Resumo: O artigo traz um estudo sobre a atual controvérsia se a “cloroquina e/ou hidroxicloroquina devem ser ou não ser utilizadas no combate à doença COVID-19”. O referencial teórico está vinculado aos estudos sociais da ciência, ramo da sociologia já bem consolidado internacionalmente. O estudo foi realizado a partir de falas de pesquisadores da área biomédica, em entrevista a jornalistas de quatro veículos distintos de televisão, durante quase três meses de quarentena. O método utilizado foi a análise de discurso, focada em três dimensões da controvérsia: a científica, a política e a social.
Palavras-chave:Estudos sociais da ciênciaEstudos sociais da ciência,controvérsiacontrovérsia,cloroquinacloroquina,Sociologia do conhecimentoSociologia do conhecimento.
Resumen: El artículo presenta un estudio sobre la controversia actual en cuanto a si “La cloroquina y / o la hidroxicloroquina deben usarse o no para combatir la enfermedad COVID-19”. El marco teórico está vinculado a los estudios sociales de la ciencia, una rama de la sociología que ya está consolidada internacionalmente. El estudio se realizó a partir de los discursos de investigadores en el campo biomédico, en una entrevista con periodistas de cuatro vehículos de televisión diferentes, durante casi tres meses de cuarentena. El método utilizado fue el análisis del discurso, centrado en tres dimensiones de la controversia: científica, política y social.
Palabras clave: Estudios sociales de la ciencia, controversia, cloroquina, Sociología del conocimiento.
Abstract: The article presents a study about the current controversy as to whether or not “Chloroquine and / or Hydroxychloroquine should be used to combat COVID-19 disease”. The theoretical framework is linked to the social studies of science, a branch of sociology that is already well consolidated internationally. The study was carried out from the speeches of researchers in the biomedical field, in an interview with journalists from four different television vehicles, during almost three months of quarantine. The method used was discourse analysis, focused on three dimensions of the controversy: scientific, political and social.
Keywords: Social studies of science, controversy, chloroquine, Sociology of knowledge.
A controvérsia científica em torno da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19: a importância dos estudos sociais da ciência na sociedade complexa
The scientific controversy surrounding chloroquine and hydroxychloroquine in the treatment of Covid-19: the importance of social science studies in complex society
controversia científica en torno a la cloroquina y la hidroxicloroquina en el tratamiento de Covid-19: la importancia de los estudios sociales de la ciencia en la sociedad compleja
Introdução
Os estudos sociais da ciência (ESC&T), os chamados Science Studies, têm se constituído em um ramo da sociologia que emerge com algum vigor a partir da década de 1980/90, internacionalmente, constituindo-se, hoje, num campo bem consolidado de pesquisas. De um modo geral, os ESC&T estão voltados para o entendimento da produção do conhecimento científico, como prática (e aplicação) nos diferentes contextos da sociedade, como sendo uma atividade inexoravelmente social.
No processo de consolidação teórica e investigativa do campo dos ESC&T, muitas correntes, abordagens teóricas de investigação e métodos foram desenvolvidos. Este artigo, portanto, foi proposto no âmbito dos estudos das controvérsias científicas – uma das mais vigorosas correntes dos ESC&T – e tratará especificamente da atual controvérsia sobre o “uso vrs não uso da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19.
Tomo como objeto de análise dessa controvérsia o conteúdo de diferentes jornais televisivos de quatro emissoras de televisão (a TV Globo, canal aberto; e os canais fechados Globo News, Band News e CNN-Brasil). Realizo uma análise não sistemática das falas,
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opiniões, entrevistas e debates de diferentes cientistas, pesquisadores e médicos, exclusivamente da área biomédica, sobre a recomendação ou não do uso desses medicamentos em pessoas com Covid-19. As observações dos pronunciamentos iniciaram-se no dia 16/03/2020, e estenderam-se até o dia 29/05/2019.
Este artigo está organizado em três grandes momentos distintos. O primeiro apresenta o referencial teórico dos estudos sociais da ciência, com destaque aos principais fundamentos dessa corrente sociológica e algumas de suas premissas centrais, as quais lhe autorizam conhecer qualquer dimensão disciplinar da Ciência. Isto significa que mesmo aquelas áreas, cuja pretensa “pureza” de seu método e a crença de que podem trazer um conhecimento plenamente seguro e verdadeiro, são objetos de investigação pelos ESC&T. A segunda parte trata de uma questão de método. Nela, apresento o recorte da pesquisa, quem são os atores pesquisados, além de descrito o método utilizado. Nesta seção, também apresento um quadro de categorias teóricas a priori empregado na análise de dos discursos. Por fim, na terceira parte deste artigo realizo a análise propriamente dita das falas dos pesquisadores. Para tanto, são considerados três componentes distintos da controvérsia, mas que estão mais ou menos ligados diretamente a ela, quais sejam: a) Componentes científicos da controvérsia; b) Componentes políticos da controvérsia; c) Componentes sociais da controvérsia. Estes três componentes foram aqueles que mais apareceram vinculados às falas analisadas, dentre alguns outros. Por absoluta limitação estrutural deste artigo, optei por deixar para um outro trabalho os componentes econômicos que, justamente pela sua importância, e também considerando o espaço neste artigo para tal, não foram contemplados.
Situando teoricamente de onde parte o estudo dessa controvérsia
A sociologia do conhecimento científico ou como ficou conhecida posteriormente – por força hegemônica do língua anglo-saxão na ciência, no Brasil e em toda a América-latina: social science estudies (ou estudos sociais da ciência e da tecnologia) – constitui-se em um campo de conhecimento já bem consolidado internacionalmente. Esta consolidação ocorreu a partir do importante ensaio de Thomas Khun (1996), publicado pela primeira vez em 1962[1], intitulado “A estrutura das revoluções científicas”. Nesse conhecido ensaio, o físico e
historiador da ciência Thomas Kuhn afirmou, em linhas gerais, que em sua pretensão de “verdade”, a ciência não dependia – como se acreditava – de um núcleo comprobatório de provas científicas, cuja origem dava-se exclusivamente através de um método asséptico e puramente cognitivo. Contrariamente, Kuhn demonstrou, através de fartos exemplos 149 históricos relacionados principalmente à física e à química, que regras e métodos de investigação eram dependentes de determinados paradigmas, que mudavam com o tempo e com as próprias “descobertas” científicas, através de certos consensos realizados pela comunidade científica (KUHN, 1989; RODRIGUES, 2005).
No caso da sociologia, esta tem sido uma ciência que, pelas características de seu próprio nascimento, considerando as suas diferentes fundamentações epistemológicas – o positivismo, a hermenêutica e a dialética –, surge inexoravelmente sob a égide de três paradigmas. Paradigmas distintos que implicam em abordagens epistemológicas distintas, objetos de conhecimento distintos, métodos de investigação distintos e, construções teóricas articuladas por escopos conceituais, por vezes, incomensuráveis. Essa gênese tripartite da sociologia foi reflexo da própria complexidade de seu objeto, no sentido lato, a sociedade. Dessa origem disciplinar complexa, o(s) objeto(s) específico(s) de sua investigação também originou(ram)-se cindido(s) em duas dimensões que, como o pecado original na Doutrina Cristã, não consegue remissão até os dias de hoje de suas dicotomias: tem-se, então, de um lado a ação (Max Weber) e, de outro, a estrutura (Émile Durkheim) (RODRIGUES, 2020; RODRIGUES; NEVES, 2020b, no prelo).
Essa breve digressão sobre a conformação da sociologia como disciplina do conhecimento científico foi feita para que se possa destacar um aspecto muito positivo da diferença original de seus objetos, a saber: ação social (em Weber) o fato social (em Durkheim), com reflexo em fundamentos epistemológicos, métodos e perspectivas teóricas. O primeiro “efeito colateral” favorável à jovem disciplina foi o fato de que a sociologia despontou criticamente com relação a métodos e objetos das ciências naturais (mesmo tendoo adotado como o fez a sociologia positiva); o segundo, foi o fato de que a sociologia tornouse uma disciplina extremamente crítica com relação aos seus métodos de investigação (neste caso, incluindo também a dialética de Marx) e desenvolveu uma robusta reflexão epistemológica e metodológica quando comparada às ciências naturais (RODRIGUES, 1998). Esse cenário sobre as origens epistemológicas e metodológicas da sociologia, brevemente descrito aqui, explica e justifica, pelo menos em parte, o vigoroso impulso que a sociologia do conhecimento científico ganhou a partir do ensaio proposto por Thomas Kuhn[2]. Barry Barnes, um dos pioneiros da chamada “nova sociologia da ciência”, escreveu:
A Estrutura [das revoluções científicas] foi lida com particular interesse na sociologia da ciência, onde sua recepção coincidiu com uma rápida expansão e 150 reorientação dentro do campo. Foi nessa época que os sociólogos dos EUA começaram a ampliar as lentes com as quais estudavam ciências e a examinar a especialidade como a unidade social característica de pesquisa, a unidade que se engajava no desenvolvimento organizado da ciência (BARNES, 1982, p. 14).
A partir, principalmente, de finais das décadas de 1970-80, uma série de trabalhos no âmbito dos estudos sociais da ciência foram desenvolvidos. Os cientistas sociais, vinculados aos estudos sociais da ciência, voltaram-se às pesquisas das ciências naturais como objeto privilegiado de suas investigações. Os métodos utilizados foram os mais variados possíveis: observação in loco; observação participante em diferentes laboratórios e situações de pesquisa das ciências naturais; métodos comparados e de análise entre os conteúdos dos relatórios de pesquisas e os próprios processos observados, etc. Entretanto, os cientistas dos social studies for science tomavam, na maior parte das vezes, o método observacional (tanto realista, como positivista), caro às ciências naturais, para conhecer as diferentes práticas científicas ditas “racionalmente puras”, “comprovadas”, “isentas” e “verdadeiramente científicas”, inclusive,
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os processos experimentais, para conhecer a “potente forma metódica” empregada pelas ciências naturais. Conforme Godfrey Guillaumin (2012, p. 76):
A ênfase de Kuhn nesses elementos sociais do conhecimento científico deu um grande impulso ao desenvolvimento de uma certa sociologia do conhecimento científico. Em um estudo recente (Brante, Fuller e Lynch, 1993), foi afirmado que “A publicação de ‘The Structure of Scientific Revolutions’, de Thomas Kuhn, em 1962, apontou a direção para o estudo integrado da história, filosofia e sociologia da ciência (incluindo tecnologia) agora conhecida como estudos de ciência e tecnologia.[3]
A partir da década de 1990, os estudos sociais ganharam força internacionalmente, colocando em xeque a ortodoxia metodológica analítica e seus infalíveis (e confiáveis) resultados que se traduziam em “descobertas” causais de mecanismos ou leis da natureza. As pesquisas realizadas pelas “ciências naturais”, em disciplinas tais como como a química, a física, a biologia, e mesmo a matemática, dentre outras, cujos resultados eram publicados em forma de artigos “assepticamente escritos”, para os cientistas sociais da ciência, transformavam os processos de produção de seus conhecimentos em verdadeiras “caixas pretas”, posto que nunca revelavam as peripécias desse processo (LATOUR, 2000; 1986; 1983; KNOR-CETINA; 1983; COLLINS; PINCH, 1998). Nestas mais de sete décadas de 151 reflexão e pesquisa sociológica sobre como as “ciências naturais” produzem seu conhecimento, diferentes escolas, correntes, tendências, teorias e métodos foram desenvolvidos para que o conhecimento produzido pelas hard sciences fosse colocado a descoberto. Para o assunto que será tratado doravante, isto é, a controvérsia científica sobre o uso ou não da cloroquina e hidroxicloroquina, é particularmente interessante a passagem do atual trabalho sobre os estudos sociais da ciência e da tecnologia dos autores Adriano Premebida, Fabrício Neves e Jalcione Almeida (2011, p. 29-30), que afirmam:
Após o período de institucionalização desse campo de pesquisa, parte da agenda dos estudos CTS logrou mostrar que a construção do argumento verdadeiro de determinada controvérsia científica é muito mais o resultado de negociações, acordos, interpretações e concessões sobre resultados e objetivos da pesquisa (...) do que a perfeita representação de um fato natural. A controvérsia é um tipo de ação intrínseca à ciência, principalmente quando o centro da disputa argumentativa envolve conhecimentos ainda não assegurados.
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Assim, segundo essa perspectiva, à qual este artigo se alinha, as controvérsias científicas não envolvem somente – como os cientistas (mesmo os de hoje) costumam pensar – uma ciência “em si” e que (ingenuamente?) creem numa pretensa prática científica livre de
“contaminação” de elementos outros que não sejam aqueles de uma suposta “ciência pura”. Contrariamente, uma significativa quantidade de estudos das controvérsias demonstram a existência de uma gama de fatores que envolvem a cotidianeidade da própria prática da ciência, tais como: políticos, econômicos, culturais, burocráticos, paradigmáticos – todos inclusive no sentido amplo do termo ideológico. Como mencionaram Prates e Rodrigues (2020 p. 6), socorrendo-se da perspectiva latouriana como referencial teórico para o estudo da construção da Hidroelétrica de Belo Monte: “controvérsias (...) são consideradas como conflitos que ocorrem entre cientistas, instituições, variáveis, indicadores, incluindo dimensões ontológicas, dentre outros elementos, nos momentos em que conhecimentos científicos não estão assegurados”.
É a partir dessa perspectiva, ou seja, dos estudos sociais da ciência, mais especificamente, da perspectiva das controvérsias que, na próxima secção, analiso os aspectos do controvertido tema sobre o “uso vrs não uso da cloroquina e hidroxicloroquina no 152 tratamento da Covid-19.
Considerações essenciais quanto a métodos e objeto (foco) da presente reflexão
Normalmente, na maioria dos trabalhos, estudos e pesquisas que leio, quando autores/as reservam algum espaço para falar tanto de suas trajetórias como da vivência ao realizar suas pesquisas, fico com a impressão de uma certa desnecessidade ao fazê-lo. Sempre foquei essa prática mais como um “hábito metodológico” da tradição antropológica de produzir conhecimento. Vejo-me, entretanto, exatamente nesta mesma condição de precisar fazer um relato de experiências, a qual (parece-me) necessária como parte deste artigo. Isto, porque penso que a ideia em escrevê-lo foi, em boa medida, fruto da vivência destes últimos dois meses, somado a certo conhecimento teórico acumulado. Assim, a metodologia aplicada neste estudo (mais um estudo que propriamente uma pesquisa rigorosamente sistematizada) está muito próxima das práticas antropológicas de se produzir conhecimento.
Certamente, os estudos sociais da ciência, também muito caros à antropologia, têm se utilizado fartamente da etnometodologia e suas múltiplas variantes: de observação participante; observações descritivas de campo; análises de conteúdo e de discursos comparadas, além de outros métodos e técnicas como investigação que, de algum modo, o estudo de controvérsias também é um deles. O que me moveu à escrita deste artigo, talvez, tenha sido um pouco de cada uma dessas perspectivas metodológicas, pois de certo modo, fizeram com que me visse em um lugar de observação com acesso e tempo para me dedicar à observação da grande mídia, fora da minha universidade (UFPel) e do meu Estado (RS), e, principalmente, em quarentena, em Brasília (novamente), por conta de um Pós-doutorado junto ao PPGSol/CH - UnB, justamente em função da pandemia. Neste sentido, um pouco da minha história intelectual presente e passada, como o acompanhamento cotidiano que tenho feito da política, da economia e da epidemia, e minhas experiências intelectuais nessa trajetória de trabalho/estudo dentro e fora da academia, encorajaram-me a fazer este subitem, ao estilo mais antropológico que sociológico.
Minha primeira formação no ensino superior foi uma licenciatura em Ciências Físicas e Biológicas (1981), atuando na área tanto como docente, como também técnico do Ministério da Agricultura, durante aproximadamente dez anos. Posteriormente, levado pela oportunidade que tive em trabalho de campo, por muitas regiões de diferentes estados brasileiros, interessei-me pelas ciências sociais. Assim, após ter deixado o Ministério da Agricultura, devido à Reforma do Estado e à extinção da empresa pública em que trabalhava (CFP, 153 atualmente CONAB), no período do governo Fernando Collor, decidi retornar à universidade, dessa vez para a área de humanas, ciência sociais e sociologia. Dentre os anos de 1993-2002, na UFRGS, cursei a Licenciatura e o Bacharelado, o Mestrado e o Doutorado em sociologia. Entretanto, nunca abandonei meu interesse pela biologia: na sociologia, voltei-me ao estudo social da ciência à epistemologia e, portanto, envolvi-me inexoravelmente por teoria sociológica como um todo, áreas às quais até os dias de hoje tenho pesquisado e publicado.
Ainda cabe dizer, que a teoria biológica também sempre esteve presente ao olhar para a teoria sociológica, fosse ela clássica, como em Spencer, Comte ou Durkheim, dentre outros, ou mesmo na sociologia contemporânea, como em Luhmann. Portanto, um aspecto importante dessa trajetória é que nos primeiros anos o curso de ciências sociais intrigava-me, com o estranhamento de quem vem de outra área, a relação conflituosa (freudianamente, amor e ódio) que a sociologia nutria, àquela época – em boa medida ainda nutre –, com as ciências naturais (biologia, física, química etc.). Além disto, parecia-me também que as ciências sociais, em particular a sociologia, apresentavam um certo grau de inferioridade com relação às ciências naturais, especificamente no que se referia a métodos. Percebi, logo de imediato, que a sociologia (ou a maioria dos sociólogos) dialogava, por exemplo, com uma biologia do século XIX, fetichizada nas tais leis naturais. Isto me levou a fazer uma pesquisa (RODRIGUES, 1999), justamente para verificar o conhecimento, a reflexão ou, como diria Anthony Giddens (1989), a “capacidade discursiva” de pesquisadores, quanto a fundamentos epistemológicos e metodológicos da ciência, em algumas de suas áreas – sendo este meu primeiro contato com os estudos sociais da ciência. As áreas investigadas foram os Programas de Pós-graduação de excelência da UFRGS, segundo a classificação da CAPES, de astrofísica, de bioquímica, de genética, e de sociologia. O resultado da pesquisa muito me surpreendeu quando constatei a débil capacidade de pesquisadores das “hard sciences” para versarem em termos epistemológicos e metodológicos sobre suas pesquisas, contrariamente aos pesquisadores da sociologia (RODRIGUES, 1999).
Atualmente, em quarentena, junto à minha pesquisa teórica do pós-doutorado, a qual tenho dedicado tempo integral, minha janela para o mundo (como a de muitos brasileiros) tem sido a televisão e as redes sociais. Nelas, tenho acompanhado notícias, sejam elas de cunho político, econômico e, claro, as múltiplas facetas do desenvolvimento da epidemia no Brasil. Isto significa que a minha assistência de notícias, via telejornais e mídias, ficou muito mais intensa, quando comparada a períodos de normalidade, quando se têm inúmeros compromissos com mais mobilização presencial (aulas, reuniões – muitas vezes desnecessárias –, orientações e a própria vida cotidiana fora do trabalho). Como não poderia 154 ser diferente, a epidemia reflete o Brasil político e econômico das últimas décadas. Reflete, na minha opinião, mais o Estado brasileiro que propriamente os últimos governos em si. Evidentemente que, neste caso, o Brasil tem apresentado uma particular dificuldade: as controvérsias e as crises não ficam adstritas exclusivamente à epidemia – mas isto não tem sido assim nas últimas décadas?
Dito isto, quero deixar claro que o artigo tratará, especificamente, da controvérsia científica e duas de suas dimensões: a dimensão política da controvérsia e a dimensão social, também da controvérsia, isto é, seus desdobramentos imediatos sobre o uso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19. A reflexão foi baseada no conteúdo de diferentes jornais televisivos de quatro emissoras de televisão (a TV Globo, canal aberto; e os canais fechados Globo News, Band News e CNN-Brasil), de forma assistemática. O acompanhamento iniciou-se no dia 16/03/2020, ao longo dos dias, sem gravação e (re)escuta, quando foram feitas apenas algumas notas (anotações em papeis e falas minhas no gravador do celular). Essa “coleta” de dados estendeu-se até o dia de hoje, 20/05/200 – data da finalização deste artigo, que coincide com o a liberação pelo Ministério da Saúde do novo Protocolo sobre o uso da Cloroquina e Hidroxicloroquina[4] –, portanto, acontecendo durante 62 dias. Por motivos éticos e técnicos, não apresentarei o nome dos entrevistados pesquisadores e médicos da área biomédica; tampouco de forma específica a emissora e os nomes de jornalistas entrevistadores considerados neste artigo.
Buscarei, à medida do possível, deter-me à controvérsia, evitando entrar em questões outras efervescentes – como tem sido nosso cotidiano político há alguns anos – o que certamente se teria muito a dizer, mas seria um outro artigo, uma outra abordagem, portanto outra pesquisa. Considerando isto, buscarei ressaltar nas falas e nas “falas de práticas” (discursos) aspectos atinentes a diferentes correntes dos estudos sociais da ciência, conforme referencial proposto, aspectos epistemológicos, metodológicos e teóricos da Ciência que emergiram na fala de seus praticantes e/ou foram questionados pelos entrevistadoresjornalistas. Portanto, esta abordagem da mencionada controvérsia não está adstrita (tampouco poderia sê-lo) ao método latouriano – que põe em ação actantes em ambos os lados da controvérsia. Minha reflexão socorrer-se-á, como lente teórica, do arcabouço conceitual de teorias, sobretudo no âmbito dos ESC&T, que se prestam a dizer algo sobre a controvérsia
examinada, objeto deste artigo. 155
Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina deve ser ou não utilizada no combate à COVID-19[5]
O âmbito em que a controvérsia acontece: quem são os atores
A ciência, desde sua consolidação no Iluminismo, sobretudo aquela que se orientou em termos epistemológicos pela filosofia analítica, e que deu substância metodológica às ciências naturais, tem usado o termo “senso comum” para delimitar o conhecimento controlado, o conhecimento metódico, ou seja, aquele que se vale do “método científico”[6] dos demais conhecimentos. Essa perspectiva não guarda nenhuma discriminação, no entender da ciência, porque todos nós temos um conhecimento de senso comum, dependendo de que área ou disciplina se está falando. A sociologia utilizou terminologias semelhantes a de “senso
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comum”, tais como: homem simples, homem comum, homem do cotidiano[7], para se referir ao não sociólogo ou ao não cientista social e, mesmo em termos gerais, ao não erudito. Talvez tenha sido Peter Berger e Thomas Luckmann (2004) os pioneiros a falar sobre o “street man”, em sua conhecida obra The construction of social reality, publicada em 1966. Neste século
XXI, Ernesto Laclau, por exemplo, em uma de suas últimas obras, A razão populista (2013, p.
115), defendeu o termo “massa” (o comportamento das massas, a psicologia de massa, etc.) e ressaltou a importância do termo “povo” (a ideia de “construção política do povo” de uma determinada nação), para se referir à totalidade das pessoas vivendo em uma determinada sociedade.
Neste mesmo sentido, utilizarei tais termos (senso comum, massa, povo, homem cotidiano, homem comum, homem simples) em minha análise, para destacar a separação entre ciência e senso comum. Isto, porque na própria controvérsia subjaz, na fala dos cientistas biomédicos, essa distinção – sim, no imaginário dos pesquisadores da Cloroquina, só estão autorizados a falar sobre o assunto quem faz parte específica da área biomédica[8]. Deste modo, o debate entre os pesquisadores da Cloroquina, independente de postura favorável ou contrária ao seu uso, seja em que fase for, é claramente demarcado: de um lado, os 156 pesquisadores, vendo qual a melhor ciência para o povo; de outro, o povo, a massa (quase um rebanho, mesmo?) que será tratado. Os primeiros estão autorizados a falar; os segundos, sem vozes, devem ouvir e aguardar, posto que não estão legitimados a emitir opinião.
Nos estudos sociais da ciência, essa postura “disciplinar” do conhecimento acima descrita, principalmente nas chamadas áreas tradicionais (medicina, direito, engenharias, etc.), sobretudo por aqueles que “praticam a ciência”, os pesquisadores – quase que dotados de poderes mágicos –, tem sido fartamente descrita (COLLINS, 1983, 1992; KNOR-CETINA, 1983, 1981b, 1981; LATOUR, 1986, 1983). Digo isto para tratar de demonstrar dois aspectos iniciais, preambulares da “controvérsia-cloroquina”, quais sejam: a) o povo não foi convocado a dar qualquer opinião sobre a controvérsia, portanto está fora dela por mais que
“imagine” estar participando – isto tem implicações importantes na análise – justamente pela demarcação entre ciência e senso comum; b) boa parte da massa “assiste”, um tanto estarrecida, sobre como os cientistas – dono de saberes quase mágicos e poderosos – podem discordar de forma tão antagônica uns dos outros.
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A controvérsia se coloca, assim, somente entre os pesquisadores da área biomédica:
pesquisadores-médicos e médicos – quase que exclusivamente. Neste sentido, o povo está fora desse debate; é expectador que assiste, ansioso e desconfiado. Fato é que a controvérsia provém de uma mesma categoria de profissionais que se colocam em polos antagônicos e afirmam coisas que são, do ponto de vista da lógica clássica, excludentes uma em relação à outra – pelo menos na forma como debatem. Em outros termos, na perspectiva de Bruno Latour (2005), trata-se de uma controvérsia que não se estabilizou em meio a uma das mais violentas epidemias e crise sanitária no país, que inclusive derrubou dois Ministros da Saúde.
Os fulcros da controvérsia e os elementos para sua análise
Uma vez estabelecidos os atores envolvidos na controvérsia da Cloroquina, posto que foquei centralmente no debate científico apresentado pela mídia televisível, em seus diferentes programas e jornais, passarei a apresentar algumas categorias – falas e argumentos que sustentam as posições antagônicas da controvérsia – para que sejam examinadas mais de perto. Quero salientar que outros atores que poderiam fazer parte dessa controvérsia, caso esta 157 pesquisa fosse mais ampla e de maior fôlego, por exemplo, os agentes governamentais, dimensão política institucional oficial, opinião de autoridades dos diferentes poderes e níveis da federação, o povo, etc., ficaram de fora, dada às limitações (tempo e método) da própria proposta. Entretanto, curiosamente, esta controvérsia existe, de forma abundante, no seio mesmo de profissionais-pesquisadores da área biomédica.
O Quadro 1, a seguir, apresenta algumas categorias analíticas a priori, ou seja, temas, expressões, termos, conceitos que, se por um lado, são muito conhecidas pelos teóricos sociais da ciência, por outro lado, também costumam ser aludidas, ditas, proferidas, trazidas nos debates entre os pesquisadores (de um modo geral). No caso específico da controvérsia da
Cloroquina, tais expressões fazem parte das falas de pesquisadores da área biomédica (pesquisadores-médicos e médicos em geral), quando entrevistados nos mencionados meios de comunicação estudados.
Quadro – 1
Categorias analíticas propostas para a o conhecimento das controvérsias sobre o uso ou não da Cloroquina em pacientes com COVID-19
Tema de base das entrevistas Argumentos explícitos de pesquisadores (dimensão denotativa) Argumentos implícitos aos argumentos dos pesquisadores (dimensão conotativa) Componentes científicos da controvérsia Componentes políticos da controvérsia Componentes sociais da controvérsia Conhecimento científico. Racionalidade da ciência. O método científico. Evidência científica (comprovação). Estudos científicos robustos. Eficácia comprovada. Existência/inexistência de protocolos. Soberania/autonomia da ciência. Existência de fundamentação epistemológica segura. Pureza do conhecer científico. Assepsia de irracionalidades. Tempo próprio da ciência Certeza e verdade. Politização da ciência. Politização da Cloroquina. A epidemia não deve ser politizada. Decisões políticas do uso da Cloroquina. Não se trata de política, mas de ciência. Uma crise epidemiológica e uma crise política. Existência/inexistência de protocolos. Ciência imune à política. Ciência acima das práticas sociais Ciência asséptica de ideologias. Ciência não contaminada pelo mundo cotidiano. Ciência e política são coisas distintas. Fiquem em casa para não se contaminar. O povo precisa trabalhar. Todos irão se contaminar de qualquer modo. O isolamento social salva vidas. Usar máscara/Não usar máscara. Uso obrigatório de máscara. Crianças e jovens não se contaminam. Crianças e jovens se contaminam. A distância social é de um/ dois/ três metros. Não há distância segura. Tomar Cloroquina/Não tomar Cloroquina. Auxílio para ficar em casa. Necessidade de trabalhar. Contas não param. Correr o risco. Não correr o risco/Correr o risco. Jovem pega/jovem não pega. Comorbidade/ Boa saúde. O que o deve ser dito para o povo. Qual o recado do governo. O que deve ser feito. Desorientação geral/Confusão. Importar tabla
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Fonte: elaborado pelo autor.
O Quadro 1 constitui-se em uma proposta categorial para conhecimento da controvérsia: “Cloroquina e Hidroxicloroquina devem ou não ser usadas no combate à pandemia do vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19”. O quadro foi formulado a partir de diferentes argumentos escolhidos como centrais por serem mais abundantes, que envolveram esta reflexão. Assim, o quadro é formado por três colunas articuladas entre si, e que envolvem tanto os aspectos teóricos da pesquisa como as falas dos pesquisadores, convertidas em categorias analíticas propriamente ditas, propostas por este pesquisador. Temos, então, o seguinte: a) primeira coluna, Temas de base da controvérsia, aponta os principais temas que, na minha opinião, fizeram parte ou foram o contexto discursivo das entrevistas e dos debates; b) segunda coluna, Argumentos explícitos de pesquisadores, busca retratar a fala dos entrevistados (os pesquisadores/médicos) o mais fiel possível, por isto chamada de dimensão denotativa, pois fizeram parte de anotação durante a minha quarentena (uma metáfora do campo, considerando uma observação não participante) na pesquisa; c) terceira coluna, Argumentos implícitos de pesquisadores, espelha os sentidos que estão vinculados aos temas (primeira coluna) e às falas dos entrevistados (segunda coluna), mas propostas por mim, como noções afins à própria teoria dos estudos sociais da ciência. Entretanto, eles estão, ao mesmo tempo, vinculados a uma dimensão conotativa (aquilo que se pode aduzir, trazer à tona) do posicionamento dos entrevistados. Neste sentido, a análise a seguir considerará três componentes distintos da controvérsia, mas que estão corolariamente ligados a ela, quais sejam: 1) Componentes científicos da controvérsia; 2) Componentes políticos da controvérsia; 2) Componentes sociais da controvérsia. Os elementos econômicos da controvérsia certamente são muito importantes, entretanto, estariam além das possibilidades deste artigo, sobretudo em termos de suas dimensões.
Componentes científicos da controvérsia: soberania como fundamento?
Primeiramente, é preciso lembrar que se existe controvérsia é porque, conforme
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Latour (2000; 2005), a disputa em tela não está estabilizada. Neste caso particular,
“Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina devem ser ou não utilizadas no combate à COVID-19”, existe um fator central – e de relevância inestimável – que é o fato de a controvérsia ocorre (este é o foco da minha análise) no interior da própria ciência, entre os seus pares. Assim, existe uma disputa independentemente de qual lado apresenta maior ou menor número de trabalhos científicos. É importante que se considere que dentro da própria medicina, muitas das controvérsias seguem abertas e já viraram controvérsias de senso comum, como por exemplo: se a ingesta de ovos “aumenta ou não o colesterol”, ou quantos ovos alguém pode/deve comer por dia; como esta existem dezenas de outras controvérsias.
O lado da controvérsia que sustenta que Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina não deve ser utilizada, argumenta através de posições pretensamente técnicas, tais como: a racionalidade da ciência, o método científico e, principalmente, a questão de falta de evidências científicas (comprovação cabal) ou estudos científicos robustos que atestem que a droga possui eficácia comprovada. Já o lado da controvérsia que sustenta que Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina devem ser utilizadas, serve-se dos mesmos argumentos, no sentido contrário. Isto, porque a controvérsia, no que diz respeito aos seus aspectos analisados neste item, dá-se entre pares, ou seja, contrariamente aos estudos de outras controvérsias que envolvem, de um lado cientistas e, de outro, pessoas de senso comum, comunidades[9]. Assim ambos os lados, nos termos luhmannianos (2007), utilizam o mesmo código pertinente ao sistema científico.
A partir de uma perspectiva epistemológica dos estudos sociais da ciência, considerando diversos de seus trabalhos clássicos[10], argumentos que conotam a “soberania do conhecimento científico”; a “pureza da ciência”, no sentido de que ela está asséptica de irracionalidades e garantida pelo “método científico”[11] são ingênuos no interior de certas áreas da própria ciência, como instituição produtora de conhecimento. Se olharmos mais atentamente a presente controvérsia, a partir de uma perspectiva epistemológica, é possível constatar que parte dela, no que diz respeito ao método científico, parece revelar um certo desentendimento (ou desconhecimento) teórico-conceitual, pelo menos nas falas dos lados opostos, no que tange a questões de método. Em um dos debates entre dois pesquisadores, um a favor da utilização do medicamento e outro contra, um deles, que chamarei aqui de “A”, argumenta que “ainda não havia comprovação científica do uso medicamentoso para a Covid19”; o outro, que chamarei de “B”, dizia que já havia, sim. Na dimensão do debate, foi possível perceber que ambos estavam falando, inexplicitamente, sobre métodos de 160 investigação científica. Entretanto, parecia ficar claro em suas falas que eles mesmos não dominavam discursivamente – em termos de “consciência discursiva”, no sentido proposto por Giddens (1989) – questões metodológicas, como pretendo demonstrar a seguir. Que fique claro: isto não significa que não dominem, novamente no sentido giddensiano, tal conhecimento em termos de uma “consciência prática”, o seja no sentido prático da pesquisa.
O pesquisador-participante “A” do debate dizia que ainda não havia evidências da eficácia, porque não fora estabelecida uma relação causal entre a utilização do medicamento e a cura. Em termos mais específicos, dizia não haver sido estabelecidos os mecanismos acionados para impedir que o vírus matasse o paciente. Essa fala, que se refere à relação causal e aos mecanismos que pressupõem essa relação de causa e efeito, para demonstrar e explicar o porquê da eficácia medicamentosa, está inscrita, no âmbito da teoria da ciência e da metodologia, no realismo epistemológico clássico. Para os realistas clássicos, o conhecimento científico propõe-se a explicar a relação causal da ocorrência de um determinado evento para
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assim reconhecê-lo como verdadeiro e explicá-lo através do desvelamento de seus mecanismos (KEAT; URRY, 1980).
O pesquisador-participante “B” da controvérsia em questão dizia exatamente o contrário. Primeiramente, afirmava que a “ausência de evidências não significava evidência de ineficácia” – nesse caso, parecia referir-se, também, à ausência de nexos (ou mecanismos) causais para a negação da eficácia dos medicamentos. Afirmava, entretanto, que “na observação clínica” constatava-se que os pacientes que tomavam Cloroquina, a partir de um determinado momento da contaminação, apresentavam recuperação mais rápida e dificilmente iam à óbito. O argumento do pesquisador “B”, do ponto de vista epistemológico, não está inscrito em uma corrente metodológica realista da produção de conhecimento, mas numa corrente metodológica positivista clássica. O positivismo ampara-se, antes, na possibilidade de predições, isto é, a partir da observação da constância de ocorrência de determinado evento (acontecimentos) singulares é possível construir generalização sobre o fenômeno e, com isto, conhecê-lo (KEAT; URRY, 1980; RODRIGUES; NEVES, 2020). A relação causal – e colocar em relevo os seus nexos – não desdiz ou contradiz o fato de que a indução e a predição, a partir da constância de eventos singulares, não possa fazer afirmações gerais – 161 basta conhecer a centenária história das vacinas, quando sequer se conhecia a molécula de DNA/RNA, dado o parco conhecimento bioquímico. Àquela época, o método fora o positivismo clássico. Não obstante a todas as preleções de Karl Popper (2010; 1979; 1974), o método indutivo segue como central nas práticas científicas, inclusive médica – e por este motivo é que existe um chavão na pratica da medicina: “a clínica é soberana” –, com resultados aceitos por aquela comunidade.
Assim, neste aspecto específico da controvérsia, ambos interlocutores não apenas estavam apenas fazendo ciência, posto que tanto o realismo (desvelar a relação causal) como o método observacional (indução que parte de observações singulares e generaliza) são amplamente utilizados e aceitos na pesquisa, como também estavam corretos do ponto de vista de cada um dos métodos. Na minha análise, o que acontecia é que nem o pesquisador
“A” nem o pesquisador “B” apresentavam “competência teórica” sobre métodos para sustentarem seus pontos de vista. Em verdade, em diversos momentos da controvérsia, parecia que os diferentes debatedores tinham por trás de suas divergências questões metodológicas que não vinham à tona, em suas falas.
Dessa forma, boa parte de discussões que implicam e se socorrem de dispositivos retóricos sobre a existência de uma fundamentação epistemológica segura, a pureza de métodos, o tempo da ciência, dentre tantos outros termos, tão bem conhecidos pelos os historiadores, antropólogos e sociólogos da ciência, não são de todo aplicáveis à ciência como uma atividade que não escapa à dimensão humana da vida social. Em nenhum momento deste estudo, durante todo o tempo de observação, houve um debate de elevado nível teórico e transdisciplinar, em que fossem discutidos métodos de pesquisa. Especulo que tal debate não ocorreu, primeiro, pela incapacidade de jornalistas (generalistas) conseguirem levar a cabo uma discussão de cunho mais aprofundado, segundo, porque a própria ciência, através de seus pesquisadores, não “gosta” desse tipo de exposição midiática e crê que os “não cientistas” não possam entender tal complexidade. Infelizmente, tais posturas têm um duplo desserviço à sociedade: por um lado, os debates não saem do lugar, porque não são expostos em níveis mais profundos; por outro lado, a sociedade – o povo ou as massas – não se torna objeto de maior esclarecimento (e mesmo engajamento), porque é subestimada pela própria ciência. Isto terá reflexos, como veremos, nos elementos não apenas da controvérsia específica da Cloroquina, mas com relação a outras práticas sociais das massas.
Componentes políticos da controvérsia: a política como ideologia e a ciência como razão?
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A perspectiva realista clássica diz que existe, sim, um “mundo-lá-fora que independe da nossa vontade”. Essa perspectiva tem sido historicamente considerada em diferentes tradições filosóficas contrapostas. A fenomenologia irá dizer que o sentido é dado imediatamente pela consciência aos objetos, aos fenômenos. Versões do existencialismo, como o existencialismo humanista de Paul-Jean Sartre, que bebe nos ensinamentos fenomenológicos de Husserl, propõem a ideia de que entre a “dação” de sentido ao mundo pelo ser, e o mundo em si, nada pode existir, ou seja, ele propõe uma ontologia, uma visão de mundo em que sem o ser nada é.
Fiz essa brevíssima digressão apenas para salientar que vou assumir aqui a tese do realismo clássico – e também do realismo crítico de Roy Bhaskar (1989), que não são excludentes –, que é a tese epistemológica cara à ciência, e não outra. Vou assumir também que “existe, sim, um mundo-lá-fora independente da nossa vontade”. Pois bem, se essa premissa está sendo tomada, posso afirmar que o conhecimento (de um modo geral) é uma construção social e que esse conhecimento não está dado a priori nesse “mundo-lá-fora”. O que existe no “mundo-lá-fora” são os “objetos”, os fenômenos – no sentido clássico, como aquilo que aparece, aquilo que se mostra – não o conhecimento do mundo. O conhecimento do mundo é um falar construído sobre o mundo; como tratamos da ciência, esse conhecimento está construído em áreas de conhecimento estruturadas em diferentes disciplinas. Em outro lugar escrevi:
O fato de as disciplinas estarem construídas, mais ou menos, em relação a alguns “objetos” empíricos (à vida, bios; à sociedade, socius; ao relevo geo; ao homem, antropos...), não significa que sejam estes objetos mesmos; ou melhor, não significa que seja a realidade desse mundo, mas tão-somente uma forma, um modo como essa realidade foi observada e representada em um determinado momento. O conhecimento disciplinar poderia ter sido construído de maneira muito diversa; dentro de outra lógica, de outra organização, de outra cartografia. Uma genealogia (foucoultina) que pusesse a descoberto o nascimento/formação de cada disciplina, surpreenderia com a natureza social e político de sua constituição, em detrimento à retórica de qualquer estatuto de ‘verdade natural’ (RODRIGUES, 2017, p. 103).
Parecem guardar certa ingenuidade aqueles que se referem às disciplinas ou mesmo às áreas do conhecimento científico como se elas fossem um dado realístico da natureza. Não, não são; parecem, mas não são! Como mencionado acima, as áreas (filosofia, política, cultura, ciência) incluindo as disciplinas do conhecimento científico são construções, representações, modelações sociais, mais ou menos como produtos de (frágeis) consensos, que certamente não possuem delimitação claras em suas práticas cotidianas, posto que são marcadamente subjetivos. Neste sentido, também não existe uma “ciência” e uma “política”, senão apenas 163 como “tipos ideais” no sentido weberiano (1987). No mundo prático, essas dimensões se interpõem, se sobrepõem, se mesclam, se hibridizam, pois foram institucionalizadas socialmente. Mencionei que:
Foucault já apontara para a emergência do poder como propriedade de tudo aquilo que se institucionaliza e se autonomiza (institucionalmente) no espaço social. Para Foucault, o poder é uma dimensão própria das relações que se institucionalizam (...) e passam a se constituir como instâncias de “verdade” (RODRIGUES, 2017, p. 106).
Assim, na dimensão política da análise da controvérsia, e sempre considerando que a separação de áreas somente é possível no plano analítico, expressões denotativas, tais como:
“não se trata de política, mas de ciência”; “é uma crise epidemiológica e não uma crise política”, a “política não se sobrepõe à razão, a razão prevalece”, dentre tantas outras, existem somente como efeito de retórica, tanto pela ciência como pela política. Estas duas áreas, como tantas outras, quando olhadas pela lente da sociologia do conhecimento, mostram um emaranhado de “disputas agônicas e antagônicas” [12] por hegemonia (poder). A epidemia assume, assim, uma dimensão política (e como se pode perceber, não apenas), uma vez que
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mobiliza as diferentes instituições sociais e dimensões conjuntas da esfera pública e da sociedade civil ao mesmo tempo, em múltiplos espaços da sociedade como sistema.
Muitas decisões científicas são decisões também políticas como nos têm mostrado não apenas a história da ciência, mas também os estudos sociais da ciência (CALLON, 2006; KUHN, 1986; LYNCH, 1985). Decisões políticas também são decisões científicas e decisões científicas guardam muito de decisões políticas – haja vista o novo protocolo sobre a Cloroquina, exarado no dia 20/05 deste ano, pelo Ministério da Saúde. A final, que decisão foi essa? A dimensão não estritamente científica também parece ficar clara em alguns dos pronunciamentos feitos pela OMS frente à epidemia. Lembremos que essa Organização não apenas titubeou ao emitir o alerda de pandemia, como também retificou certos protocolos de cuidados em função dessa decisão. Portanto, questões que conotam ideias correlatas tais como: “a ciência está imune à política”; “a ciência acima das práticas sociais”; “a ciência asséptica às ideologias”; “a ciência e política são coisas distintas”, não são evidentes como tem mostrado a história da ciência (CANGUILHEM, 2012; KOYRÉ, 2011; 2010) e os estudos sociais do conhecimento científico, conforme já mencionamos
Uma controvérsia científica reflete dimensões de poder que se institucionaliza. As 164 diferentes instituições constituem-se em unidades de poder, tanto no que tange às suas diferenças no âmbito do espaço social, como no interior delas próprias, como campos relativamente autônomos, no sentido proposto por Bourdieu (1989). Mesmo que a controvérsia ocorra no próprio campo científico (ou sistema da ciência), existe uma dimensão política própria, interna ao campo, entre os componentes que o animam. Assim, é possível afirmar que na disputa por qualquer controvérsia subjaz sempre uma dimensão de poder, que pode ter início intrainstitucionalmente e transbordar para o espaço social, ou de forma extrainstitucional, como aconteceu com a controvérsia da Cloroquina. Enganam-se aqueles que pensam que esta controvérsia nasceu fora da ciência como uma dimensão institucionaliozada de poder. Tudo o que parece ter havido, em se tratando dos componentes políticos da controvérsia, é que ela encontra eco (ambiente apropriado para se acoplar) em um cenário político polarizado como o que se vive no Brasil das últimas décadas.
Elementos sociais da controvérsia: nós, povo, o que devemos fazer mesmo?
Não vou me debruçar aqui sobre o papel do Estado nas democracias ocidentais, animadas pelos diferentes governos eleitos (direta ou indiretamente) pelo conjunto dos cidadãos. Entretanto, é fundamental que se tenha em mente que o que dá sustentação à noção de um estado originado a partir de uma dimensão contratualista (e todas as suas instituições que dele decorrem) somente tem sua razão de ser se estiver voltado à sociedade civil – que aqui tenho chamado sociologicamente de “povo”, de “massa”. Neste sentido, é dever do estado e dos governos que o animam atender aos interesses e à segurança de seu povo da forma mais adequada possível, não obstante as controvérsias, que fazem parte da democracia.
O povo, neste sentido, parece ter sido mais afetado pela controvérsia que propriamente beneficiado (em termos democráticos), por dois motivos fundamentais, quais sejam: a controvérsia se instaurou no meio de uma pandemia, consumindo importante energia daqueles que deveriam minimizá-la – nesse caso, tanto as dimensões científica como a política intra e extrainstitucional da controvérsia. O olhar de ambos os protagonistas desse debate antagônico
– “Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina deve/m ser ou não utilizada no combate à COVID-19” – parece não ter se voltado nesse momento (por falta de um governo que o liderasse?) para o povo, para as massas, para o conjunto da sociedade civil, quando deveria. Certamente que o resultado – e não me refiro somente ao Brasil, mas principalmente – não poderia ser tão diferente, senão culminar em milhares de mortes, as quais temos assistido atônitos.
Quando se olha para o conceito de “povo” ou de “massa”, no sentido que venho 165 utilizando aqui, constata-se que ele está intimamente vinculado ao conceito de “governo”, cuja raiz etimológica grega, Kubernetes,, significa aquele que “pilota”, que “dirige”, e que deu origem à palavra “governo” e ao termo “cibernética”[13]. Governar, dirigir, portanto, deveria ser vista como uma prática retroalimentada, em que a informação partiria do governo em direção ao povo e retornaria ao governo (ou vice versa), para realimentar novas tomadas de decisões. No entanto, como seria possível as massas cumprirem determinados procedimentos se o próprio debate sobre remédios (tecnologias curativas), como o da Cloroquina, não tem conseguido dar uma resposta a contento, estabilizar a sua própria controvérsia? Por certo que a controvérsia implicou em toda discussão (e descrença) do povo, posto que a mensagem que realmente foram acionadas eram contraditórias, tais como: “Fiquem em casa para não se contaminar”; “o povo precisa trabalhar”; “todos irão se contaminar, mais cedo ou mais tarde”; “o isolamento social salva vidas”, etc. Onde quer que haja controvérsia, há exercício, exibição de poder que sempre tende a transbordar limites, sejam disciplinares ou institucionais.
Entretanto, a desinformação não para por aí. Assistiu-se ao longo da epidemia a “pequenas” controvérsias, inclusive no âmbito internacional, que se transformaram em controvérsias corolárias (ou inferentes) à controvérsia da Cloroquina, como se: “agora que
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não temos um remédio eficiente, só nos resta o uso de máscara, o distanciamento social e/ou quarentena”. Quando de fato, essa deveria ser uma das primeiras orientações ao conjunto da sociedade, mesmo antes de uma quarentena ou lockdown. As estruturas sociais, para se manterem como tal, isto é, para manterem seu próprio equilíbrio como “entidade organizada” ou “unidade de sentido” necessitam de informação que faça um significativo número de cidadãos sujeito de seu discurso, e que de fato produza aderências ao que está sendo dito.
Nesse sentido, não pode haver divergências que sejam emanadas de autoridades públicas, não neste momento. A sociologia clássica e a funcionalista já nos deu essa lição teórica quando versava sobre a construção da “ordem social”. Qualquer tipo de “ordem social” não pode ser construída em dissensos que perdurem. A equivocidade emanada por diferentes instituições sociais, direta ou indiretamente vinculadas ao poder público não tem conseguido produzir consensos em torno da ideia de distanciamento social, uso de máscara e necessários procedimentos higiênicos, tampouco sobre o uso da Cloroquina. Períodos de crise são os piores momentos para o estabelecimento de controvérsias. Uma pergunta importante para ser trazida neste momento é a seguinte: será que a crescente relutância do povo a programas de vacinação são consequências apenas de fake news ou porque faltam true news, 166 sobretudo por parte da ciência?
A controvérsia do uso da Cloroquina, assim, extrapolou a dimensão política do campo da ciência e migrou para dimensão política do espaço social mais amplo, encontrando um fermento apropriado para o seu crescimento e proliferação: a polarização da política no Brasil. O campo político brasileiro, nas últimas décadas, tem apresentado fissuras entre o conjunto da cidadania, em torno de polos que tem se constituído como antagônicos: a direita e a esquerda. Estes polos têm o poder de sequestrar diferentes produções de sentido originadas no espaço social, (re)significá-las como sendo de direita ou de esquerda junto a um dos lados dessa fissura de significação, como foi o caso da a controvérsia da cloroquina.
Considerações finais
As diferentes ordens de implicação da controvérsia “Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina devem ser ou não utilizadas no combate à COVID-19” não foi bem avaliada no contexto da pandemia de coronavírus. Certamente, faltaram (e estão faltando) cientistas sociais da ciência, ou mesmo uma abordagem mais transdisciplinar nas tomadas de decisões governamentais com relação ao contexto social epidemiológico. Em sociedades complexas, não se pode mais agir – não obstante ao fato de o conhecimento ainda prevalecer como disciplinar – amparando-se em decisões monodisciplinares, como se os diferentes sistemas da sociedade não repercutissem implicações mútuas entre si e produzissem consequências inesperadas, quase sempre desastrosas. Sempre é importante lembrar que problemas complexos – como uma pandemia em sociedades contemporâneas e altamente diferenciadas –, sobretudo quando não se tem um remédio eficaz (uma vacina, por exemplo), devem ser administrados, posto que nenhuma solução isolada pode mudar o curso da problemática de um momento para o outro.
O governo brasileiro perdeu – e continua perdendo, posto que não se sabe bem o rumo que a epidemia ainda vai tomar – uma excelente oportunidade de, cuidadosamente, construir um plano amplo, transdisciplinar e transetorial capaz de mitigar uma série de efeitos, inclusive à economia, decorrentes da pandemia, não obstante aos exemplos que já vinham sendo observados em países onde a infecção iniciou mais cedo. A impressão que tenho, considerando um olhar ao mesmo tempo distante (por não ser governante) e próximo (porque vivencio a epidemia) é que faltou liderança no desenvolvimento de projetos adequados de enfrentamento à pandemia, tanto pelas dificuldades do Estado brasileiro – burocratizado, engessado, lento –, como pelo atual governo, que não conseguiu, de forma ágil e democrática, 167 propor um plano uníssono e articulado para a defesa e o cuidado de todos os cidadãos brasileiros, não obstante a algumas louváveis iniciativas.
A discussão da presente controvérsia constituiu-se apenas em um pequeno recorte de certos “eventos discursivos”, neste momento da epidemia, que busquei demonstrar e que falam mais do cuidado e da grandeza de espírito que se deve ter frente a questões catastróficas do que da ciência ou da política em si. Ao se renunciar certos enfrentamento em momentos de “crise social” – e não estou falando de política agora, mas de pandemia que mata pessoas –, que apenas servem para claros exercícios de poder, de vaidade e de arrogância (ou seria simplesmente inseguranças?), consegue-se vislumbrar paisagens mais ampla no seio da Nação e, com isto, salvar vidas e acalentar sofrimentos.
Ao término da revisão final deste artigo, no dia 29 de maio de 2020, somos 465.166 casos de infectados; 27.878 mortos (somente hoje fora 1.124 óbitos); 70% dos municípios brasileiros têm casos confirmados. Tivemos a queda de dois ministros da saúde e, não obstante já terem se passado aproximadamente três meses desde o primeiro caso notificado da infecção, ainda não temos, na minha opinião, um adequado projeto de contenção da contaminação e a controvérsia segue em marcha. Aos familiares das vítimas, minha solidariedade.