Resumo: A partir dos conceitos de ideologia e de utopia na perspectiva da Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim, passando pela sua cristalização em complexos ideacionais de longa duração, como a cultura política brasileira, este artigo procura analisar a maneira como a disputa ideológica ocorre no debate público brasileiro contemporâneo num cenário de crise de sentido decorrente da epidemia de coronavírus.
Palavras-chave:IdeologiasIdeologias,utopiasutopias,cultura políticacultura política,coronavíruscoronavírus.
Resumen: A partir de los conceptos de ideología y de utopía en la perspectiva de la Sociología del Conocimiento de Karl Mannheim, pasando por su cristalización en complejos ideacionales de larga duración, como la cultura política brasileña, este artículo trata de analizar la manera como la disputa ideológica ocurre en el debate público brasileño contemporáneo en un escenario de crisis de sentido derivado de la epidemia de coronavirus.
Palabras clave: Ideologías, utopias, cultura política, coronavirus.
Abstract: From the concepts of ideology and utopia in the perspective of Karl Mannheim’s Sociology of Knowledge, through its crystallization in long-term ideational complexes, such as Brazilian political culture, this article seeks to analyze the way the ideological dispute occurs in the contemporary Brazilian public debate in a scenario of sense crisis resulting from the coronavirus epidemic.
Keywords: Ideologies, utopias, political culture, coronavirus.
Ideologias, utopias e cultura política - elementos para a compreensão da disputa ideológica no Brasil em tempos de Coronavírus
Ideologies, utopias and political culture - elements for understanding ideological dispute in Brazil in Coronavirus times
Ideologías, utopias y cultura política - elementos para entender la disputa ideológica en Brasil em tiempos de Coronavirus
Introdução
Quando Karl Mannheim escreveu seu clássico Ideologia e utopia, em 1929, havia uma década que o mundo passara pela gripe espanhola, uma epidemia de proporções mundiais que, guardadas as devidas proporções, assemelha-se ao que o mundo presencia atualmente na pandemia de coronavírus. O mundo presenciava, naquela década imediatamente posterior à epidemia de gripe espanhola, uma sensação de crise, que se manifestava não somente no âmbito econômico (ainda que conhecida como uma das maiores crises econômicas de dimensões mundiais), mas numa crise de sentidos[1] que seria característica da contemporaneidade (GIDDENS; LASH; BECK, 2012).
Os conceitos de ideologia e de utopia de Mannheim se constituem num ferramental teórico para a compreensão da dinâmica social e política em tempos de grandes dissensos, seja numa perspectiva diacrônica (como é o caso da compreensão, por exemplo, das diferentes expressões da cultura política de um determinado país ao longo do tempo), seja numa perspectiva mais sincrônica (como é o caso da compreensão, no momento atual, das tensões entre ciência e doxa decorrentes da pandemia de coronavírus, em que, por um lado, 108 encontram-se as narrativas da ciência sobre o fenômeno e, por outro lado, um amplo conjunto de opiniões).
Numa concepção ampla, Mannheim concebe as ideologias e utopias como pertencendo à dimensão social do que ele denomina como visões de mundo
(Weltanschauungen), que seriam complexos ideacionais compartilhados por grupos sociais, as quais, por sua vez, inserem-se no contexto do espírito da época (Zeitgeist). Esta concepção emerge já em 1921 em sua obra Acerca da Teoria da Interpretação das Visões de Mundo (MANNHEIM, 2011), em que Mannheim pensa nos processos históricos e culturais a partir de três camadas estruturais: o espírito de uma época (Zeitgeist), a visão de mundo (Weltanschauung) e o gosto pessoal (MAZUCATO, 2020).
Essa concepção permite a Mannheim identificar nos objetos históricos e culturais (como seria o caso das ideologias e das utopias), o que denomina como Kunstwollen (motivação) e também recolocar a questão weberiana do sentido da ação social em termos de sentido objetivo, sentido expressivo e sentido documentário, este último sendo aquele em que se apresentam em maior grau os elementos societários como o ethos. Isto leva Mannheim a
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considerar os complexos ideacionais ideológicos, por exemplo, a partir de dois modelos: a concepção particular e a concepção total, cujas demarcações eram decorrentes do grau de “desqualificação” que se atribui à estrutura de pensamento do “outro” (MAZUCATO, 2014).
A relação que Mannheim estabelece, aqui, entre os complexos ideacionais, por um lado, e o sujeito histórico que os produz, por outro lado, é a síntese de sua Sociologia do Conhecimento[2]. Esta relação permite identificar os complexos ideacionais como funções sociais, no “nível noológico” (MANNHEIM, 1972, p. 83). Para ele, o ser humano não pensa “(...) no vácuo social, mas num meio social definido, a perspectiva intelectual de cada homem é apenas uma coleção de elementos adquiridos de sua configuração social” (COOMBS, 1966, p. 229). As ideologias e as utopias seriam uma expressão cristalina desta função social presente nos complexos ideacionais. Ricoeur afirma que:
A polaridade entre ideologia e utopia foi raramente levada em consideração desde o célebre livro de Karl Mannheim, Ideologia e utopia. Este livro, ao qual farei referência frequentemente, foi publicado em sua versão original no ano de 1929. Creio que Mannheim é a única pessoa, ao menos até um passado recente, que tentou pensar a ideologia e a utopia conjuntamente. Ele o fez considerando ambas como fenômenos desviantes em relação à realidade. Elas divergem no seio de uma mesma
16). 109 defasagem, de uma mesma distorção em relação à realidade (RICOEUR, 2017, p.
Para Mannheim, tanto a ideologia quanto a utopia significam, num plano mais genérico, visões de mundo que estão em desacordo com a realidade. Esta definição torna complexa a sua operacionalização para a compreensão e explicação dos fenômenos sociais, e o próprio Mannheim avança em sua definição destes dois conceitos, a partir de uma constelação de fatores que constituem a dinâmica da história. Neste sentido mais dinâmico, as ideologias passam a significar complexos ideacionais que atuam no sentido da conservação (manutenção) do status quo, ou seja, na legitimação da situação existente, e as utopias, por sua vez, passam a significar complexos ideacionais que movem os indivíduos no sentido da transformação (mudança) do status quo. Neste sentido mais aterrado na dinâmica social, as ideologias e as utopias adquirem maior capacidade de compreensão e explicação dos fenômenos sociais.
Esta definição de ideologia se aproxima, portanto, enquanto uma apreensão parcial da realidade pela mentalidade de grupos sociais específicos, ao conceito de estilo de pensamento.
Ao se voltarem para os fenômenos políticos, tais estilos de pensamento produzem
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interpretações díspares como o conservadorismo (que Mannheim denomina como conservantismo burocrático), o ideário liberal-democrático burguês e a visão socialistacomunista, sem deixar de mencionar, por certo, as formas mais extremadas que se aproximam das concepções fascista e nazista, mas que também englobam o comunismo, evidenciando os traços de cada um destes estilos de pensamento político com a sua concepção de ideologias (MANNHEIM, 1972, pp. 143-172).
Tal perspectiva de Mannheim, que deságua em sua Sociologia do Conhecimento, relacionando as conexões existenciais que se estabelecem entre os complexos ideacionais (pensamentos, estilos de pensamento, conhecimentos, Weltanschauungen) e os grupos sociais que são os seus portadores, implica numa concepção epistemológica em que não é possível a existência de conhecimentos políticos “sem partido”. Deve-se isso ao fato de que a posição do sujeito pensante se torna o ponto de partida na gênese e circulação dos complexos ideacionais, sendo mais congruente a uma configuração “pluripartidária” do que “apartidária” quando se refere aos complexos ideacionais sociais e políticos. Vale aqui a ressalva de que Mannheim não utiliza o termo “partido” e suas derivações no sentido de partidos políticos, mas sim no sentido de posições, concepções cristalizadas socialmente acerca de como é o mundo (em 110 sentido ontológico) e que orienta a ação dos indivíduos que são os portadores e adeptos destas posições (em sentido da práxis social).
Contudo, esta definição, por mais que apresente maior dinamismo em relação às concepções estáticas de ideologia e de utopia, ainda deixam de captar determinadas nuances das disputas de ideias. Um exemplo simples pode ser trazido à tona, ao se questionar se todas as ideologias que legitimam o status quo (tendência a não romper com a ordem existente) implicam nas mesmas cosmovisões dos grupos sociais que são os seus portadores, o mesmo valendo para as utopias, por mais que os complexos ideacionais utópicos possam ser apresentados como possuindo força social e política em sentido oposto aos ideológicos, em sentido estrito, enquanto tendências a romper com a ordem existente. Tendo a clareza que a resposta seria, neste caso, negativa, uma vez que os diversos complexos ideacionais que atuam no sentido de legitimar o status quo apresentam nuances entre si, nuances estas que são mais evidentes nas utopias, Mannheim elabora um modelo analítico em que estas nuances possam ser captadas a partir de determinados aspectos mais específicos. Em Ideologia e utopia (MANNHEIM, 1972), para demonstrar a aplicabilidade deste modelo analítico, Mannheim isolou, por exemplo, a concepção de uma filosofia da história de cada grupo social portador de determinadas ideologias ou utopias (ROS, 1993; SHILLS, 1974; TURNER, 1999). Com isso, apresentou alguns tipos ideais de ideologias e de utopias, que coexistem num mesmo tempo histórico, e disputam entre si, no plano dos complexos ideacionais, pela interpretação da realidade. Vale ressaltar que a característica principal que Mannheim atribui a estes complexos ideacionais, para que se tornem ideologias ou utopias, consiste no fato de não perderem as suas vocações para a ação, ou seja, de não somente se estabeleceram enquanto visões de mundo (Weltanschauungen) dos grupos sociais, mas, simultaneamente, orientarem as ações sociais dos indivíduos que pertencem a estes grupos.
A dinâmica inerente a este tipo de análise, de caráter relacional, em que um mesmo complexo ideacional pode apresentar-se, ora ideológico, ora utópico, possui de mais significativo a sua característica de representar uma tensão permanente entre a teoria (complexos ideacionais) e a prática (ação social e política) dos indivíduos situados em grupos sociais. Isso se verifica, por exemplo, na tendência que os complexos ideacionais utópicos carregam em si, de se converterem em ideológicos, uma vez que, dada a disputa social e política, venham a se tornar dominantes em algum momento, transformando-se em portadores da defesa do status quo. Este arranjo teórico elaborado por Mannheim, por mais que seja assentado nas tensões inerentes à disputa nos planos social e político, não pode ser enquadrado na linha de concepção do materialismo histórico, aproximando-se muito mais de 111 uma concepção historicista do fluxo histórico. Esse fato se evidencia não somente por não ser, na teoria de Mannheim, a classe social um conceito central (mas sim o conceito de grupo social), quanto por uma espécie de finalidade política (que não deve ser confundida com teleologia) da síntese, em que os intelectuais (em particular o grupo social que ele identifica como intelligentsia) seriam os operadores, atores centrais na construção da organicidade na esfera social e política e, por que não, cultural.
Cultura política no Brasil - ciência, história e modernização conservadora em tempos de epidemia de coronavírus
Aos que concedem primazia à sensatez, por mais judiciosos que sejam na observação dos fatos, poucas são as esperanças divisadas no futuro próximo quanto à superação bemsucedida da pandemia, de proporções dantescas, do coronavírus no Brasil, malgrado a insistência de parcela esclarecida dos operadores do Estado brasileiro em fazer prevalecer os ritos preventivos pactuados internacionalmente pelas sociedades científicas competentes. É pública e notória a postura recalcitrante do presidente da República, Jair Bolsonaro, que objeta o curso das políticas públicas de saúde afetas à pandemia ao questionar veementemente a ciência em pelo menos dois aspectos fundamentais: a necessidade do isolamento social horizontal, ou seja, da reclusão domiciliar do maior número possível de brasileiros, até que a taxa de contaminação seja reduzida ao ponto em que o número de casos novos da doença deixe de comprometer o atendimento hospitalar; e a ineficácia, segundo numerosos ensaios e estudos clínicos já realizados, dos medicamentos cloroquina e hidroxicloroquina, na recuperação de pacientes com Covid-19.
O negacionismo presidencial, por si só, salta aos olhos, sobretudo porque praticamente todos os países, democráticos ou não, têm balizado suas políticas de combate à pandemia de acordo com as orientações científicas coordenadas pela Organização Mundial da Saúde. No entanto, a postura exótica do chefe do executivo brasileiro é maior que sua idiossincrasia, uma vez que o mandato político conquistado nas urnas trouxe à luz uma ideologia política – consubstancial às suas hostes mais leais –oposta aos valores basilares da democracia política, calcada no culto à personalidade; no ressentimento com o establishment político; no fundamentalismo religioso; no estímulo à violência retórica e, frise-se, à organização de tropas de assalto; no elogio desbragado, sem pejos, à ditadura militar; na intolerância com a divergência e com a diversidade de valores e opiniões; no desrespeito às minorias sociais; no menosprezo às questões ambientais; e, como corolário, no anti-intelectualismo e, por 112 dedução, na desvalorização da educação e da ciência.
Nada disso se abateu sobre o horizonte político brasileiro como raio em céu azul. Sem a pretensão de exaurir o espinhoso debate sobre as condições históricas, políticas e culturais que engendraram a configuração atual da vida democrática no país, urge, ao menos, aceder ao desafio de se rascunhar uma interpretação sobre o que acerbou a sociedade brasileira tornando-a suscetível à polarização mais radicalizada, na contramão do que supunha até então o cânon teórico da ciência política no Brasil – vertido pela agenda de produção acadêmica norte-americana reunida sob o epíteto de rational choice theory – para o qual as instituições democráticas haviam se tornado firmes o bastante para civilizar os conflitos sociais a ponto de obrigá-los ao respeito às liturgias e procedimentos ínsitos à lógica do comportamento institucional (ABRANCHES, 1988; LIMONJI; FIGUEIREDO, 1998; MAINWARING; MENEGUELLO; POWER, 1999; LIMONJI, 2006), como se, do mesmo modo através do qual se deu o processo de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil – reforçado, curiosamente, pelo sistema nacional de pós-graduação implantado com a Reforma Universitária de 1968 (FORJAZ, 1997) – a sociedade brasileira como um todo estivesse caminhando venturosamente em direção ao processo de diferenciação funcional e, ipso facto, à complexificação de seus grupos sociais constituintes, tomados como unidades criadoras de si próprias, segundo seus próprios interesses, a partir dos quais viria a ser erguida, por extrapolação lógica, uma estrutura social pluralista, cuja coesão resultasse significativamente do respeito à autonomia autopoiética dos variados sistemas funcionais da sociedade (LUHMANN, 1996, p. 195), devidamente secularizados e, por conseguinte, despidos de qualquer pretensão de validade absolutista e antidialógica.
A malaise que se afigura na vida política nacional é a exceção que confirma a regra:
no Brasil, a modernidade é uma linguagem de paradoxos (VIANNA, 2004, p. 43), em que a conservação, para cumprir o seu papel, necessita reivindicar o que deveria consistir no seu contrário – a revolução. Nossa formação social malsã – colonial, privatista, senhorialescravocrata e patrimonialista –, sob cujas sombras se realiza o movimento de libertação nacional, viria a afetar profundamente o futuro do país, deitando raízes profundas na conformação de ideias e atitudes políticas que presidiram momentos- chave de transformação do Brasil.
A ruptura do pacto colonial, com a formação de um novo Estado-nação, diferiu da experiência da américa hispânica, que se revestiu, ao menos em seu impulso inicial, de um típico processo revolucionário nacional-libertador (idem). No Brasil, a transmigração da família real, em 1808 – quando a colônia acolhe a estrutura e os quadros do Estado 113 metropolitano – pôs fim aos ideais do liberalismo e das grandes revoluções de fins do século XVIII: o príncipe herdeiro da Casa Real, Dom Pedro I, arrogou para si o papel de instituir a lógica do conservar-mudando, por meio do ato político que culminou na Independência, em um processo clássico de cooptação das antigas lideranças de motivação nacional-libertadora. No campo político, à diferença das ex-colônias espanholas, a estratégia de cooptação resultou na unidade territorial e administrativa do país. Com a derrota dos movimentos sediciosos que reagiram à Carta Constitucional de 1824, as 18 capitanias-gerais da colônia portuguesa existentes em 1820 (excluída a Cisplatina) formavam, já em 1825, um único país independente, do qual emergiu um governo relativamente estável, monárquico e centralizador (CARVALHO, 2008, p. 15).
Por ter sido uma “revolução sem revolução” (VIANNA, 2004, p. 44), sem rivais significativos, internos e externos, a Independência do país pôde conceber sua realidade como matéria-prima dócil à sua manipulação. O Estado daí surgido, invocando o liberalismo e modelando as instituições políticas de acordo com ele, intensificara a escravidão, fazendo dela o suporte da restauração que realizou quanto às estruturas econômicas herdadas da colônia. A unidade da ex-colônia, por sua vez, favoreceu a manutenção da escravidão por evitar uma possível justaposição de países escravistas e não escravistas, provocada por eventual fragmentação. “Nesse sentido, o interesse em manter a escravidão pode ter ajudado na manutenção da unidade do país. A unidade, avalizada pela monarquia, era meio eficaz de preservar a ordem” (CARVALHO, 2008, p. 18).
A Independência, contudo, não se resume à mera restauração, ou ainda, a uma contraofensiva bem-sucedida dos elementos sociais puramente reativos à transformação das bases econômicas e institucionais do país. Como bem salientado por Florestan Fernandes, à guisa do arcabouço teórico da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, não é fácil discernir o que é ideológico do que é utópico nas objetivações do liberalismo no contexto histórico brasileiro ora considerado.
Essa separação interpretativa, em si mesma tão difícil [...], complica-se sobremaneira, porque a ideologia liberal se equacionou historicamente, acima de tudo, com uma ideologia da emancipação dos estamentos senhoriais da “tutela colonial” e só derivadamente, como interferência inevitável, ela assumiu o caráter de uma ideologia de “emancipação nacional”. Contudo, concretizada a Independência e garantida a estabilidade do novo regime jurídico, ela se anula como polarização dinâmica específica dos interesses senhoriais (em consequência do desaparecimento das tensões provocadas pela “tutela colonial”), mas ganha força e importância crescentes como polarização dinâmica específica dos interesses de integração nacional (em consequência das conexões da ordem legal constituída com o princípio da representação e com a democratização do poder político no nível dos estamentos dominantes). Graças a essa transformação, o elemento senhorial volta ao centro do palco, agora transfigurado em “cidadão”, que era no que o convertia, para os fins da 114 organização do poder político, a ordem legal vigente (FERNANDES, 2006, p. 58, grifo nosso).
Vê-se, pois, que a esfera pública política brasileira consiste basicamente em que os estamentos senhoriais, convertidos em senhores-cidadãos, se confundissem com a sociedade e a nação.
As bases perceptivas e cognitivas de semelhante representação seriam fáceis de explicar, como decorrência da identificação psicossocial do sujeito com o mundo em que transcorria sua existência e no qual suas probabilidades de ação social ganhavam significação política. Por essa razão (e também como consequência semântica da dominação estamental: os outros não contavam, sendo portanto desnecessário pensar ou falar em nome deles), as elites no poder tendiam a localizarse e a afirmar-se, historicamente, através e em nome da sociedade civil (a qual, como apontamos, delimitava o espaço social de sua vivência e de sua experiência) (FERNANDES, op. cit., pp. 62-63).
Da leitura dos trechos supracitados, resta evidente que a democracia não era uma condição geral da sociedade, senão que uma necessidade e um recurso de equilíbrio, eficácia e continuidade da dominação estamental. O debate democrático tinha por fim estabelecer os limites do acordo (ou do desacordo) e as possíveis linhas de solução recomendáveis, suscetíveis de merecer a aprovação ou de obter o consentimento dos cidadãos “prestantes” e da parte socialmente válida dos “cidadãos ativos”.
Sendo a produção monocultora e de base escravista do café, no século XIX, uma extensão da economia colonial que se desenvolveu em estreita ligação com o mundo europeu, que se orientava para a utilização do trabalho livre, não apenas os escravos, como também os homens livres, estavam submetidos a um sistema de relações sociais em cujo curso se procede à unificação dos diferentes e contraditórios elementos nele presentes. Enquanto a escravidão suportava um estilo de produção vinculado ao sistema capitalista, o escravo surgiu redefinido como categoria puramente econômica (CARVALHO FRANCO, 1997). Esta situação deu origem a uma formação sui generis de homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil. A constituição desse tipo humano relaciona-se à forma como se organizou a ocupação do solo, concedido em grandes extensões visando culturas onerosas. Dada a amplitude das áreas apropriadas e os limites impostos à sua exploração pelo próprio custo das plantações, decorreu uma grande ociosidade das áreas incorporadas aos patrimônios privados, podendo, sem prejuízo econômico, ser cedidas para uso de outro. Esta situação possibilitou e consolidou a existência de homens destituídos da propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse, e que não foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes dessa condição, dado que o peso da produção, significativa para o 115 sistema como um todo, não recaiu sobre os seus ombros.
Assim, numa sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde vagarosa, mas progressivamente, aumentam os mercados, paralelamente forma-se um conjunto de homens livres e expropriados que não conheceram os rigores do trabalho forçado e não se proletarizaram.
Formou-se, antes, uma “ralé” que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência e os deixava sem razão de ser (CARVALHO FRANCO, 1997, p. 14).
Assim, embora os homens livres e pobres tenham permanecido apartados da produção para o mercado, este setor os localizou na estrutura social e definiu o seu destino. Pesquisando a velha civilização do café que, no século XIX, floresceu nas áreas do Rio de Janeiro e de São Paulo pertencentes à região do Vale do Paraíba, Maria Sylvia de Carvalho Franco buscou apanhar o momento em que a criatividade contida na organização agrária “colonial” atingia seu ponto alto e em que, ao mesmo tempo, também tiveram livre curso as suas implicações destrutivas, transcorrendo, em um curto espaço de tempo, todo um processo de desenvolvimento e regressão (CARVALHO FRANCO, 1997, p. 17).
Ao estudar o homem livre e pobre do século XIX, a autora estabeleceu os nexos entre as condições materiais de existência e sua própria pessoa, por intermédio da trama de relações sociais engendradas no interior dos pequenos grupos a que estava submetido. Da análise dos vultuosos documentos da Comarca de Guaratinguetá atinentes a processos-crimes, Carvalho Franco percebeu que os ajustes violentos não eram esporádicos, nem relacionados a situações cujo caráter excepcional ou ligação expressa a valores altamente prezados os sancionasse. Pelo contrário: eles apareciam associados a circunstâncias banais imersas na corrente do cotidiano (CARVALHO FRANCO, 1997). A violência se repetia com regularidade nos setores fundamentais da relação comunitária; nos fenômenos que derivam da “proximidade espacial” (vizinhança); nos que caracterizam uma “vida apoiada em condições comuns” (cooperação) e naqueles que exprimem o “ser comum” (parentesco). Essa violência atravessava toda a organização social, surgindo nos setores menos regulamentados da vida, como as relações lúdicas, e projetando-se até a codificação dos valores fundamentais da cultura. De toda a situação analisada surge uma moralidade que incorpora a violência como legítima e a coloca mesmo como um imperativo, tendo efetividade e orientando
constantemente a conduta nos vários setores da vida social. 116
A emergência desse código que sancionou a violência prende-se às próprias condições de constituição e desenvolvimento da sociedade de homens livres e pobres. Através das relações de vizinhança, viu-se como os ajustes violentos se ligavam ao estado de penúria a que ficou relegado esse grupo: a escassez, se de um lado realmente favoreceu o estabelecimento de laços de solidariedade, necessários para garantir a distribuição regular dos recursos, de outro radicalizou a disputa em torno dos meios de vida. Num sentido mais amplo, a marginalidade em relação ao sistema econômico reforçou a grande mobilidade dos componentes dos pequenos grupos, impedindo que se estabelecessem entre eles relações dotadas de durabilidade necessária para a cristalização de obrigações recíprocas. Além disso, o aproveitamento residual dos recursos economicamente disponíveis fez com que o homem pobre e livre operasse decisivamente no sentido de compreender a possibilidade de vida fora do grupo caso suas expectativas fossem frustradas ou transgredissem os usos estabelecidos.
Os resultados dessa situação se manifestaram muito claramente na instabilidade dos grupos de trabalho: sua organização, ao invés de fundar-se em controles que continuamente orientassem a conduta de seus membros para a conformidade e a harmonia, baseou-se numa técnica carregada de tensões: o desafio. Nas situações de trabalho, os componentes de ruptura e tensão se institucionalizavam em função da natureza das relações existentes entre os colaboradores: a visão de si mesmo e do outro como homens integrais impediu que as desavenças fossem conduzidas por lutas parciais, ou ainda, noutros termos, por negociações controladas por normas consensuais no plano dos costumes e/ou das instituições. Em um mundo vazio de coisas e carente de regulamentação, as desavenças tendiam a se transformar em lutas de extermínio, na medida em que a coragem e a capacidade de preservar a própria pessoa contra qualquer violação apareciam como a única maneira de conservar a independência. A valentia constituiu-se, pois, como o valor maior de suas vidas (CARVALHO FRANCO, 1997).
Assim, a ideologia liberal, inócua e excluída no nível da dominação senhorial patrimonialista (pela persistência concomitante da escravidão, do mandonismo, do privatismo e do localismo), encontrou diante de si uma sociedade ampliada, pobre e desarticulada tanto econômica quanto institucionalmente, cujas condições objetivas de existência, bem como os complexos ideacionais que delas emergiram, fizeram ouvidos moucos às utopias do autogoverno, da igualdade jurídico-formal e, num sentido lato, à universalidade e à indivisibilidade das liberdades modernas carreadas pelo advento da cidadania democrática.
No lento movimento de transição da ordem senhorial-escravocrata para a ordem competitiva, chega-se à Abolição e à constituição de um mercado livre para a força de 117 trabalho sem, no entanto, haver rupturas no interior das elites, que, a partir da República, lograram restaurar um dos pilares da economia colonial: o exclusivo agrário, que agora iria coexistir com o trabalhador formalmente livre, embora submetido ao estatuto de dependência pessoal dos senhores de terra. Evoluído da cultura política autoritária que engendrou as relações entre os poderes locais e o poder nacional, o coronelismo se instituiu como sistema político através da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada (LEAL, 2012).
O federalismo, implantado pela República em substituição ao centralismo Imperial, criou um novo ator político com amplos poderes, o governador de estado. O antigo presidente de província, durante o Império, era um homem de confiança do Ministério, não tinha poder próprio, podia a qualquer momento ser removido, não tinha condições de construir suas bases de poder na província à qual era, muitas vezes, alheio. No máximo, podia preparar sua própria eleição para deputado ou senador. O governador republicano, ao contrário, era eleito pelas máquinas dos partidos únicos estaduais e era o chefe da política estadual. Em torno dele se arregimentavam as oligarquias locais, das quais os coronéis eram os principais representantes. Seu poder consolidou-se com o presidente Campos Sales, em 1898, quando este decidiu apoiar os candidatos eleitos pela política dominante no respectivo estado (CARVALHO, 1997).
Àquele período, a conjuntura econômica de decadência dos fazendeiros acarretava enfraquecimento do poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava, então, a exigir a presença do Estado, que ampliava sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de terra. O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do coronel. O momento histórico em que se deu essa transformação foi a Primeira República, que durou de 1889 até 1930.
Nesse sistema de barganha entre o governo e os coronéis, o governo estadual garantia, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cabendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel, em contrapartida, hipotecava seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores davam seu apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste de seu domínio no estado. O coronelismo, por sua vez, seria um momento particular do mandonismo, exatamente aquele em que os mandões começavam a perder força e tinham de recorrer ao governo. O coronel, por sua vez, não era necessariamente o grande latifundiário isolado em sua fazenda, senhor absoluto de gentes e coisas. Visto sob a 118 égide de um quadro mais complexo de relações sociais, coexistiram vários tipos de coronéis, desde latifundiários a comerciantes, médicos e até mesmo padres.
A partir de 1930, no contexto de uma sociedade ainda permeada pela ordem patrimonial, as diversas demandas por modernização econômica e social – sejam aquelas oriundas do sindicalismo operário, em suas lutas por direitos sociais, sejam as de extração tenentista, em sua denúncia do sistema eleitoral vigente, a serviço das oligarquias agrárias –, viriam a ser acolhidas por setores tradicionais das elites, sob a liderança dos estados de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, que, com o apoio dos tenentes, das camadas médias e da vida popular nos centros urbanos, iniciaram, com a chamada Revolução de 1930, um novo andamento ao movimento de mudança com conservação, agora sob a chave da modernização conservadora. A industrialização, produto de uma economia politicamente orientada, acabou gerando expectativas de que a via do transformismo, ou seja, da mudança lenta e gradual, a partir do alto, poderia ser concebida como a melhor passagem para a democratização do país.
Sob o verniz do otimismo, que tinge as explicações deste jaez, se expressava, tão clara e completamente quanto possível, o dilema do liberalismo democrático no Brasil. Assim o fez Oliveira Vianna, quando, em 1920, afirmou não existir, no Brasil, uma sociedade liberal, mas, ao contrário, parental, clânica e autoritária (SANTOS, 1978). Em consequência, um sistema político liberal não apresentaria, segundo o autor, um desempenho apropriado, produzindo resultados sempre opostos aos pretendidos pela doutrina. Desse diagnóstico, concluiria Oliveira Vianna, mister se fazia admitir que o Brasil precisava de um sistema político autoritário cujo programa econômico e político fosse capaz de demolir as condições que impediam o sistema social de se transformar em liberal. Em outras palavras, seria necessário um sistema político autoritário para que se pudesse construir uma sociedade liberal, visto que, à luz desta concepção instrumental de autoritarismo, a participação política requer habilidades especiais, que não são igualmente distribuídas entre os homens, de modo que competiria aos tomadores de decisão definir e orientar os caminhos a serem seguidos pela sociedade, tornando-se inevitável a intromissão do Estado nos assuntos da sociedade a fim de assegurar que as metas decididas pelos representantes fossem alcançadas. O exercício autoritário do poder, neste caso, se justificaria pelo fato de supostamente ser o modo mais rápido de se conseguir edificar uma sociedade liberal, após o que o caráter autoritário do Estado pode ser questionado e abolido (SANTOS, 1978, pp. 102-103).
Nos anos 1950, o transformismo se traduz em uma “fuga pra a frente” – os cinquenta anos em cinco –, queimando etapas como na construção de Brasília e na abertura da fronteira oeste para o capitalismo brasileiro. É desta época o apogeu do nacional-desenvolvimentismo, 119 programa que deveria conduzir o país a um capitalismo de Estado à base de uma coalizão nacional-popular, tendo como meta a impulsão da economia em um tempo necessariamente acelerado, como se coubesse exclusivamente ao desenvolvimento capitalista nacional o papel de elemento progressista que induziria o avanço do moderno sobre o atraso.
Com o golpe militar de 1964, o viés democrático ligeiramente insculpido no momento imediatamente anterior, conhecido como populista, encontrou seu termo de conclusão. A valorização do mercado em detrimento do Estado, o empenho na orientação de emancipar a economia de fins políticos e o abandono de uma política externa independente abriram, então, a oportunidade para que uma reforma liberal, mas antidemocrática, das estruturas do Estado, fosse consumada.
A redemocratização, alcançada em 1988, trouxe à luz do dia a sociedade brasileira, tanto em sua heterogeneidade estrutural como na diversidade de suas formas de manifestação. O caldo de cultura política que, a partir de então, se divisa nos grupos sociais politicamente organizados, sejam os emergentes ou os já estabelecidos, após uma história secular de aviltamento da vida civil brasileira, com a prevalência de um ethos privatista, demofóbico e autoritário, não teria o condão de escoimar estes vícios atávicos sem um claro compromisso com valores políticos e com um projeto nacional de educação voltados à reforma da racionalidade social, visando a que os traços marcantes do autoritarismo fossem progressivamente elididos por uma formação esclarecida e pelo treinamento de lideranças para o exercício de seu papel político num regime democrático.
Décadas se passaram, desde então, sem que nossos males do presente fossem esclarecidos à luz da história e da razão. Conflitos sociais violentos, numa sociedade acostumada à brutalidade, foram se mostrando cada vez mais aceitáveis à medida que as frustrações e o ressentimento difusos na sociedade se tornaram os móveis do apetite político de diversos grupos dirigentes, que canalizaram a insatisfação brutalizada sem quaisquer mediações ou filtros que depurassem os elementos de ódio contidos nas manifestações políticas mais recentes da história brasileira.
A tal ponto isso chegou que a violência explícita, herdada do período escravocrata e do poder sem limites dos régulos de província, tem se tornado cada vez mais insidiosa, seja em razão do crescimento assustador do número de linchamentos desde o início do novo regime democrático (MARTINS, 2015), seja, num sentido mais amplo, pelos sinais muito claros de que a vida moderna, no Brasil, foi invadida pelo arcaísmo de diversos modos, sobretudo pela presença visível, nos governos e nos órgãos de governo, de práticas políticas de estilo rural, como aquelas relativas ao renascimento do poder pessoal dos potentados 120 locais, com líderes religiosos inescrupulosos, milicianos, facções criminosas, grandes proprietários de terra, entre outros setores que, sob a capa da democracia, rebaixam a densidade ética e política da vida social brasileira, nela introjetando o que há de pior na sua própria história.
Considerações finais: enfim, a epidemia chega às instituições
Ainda que a notícia sobre a circulação mundial do vírus, cuja origem está localizada na China, tivesse se iniciado em 2019, no dia 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estado de emergência de saúde pública de importância internacional, dado que o vírus teve uma rápida disseminação por todo o planeta por conta da configuração global de circulação de pessoas. No dia 11 de março de 2020 a OMS caracterizou a situação como pandemia de COVID-19.
No Brasil, particularmente, desde janeiro de 2020, quando a Organização PanAmericana de Saúde (OPAS), vinculada à OMS, passou a subsidiar diariamente o país com informações ao Ministério da Saúde, a situação tem tomado conta do noticiário nacional e, em grande medida, das discussões cotidianas das pessoas, uma vez que afetou gradativamente a maneira como cada indivíduo deve se comportar na esfera pública e privada, ultrapassando a dimensão sanitária do fenômeno, transbordando os limites científicos (e racionais) da discussão e alcançando o que Mannheim denominava como complexos ideacionais que não somente conformam as concepções de mundo mas, e principalmente, orientam a forma como os indivíduos devem agir no mundo. Vejamos o esquema abaixo, na Figura 1:
Figura 1 - Dinâmica dos complexos ideacionais para Karl Mannheim
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Fonte: MAZUCATO (2015a).
Desta forma, podem ser identificados alguns agrupamentos de ideias que, analisadas a 121 partir do exato momento em que são produzidas e circulam, enquanto fotografias do instante, poderiam ser encaixadas ora na categoria de complexos ideacionais ideológicos e utópicos. De toda forma, evidencia-se a politização da epidemia, cujo conceito transcende-se do universo sanitário, desaguando no que Berger (1985) denomina como um processo social de interiorização de fato objetivado, que passa a ser interiorizado de modos e com funções diferentes por grupos sociais distintos[3]. Isso se torna mais evidente pela “crise de sentido” (BERGER; LUCKMANN, 2004) dos tempos presentes, dada a multiplicidade de interpretações sobre um mesmo fato, a partir da apreensão do mesmo por distintos grupos sociais, como é o caso, por exemplo, da utilização ou não do medicamento denominado como “cloroquina”.
Ao passo em que grupos ligados ao presidente da república, Jair Bolsonaro, transportam para o plano político a discussão médico-sanitária gerando um discurso ideológico que se cristaliza num complexo ideacional que pode ser sintetizado na defesa do uso do medicamento denominado “cloroquina” para o tratamento de casos de Covid-19, fica
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nítida a existência de um discurso a ele espelhado, que poderia ser denominado em termos mannheimianos como utópico, no qual se cristaliza, por oposição, um complexo ideacional que se sintetiza na contrariedade ou precaução ao uso deste mesmo medicamento para o tratamento da mesma doença. É certo que este fato também poderia ser observado a partir da tensão existente entre ciência e senso comum, que não deixa de nele estar presente, dado que se trata de construções de narrativas e contra-narrativas que são produzidas no âmbito da política e não da ciência, e que possui, como pano de fundo a questão da defesa do substrato que sustenta a narrativa: ciência ou doxa. Este fato também se verificou por toda uma narrativa ideológica e utópica elaborada num primeiro momento da epidemia no Brasil, em que se politizou a dimensão dos efeitos da Covid-19, ou seja, se o coronavírus deveria ser compreendido como um ente biológico capaz de causar grande impacto na saúde (inclusive com a geração de alerta para a ameaça à saúde e à vida) ou se deveria ser compreendido como apenas uma “gripezinha” qualquer, concepção esta que foi utilizada tanto pelo presidente Bolsonaro quanto, num momento anterior, pelo médico Drauzio Varella, que veio à público posteriormente para se desculpar por ter interpretado que o coronavírus não teria tal impacto na saúde pública, uma vez que, ao produzir tal interpretação, a epidemia ainda não havia 122 chegado ao país.
Por outro lado, a epidemia (ou pandemia) de coronavírus, especificamente no Brasil, possui como desmembramento desta tensão entre ciência e doxa a partir da defesa da utilização ou da não utilização do medicamento cloroquina, também uma questão mais estritamente de política institucional, em pelo menos dois sentidos principais.
No primeiro deles, coloca em tela a relação dos entes federativos do Estado, ou seja, as disputas entre complexos ideacionais ideológicos e utópicos acerca da utilização ou não do medicamento cloroquina desdobrou-se na adoção ou não, pelos governos municipais, estaduais e federal, no procedimento de isolamento social enquanto procedimento preventivo, colocando num lado o governo federal, como adepto da flexibilização do isolamento social ou da adoção do que denominou de isolamento vertical (deveriam se isolar apenas os indivíduos infectados e aqueles pertencentes aos grupos de risco) e, de outro lado, grande parte dos governadores estaduais e prefeitos municipais, como defensores da ideia reversa, ou seja, da maior necessidade de isolamento social (inclusive, em alguns casos, de uma maior radicalização desse isolamento, ou seja, o lockdown, equivalente a um “fechamento” em maior densidade das atividades sociais, seja como medida preventiva para evitar a proliferação do vírus, seja como medida paliativa para fazer baixar a curva de infecção). Nota-se, aqui, novamente, a politização, seja em sentido ideológico, seja em sentido utópico, nos termos mannheimianos, de um procedimento médico-sanitário que, por princípio, deveria pautar-se estritamente por elementos técnicos. Em que pesem as diferentes acepções sobre este fato, esta crise institucional federativa ocorre entre atores do poder executivo (federal, estadual e municipal).
Num segundo sentido, o desmembramento da crise institucional decorrente da concepção sobre o uso da cloroquina assume uma proporção interinstitucional, ainda que adstrita ao âmbito do Estado (aqui compreendido em sentido amplo, como Estado-nação que não se confunde com governo ou poder executivo). Neste sentido, a posição do poder executivo federal em defesa do isolamento vertical e da flexibilização do isolamento encontrou uma primeira fronteira diante do poder judiciário, em que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao discutir esta questão, deliberou que caberia a governadores e prefeitos a decisão sobre as políticas públicas de isolamento social. Ainda no que se refere a este aspecto interinstitucional da crise política gerada pelo coronavírus, encontra-se o aprofundamento da distância entre o governo federal e o poder legislativo federal, mais especificamente a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. O Congresso Nacional, ao mesmo tempo que sinalizou com apoio ao poder executivo no sentido de empreender maior rapidez em votações que 123 tramitavam sobre assuntos direta e indiretamente relacionados à epidemia, mobilizou, principalmente através dos seus respectivos presidentes, uma narrativa que poderia ser considerada utópica devido ao fato se posicionar, relacionalmente, em relação à narrativa do governo federal sobre as medidas de isolamento social, de medicação e de políticas de proteção social e de apoio ao setor econômico, em muitos sentidos como uma contra argumentação de grande alcance social que se colocou em sentido diferente ao dado pelo governo federal.
Estes fatos, por mais que possam gerar uma “crise de sentido”, não destoam do que é tradicional no pensamento político e social brasileiro, sempre marcado pela presença simultânea de teses e antíteses que se tensionam no ambiente da discussão pública. Nem mesmo o aspecto demofóbico presente nas mais diversas narrativas que cristalizam complexos ideacionais que interpretam a presença e o impacto da epidemia de coronavírus e as medidas que seriam necessárias para o seu enfrentamento podem ser consideradas elementos originais da presente situação, uma vez que trata-se de traço de estilo, ou o que Brandão (2010) chamaria de linhagem do pensamento político, presente no Brasil em longa duração, o apartamento do povo acerca dos assuntos que são (ou deveriam ser) de seu interesse e que permitem concluir, por homologia (RODRIGUES, 2020), o que se tornou um clássico da interpretação do Brasil acerca do final do século XIX e começo do século XX, em que se afirmava existir uma certa forma de ideias fora do lugar, que no começo da segunda década do século XXI parece haver no país a existência de ideias fora do tempo.