Resumo: O presente artigo trata da chamada Covid-19, uma doença viral que tornou-se o principal problema político da atualidade e que provavelmente surtirá efeitos devastadores por várias décadas no futuro. Especificamente, coloca-se em questionamento a relação entre o coronavírus e a globalização. Argumenta-se que a Covid-19 não é uma super doença e seu caráter pandêmico foi alcançado apenas em função da expansão das novas tecnologias que permitem o encurtamento das distâncias e a aceleração dos contatos entre povos. Sugere-se que para evitar outras crises no futuro será necessário modificar o imaginário político mundial. Será preciso aceitar a ideia de que moramos todos no mesmo planeta e devemos nos tornar uma comunidade política mundial.
Palavras-chave:Covid-19Covid-19,coronavíruscoronavírus,globalizaçãoglobalização,política internacionalpolítica internacional.
Resumen: Este artículo trata de la llamada Covid-19, una enfermedad viral que se ha convertido en el principal problema político actual y que probablemente tendrá efectos devastadores en las próximas décadas. Específicamente, se cuestiona la relación entre coronavirus y globalización. Se argumenta que Covid19 no es una súper enfermedad y su carácter pandémico se logró solo debido a la expansión de nuevas tecnologías que permiten acortar distancias y acelerar los contactos entre los pueblos. Se sugiere que para evitar más crisis en el futuro, será necesario modificar la imaginación política mundial. Será necesario aceptar la idea de que todos vivimos en el mismo planeta y que debemos convertirnos en una comunidad política global.
Palabras clave: Covid-19, coronavirus, globalización Politica internacional.
Abstract: This article aims to discuss the problem of the Covid-19, a viral disease that has become the main political problem nowadays and which is likely to have devastating effects for several decades to come. Specifically, the relationship between coronavirus and globalization is questioned. It is argued that Covid-19 is not a super disease and its pandemic character was achieved only due to the expansion of new technologies that allow shortening distances and accelerating contacts between peoples. It is suggested that in order to avoid further crises in the future, it will be necessary to modify the world political imagination. It will be necessary to accept the idea that we all live on the same planet and that we must become a global political community.
Keywords: Covid-19, coronavirus, globalization, international politics.
Covid-19: a globalização do infortúnio
Covid-19: the globalization of misfortune
Covid-19: la globalización de la desgracia
Introdução
Este estudo tem como tema a pandemia de Covid-19. Não há necessidade de qualquer apresentação sobre esta doença, pois praticamente todas as pessoas nesse planeta, independente de onde estejam ou a que classe pertencem, foram ou serão afetadas por este surto pandêmico. Todavia, pouco se tem falado sobre a relação entre a pandemia causada pelo coronavírus e a globalização e este é o objetivo deste artigo. Como será mostrado, qualquer tentativa futura para conter acontecimentos semelhantes ao que vivemos atualmente devem passar pelo entendimento dessa relação, pois foi somente através dela que a pandemia em questão alcançou as proporções atuais.
A tragédia da Covid-19 já havia sido anunciada. Teóricos de várias partes do mundo que se dedicam a tratar da globalização já haviam alertado sobre o fato de que não é possível globalizar apenas aspectos positivos da vida. A mesma tecnologia que serve para introduzir conhecimento e ajudar milhões de pessoas serve também ao propósito de disseminar o pânico, as falsas informações e mesmo informações verdadeiras que, em excesso, acabam por tornarse ingrediente para a ansiedade coletiva. A mesma velocidade que tem nos presenteado com 40 viagens internacionais, carros velozes e entregas rápidas também ajudou a transformar o vírus em um produto delivery.
Muito se tem falado sobre a covid-19 e sua capacidade incrível de infectar, evoluir, aterrorizar e matar. Entretanto, se compararmos com outras doenças já conhecidas pela humanidade, veremos que o coronavírus não é assim tão aterrorizante em sua essência e o que confere a ele o aspecto temeroso é o pânico que tem causado por sua rápida contaminação. O vírus não viaja pelo ar, independentemente de nossos esforços, mas viaja através de nós e de nossa tecnologia que, por sua vez, teve sua expansão possibilitada pela globalização e é sobre este aspecto que este artigo tratará.
Na primeira seção, será abordada a questão da globalização e de como esta promoveu o encurtamento da distância e o incremento tecnológico, mas também a possibilidade da ocorrência de tragédias globais como a Covid-19. Na segunda parte, será mostrado que tragédias globais de proporções como as vistas na atualidade já haviam sido anunciadas pela literatura que trata do tema da globalização. Por fim, será discutida as condições de possibilidade que a doença encontrou e que lhe deram combustão para sua rápida propagação.
A globalização
O termo “globalização” é hoje amplamente conhecido tanto na academia quanto no senso comum. De acordo com Jones (2006), foi por volta dos anos 60 que o conceito de globalização começou a se popularizar, resultando em produções acadêmicas de economia política e das ciências sociais relacionadas com o desenvolvimento e a política econômica internacional pós Segunda Guerra Mundial. Foi também por esta época que autores que tratam do tema da ordem mundial e da política internacional começaram a vislumbrar os possíveis desafios que seriam vividos no mundo a partir do encurtamento das distâncias e do aumento dos contatos transnacionais.
De acordo com Giddens (2003, p. 60), a globalização é um “processo de alongamento, em que os modos de conexão entre diferentes contextos sociais ou regiões se tornam ligados em rede por toda a superfície terrestre”. Já para Woods (1999, p. 20), esse termo “descreve tanto o aumento das transações transfronteiriças de bens e serviços como o aumento do fluxo de imagens, ideias, pessoas e comportamentos”. Já para Steger, a globalização envolve:
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(…) a criação de novas redes de atividades sociais e a multiplicação das anteriormente existentes que superam cada vez mais as fronteiras políticas, econômicas, culturais e geográficas tradicionais; (…) expansão e [o] alongamento das relações sociais, atividades e interdependências; (…) a intensificação e aceleração de intercâmbios e atividades sociais; (…) criação, intensificação e expansão das interconexões e interdependências sociais no nível subjetivo da consciência humana (STEGER, 2003, pp. 9-12).
Sendo assim, pode-se dizer que a globalização modifica o alcance espacial das relações sociais e que as restrições do tempo e do espaço não mais se constituem como barreiras insuperáveis às muitas formas de interação ou organização social (HELD e MCGREW, 2003). Isso não significa dizer que o mundo tenha se tornado um lugar com portas abertas onde todos podem circular igualmente, entretanto, o aumento da atividade internacional, especialmente os fluxos de comércio e investimentos, certamente flexibilizaram enormemente os acessos entre povos, ou pelo menos os acessos dos mais privilegiados.
Infelizmente, a globalização também possui uma face negativa que é largamente ignorada ou amenizada por aqueles que a promovem. Ela favorece a disseminação de doenças, de armas, de drogas, do terror e da pobreza. Cria um ambiente favorável à multiplicação, mas não determina a qualidade do que será aumentado.
A expansão do mercado global foi fortemente incentivada no âmbito das relações internacionais. Observou-se a criação de mercados globais e área comuns de negociação de mercadorias com regras robustas e executáveis. Por outro lado, as regras destinadas a promover objetivos sociais igualmente válidos - padrões de trabalho, direitos humanos, qualidade ambiental ou redução da pobreza - ficam para trás e, em alguns casos, se tornaram mais fracas (HELD, 2003).
É preciso observar nesse sentido que a globalização não é um fenômeno econômico e social neutro. É essencial reconhecer a globalização não como uma entidade autônoma que não é governada por ninguém, mas como um projeto hegemônico. A “globalização não se dá em um vácuo político” (HELD; MCGREEN, 2003, p. 5); pelo contrário, ela é proveniente de uma sucessão de decisões políticas que só podem ser desfeitas ou remodeladas em termos políticos.
De acordo com Steger (2003, p. 94), a globalização incorporou elementos neoliberais na sua formação e foi disseminada “por uma poderosa falange de forças sociais (...), que consiste em gerentes corporativos, executivos de grandes corporações transnacionais, lobistas, jornalistas e especialistas de relações públicas, intelectuais (...), burocratas estatais e políticos”.
Os neoliberais “apresentam a liberalização e integração dos mercados globais como 42 ’fenômenos naturais’, e que promoveriam mais liberdade individual e progresso material do mundo” (STEGER, 2003, p. 97). Assim, eles transformam em uma determinação econômica algo que seria apenas uma contingência política. Os neoliberais apresentam o retrato da globalização como uma “espécie de força natural, como o clima ou a gravidade, facilitando (...) o processo de convencer as pessoas que elas devem se adaptar à disciplina do mercado se quiserem sobreviver e prosperar” (STEGER, 2003, p. 101).
Por ter se alinhado aos preceitos neoliberais, a globalização depositou grande importância e confiança no desenvolvimento que viria a partir do âmbito individual e econômico sem grandes preocupações com as possíveis consequências sociais e políticas que poderiam ser ocasionadas, deixando essa incômoda tarefa aos governos locais. A partir da experiência da Covid-19, hoje sabemos que, a depender das proporções que uma possível crise global possa causar, a grande maioria dos Estados nacionais não estão preparados para ela.
Isto ocorre porque o pacote neoliberal que a maioria dos países foram obrigados a adotar a partir de pressões internacionais implica no enxugamento do Estado, fazendo com que este se retire ao máximo da vida das pessoas e ocupe um papel regulatório. No entanto, já era sabido que o aumento do fluxo migratório de pessoas tornaria cada vez mais difícil conter a possibilidade de propagação de problemas em escala mundial. É o caso, por exemplo, de distúrbios globais sistêmicos: aquecimento global, empobrecimento da camada de ozônio, AIDS, terrorismo de massa, tráfico de drogas, volatilidade de mercado, lavagem de dinheiro e propagação de doenças.
Por um lado temos um aumento de problemas e, por outro, a diminuição da capacidade dos Estados em lidar com os mesmos. Todavia, os neoliberais foram muito eficientes em convencer a todos de que os problemas sociais deveriam ser resolvidos por entidades privadas e gerar lucro. Desse modo, o poder político foi se esvaziando e, em vez de Estados nacionais fortes, o poder tornou-se difuso entre diversos atores, especialmente atores com poder econômico. A globalização transformou a política mundial “em um movimento em direção a um sistema ‘policêntrico’ ou ‘multinuclear’ operando dentro do mesmo espaço geográfico (e/ou espaços sobrepostos)” (CERNY, 1999, p. 190).
A este propósito, tem sido crescente o número de autores (HIRST e THOMPSON, 1995; ANDERSON, 1996; KHANNA, 2011) que consideram que a ordem internacional está cada vez mais parecida com a Idade Medieval. Isto tem ocorrido porque, em vez de soberanias nacionais exclusivas, “corporações multinacionais, famílias poderosas, humanistas, extremistas religiosos, universidades e mercenários compõem a paisagem diplomática. 43
Tecnologia e dinheiro, e não soberania, determinam quem tem autoridade e dá as ordens” (KHANNA, 2011, p. 14).
Como temos visto no momento atual, a fragmentação do poder atua enfraquecendo a capacidade dos Estados, os quais podem não ter condições necessárias de atuar em situações específicas, como a da Covid-19. A Idade Média não foi chamada de idade das trevas sem razão. Tratava-se de um mundo profundamente desigual e pautado em privilégios onde os interesses particulares eram colocados acima do interesse comum.
Hoje, infelizmente graças à Covid-19, temos a real imagem do mundo globalizado. A globalização chegou para todos, porém não de modo igualitário e, assim, suas consequências não tendem a serem repartidas igualmente ou proporcionalmente. Ela amplia uma noção tão velha quanto a história da humanidade de quem tem mais sempre sofre menos do que quem tem menos. Os pobres sempre serão os mais afetados, mesmo quando a doença é trazida pelos mais ricos.
Em síntese, esta seção buscou definir rapidamente a globalização e mostrar que em seu âmago havia uma tragédia anunciada. No entanto, é preciso entender que isso não significa que a globalização seja um monstro a ser eliminado, mas que ela precisa ser melhor administrada e governada. Há riscos inerentes a quase qualquer empreendimento, especialmente de grandes proporções. No entanto, qualquer um que entenda minimamente de riscos gerenciais sabe que as ameaças de alta probabilidade não podem ser simplesmente ignoradas, pois corre-se o risco de arruinar o próprio projeto.
A globalização não está arruinada, pois nos dias atuais dependemos dela fortemente. Porém, a crise que vivemos pode servir para revelar as suas problemáticas e mostrar que nos momentos mais difíceis nem todos pagam o mesmo preço. Por esta razão a ordem internacional precisa ser radicalmente modificada e isto não poderá ser feito por aqueles que dela se beneficiam. Será necessário aplicar o melhor dos antídotos políticos já inventados pela humanidade, ou talvez o pior, exceto todos os demais, para parafrasear Winston Churchill.
Será preciso democratizar a ordem internacional.
A Covid-19: tragédia anunciada
Muito burburinho tem sido feito em torno dessa “nova” doença que na verdade não é nova, pois a família do coronavírus já havia causado outras fatalidades. Tem-se a impressão de que se trata de uma doença viral realmente terrível com alto desempenho, uma espécie de vírus 4.0. Ela infecta rapidamente, se espalha rapidamente e mata rapidamente. 44
Entretanto, se compararmos com outras doenças já conhecidas pela humanidade, veremos que a covid-19 não é assim tão aterrorizante em sua essência e o que confere a ela o aspecto temeroso é o pânico que tem causado por sua rápida contaminação e pela enorme soma de informações que possuímos sobre ela.
Jamais, em nenhuma época histórica, uma doença havia sido tão rapidamente dissecada em todas as partes do mundo. Há hoje uma incrível rede de cientistas e pesquisadores dia e noite debruçada sobre ela, utilizando equipamentos de alta tecnologia para tentar contê-la.
Para alguns, a cura para a doença está demorando e isso faz com que esta pareça ainda mais terrível, entretanto, isso é apenas um reflexo de uma sociedade apressada munida com muita informação e pouco conhecimento. Qualquer um que entenda de ciência sabe que o empenho e a rapidez com que as pesquisas têm sido desenvolvidas é um fenômeno tão maravilhoso que deveria ser dedicado a ele enorme apreciação.
O atraso para resolver o problema do vírus não está no laboratório. Os cientistas sabem muito bem o que mata o vírus. O que eles procuram saber é como matar o vírus sem nos matar. A demora para a cura não é proporcional à inteligência e velocidade dos pesquisadores, mas ao seu cuidado com a nossa própria existência. Eles dedicam muitas horas pensando em como resolver o enorme problema enquanto continuamos a aumentá-lo e é neste ponto que podemos adentrar com a questão da globalização, pois ela proporcionou ao vírus a possibilidade de atravessar fronteiras e infectar milhares de pessoas por todo o globo em uma velocidade nunca antes experimentada. Estamos diante de uma pandemia globalizada.
A tecnologia tem sido aperfeiçoada de modo exponencial e foi introduzida por todo o planeta através da globalização. Ela nos permite abundância, velocidade e até mesmo excessos. Vivemos uma época em que temos informação demais, ofertas demais, pessoas demais, velocidade demais, ansiedade demais e, ironicamente, leitos de menos, equipamentos hospitalares de menos e Estado de menos.
Muito foco tem se dado à covid-19, mas ela é apenas uma espécie de gatilho. Infelizmente, é um estopim que custará muitas vidas, mas que talvez servirá ao propósito de revelar o que há de encoberto na globalização. O coronavírus é nossa revolução pós-moderna no sentido de que nada será como antes. Contudo, será preciso que não estejamos distraídos com a doença para focarmos em como a mesma alcançou proporções globais.
Uma das primeiras informações que se teve sobre o vírus é o fato de que sua circulação ocorre predominantemente através de contato em superfícies. Logo, o vírus não é autônomo e precisa ser transportado por nós ou pelas tecnologias que utilizamos. Ele não teria 45 tido grandes repercussões se ainda morássemos em áreas rurais, cultivando os campos e passeando a cavalo.
Porém, o mundo em que vivemos hoje é muito diferente do passado. O ritmo de vida atual é muito mais intenso do que há 500 anos. A quantidade de informações a que somos expostos, os níveis de estresse, a quantidade de doenças, se multiplicaram. E tudo ocorre muito mais rapidamente. Os contatos foram aumentados dezenas de vezes, os transportes também tornaram-se mais rápidos e a dependência também expandiu.
Há algumas centenas de anos era provável que cada família tivesse seus cavalos e que a maioria das pessoas jamais cogitasse viajar mais do que a capacidade de um cavalo. Hoje, especialmente nos grandes centros, a maioria das pessoas se deslocam todos os dias em transportes públicos lotados, ocupam espaços igualmente cheios e trabalham em cubículos ou grandes áreas comunitárias com nenhum espaço privado.
As viagens e os contatos com pessoas de lugares distantes são uma realidade para grande parte da população e mesmo aqueles que não têm condições de viajar provavelmente entrarão em contato com alguém que tenha viajado, seja através de redes de amigos ou de trabalho.
E foi precisamente deste modo que o coronavírus foi capaz de adentrar no lar de tantas pessoas. Não por uma capacidade especial inerente, mas porque vivemos hoje muito mais próximos e muito mais amontoados do que no passado. O isolamento social, como se tem chamado, era o modo de vida normal das pessoas a séculos atrás. Essa mudança no modo de vida gera consequências importantes para a ordem social e as mudanças proporcionaram o ambiente ideal para a propagação do vírus, como veremos a seguir.
A covid-19 e os desafios sociais
Como esclarecemos a pouco, a Covid-19 não é uma super doença e seu caráter pandêmico foi alcançado apenas em função da expansão das novas tecnologias que permitem o encurtamento das distâncias e a aceleração dos contatos entre povos. Estes aspectos tratam do coronavírus em termos de espaço e tempo. Todavia, um outro aspecto que tornou a doença tão terrivelmente danosa foi a sua intensidade e o nosso despreparo para contê-la. Nesse sentido, será preciso agora deixar de lado a questão da doença em si e de como foi transportada e tratar do ambiente social que a mesma encontrou ao chegar e que lhe deu combustão.
O modo como a vida social tem sido administrada em grande parte do mundo e 46 também do Brasil foi fortemente influenciado pelo neoliberalismo. Em termos políticos, o neoliberalismo implica no enxugamento do Estado, de modo que este atue principalmente na regulação da vida social, tendo menor importância no governo da vida humana. Os neoliberais acreditam que os problemas são mais bem resolvidos na esfera econômica e que os negócios particulares tendem a ser mais eficientes do que a coisa pública.
Baseado nessa premissa, grande parte dos serviços antes considerados de responsabilidade pública passaram a ser administrados pela esfera privada. É o caso, por exemplo, da oferta de serviços de saúde e transporte. O grande problema é que o enxugamento do papel dos Estados os levou a ignorar largamente os riscos que teriam que ser administrados em situações como as da Covid-19.
Como temos visto, o âmbito econômico e as iniciativas particulares não são capazes de lidar com problemas de tais proporções. Pelo contrário, o primeiro efeito da crise no âmbito econômico foram as demissões em massa que alavancaram o índice de desemprego, obrigando os governos a socorrerem a população com pacotes de ajuda financeira.
O investimento massivo em hospitais e equipamentos de saúde para atender os pacientes infectados com o coronavírus teve que ser coberto pelo poder público. Uma parte significativa de hospitais da rede privada já não têm mais capacidade de atender à sua demanda, o que significa que mesmo aqueles que possuem planos de saúde podem ficar sem atendimento adequado. Em alguns países, já se chegou à situação abominável em que médicos precisam escolher quais pacientes receberão tratamento e quais serão deixados à morte.
Também são marcantes as passeatas promovidas principalmente por grupos de empresários pedindo que a população volte ao trabalho, ignorando as recomendações sanitárias. Estes grupos desprezam os impactos de suas demandas para aqueles mais necessitados e para o próprio Estado. Pode-se objetar que os empresários estão buscando manter empregos através de suas portas abertas e que as demissões só ocorreram, pois eles não estavam preparados para os problemas planetários trazidos pelo vírus importado da China.
Ocorre que tampouco os Estados nacionais estão preparados, pois vivemos em um período histórico cujo imaginário político em grande parte do mundo baseia-se na concepção de Estado mínimo, em que o âmbito econômico individual prevalece e os Estados nacionais possuem pouca capacidade de manobrar.
Isso não significa que os Estados não devem ser responsabilizados e que devemos jogar a culpa em um inimigo tão intangível quanto o neoliberalismo ou na covid-19. No Brasil, temos uma longa tradição de corrupção e déficit de serviços públicos, os quais ficaram 47 mais evidentes com a vinda do coronavírus, mas que já estavam presentes antes da sua chegada. Citando alguns dos mais evidentes, neste momento temos os problemas da baixa qualidade dos serviços de saúde pública, transporte público ineficiente e insuficiente, a desigualdade social acentuada e a violência contra a mulher.
Conforme observado por Caponi (2020, p.1-2), “a mortalidade [da covid-19] foi muito menor em países como Alemanha e Coreia do Sul, onde os sistemas de saúde tinham previamente equipamentos, leitos, respiradores e espaço nas UTIs”. O transporte público brasileiro já era ineficiente e as pessoas em grandes cidades já precisavam transitar amontoadas. Obviamente, aqueles que necessitam dos sistemas públicos já sabiam da problemática, mas ela era sistematicamente ignorada pelos governantes.
A pandemia também evidenciou um fato há muito tempo conhecido de que as pessoas mais pobres tornam-se mais fragilizadas em situações de risco. Embora no Brasil o vírus tenha sido inicialmente importado pelas camadas mais ricas e tenha tido efeito na vida de todos, os pobres são aqueles que, por suas condições normais de vida, foram os mais atingidos. Para Caponi (2020, p. 2) “a pandemia mostra que estamos todos expostos, pobres e ricos, velhos e jovens, aqueles que podem e aqueles que não podem pagar um plano de saúde”.
A covid-19 evidenciou que a saúde “não pode ser pensada em termos neoliberais de investimento e capital, que a saúde não é uma commodity, um bem de mercado que deve ser adquirido na medicina privada, deixando a saúde pública para aqueles que não podem pagar” (CAPONI, 2020, p. 2). Ao contrário do que aconselham os neoliberais, “será preciso investir mais, e não menos” (CAPONI, 2020, p. 2).
A violência contra a mulher também foi evidenciada durante o período de pandemia. A permanência do companheiro em casa devido ao isolamento parece ter acentuado os períodos de tensões e feito com que o número de denúncias aumentasse. Isso obrigou inúmeras mulheres a serem removidas de suas residências em plena pandemia, aumentando seu risco pessoal. Sabemos que a violência doméstica está também presente em todos os estratos sociais, porém as mulheres pobres acabam sendo sempre mais afetadas, pois têm menos condições de resistirem à violência de seus companheiros.
Outro ponto que deve ser ressaltado e que também se refere a uma condição preexistente é o caso da valorização da ciência em tempos de crise. Por um lado, percebe-se que governos e a população de modo geral tem depositado grandes esperanças na ciência para encontrar a cura contra a doença. Por outro, testemunha-se grupos que cultuam a ignorância 48 anticientífica, menosprezando as recomendações médicas e espalhando falsas notícias.
Para algumas pessoas mais esclarecidas, este último caso vêm causando espanto. Entretanto, todo cientista brasileiro conhece a realidade do não reconhecimento e da anticiência. Há pouco apoio às pesquisas no país e os governantes raramente as utilizam para mudar a realidade. Perceba que o que se quer nesse momento é somente uma vacina e, após encontrada, a ciência pode novamente se restringir aos laboratórios e esperar ser chamada às pressas em uma nova calamidade.
Os cientistas também foram convocados para validar o isolamento social. Ora, esta é uma estratégia centenária para restringir a disseminação de doenças; contudo, em termos normais, ela é sistematicamente ignorada pelo poder público que apenas observa a multiplicação de residências apertadas e sem nenhuma condição sanitária adequada. É preciso ainda ressaltar que o isolamento como “melhor” técnica é apenas uma medida para evitar maior intensidade e rapidez nas infecções. Entretanto, ele não substitui a “demanda urgente por investimentos para a infraestrutura de saúde, para a testagem extensiva e para o financiamento de pesquisas que possam lançar luz sobre o vírus e os tratamentos” (REISCASTRO e NOGUEIRA, 2020, p. 3).
Obviamente isso não significa que o isolamento não seja fundamental, mas que devemos permanecer vigilantes quanto às tentativas do poder público de direcionar a responsabilidade para o âmbito individual ou para a ciência escondendo as desigualdades sociais já existentes. As “diferenças de renda, desigualdades nas condições de moradia e discrepâncias nas redes de apoio e nas responsabilidades familiares (...) influenciarão, significativamente, na maneira como essas pessoas serão afetadas pela pandemia” (REISCASTRO e NOGUEIRA, 2020, p. 4).
No âmbito internacional, visto que tratamos de uma crise global, a situação é bastante semelhante. As perturbações do coronavírus mostraram claramente que numa situação de calamidade os Estados nacionais tendem a reforçar seus individualismos, deixando os demais à mercê de seus próprios recursos. Pouca diplomacia foi observada no âmbito internacional quando a aquisição de suprimentos hospitalares esteve em jogo. O que houve foi guerra de poder, bloqueios e algumas poucas demonstrações concretas de solidariedade por parte dos Estados ricos.
Isso demonstra que a ordem internacional ainda está longe de ser uma ordem solidária e cooperativa. Em uma situação pandêmica, os países com melhores recursos levam vantagens em preservar seus status e em se protegerem, enquanto os menos afortunados podem se encontrar em um campo aberto com baixa capacidade de resistir aos infortúnios e 49 possivelmente terão que recorrer a auxílios internacionais, pagando juros para os mais ricos.
Nenhum país sabe hoje como essa crise será gerenciada, pois ainda é cedo para checar seus prejuízos e consequências. No entanto, o caminho para evitar crises futuras já pode ser pensado. Será preciso somar esforços para mitigar os efeitos negativos da globalização e pensar em uma gestão internacional do infortúnio. De acordo com Ribeiro:
O coronavírus deveria servir para nos ensinar lições (...) [que] a interdependência da vida social humana, mais obviamente demonstrável nas cidades, reclama concepções políticas que vão muito além do individualismo e das políticas neoliberais destruidoras dos serviços públicos. Reclama em especial um fortalecimento da saúde e da educação públicas como partes estratégicas da rede de proteção necessária a todos e não apenas aos menos privilegiados (RIBEIRO, 2020, pp. 3-4).
Isso inicialmente será um grande desafio, pois com a Covid-19 causou-se a falsa impressão de que o problema do coronavírus foi a circulação das pessoas e que, como consequência, acionou a proteção nacionalista. De acordo com Granada (2020, p. 1), “o contexto de disseminação da epidemia, associado à intensificação da mobilidade humana, levou os governantes a tomarem medidas fortemente restritivas de circulação de pessoas, (...)
[impedindo] a entrada de estrangeiros em uma luta contra um inimigo invisível”.
Embora a reação tenha sido esperada e até mesmo recomendada, não se pode torná-la permanente atribuindo outra vez o problema ao destinatário errado. A circulação de pessoas é de extrema importância social e econômica. Desse modo, devemos reconhecer que a globalização e o aumento do fluxo de pessoas não é em si algo negativo. Contudo, hoje sabemos que a gestão da vida social não pode ser deixada a cargo do individualismo ou da economia de mercado sem regulamentação.
Para tanto, o próprio imaginário político pós-moderno deverá ser modificado. Será preciso a compreensão de que moramos todos no mesmo planeta, além de reconhecer a necessidade de uma mudança na lógica da política interna e externa que seja capaz de equilibrar diferenças nacionais e a busca por um objetivo comum: uma sociedade mundial mais igualitária. O modelo que considera cada uma das nações do mundo como unidades autônomas tem dificultado a percepção de que as decisões políticas de uma unidade afeta significativamente a outra.
Podemos utilizar esta crise como um exemplar de tudo aquilo que queremos evitar, tirando debaixo do tapete todos os problemas que temos ignorado. Devemos iniciar colocando fortemente a pauta da desigualdade e do papel dos Estados e da ordem mundial para resolvêla. Trata-se de repensar a relação entre o individual e o coletivo. A pobreza foi por muito tempo deixada ao âmbito privado, mas o coronavírus têm nos mostrado claramente que sem 50 os pobres não há mão-de-obra, não há geração de renda e não há riquezas, o que prejudica a todos.
A riqueza global será redistribuída após o coronavírus como em uma guerra. As baixas gerarão propriedades com novos herdeiros, algumas empresas irão à falência e o nível de desemprego tende a aumentar fortemente. Também haverá muitos lucros a circular ao nível internacional, devido à retirada de capitais e vendas de produtos necessários com a crise. Muitas nações irão prosperar, enquanto muitas entrarão em calamidade. Desse modo, a desigualdade internacional tende a se modificar, mas não tende a tornar-se mais igualitária.
Conclusões
O mundo em turbulência nunca permanece o mesmo; entretanto, ele nos oferece a oportunidade de contornar a sua direção. Não precisamos aceitar o movimento de coisas como estão, em contraste, podemos modificar a ordem internacional e transformá-la em um espaço mais igualitário e mais democrático.
Tal iniciativa não é apenas de interesse de países pobres, visto que não se está fazendo favor a ninguém. Na realidade, este é um interesse da humanidade em geral e segue um princípio muito conhecido pelos capitalistas de que se deve sempre prosperar a partir das calamidades. Temos uma oportunidade inesperada de criar uma civilização de caráter mundial. Precisamos encontrar formas para governar o mercado, não contra ele mesmo, mas utilizando suas próprias regras.
É tempo de encontrar o consenso, a paz, a cooperação, o senso de humanidade que estava esquecido e reforçar valores como o da igualdade e os demais princípios democráticos. Ironicamente, para chegarmos nesse consenso, precisamos primeiro mostrar o dissenso, tirar para fora do tapete a poeira acumulada, desmascarar o egoísmo disfarçado de altruísmo, rechaçar os grupos que pregam a anticiência e que somente se interessam por suas próprias causas. Somente depois de retirarmos toda a imundície acumulada em nosso planeta é que poderemos ver nascer as flores de uma sociedade mundial verdadeiramente igualitária.