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A construção de um novo paradigma de educar: do singular ao coletivo, reflexões necessárias em tempos de pandemia onavírus
Belmiro José da Cunda Nascimento
Belmiro José da Cunda Nascimento
A construção de um novo paradigma de educar: do singular ao coletivo, reflexões necessárias em tempos de pandemia onavírus
The construction of a new paradigm of educating: from singular to collective, reflections needed in pandemic times
La construcción de un nuevo paradigma educativo: de lo singular a lo colectivo, reflexiones necesarias en tiempos de pandemia
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 7, núm. Esp.1, pp. 127-146, 2020
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo: O presente artigo tem por objetivo propiciar uma reflexão, tendo como lente as práticas utilizadas e desenvolvidas durante o período de pandemia em que o agente COVID-19 espalhou-se em múltiplas direções deslocando o nosso cotidiano, as nossas rotinas, nos desencaixando do mundo e instaurando novas linguagens, novos comportamentos, impondo um novo modelo de representação das dimensões da realidade. A síntese tentada neste artigo só poderia ser realizada por meio de uma breve historiografia-cartográfica de tipo qualitativo, comprometida com o acesso ao plano de forças que responde pela transformação da experiência que nos oferece pistas para caminhar num para além da dicotomia ciência-implementação, acompanhando percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas. Concluímos que ainda não somos um novo coletivo. Somos indivíduos a caminho de uma consciência de grupo. Por enquanto, o que está ocorrendo nesta pandemia é que corremos todos para debaixo do toldo de um bar porque está chovendo. Assim, a contribuição da pandemia, nos possibilita inventar uma nova linguagem, que nos leva a estabelecer uma relação com o nosso território e a nossa cultura de forma mais justa, mais conectados com a nossa natureza, fazendo um desenho arquitetônico mais compatível com a nossa “topografia”, com a nossa cultura, com as pessoas do lugar.

Palavras-chave:PandemiaPandemia,Covid-19Covid-19,isolamentoisolamento,crisecrise,PandemiaPandemia,Covid-19Covid-19,isolamentoisolamento,crisecrise.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo proporcionar reflexión, teniendo como lente las prácticas utilizadas y desarrolladas durante el período pandémico en el que el AGENTE COVID-19 se extendió en múltiples direcciones cambiando nuestra vida diaria, nuestras rutinas, desincorporándonos del mundo y estableciendo nuevos lenguajes, nuevos comportamientos imponiendo un nuevo modelo de representación de las dimensiones de la realidad. La síntesis intentada en este artículo sólo pudo realizarse a través de una breve historiografía cartográfica cualitativa comprometida con el acceso al plan de fuerza que responde a la transformación de la experiencia que nos ofrece pistas para caminar más allá de la dicotomía ciencia-implementación siguiendo caminos, implicación en los procesos de producción, conexión de redes o rizomas. Concluimos que todavía no somos un nuevo colectivo. Somos individuos en camino a una conciencia grupal. Por ahora, lo que está pasando en esta pandemia es que todos corremos bajo el toldo de un bar porque está lloviendo. Así, la contribución de la pandemia, nos permite inventar un nuevo lenguaje, que nos lleva a establecer una relación con nuestro territorio y nuestra cultura de una manera más justa, más conectada con nuestra naturaleza, haciendo un diseño arquitectónico más compatible con nuestra “topografía”, con nuestra cultura, con la gente del lugar.

Palabras clave: Pandemia, Covid-19, aislamiento, crisis.

Keywords: Pandemic, Covid-19, isolation, crisis. 146

Carátula del artículo

A construção de um novo paradigma de educar: do singular ao coletivo, reflexões necessárias em tempos de pandemia onavírus

The construction of a new paradigm of educating: from singular to collective, reflections needed in pandemic times

La construcción de un nuevo paradigma educativo: de lo singular a lo colectivo, reflexiones necesarias en tiempos de pandemia

Belmiro José da Cunda Nascimento
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 7, núm. Esp.1, pp. 127-146, 2020
Universidade Federal do Espírito Santo
A construção de um novo paradigma de educar. do singular ao coletivo, reflexões necessárias em tempos de pandemia

Introdução

A pandemia, através do seu vetor, a COVID-19 (Sars-cov-2), instaurou uma grave crise de incerteza, de significado, de harmonia, dúvida, hesitação e imprecisão. Isto impactou gravemente vários setores e, especialmente, a Educação, acostumada a mudanças lentas e graduais. Também deu início a inúmeros debates nas mídias, redes sociais, etc., e a grandes divergências e discussões sobre os tratamentos em processo de apuração científica, o que evidencia um grande descompasso da compreensão da população do que se constitui uma investigação científica. Chama a atenção as significativas manifestações de solidariedade que emergiram neste momento de isolamento e solidão. Desencadeamos reflexões que pareciam não existir ou estavam adormecidas, relacionadas a nossa solidariedade e reconhecimento do “outro” que pode ser pessoa, sociedade, empresa etc. A pandemia instaurou o confinamento, promovendo a re-instauração da nossa consciência e o temor de lidar com ela, porque seguindo seus trâmites independentes, nos desencaixou do mundo conhecido, rompendo com os nossos acordos com o cotidiano. Fomos jogados à posição de náufrago, que não estando

morto, procura uma saída da situação emergencial que se instaura. 128

Grandes traumas alteram estados físicos e psíquicos, modificam o nosso aprendizado, às vezes deixam lesões e feridas narcísicas que não cicatrizam nunca. Há, em muitos casos, um sofrimento moral que sempre volta a incomodar quando os gatilhos da memória se associam ao drama vivido. Esta pandemia desarticulou o nosso mundo, tirando do lugar limites conhecidos, a ordem entre as pessoas, fatos, coisas, conexões e vínculos, metendo à força, fixamente dentro do nosso cotidiano, a quarentena que fez com que nos apossássemos de um sentimento de improdutividade, de culpa por uma ineficiência momentânea. Os impactos sobre a economia, trabalho, lazer, educação, e outras forças durante um intervalo de tempo muito pequeno, tornaram-se difíceis de mensurar. Penso, que uma crise fecha muitas portas, mas abre outras! Os grandes traumas exigem novos discursos, uma série de enunciados ressignificado que expressem uma nova maneira de pensar e de agir, circunstâncias novas identificadas com certos assuntos, meios ou grupos que revelam uma interrupção do funcionamento normal. A pandemia expôs o falecimento, a fragilidade de uma forma de olhar e viver e de compreender o mundo à nossa volta.

A condição de existência, à qual se atribui o rumo de diversos acontecimentos da vida, é a nossa memória, uma força invencível, que está constantemente sendo reconstruída. Experiências e tudo que se ache associado às mesmas, como a linguagem, se fundem para dar contornos originais ao antigo. É o que afirmam Motta e Sacks (2010, p. 210), quando diz que “(...) a linguagem, a mais antiga das invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não deveria ser possível. Pode permitir a todos nós, inclusive os cegos congênitos, ver com os olhos de outra pessoa”. Nesse sentido, o que são palavras, ideias, pensamentos, conceitos?

Segundo Ribeiro (2019), são memórias. Ele afirma:

(...) a despeito das muitas diferenças, o que une esses termos é o fato de que são todos memórias. Tudo que percebemos e fazemos causa alterações nos circuitos neurais que intermedeiam o encontro com o mundo, construindo associações pela experiência, num jogo reiterado de impressionar e impressionar-se (RIBEIRO, 2019, p. 206).

Todos nós vivemos em um mundo de linguagens, visões, percepções e outros estímulos, e a nossa sobrevivência depende de fazermos uma rápida, categórica e clara interpretação deles. Compreender o mundo à nossa volta, sobretudo quando ele está em processo de mudança, tem de ser algo baseado em algum tipo de sistema, algum modo rápido e certeiro de analisar o ambiente. Não vemos e ouvimos fatos ou percepções e objetos de forma instantânea, com contornos, estruturas, superfícies, etc. Diferentes luminosidades, filtros, contextos mudam a nossa perspectiva, quando nos movimentamos, comparamos, analisamos. Desse caos auditivo e visual complexo e mutável, temos de extrair invariantes por 129 oposição às variáveis estudadas em seus diferentes valores que nos permitam inferir ou supor a qualidade do objeto analisado.

Nesse sentido, num momento de pandemia e no decorrer de sua peregrinação, e considerando uma certa inesgotável criatividade humana, é bom lembrarmos de que não há modelos prontos, não existem receitas para o convívio, isso é sempre algo em construção. Para esse período, no qual devemos escolher segundo o tempo e lugar, talvez seja preciso mais exercício efetivo, que pela intensidade do momento, o cuidado e esmero deve ser empregado na feitura de uma nova “normalidade”. No espectro da pandemia, ela nos convoca a mudar de direção, ou a corrigir a nossa rota em função das ameaças e restrições. Nessa perspectiva, torna-se importante traçar aqui, neste momento histórico, algumas questões sobre os nossos medos, nosso estresse, nossa solidariedade, nossos limites, nosso individualismo, enfim, nosso cotidiano e as nossas recusas, sem cometer ou perpetrar o nosso ódio, ou então, superá-los.

Este artigo é um convite a que mais pessoas se somem ao empenho de discutir, analisar, propor, desenvolver e ampliar, ou até mesmo criar novas sensações, romper com aquelas que estavam determinadas pelo nosso cérebro ou pelos sentidos com que nascemos ou que foram culturalmente determinados; é um convite também a abrirmos uma nova consciência que nos desencaixe do mundo nesta experiência pandêmica, possibilitando que esses novos tempos de incerteza que afetam o nosso laço social e para o qual temos que encontrar novos insights de compreensão no mundo em que vivemos, molde o nosso cérebro pelo que passamos a vivenciar e possa nos possibilitar que esses novos tempos de um futuro que se modifica todo dia, pareçam menos apavorantes e ansiogênicos. É nessa perspectiva que tanto a Educação, a Sociologia, como a Psicanálise, neste momento, podem contribuir na superação e no repensar das nossas prioridades, na nossa eficácia, na culpa sobre a obrigação de ser produtivo, na nossa solidariedade, nos nossos limites e valores, sem adotar uma linguagem bélica para que possamos explorar, nesta pandemia, a sua vertente da invenção criativa de um novo laço social que, a partir de uma experiência comum, aumente a nossa esperança.

Método

A síntese tentada neste artigo só poderia ser realizada por meio de uma breve historiografiacartográfica de tipo qualitativo, comprometida com o acesso ao plano de forças que responde 130 pela transformação da experiência que nos oferecem pistas para caminhar num para além da dicotomia ciência-implementação, acompanhando percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas, como afirmam Passos, Kastrup e Escóssia (2015). Também foi importante associar ao caminho os pressupostos de Delumeau (1989), cujo o método é precisamente a escolha dos fatos.

Os contextos - a crise e a incerteza

Da antiguidade até a data de hoje, mas com ênfase neste período de pandemia provocada pelo coronavírus, o discurso científico procedimental apoiado pela iconografia matemática, estudos descritivos da representação visual e comportamental de números e funções, imagens de mapas, sem levar em conta o valor estético que possam ter relacionado à COVID-19, ilustra um conjunto de “n” elementos e permutações, apenas distinguidos pela ordem em que os mesmos aparecem num contexto social onde abundam cenários apocalípticos e imagens de um juízo final, no qual a insegurança, associada à liberdade de ir e vir, é símbolo de morte e a segurança, associada ao isolamento e o distanciamento social, é símbolo de vida.

As evidências e a ciência se impunham, não obstante às surpreendentes e delirantes teorias da conspiração, que em posição oblíqua enviesavam as pautas para fazê-las tortas à maldade, no que se referem à origem da pandemia. Houve tentativas de descaracterizar a gravidade e minimizar seus efeitos que são dramáticos. Nesse sentido, os profissionais da saúde e gestores públicos comprometidos, entre outros atores sociais importantes, sobretudo a imprensa livre e de conteúdo, exaltaram a capacidade e a coragem de muitos cientistas, professores, pesquisadores, empenhados em uma mais completa tradução e missão de informar que o coronavírus nos desencaixou do mundo, e que já é possível, através de sérias e adequadas investigações científicas, afirmar o seu alto impacto de contaminação, que no momento, exige novas formas e medidas de cuidado e proteção.

É a ciência e seus intérpretes, a partir das descrições que os contaminados faziam do que estavam sentindo, que despertou e encorajou a exploração mais completa para dar indícios de como se comportar e tomar a consciência necessária para nos relacionarmos com a pandemia. Esse passo foi decisivo, porque aproximou a ciência, trazendo-a para um campo mais imanente, referindo-se à dimensão concreta do problema, mais material, mais empírica da realidade, para enfrentar a angústia, a insegurança e os medos comuns a todos nós. Nesse 131 sentido, as explicações resumiram grande qualidade dos especialistas, porque a ciência, vista a partir da experiência humana, num percurso em que se mesclaram, de forma ao mesmo tempo rigorosa e afetiva. É temeroso afirmar que a pandemia nos igualou! Penso que não. Ela calibrou melhor algumas lentes que temos em relação à saúde no país, alguns marcadores sociais que nos possibilitam viver, sobreviver; quando me refiro à noção de “querer” enquanto “poder”, associado a uma posição de “dever” de viver a boa saúde, porque tenho possibilidades de suprir as faltas que o isolamento me impõe. A pandemia que alimentou alguns falsos profetas, contaminou e intoxicou a política na sua perspectiva e incerteza de durar mais, provocou o devaneio e o mal-estar da confirmação do nosso maior dilema e paradoxo no Brasil, que é a dolorosa constatação da desigualdade social. Essa, sim, é a verdadeira pandemia, esta é a nossa catástrofe que a propagação da COVID-19 põe em evidência, que nos divide e decide quem pode se proteger e quem pode se contaminar. Este é o ponto de inflexão, no qual trocamos de sinal na busca da sobrevivência. Este é o mal-estar que contamina mais o ambiente, que faz surgir a ansiedade, os estranhamentos, a agressividade e os efeitos colaterais. Ela é, para muitos, o sobrenatural, que está para uma vasta maioria de pessoas, para além da nossa capacidade de entender a relação de causa e efeito.

A aceitação foi difícil. Mas, a partir de relatos médicos e de pacientes, ou ao menos apresentados sob esse aspecto, a fim de justificar aos seus próprios olhos e aos olhos do povo a partir do poder que estavam revestidos, identificando a situação de que havia uma coisa nova no horizonte, inexata, que se aproximava sem relações amigáveis, sobretudo a identificação dos rostos familiares ou de casos dramáticos e que corríamos o risco de ficarmos doentes, nos fez sair da condição de normalidade para enfrentar a angústia, a insegurança e os medos comuns dos desamparados. Entramos muito rápido numa crise sem uma perspectiva de entendimento da velocidade, de sua aceleração, mas sabedores que não tardaria em produzir efeitos e que concomitantemente, era preciso uma operação em tempo reduzido e repensar as prioridades. O coronavírus instaurou uma grave crise de incerteza e de significado. A sua face e seu signo são conhecidas, mas há um novo conceito e um novo conteúdo. A falta de experiências recentes deste tipo de crise como um marcador social e cultural, que fundasse uma memória e uma consciência que nos faça abdicar da nossa liberdade, remeteu muitas pessoas a uma maneira sobrenatural de pensamento, algo inconcebível, uma falsa idealização, uma ideia não objetiva, e outras, de certa forma irresponsáveis, que estão para além da nossa

capacidade de entender a relação de causa e efeito. 132

Portanto, é só lentamente, a despeito das marchas públicas, das polarizações radicais, carreatas de empresários pela retomada das ditas “normalidades” e dos discursos de políticos em campanha e com o traumático empilhamento e sepultamento dos mortos e a consciência dolorosa de que podemos morrer a qualquer momento, e da vergonha pública de alguns líderes em voltar atrás em suas condutas, por opiniões mal colocadas, que uma descrição e uma aproximação objetivas da pandemia começaram a mostrar-se. Em nossos dias, são incontáveis as obras e pesquisas científicas que trazem à tona questões de contaminação sob os mais variados aspectos e os incontáveis protocolos exercitados e propostos do ponto de vista tecnológico que podem nos ajudar contra um inimigo tão pequeno, que nos aterroriza e nos imobiliza sem uma resposta qualificada.

A ficção está à frente da realidade, podemos observar isso lembrando, por exemplo, de obras como Ensaio sobre a cegueira, de Saramago (1995), que nos confronta contra um inimigo invisível que pode cegar, uma cegueira branca que se espalha por uma cidade, causando um grande colapso na vida das pessoas e abalando as estruturas sociais que expõe as nossas deficiências e as contradições da sociedade, trazendo à nossa consciência a permanente desigualdade de ontem, de hoje e que se não for marcante na nossa memória, poderá ser também a de amanhã. Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo tornou inteligível e compreensível tantos novos domínios da ciência e da política na atualidade, negligenciou este da COVID-19.

A experiência e a memória

A pandemia parece coisa nova? Historicamente não! De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a pandemia pode se iniciar com o aparecimento de uma nova doença à população, quando o agente infecta os humanos, causando enfermidade séria ou quando o agente esparrama facilmente e sustentavelmente entre humanos. Numa pequena síntese na séries de acontecimentos do tempo, especificamente no caso de vírus gripais, com objetivo de distinguir a ordem de ocorrência dos fatos, observamos que os primeiros relatos de pandemia se originaram do vírus da gripe em 1580, na Ásia, que em apenas 6 meses se espalhou pela Europa, África e posteriormente para a América do Norte e Reino Unido, matando em torno de 10% da população em áreas afetadas pela doença[1].

Posteriormente, os novos ataques virais mundiais passaram a ter nome próprio, como a

Gripe Russa, que surgiu em 1889, atacando a Europa e chegando a Salvador por navios e se 133 alastrando até o Rio de Janeiro. Lembremos também da Gripe Espanhola, que é considerada a pior pandemia da história, que surgiu em 1918 e se espalhou por todo o planeta. Estima-se que 50% da população mundial foi contaminada, levando 40 milhões de pessoas ao óbito.Passadas algumas décadas, a Gripe Asiática surgiu na China em 1957, alastrando-se em questão de meses para Austrália, Índia, Europa, África e os Estados Unidos. Atingiu todos os países em torno de 10 meses. A mortalidade desta pandemia variou de acordo com a área atingida, chegando a 80%. Onze anos mais tarde, a Gripe de Hong Kong surgiu na China em 1968, infectando 500 mil pessoas em Hong Kong, causando grande impactado na guerra do Vietnã, quando foi levada aos Estados Unidos e se espalhou rapidamente no mundo inteiro.

Entre passado e presente, num intervalo de cinco décadas, surge o coronavírus. Aparece em Wuhan, na China, em 2019, se espalhando rapidamente pelo mundo. Embora, em um conceito preliminar, tenha sido diagnosticado como um agente de baixa letalidade (3 a 4%, em sua maioria idosos, pessoas com problemas respiratórios, cardiopatas, diabéticos e baixa imunidade), sua virulência é bastante alta. No Brasil, infectou pelo menos 145.328 pessoas e causou a morte de 9.987, até 11 de maio de 2020. E a curva segue crescendo, até onde nenhum modelo pode prever com exatidão. O comportamento da epidemia depende de

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um compromisso social multifacetado. Portanto, se a pandemia da COVID-19 não é um evento sui generis sem semelhança com nenhum outro, é dito e sabido que não é único no seu gênero! Assim, se temos experiência com outras pandemias, por que esta nos afeta tanto neste momento? Porque não estamos preparados? O que há com a nossa memória sanitária? A COVID-19 trouxe à tona uma preocupação que é antiga na área da Saúde, mas que corria lateralmente: os leitos de UTI e as disparidades atreladas a isso. Por quê?

O passado não é irrelevante, mas também não é determinante, porque memória e aprendizado só acontecem no espaço-tempo em que a vida está sendo vivida. Certamente, a experiência do passado não é irrelevante e a partir dela podemos superar as incertezas desta crise, considerando que, neste momento, a verdade e o real estão em descompasso. O real para Lacan (1998) é uma impossibilidade, e viver é estar num laço social de impossibilidades. As respostas aos porquês que sinalizei no parágrafo anterior estão certamente atreladas à falta de uma experiência e uma memória sobre uma experiência que nos faça abdicar da nossa liberdade, da nossa noção de limites e de uma percepção mais precisa sobre a liberdade que nos faça entendê-la como uma política de transformação. O coronavírus nos impôs transformações que nos obrigam a refletir sobre a nossa desigualdade, sobre a nossa 134 solidariedade. Agora, somos um novo coletivo e temos que nos adaptar a uma nova arquitetura, com novos movimentos e espaços, novas demandas, como um grupo que tem uma nova relação cultural e afetiva que nos faz projetar melhor o nosso futuro e inventando uma nova espacialidade, não mais provisória, mas que funcione 100% do tempo e reverberará na nossa atividade neuronal, como afirma Ribeiro (2019), para a aquisição e retenção das memórias desses dias pela vida inteira. Estaremos, certamente, mais preparados para a próxima!

Segundo Safatle (2018), as transformações políticas efetivas não são apenas modificações nos modelos de circulação de bens e de distribuição de riquezas, são sobretudo modificações na estrutura dos sujeitos, em seus modos de determinaçãonos regimes de suas economias psíquicas e nas dinâmicas de seus vínculos sociais. Pois uma transformação política não muda apenas o circuito dos bens. Modifica também o circuito de afetos que produzem corpos políticos, individuais e coletivos. Por isso, se quisermos ver a força de transformação de acontecimentos que começam novamente a se fazer sentir, é necessário que nos deixemos afetar pelo que pode instaurar novas corporeidades e formas de ser. É nesse sentido que é preciso entender a liberdade não como um poder de escolher ou não alguma coisa, e sim, reconhecer aquilo que se impõe a nós como necessário.

Qualquer pessoa idosa ou que convive de perto com idosos sabe que suas lembranças dizem respeito muito mais aos fatos da juventude do que do passado recente. Isso ocorre, porque o tempo ressignifica a memória dos fatos vividos, mesmo considerando um idoso são mentalmente. Nós, em algum momento, talvez tenhamos escutado relatos da infância e da maturidade de nossos avós e bisavós, coisas que viram e ouviram, conversas memoráveis que tiveram com pessoas extraordinárias que disseram frases inesquecíveis que ficaram como eventos em caráter definitivo na herança familiar. Isso fica sempre ao alcance da nossa lembrança da própria infância e com tanta vividez e riqueza de detalhes, mesmo transcorridas várias décadas. Passamos a lembrar daqueles eventos quase como se tivéssemos vivido na própria pele.

Um exemplo disto foi a enchente de 1941[2]. Minha vó, que experenciou o desamparo vivido naquela época, sobretudo quando relatou numa tarde chuvosa a morte de meu avô naquela inundação. Um homem jovem, mas que infelizmente ele havia pago com sua vida, a imprevidência do descaso os riscos e perigos daquela enchente que causou diversas doenças, especialmente no trato respiratório e doenças como a da urina do rato a Leptospirose. Ela ocorre em enchentes, potencializadas quando a urina se mistura com a água e podem penetrar 135 nos seres humanos através das mucosas ou da pele, principalmente se houver algum ferimento. Minha avó alertava minha mãe para estocar alimentos, cuidar as pestes da enchente, das infecções, lavar tudo com sabão e não sair de casa. Senti um verdadeiro choque ao saber da morte precoce de meu avô naquela enchente. Entretanto, alguns meses antes, quando a mulher do nosso vizinho, que desfrutava de boa saúde e que morrera com 90 anos, não me perturbara.Esse momento, para mim, foi o de descoberta da evidência da morte e seu poder soberano. A evidência que ela impôs era a constatação de que ela atinge pessoas com boa saúde e de qualquer idade. Senti-me frágil e ameaçado e logo um medo visceral se instalou em mim.

O coronavírus é a nossa enchente de 1941, a experiência que nossa geração não possui e que marca a nossa memória por meio dos sentidos e, como afirma Safatle (1998), muda e tranforma o nosso circuito dos afetos. Por isso, no nosso naufrágio como coletivo e o conflito com a nossa consciência por causa dessa experiência que rompe com os nossos acordos com o cotidiano e com o conhecimento específico que se aprimora no curto prazo, está a ideia de que posso morrer a qualquer momento. A experiência de uma guerra, por exemplo, que marca o

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conceito de incerteza, evidencia novas percepções de deslocamento: se você não correr, você morre.Não há discussão. No Brasil, nós não temos uma memória sobre uma experiência que nos faça abdicar da nossa liberdade. Nós não temos uma confiança em governos e quando há uma situação de crise, nós corremos para o supermercado para estocar alimentos.

Pandemia - como o isolamento pode nos ajudar?

A pandemia está sendo a melhor experiência, embora dramática, para abrir a oportunidade para inovação, empreendedorismo, visitar novos processos, formar um novo coletivo e reinterpretar a ordem das coisas, não apenas no Brasil, mas no mundo. Se nós não aproveitarmos a crise pandêmica para refletir sobre a nossa desigualdade social, o confinamento como capacidade de pensar, comparar, refletir de como fazer trocas e se essas práticas não se aprimorarem com o correr do tempo, mais pandemias serão necessárias.

É num momento como este,do confinamento e da distância social,de aprendermos a ter consciência, de lidar com o medo, que traz o inevitável entendimento de que temos que sobreviver, apesar da nossa insignificância no mundo e da difícil experiência de viver. É esse 136

“naufrágio” que produz a habilidade especial que desenvolve essa disciplina mental e cria uma competência social nova. Será como uma música, estará na nossa consciência e não poderá ser tirada de nós porque vai direto para o coração.

A quarentena e o isolamento nos fazem lembrar que não podemos fugir de nós mesmos.Incontáveis são os males, as tristezas e as depressões trazidas pela imensidão das solidões que ameaçam as relações com o nosso interno versus externo e as conexões que fazemos. Curiosamente, alucinações, delírios e afrouxamento da lógica também ocorrem nos confinamentos de adultos e crianças saudáveis, bem como na fabulação normal das pessoas durante o nosso isolamento. É nesse momento que muitas vezes apercebemo-nos que somos elementos hostis, que o nosso imaginário é cheio de recifes inumanos ou de pântanos insalubres, que lança nas regiões costeiras do nosso consciente um vento que impede o nosso desbloqueio.

De diferentes maneiras, o confinamento como um novo lócus da capacidade de pensar, de refletir, ensina e constrói uma mentalidade coletiva, resgatando laços entre alienação e atenção, entre pecado e culpa,entre norma e desobediência e entre cuidado e cuidador. Podemos dizer, em síntese, que o coronavírus nos transformou. Como explicam Forbes e Reale Junior (2005), quando fala que o capitalismo e a fabricação transformam o lugar de encontro dos homens: não é mais a praça pública a casa da polis, mas o mercado, o espaço econômico. Ele afirma que “Dentro de um espaço de decadência, a sociedade estava dividida para os indivíduos, separados conforme uma lógica clara: nobreza/burguesia, católico/pagão, homem/mulher. A posição ocupada por cada um é determinada pelo princípio de inclusão/ exclusão” (FORBES; REALE JUNIOR, 2005, p. 100). A COVID-19, abrindo-nos para o distante, para a insegurança, nos jogou em instâncias insólitas que se opõem aos usos e costumes, nas quais tudo é possível e onde o estranho é a regra, um estranho muitas vezes assustador. Entramos num mundo onde a racionalidade perdeu o sentido, num sentido de doença onde se investe em segurança e cuidado que não aparece em lugar nenhum. A COVID-19, de forma indiferente, nos envolve com situações comuns, que havíamos esquecido, e que pedagogicamente, deu sinais e lições para readquirimos a capacidade de não estranhar o cotidiano, nos revelou um método que envolve o movimento das mãos, da fala, da memória, do afeto e o mais importante: ensinou os indivíduos, isto é, a nós, a não só enxergarmos de forma bidimensional, ou seja, a reconhecer o “outro”.

Vivemos, infelizmente, num presente, no qual as relações estão doentes e o coronavírus está mostrando os sintomas. Podemos afirmar que embora altamente contaminante, ele veio também para desintoxicar, não intencionalmente é claro, mas as 137 pessoas, em função dessa desintoxicação, estão somatizando o medo. Vivíamos num momento, numa sociedade, onde pensar não é uma coisa bem vinda! Não há medo que não seja o medo do “outro”. E quem é o “outro”? Pode ser a realidade! Ou a consciência dela. A nossa vivência em mundos paralelos só do trabalho, ou a serviço do meu hedonismo, dos solipsismos do utilitarismo, de só tolerar aquilo que é espelho, não é mais possível. Somos herdeiros dessa doença. Empreender os desajustes das nossas certezas, propiciar um pequeno desencontro que faça explodir essas certezas é a nova arquitetura que deve ser incorporada à nossa vida. Manter a diferença, lutas multidiversificadas para se chegar a uma identidade, contaminando com o que signifique um reforço da singularidade é o novo ensinamento. O tempo certo está aí.

No nosso mundo pós-moderno, o pré-pandemia, a nossa inspiração voltada para o sucesso, a necessidade de sermos produtivos o tempo todo, nos incompatibilizou com a intimidade com a solidariedade, ferramentas cruciais para a sobrevivência no tempo presente. O aumento da população e a falta de assistência, a desorganização urbana dos espaços, parecendo que o nosso território não era o lar de todos, com vários grupos segregados pela sociedade, peregrinado sem destino, morrendo em filas pela falta de hospitais, leitos, remédios, planos de saúde, sem serem aceitos como residentes em parte alguma, era o quadro pintado e dito por muitos, hoje, como o da “normalidade”. Aquele cujo adágio popular sempre se refere como “tempo é dinheiro”. Era a personificação da esquizofrenia social. Era a Nave dos loucos expressa num quadro pintado pelo artista holandês Hieronymus Bosch e estudada pelo filósofo francês Foucault (1989), sobre um barco que passava ao largo da normalidade, mas bem rente a ela, sem ser, entretanto, atacada[3]. Todavia, a COVID-19 nos obrigou, ou podemos dizer, fez um chamado para que prestemos mais atenção nesta que é uma das experiências mais fundamentais da vida humana, estejamos com ou sem isolamento, que é a relação do eu com o outro, ou seja, aquilo que é conhecido com aquilo que é desconhecido. É só nessa relação que se pode falar em upgrade. Nesse sentido, a COVID-19 permitiu a Nave dos loucos ancorar e invadir as paisagens mais familiares do cuidado, acabando por fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da proteção; e nela, logo ocupar um lugar privilegiado. Muitas vezes, isso é o motivo para alucinações, regressões infantis, agressividade, delírios sobre a grande conspiração que nos joga para o campo da depressão e para o “guarda-chuva” do estresse.

A depressão depende de relações com instâncias internas e externas, e de quais conexões fazemos. O estresse sempre está contido no tempo, numa relação de curto prazo

(luta e fuga). Também é o momento em que deixamos transbordar sentimentos primitivos, 138 pensamentos estranhos e misteriosos, ideias obsessivas, em certo grau de desamparo que nos remete para mitos, cultos, rituais, magias, o pensamento mágico que Freud (1995, p. 87-96) denominou de “princípio da onipotência de pensamentos”. Isso que está aí, a “pandemia” parece que terá uma duração indefinida e isso, de certa forma, prolonga o devaneio, o malestar que contamina mais o ambiente, intoxica mais, irrita mais. Desperta a nossa ansiedade, os pensamentos catastróficos com seus efeitos colaterais: dores de cabeça, diarréias, febres, aparecem as paranóias, a hipocondria, os solipsistas, os negacionistas e outros tipos que impedem o sujeito de dar provas de sua eficiência e bom senso.

Como dito anteriormente, a quarentena e o isolamento nos fazem lembrar que não podemos fugir de nós mesmos. Por isso, grande parte de casos de depressão são o resultado

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do confinamento de “mim” “comigo mesmo”. É o nosso pânico, porque muitas vezes não suportamos a solidão de vivermos conosco mesmo.É a nossa posição de “náufrago”, que significa que “Eu” não estou morto, mas não tenho como sair desta situação, e o que mais incomoda é a certeza de que só haverá chance de sair desta situação de náufrago, quando o “Eu” tiver consciência de que o medo, o temor da morte, abala a minha vida e que a minha existência é efêmera.

Para que se suporte o insuportável, o seu “Eu” deve ser forte, seguro, resistente e resilente; o “continente” deve estar em fase com o “conteúdo”, de forma a lhe permitir desfrutar do mínimo de suas possibilidades. Muitas pessoas apresentam essa penosa e árdua dificuldade em maior ou menor grau. Mas há os que se alegram por ficar em tão boa companhia do “Eu” comigo mesmo e desfrutam de uma solitude e não de solidão, porque o seu isolamento e a reclusão, voluntários ou impostos, não estão diretamente associados a um sofrimento.

É no isolamento que aprendemos que é difícil ter consciência e temos que lidar com o medo, e mais, que temos que sobreviver. De passagem pela poesia de Carlos Drummond de

Andrade, ele nos faz lembrar das nossas necessidades: necessidades de viver com os homens, 139 de que é preciso substituir nós todos de sentir o mundo[4]. A consciência nos desencaixa do mundo, nos permite experimentar ou compreender aspectos ou a totalidade de nosso mundo interior e da difícil experiência de viver e, ao mesmo tempo, pressentir que podemos morrer a qualquer momento. É uma experiência que rompe com os nossos acordos com o cotidiano, com a nossa rotina, e o vírus está aí, para dizer que agora o cotidiano é dele, que nos faz lembrar então, que não somos diferentes, somos iguais, que estamos todos no mesmo barco e que este barco afunda! O desamparo nos leva para uma necessidade de nos relacionarmos no sentido de estar junto, de fugir da solidão, mas, diversamente do que se pensa, relacionamentos saudáveis são marcados pela ausência e não por um contínuo estar junto.

A crise na educação e a tecnologia

Esta pandemia, ao se espalhar num país continental como Brasil, expõe de maneira contundente as diferenças já sabidas e agora evidenciadas no isolamento, especialmente no que concerne à Educação.

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Será que estamos todos preparados e no mesmo nível de alfabetização tecnológica/ cibercultural para atender a essa emergência? A pergunta pertinente no primeiro momento, é a de como os menos afortunados enfrentarão essa realidade em suas casas na ausência de suportes, equipamentos, conexões, áreas de cobertura, e outros itens associados. Quando se analisa a evolução da pandemia brasileira, e a possibilidade de meses, talvez até ano de confinamento social,é necessário olhar para o lado da brecha digital. Além de alfabetizados na língua materna, devemos ser letrados digitalmente. Ou seja, as desigualdades, além de concretas,isto é, ligadas à infraestrutura de redes, acesso à Internet e disponibilidade de artefatos digitais, estão pautadas também pela desigualdade de formação. O foco da educação primária e das políticas públicas deve (ou deveria ser) a escola pública e não a escola de capital privado. É no público que a desigualdade maior se manifesta.

As reportagens veiculadas nos jornais e revistas que versam sobre esta temática, jovens em suas estações de trabalho, estudando acoplados a computadores, câmeras, com fones de ouvido para melhorar a concentração. Alguns desses jovens, com dificuldades visuais,conectam seus computadores às suas SmartTV's, a fim de ampliar imagens, tudo isso, dentro de uma peça isolada, num conforto ergonômico, com as tomadas e conexões lógicas 140 que seus prédios oferecem, sem falar nos custos dos softwares necessários para tais práticas pedagógicas de Ensino a Distância (EAD). Tudo isso, com conforto e proteção e sob a vigilância dos pais, que lhes oferecem o lanche no intervalo de suas atividades. Essa é a realidade da Finlândia, da Suécia, da Dinamarca, e de países desenvolvidos, não é a regra/padrão no Brasil.

Precisamos da ampliação da realidade, ou melhor dizendo, de uma duplicação da realidade. E com essa duplicação, qual é o novo real que se cria nessa divisão? A “Educação de Emergência”. É uma situação como o próprio nome sugere “de emergência”, ela é concebida para atender às demandas que requerem tratamento imediato, é um pronto-socorro. Não é EAD e muito menos Educação On-line. Estas possuem pressupostos bem desenhados e requisitos que esta emergência não atende. Esta “ESER” (Educação Síncrona Emergencial Remota) trata-se de uma educação criada para adaptar de forma possível e não ideal àquilo que denominamos como presencial “normal”. A educação emergencial, como ora vivenciamos, é a arte do possível, é o encaminhamento da “educação presencial” para o plantão hospitalar considerando situações que podem necessitar de um atendimento de urgência.Assim, a situação de emergência, para evitar o mínimo de perdas ou danos graves, requer um atendimento imediato.É um processo de descoberta que irá variar no tempo. O mundo não será virtual ou digital. É híbrido, mas sobretudo, a vida é presencial. Nesse sentido, penso que somos virtuais, ou seja, tenho uma capacidade de olhar de fora, tenho uma memória que vem da captação externa que entra no meu corpo e é elaborada, selecionada pela minha memória, meu cérebro que aproxima saberes distintos num campo de força que desenvolve a complexidade do pensamento. Nessa perspectiva, a educação emergencial, impossível de nomear, de representar, ajuda a nossa realidade, recupera a experiência e oferece uma resposta mais próxima do que queremos.

O país possui uma desigualdade social que muitos teóricos da educação, sobretudo alguns da área tecnológica, fingem em desconhecer e se surpreendem quando confrontados com essa triste realidade. Alguns destes teóricos são repetidores de discursos pasteurizados de uma lógica liberal que a pandemia está mostrando que não atende mais a complexidade da realidade, porque não é solidária, tampouco democrática, e possui uma característica intrínseca de não diminuir a miséria. São CEO's de organizações mundiais, geralmente de países desenvolvidos, pelo menos tecnologicamente, como o caso do Japão; professores que realizaram seus estudos fora do Brasil em ambientes de tecnologia e que alinham seus discursos a essa perspectiva. São olhares elitistas, diletantes, que privilegiam uma elite, em

detrimento dos demais membros da sociedade. 141

A tecnologia é ótima, ela nos ajuda e sem dúvida e desenvolve a complexidade do pensamento. Ganha-se velocidade, aumentam-se alternativas: o que era sucessivo, agora é simultâneo. Mas a grande precaução metodológica, para parafrasear Foucault (1979), é saber exatamente onde é que vamos alocar nossa identidade.

Entre as discussões existentes sobre o ensino a EAD, e que no passado poderiam ter sido solucionadas para inclusive amenizar as consequências do atual cenário epidemiológico, com a proposta de “home office” – falando de um sistema de ensino em que você não precisa sair de casa ou se locomover para assistir às aulas –, está a dependência constante da conexão da internet. Um dos fatores que dificulta os estudos em EAD é a constante necessidade de conexão à internet com um sinal estável, sem os fenômenos comuns associados às redes telefônicas que dificultam a propagação de sinal, tais como as perdas de retorno estruturais, descasamento de impedâncias, ruído branco, etc. Outro grande fator crítico são as condições de acesso às redes em áreas mais remotas, mesmo urbanas, sem infraestrutura de rede física ou de wireless.

Nem sempre a conexão está disponível, por isso, esse problema é algo que pode dificultar na hora de assistir às aulas ou simplesmente marcando presença nas mesmas. Um ponto que é crucial é a forma de operar esse modelo que pode ser um gerador de sofrimento. Há uma questão cultural também importante. Por incrível que pareça, ainda há pessoas que sentem que não iriam se acostumar com esse sistema de ensino. Algumas pessoas aprendem mais lendo, enquanto que outras conseguem assimilar melhor as informações das aulas ouvindo. Quais seriam as melhores metodologias que garantiriam as formas de dizer e mostrar um material didático específico para essa modalidade, uma vez que os professores e os alunos não estão partilhando o mesmo local de estudo? Todos os professores possuiriam a mesma vocação para explicar modos de representação “descritivos” e “figurativos” na cibercultura de um EAD? Estarão em condições de entender e proposicionar uma linguagem organizada com habilidades receptivas organizadas internamente para outras pessoas?

O filósofo Wittgenstein (2009) distinguiu dois métodos de comunicação e representação: “dizer” e “mostrar”. Dizer , no sentido de fazer uma proposição, é afirmativo e requer uma estreita associação da estrutura lógica e sintática com o que está sendo afirmado. Mostrar não é afirmativo; representa informações diretamente, de um modo não simbólico, mas como Wittgenstein foi obrigado a admitir, não possui uma gramática ou estrutura sintática básica. Estarão os professores preparados para o EAD para explicar e fazer proposições de estruturas lógicas da imagética, para dizer e mostrar modos de representação descritivos e figurativos? Suas capacidades de representar figurativamente não serão afetadas 142 neste novo modelo muito em reação à perda da linguagem tradicional, menos tecnológica? Suas capacidades de interpretar gestos e expressões das pessoas e seu virtuosismo em expressar-se por gestos em vídeo e áudio constituiriam capacidades naturais figurativas para o circuito receptivo e o expressivo?

Na hipótese de consolidação do EAD, como será resolvido o problema do subfinanciamento de trabalho dos docentes e dos processos associados desse intensivo e perverso sistema educativo? A gravidade desse assunto e a necessidade de mantê-lo em pauta para gerar reflexões que levem a soluções urgentes para fazer com que se preparem novos corpos coletivos alfabetizados cibercuralmente é um dos grandes desafios pós-pandemia. É preciso um novo pacto, uma legislação específica que possibilite aos docentes interagir sintonizados com os novos textos e contextos ou que se estabeleçam processos de transição cabendo, nesse sentido, aos gestores de escolas e a políticas públicas, facilitar a migração do quadro negro para as placas eletrônicas, fazendo com que essa experiência possa ser vivida com interesse e entusiasmo, apesar dos solavancos comuns a uma mudança de atmosfera.

Na forma atual, e também na “educação emergencial”, é um modelo perverso, porque fica na dependência das condições pessoais do professor. Parte-se do princípio de que a partir da mesma remuneração mantém-se uma normalidade. Entretanto, as demandas pessoais e sociais são diferentes. Isso não foi pensado, porque há uma diversidade de compromissos, dívidas, problemas, mas há situações que são somatizantes de estruturas familiares dependentes. Há as implicações em custo de energia, limpeza, refeições, água, etc. As escolas, universidades, sobretudo as instituições privadas, sempre incentivaram uma carga horária e a alternativa do EAD como uma libertação do local de trabalho. Mas o que se percebe e emergiu nesse tempo de pandemia é a escravidão digital! Estamos na nova senzala na vizinhança da casa grande; “as instituições” e os grilhões, as argolas de metal ligadas umas às outras em sequência, foram substituídas pelas conexões lógicas eletrônicas. A chibata, aquela vara flexível e longa para fustigar ou castigar pessoas (escravos e marinheiros[5]) se transformou em dispositivos móveis, como por exemplo, os celulares; o pelourinho é o nosso quarto, que virou escritório com o aluguel pago pelo docente, é o nosso aprisionamento do sistema semi-aberto. O computador se transformou na nossa bola de ferro, que presa ao nosso pé, nos encaixa no nosso novo limite. É nessa nova senzala, onde estamos submetidos ou foragidos, que vamos ao encontro de questões profundas sobre nossa existência; independente das condições físicas e conexões constantes, vagarosamente nos dirigimos ao estresse. Estamos presos ao nosso significado, somos os novos “Replicantes”[6]. Será que no futuro

seremos descartáveis? 143

Considerações finais

Ainda não somos um novo coletivo. Somos indivíduos a caminho de uma consciência de grupo. Por enquanto, o que está ocorrendo nesta pandemia é que corremos todos para debaixo do toldo de um bar, porque está chovendo. Várias pessoas fazem o mesmo, estão reunidas em torno de um objetivo comum, porém não precisam do outro para atingir tal objetivo, entram e saem da situação anônimas. Seríamos um grupo, um novo coletivo como queremos dizer aqui, se o nosso avião chamado “Brasil” caísse no meio da selva e nós tivéssemos que nos unir para sobreviver. Um grupo é caracterizado pela reunião de pessoas em torno de um objetivo comum, mas que, para atingir a este objetivo, necessitam umas das

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outras, criam uma relação de interdependência, formam um sistema de interações e uma unidade reconhecível.Todos os pequenos grupos, enquanto entidade viva e dinâmica, evoluem, ultrapassando diversas etapas ou fases de desenvolvimento durante o seu período de vida.

O confinamento, como exploração da capacidade de pensar, comparar e refletir sobre como fazer novas trocas está nos mostrando que precisamos nos adaptar a uma nova arquitetura, com novos movimentos, novas demandas, como um grupo que tem uma nova relação cultural e afetiva que nos faz projetar melhor o nosso futuro. Temos que nos preocupar melhor com os detalhes, e a partir desta pandemia, adotar este comportamento ensinado pela COVID-19, inventando uma nova espacialidade que funcione 100% do tempo. Tradições que estavam esquecidas, calor, toque, beber vinho junto, conversar, enfim, voltaram a ser incorporadas à nossa vida. Que bom que essas dimensões sejam renascidas e passem a fazer parte da nossa história.

Confirmamos o argumento que a pandemia está sendo a melhor experiência, embora dramática, para abrir a oportunidade para a inovação, criatividade, empreendedorismo, pistas para visitar novos processos e induzir como método o reconhecimento do outro. Em lugar 144 apenas de regras e protocolos, as pistas destacam a importância prática de ir ao encontro da solidariedade, lançar-se no circuito dos afetos, experimentar dispositivos virtuais ou presenciais, nos adaptarmos mais a tecnologia, habitar um território comum, deslocar pontos de vista e exercitar a nossa consciência, sempre levando em conta a produção coletiva do conhecimento amoroso e dialogado. O importante no método não é a condução. É a indução. É ela que cria o fenômeno artístico, que potencializa a criatividade provocada por essa disciplina mental. É ela que cria uma competência social.

Pode ser a nova postura de interpretar o Brasil, o nosso território, para nos libertarmos desta cultura patrimonial e ver que aspectos nos darão resistência para implantar um projeto de proteção coletiva, que a saúde é um bem de todos, que caminhos possíveis podemos desenhar para enxergar coletivamente, transformar o nosso território para que ele seja o lar de todos e ao mesmo tempo, nós, envolvidos, nos transformamos.

Vivíamos uma relação esquizofrênica na sociedade, numa arquitetura que não representava a nossa sociedade, copiando modelos pasteurizados de outros. Assim, a contribuição da pandemia, nos possibilita inventar uma nova linguagem, que nos leva a estabelecer uma relação com o nosso território e a nossa cultura de forma mais justa, mais conectados com a nossa natureza, fazendo um desenho arquitetônico mais compatível com a

nossa “topografia”, com a nossa cultura, com as pessoas do lugar. Não desejo a volta à normalidade anterior. Quero as reflexões provocadas por essa da pandemia, ampliadas, e sem a COVID-19.

Material suplementar
Referências
DELUMEAU, Jean (1989). História do medo no ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras.
FORBES, Jorge; REALE JUNIOR, Miguel (2005). A invenção do futuro. Barueri: Manole.
FOUCAULT, Michel (1989). História da loucura. São Paulo: Editora Perspectiva. ______ (1979). Microfísica do poder. 8. ed. Rio de janeiro: Edições Graal.
FREUD, Sigmund (1995). Totem e tabu e outros trabalhos. 2. ed. Rio de Janeiro:Imago.
LACAN, Jaques (1998). “Para-além do princípio de realidade (1936)”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MOTTA, Laura; SACKS, Oliver (2010). O olhar da mente. São Paulo: Companhia das
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