletricidade em sua casa, fora sentenciado a cumprir pena de morte nacadeira elétrica. Ou seja, um homem em vida não pudera desfrutar dos benefícios da eletricidade,mas somente de seu ônus ao ter sua vida arrancada por esta. O rádio ganha a maioria dos lares,alcançando grandes distâncias, como na transmissão de notícias aos soldados americanos quecombatiam no Vietnã. É aludido o comportamento alimentar instaurado no século, com a criaçãodas grandes redes de fast-food como o Mc Donald´s. Faz-se menção também aos novos padrõesde comportamento propiciados por novas tecnologias como a televisão, o carro, oseletrodomésticos, e estes, da forma com que são montadas as imagens pelo diretor, nos fazemcrer na ociosidade que dominou o homem, representada na figura robusta de Joselina da Silva,que não perdia uma Sessão da Tarde.Dando continuidade à divisão temática, somos apresentados às artes, através de 4domingos. O primeiro é reservado ao artista plástico francês surrealista Marcel Duchamp. O
segundo será ocupado pelo expressionismo do pintor norueguês Edward Munch. No terceirodomingo recebemos a visita do pintor realista norte-americano Edward Hopper. O últimodomingo será dedicado ao artista plástico tupiniquim José Leonilson. É interessante notar que osparadigmas artísticos tratados dentro do bloco priorizam temas recorrentes como a depressão e aangústia, reafirmando o discurso de Marcelo Masagão sobre a degradação humana no século.O último bloco destacado pelo cineasta é uma abordagem sobre o tema da religião,enfatizando diferentes credos tais como o budismo, o judaísmo, o islamismo, o espiritismo,dentre outros, além de apontar a presença da religião nas guerras, como no caso da existência de“Deus perto do inferno”, e do ceticismo, presente na Revolução Russa de 1917, que transformouos templos em repartições públicas bolcheviques.Depois do breve retrospecto histórico pelo século XX, vemos o documentário caminhandopara um desfecho, que é marcado por uma tomada do cemitério, em preto e branco, se afastandoentre os túmulos, para então se tornar colorida, prosseguindo até estarmos postos diante dafachada de uma capela, quando então somos conduzidos à saída do cemitério. Nesse instantepercebemos a articulação de uma imagem em preto e branco de uma locomotiva com um homemsentado em suas rodas, simbolizando metaforicamente a mensagem de que apesar de tudo o queos homens do século produziram e destruíram, o “expresso da vida continua”. E num lampejo deotimismo, Masagão preocupa-se em repousar esperanças na vida e nos homens, afirmando, naspalavras do poeta russo Maiakovski, que ainda é possível encontrarmos a felicidade e quedevemos procurá-la, pois: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homemfeliz”.O último recurso do cineasta é conduzir-nos aos pórticos do desconhecido cemitério, noqual percebemos cravada a mensagem que dá nome ao filme e nos permite tomar conhecimentode que os fatos narrados sobre a vida do século XX são o espólio de homens que não mais fazemparte desta vida, apesar de terem se transformado em parte da história. Em suma, o filme teceuma crítica ao século XX, marcado por destruição e morte, mas não deixa de destacar algunsmomentos de alegria, além de encerrar com um otimismo ingênuo, tendo em vista que nãodiscute as saídas e perspectivas.Também é possível, à guisa de conclusão, retomar um elemento específico, mas quereflete na obra em geral. O título Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos cria uma sensação
de uma “democracia post-mortem”, ou seja, uma espécie de mito de que após a morte todos osindivíduos se tornam socialmente indiferenciados, criando um cenário questionável de equidadealém-vida.Em outras palavras, Marcelo Masagão, na busca de dar vozes aos pequenos personagens,o que pode ser tido como um mérito, cai no falso mito arraigado no senso comum de que a mortereserva o mesmo destino a todos os homens, tornando-os iguais, visão esta reforçada pelaindistinção com que trata os personagens. Porém, é possível indicar a existência de umaestratificação social mesmo após a morte, tendo em vista que o peso histórico legado pordeterminados finados é capaz de diferenciá-los até mesmo depois do padecimento.Empiricamente, isto é facilmente perceptível quando analisamos a quantidade de pessoas quevisitam o túmulo de Ayrton Senna e a quantidade que visitam um dos diversos Josés da SerraPelada. O fator simbólico também os distingue, pois não é a mesma coisa estar enterrado numacova rasa como indigente no cemitério da Vila Formosa, ou estar situado num mausoléu nocemitério do Araçá.Mas qual a importância de abordar tal distinção social? Será fruto de devaneios ouinócuas divagações teóricas? Ledo engano! Este diferencial histórico e simbólico; que estratificaos mortos, dá ensejo e reforça ainda a estratificação social entre os vivos, tanto de seusdescendentes quantos de pessoas próximas a esse. Ou seja, “(...) A tradição de todas as geraçõesmortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (MARX, 1997, p. 21).A deferência reservada pela sociedade a um ente vivo da dinastia dos Braganças, mesmoconsiderando o centenário da extinção do Império, é completamente diversa à mesma reservada aLucelino Silva, que viveu até 1998. Concluindo, não se defende aqui uma análise histórica sobum viés social elitista. Todavia, na tentativa de introduzir um discurso histórico polifônico paraalém de qualquer outro tipo de estratificação, Masagão pecou pelo excesso, gerando uma falsasensação democrática, que inexiste tanto entre os vivos como entre os mortos.
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1ASSIS, Machado de (1997). Memórias Póstumas de Brás Cubas. RJ, Editora Ediouro, Coleção Biblioteca Folhanº4.2 Para Flavio de Campos (2007, pp. 22-26) “(...) loci, do latim locus-i, são os sete ‘lugares’ do pensamento que ofabulador e o narrador devem preencher, a fim de fabular (imaginar) uma história e compor uma narrativa semlacunas de informação”. Para o autor, esses sete “lugares” se referem a quem (personagens), o quê (incidentes dahistória), onde (localização), por quê (motivação das ações dos personagens), para quê (os objetivos das ações dospersonagens; as consequências dos incidentes), quando (o momento em que ocorre a história) e como (a forma deperceber e de narrar a história; o ponto de vista do narrador e o estilo da narrativa).3 O conceito leitura documentarisante (em oposição à leitura ficcionante) foi tomado de Roger Odin, que argumentaser uma forma de leitura que permitiria ao espectador tratar um filme como documento. Ele afirma não quererestabelecer a distinção entre os tipos de leitura de um filme através da divisão entre a realidade ou a não realidade dorepresentado, mas sobre a imagem que o espectador faz do enunciador. Além disso, aponta que o ato de leitura de umfilme coloca em ação um sistema interativo composto por três actantes: 1. um filme que demanda mais ou menosexplicitamente ser visto segundo um tipo de leitura; 2. uma instituição que programa de forma mais ou menosimpositiva tal ou qual modo de leitura e 3. um leitor (espectador) que reage, à sua maneira, às solicitações ouinstruções das duas outras instâncias. E como destaca o autor, essa relação não é necessariamente pacífica, tendo em vista que dessa relação entre agente e estrutura, o espectador pode rejeitar o papel que lhe é demandado pelo filme ounão se dar conta das determinações que uma instituição faz pesar sobre si, o que reafirma, segundo Odin, o papelcentral da pragmática (posicionamento do leitor/espectador), no posto de comando da análise do filme. Por mais queuma instituição possa programar a leitura documentarisante dos filmes (como por exemplo, a não exibição noscréditos dos nomes dos atores, o que potencializaria a possibilidade de se construir os personagens comoenunciadores “reais”), o espectador tem sempre a possibilidade de recusar a instrução institucional ao qual ésubmetido (Cf. ODIN, 1984).4A voz over (também chamada de Voz de Deus) é uma voz pronunciada em off (quando não se vê, mas se ouve onarrador), que geralmente assume uma tonalidade impessoal (como se pairasse acima dos interesses dospersonagens) tentando conduzir a percepção dos espectadores acerca das imagens na tela, enfatizando umdeterminado ponto de vista (Cf. NICHOLS, 2005).5 O modo de representação expositivo, tal como conceituado por Bill Nichols, tende a sugerir a impressão noespectador de objetividade e neutralidade do universo filmado por meio de diversas estratégias, como a montagem deevidência, que visa criar um encadeamento discursivo em que as imagens servem para corroborá-lo (Cf. NICHOLS,2005).6 Foi utilizada aqui Voz a partir da leitura de Bill Nichols, para quem o conceito é aquilo que transmite ao espectadorum determinado ponto de vista por intermédio da organização de todos os recursos disponíveis ao documentarista(iluminação, movimentos de câmera, ângulos, intertítulos, trilhas sonoras, dentre tantos outros), e não somente pelafala (Cf. NICHOLS, 2004)
7 O cinema naturalista hollywoodiano, consolidado depois de 1914, “(...) caminha em direção ao controle total darealidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para ainvisibilidade dos meios de produção desta realidade. Em todos os níveis, a palavra de ordem é ‘parecer verdadeiro’,montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação”estabelecendo assim a “(...) ilusão de que a plateia está em contato direto com o mundo representado, semmediações, como se todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente (o discursocomo natureza)” (XAVIER, 2005, pp. 41-42).
8 Ao empregar a noção “realidade” (e todas as suas derivações) entre aspas ao longo do trabalho, o que se tem emvista é se valer da discussão feita por Max Weber em tono da “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais.Para Weber, o “real” não era algo externo aos indivíduos, passível de conhecimento objetivo tal como entendido porÉmile Durkheim (para quem os fatos sociais deveriam ser tratados como coisas, aptos a alcançar um status deconhecimento objetivo quando o pesquisador afastasse as suas pré-noções e respeitasse as características inerentes eexternas daquilo que investigava), mas resultava de seleção valorativa do pesquisador para compreenderdeterminados eventos sociais (Cf. WEBER, 1999).9 A linguagem opaca, em oposição à linguagem transparente, busca chamar a atenção do espectador para a presençado aparato técnico e textual no filme, o que tende a lhes despertar a consciência de estar diante de uma construção, enão face à própria “realidade” (Cf. XAVIER, 2005).10 O modo de representação reflexivo, ao invés de ver o mundo por intermédio dos documentários, permite-nos veros documentários pelo que eles são: um construto, uma representação (Cf. NICHOLS, 2005).11 A “montagem figurativa” estabelecida por Sergei Eisenstein, em oposição à montagem do cinema clássiconarrativo, era uma montagem que “(...) interrompe o fluxo narrativo dos acontecimentos e marca a intervenção dosujeito do discurso através da inserção de planos que destroem a continuidade do espaço diegético, que se transformaem parte integrante da exposição de uma ideia (...) Eisenstein prefere falar em justaposição de planos, ao invés deencadeamento” (XAVIER, 2005, p. 130).
12 “Certo dia, ele [Lev Kulechov] tomou um grande plano de Mosjúkin impassível e projetou-o, precedido, aprincípio, de um prato de sopa, em seguida, de uma jovem morta em seu caixão e, finalmente, antecedido por umacriança a brincar com um ursinho de pelúcia. Notou-se, de início, que aquele ator dava a impressão de olhar o prato,a jovem e a criança e, depois, que fitava o prato com um ar pensativo, a jovem, com tristeza, e a criança, medianteum sorriso radiante e o público ficou surpreendido pela variedade de suas expressões, quando, na verdade, a mesmatomada havia sido utilizada três vezes e era flagrantemente inexpressiva” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 110-111).13 A esse respeito, Jean-Claude Carrière cita alguns exemplos ilustrativos da recepção de imagens fílmicas, exibidaspor antropólogos franceses em tribos africanas que não tinham nenhum domínio da linguagem audiovisual, o queterminou por produzir estranhamento e choque, como o caso de um close de uma imagem de uma mosca, ou autilização da trilha sonora num filme que retratava a caça de hipopótamos. Cf. Carrière (2006).
14 Representado na figura do bailarino Nijinski
15 Segundo Syd Field (2001, p. 97) “(...) o plot point é um incidente, ou evento, que 'engancha' na ação e a revertenoutra direção”.
Referências
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