Introdução: em tempos de pandemia... para um pós-epidêmico como oportunidade virtuosa
Introduction: in pandemic times... for a post-epidemic as a virtuous opportunity
Introducción: en tiempos pandémicos... para una post-epidemia como una oportunidad virtuosa
Talvez seja precipitado escrever sobre a pandemia de Covid-19 e, mais ainda, sobre o tema que pouco a pouco vem surgindo, o pós-pandemia, quando ainda estamos em meio à propagação do novo coronavírus e, no caso do Brasil, com a “curva ascendente”. As ciências sociais são mais cautelosas e geralmente recomendam que tomemos o necessário e prudente distanciamento temporal dos fatos. Entretanto, as mesmas boas razões que apontam para a prudência, também apontam para a necessidade de imediatas reflexões sociais sobre este surpreendente fenômeno que está assolando a sociedade como um todo, e “contaminando” seus diferentes sistemas. Afinal de contas, todas as ciências estão sendo desafiadas e convocadas, implícita ou explicitamente, a se manifestarem. Tal espírito de “reflexão imediata” norteia não apenas este artigo introdutório, como os demais artigos que compõem o dossiê temático “Em tempos de pandemia: para um pós-epidêmico como oportunidade virtuosa”.
Os tempos atuais mostram-se estranhos, controvertidos, polêmicos e incertos. Entretanto, quando fazemos essa reflexão ou externamos esse sentimento, parece vir, de imediato, o seguinte questionamento: mas em algum momento da vida humana os tempos não se mostraram assim, ora controvertidos, ora incertos, ora polêmicos, ora surpreendentes? Por 2 vezes, parece que sim! A dinâmica da sociedade, como um sistema global pulsante, vivo na sua totalidade mais plena e que se inflaciona em diferenciações complexas, parece nos surpreender a todo instante, com o seu fluxo de existencialidade (o devir) incessante. Parece que nada é mais vivo do que os sistemas sociais, mesmo que, paradoxal e lamentavelmente, estejam ocorrendo milhares de mortes humanas, em extensão planetária, devido à pandemia global causada pelo novo coronavírus.
O desconhecimento sempre foi um dos grandes desafios humanos: o desafio de cada pessoa em todas as etapas de sua vida; o desafio das famílias e dos grupos sociais, por sua subsistência e existência; a sociedade como um todo na solução de problemas coletivos. Neste sentido, o futuro tem sido sempre rasgado, desbravado pelo coletivo humano, como se fosse uma floresta densa, desconhecida e a humanidade a ela lançada com a missão de abrir clareiras. A filosofia – sobretudo de cunho existencialista – muito já refletiu sobre essa solitude, concebida pelos existencialistas como Angst (angústia). Heidegger (1989) expressou isto profundamente ao conceber o homem lançado no mundo (Dasein), sem qualquer conhecimento do porquê ou escolha prévia, tendo de lidar, na forma de sua existência, com a espreita permanente do imponderável.
Certamente que quando a humanidade se confronta, como espécie e coletividade, com o desconhecido, a angústia aumenta coletivamente. Onde buscar o conforto, o alívio, frente a um medo comungado? Não obstante ao fato de já termos vivido outras epidemias, a atual, de Covid-19, foi a primeira que se experimentou a partir de uma sociedade que globalizou seus processos de comunicação, de interações sociais. Na sociedade globalizada, as dimensões estruturais e sistêmicas da vida social estão entrelaçadas: a economia, a política, a cultura, a ciência, a educação, os costumes. Se existe algo que a pandemia do coronavírus nos fez ver do ponto de vista humano é que, ao mesmo tempo, somo todos muito vulneráveis, considerando a nossa dimensão orgânica, e também somos todos muito semelhantes, considerando nossa dimensão social: precisamos uns dos outros e só sabemos viver deste modo.
Um dos debates que se tem travado nos meios de comunicação tradicionais e nas redes sociais de um modo geral tem sido o “mundo pós-pandemia”. Talvez, como efeito colateral do isolamento, das restrições ou da quebra, mesmo que mínima, da normalidade, a sociedade se refugie na projeção do futuro; na promessa a si mesma de um “eu vou fazer/ser diferente”. Embora a pandemia tenha se constituído em uma espécie de reset no âmbito dos diferentes sistemas da sociedade e, portanto, na sociedade como um todo, esse reset parece indicar não
apenas um “recomeço”, mas um “recomeçar de outra forma”. 3
Teorias sociológicas pós-estruturalistas e sistêmicas, como aquelas produzidas na França, a partir de Lyotard (1989), como bem descreve Alain Badiou (2013); ou aquelas com a perspectiva (também sistêmica) de Margaret Archer, com a complementar noção de emergência à sua morfogênese social; e ainda, mesmo os sistemas “vivos” de Niklas Luhmann (1998), que não apenas se auto-organizam, mas também se auto-observam na sua dinâmica sistema-entorno, têm buscado mais que em qualquer outro tempo teórico da sociologia descrever a dinâmica, a contingência e, de certo modo, a instabilidade e a (re)estabilização dos sistemas e subsistemas sociais. A teoria sociológica, de certo modo, temse esforçado por descrever as mudanças sociais que adquiriram aceleração nestes tempos contemporâneos (ROSA, 2019).
Por certo que um fenômeno de tais proporções, como a pandemia da Covid-19, causa perturbações ou irritações – no sentido proposto por Maturana e Varela (1997) e Niklas Luhmann (1998; 2007) – em diferentes sistemas sociais (economia, ciência, educação, política, cultura, religião, trabalho, etc.), isto tanto no âmbito internacional como no brasileiro. Entretanto, também como alentamos, as reflexões que aqui se encontram sobre este momento trazem consigo, implícita ou explicitamente, a possibilidade de ascendência de um Brasil pós-pandemia – infelizmente à custa da dor de tantos que perderam (e ou perderão) pessoas queridas –, considerando a chance do “recomeçar de outro modo”. Com a perspectiva de teorias sociológicas atuais que consideram a mudança e a estabilidade de processos sociais contemporâneos, refletimos sobre algumas possibilidades virtuosas para um imediato póspandemia no Brasil,
Certamente o Brasil pode, considerando o seu sistema social e seus múltiplos subsistemas, fazer duas opções – como no filme The Matrix (1999) –, ou seja, escolher entre dois caminhos que se afiguram excludentes entre si: a) olhar para todos os equívocos cometidos no decorrer da pandemia que, de certo modo, nos conferiu a possibilidade de observação privilegiada, e alterar construtivamente o seu curso de certos acontecimentos; b) não considerar (ou não perceber) os equívocos cometidos durante a pandemia, tampouco a possibilidade de observação privilegiada, e permanecer, não-construtivamente no seu curso.
Neste sentido, os termos “construtivamente” e “não-construtivamente” estão vinculados, em respectivo, à construção de convergência social, à proposição de consenso em prol da coletividade ou à construção de divergência social, à proposição de dissensos que irão contra a coletividade.
Se considerarmos as dimensões “construtivas” ou “não construtivas” do pós-epidemia,
e tomarmos o sistema de saúde, como exemplo, veremos que a epidemia tem representado 4 para esse sistema não apenas o desvelamento de seus limites, mas as suas futuras possibilidade. Há de se considerar, portanto, a injeção de recursos financeiros, que repercutiu no incremento de recursos materiais e humanos para o seu funcionamento expandido. Além disto, a necessidade na dinâmica de atendimento e o recrutamento de novos profissionais têm produzido certas dinâmicas interacionais de práticas interdisciplinares benéficas ao melhor funcionamento sistêmico. Em momento algum, considerando o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, cuja capilaridade – há unidades de atendimento na maioria dos 5.700 municípios brasileiros – é incomparável na maioria dos países, esse sistema de saúde se viu submetido a tal dinâmica de funcionamento: ter de dar respostas eficientes e rápidas. O caminho construtivo seria o de fixação permanente de tais recursos e dinâmicas com um ganho de qualidade significativo ao conjunto da sociedade.
O outro caminho, o não-construtivo, considerando ainda o caso do sistema de saúde, seria aquele em que se deixaria esse legado positivo – recursos materiais, humanos e interações ascendentes, obtidos às custas de tanto sofrimento – ser desativado, não incorporando as melhorias alcançadas ao funcionamento rotineiro do sistema, deixando com que a sua “memória inercial” retornasse ao ponto pré-pandemia. Isto requer não necessariamente recursos, mas gestão e políticas públicas, para um efetivo e permanente salto qualitativo no operar do sistema de saúde brasileiro. Experiências de opções não-construtivas o Brasil já experimentou com o desperdício monumental de boa parte de esforços, recursos e de infraestrutura na realização da Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016 (sem falar nos desvios), com graves prejuízos à coletividade.
Do mesmo modo, poderíamos pensar no sistema da educação: os prejuízos imateriais, mas cognitivos, com a supressão da maioria das aulas presenciais, foram certamente drásticos. Assistiu-se à boa parte da rede particular manter suas atividades a distância, enquanto a rede pública, em todos os seus diferentes níveis, não operou dessa mesma forma. Por que isto aconteceu? Seria pelas condições econômicas e sociais do alunado da rede pública? Seria, ainda, por falta de competências variadas em modalidades de aulas remotas por parte do corpo docente? Ou seria por falta de capacidade de um sistema público burocratizado em responder com agilidade a eventos como o que experimentamos agora? Como o Brasil vai retomar o seu ensino público presencial, dadas as estruturas das atuais escolas brasileiras e sua infraestrutura de modo geral, onde a proximidade dos alunos e dos professores é sem dúvida inevitável? Não deveriam ações construtivistas para um pós-pandemia estarem sendo tomadas neste período de lockdown escolar público?
Parece que aqui, no que tange ao sistema educacional, as perguntas anteriores e o 5 enfrentamento necessário de suas respectivas respostas é o próprio círculo virtuoso póspandêmico. A pandemia nos tem feito confrontar com problemas inerciais, ou seja, aqueles que não conseguem ser alterados desde si mesmos, sem que haja ruído a partir de fora do próprio sistema. Essa é a observação privilegiada de nós mesmos que a calamidade epidemiológica tem trazido. O caminho construtivo está possibilitado pelo desnudamento das nossas fraquezas, enquanto que o não-construtivo é não positivar, em formas de ações práticas, aquilo que precisa ser aprimorado para a tão historicamente fragilizada educação no Brasil.
No campo social, a epidemia forçou o governo brasileiro, autorizado pelo parlamento e referendado pela Suprema Corte, a emitir moeda para levar a cabo um inédito programa de amparo à população excluída. O auxílio emergencial, popularmente conhecido “Bolsa-covid”, inclui 60 milhões de brasileiros, até mesmo aqueles que estavam fora do programa BolsaFamília. Como foi anunciado em diferentes ocasiões pelo governo, em diversas mídias, um significativo número de cidadãos, em extremo estado de exclusão, receberam pela primeira vez um Cadastro de Pessoa Física (CPF), e uma conta bancária em um dos principais bancos estatais, a Caixa Econômica Federal (CEF).
É fundamental que neste momento, nós brasileiros, como nação, devido justamente ao confinamento social, nos demos conta de que se uma grande parcela da população tivesse que se manter em isolamento, morreria de fome – sobretudo os sem-teto, cujo “confinamento” ocorreria nas ruas das cidades. A dimensão construtiva na questão social é que agora que sabemos que existem milhões de pessoas “invisíveis”, as quais sequer tinham um documento básico de identificação, como CPF, o que vamos fazer para dignificar a suas vidas? Como agir para tirá-las dessa situação de invisibilidade? Certamente, não nos referimos aqui somente a ações de auxílios emergenciais, mas outras tantas possibilidades inclusivas (saúde física e mental, trabalho, escola, moradia digna, lazer etc.), que podem ser trazidas a essa população – agora que o poder público as conhece – para que sejam paulatina e verdadeiramente incluídas? De fato, este seria o caminho construtivo a ser adotado imediatamente no pós-pandemia, em detrimento de uma postura de (re)abandono dessa fração de brasileiros à sua própria sorte.
Demais sistemas da sociedade, como o sistema da ciência, o sistema da política e o sistema do direito, também têm enfrentado irritações importantes quanto à sua forma de operar. O sistema científico, por exemplo, tem sido desafiado (e convocado) a dar respostas referentes à pandemia, desde as mais simples, como reduzir as formas de contagio, utilização e desenvolvimento de medicamentos, até mesmo quanto à produção de uma vacina. O sistema 6 político, por sua vez, em termos de articulações e composições, tendo sempre em vista o conjunto da cidadania, para o qual certamente tem a sua “razão de ser” justificada pelos demais sistemas que o observam, certamente é um dos sistemas que mais deve se autoobservar. Geralmente, assim como o sistema da cultura, o sistema da política, em uma sociedade que vem sendo paulatinamente cindida ideologicamente em duas visões antagônicas de mundo, apresenta uma operacionalidade de difícil perturbação positiva. Entretanto, juntamente como o sistema do direito, no contexto brasileiro atual, é justamente aquele sistema que talvez devesse se colocar de forma mais sensível e construtiva neste contexto pandêmico, para que realmente possa produzir as perturbações construtivas nos demais sistemas sociais mencionados, no mundo pós-pandemia.
Quando sistemas são provocados a dar respostas de forma ampla, em menos tempo possível, com possibilidades de recursos econômicos e materiais – não obstante a toda calamidade, dor e sofrimento de boa parte da sociedade – por certo que respostas positivas, construtivas são produzidas, podendo e devendo ser incorporadas permanentemente em suas dinâmicas operativa no pós-epidemia. Para tanto, são necessárias ações construtivas, nessa direção. É necessário que os diferentes sistemas da sociedade, a partir de necessidades adaptativas desenvolvidas no decurso do processo epidêmico consigam fazer a seleção desses avanços em detrimento dos prejuízos que certamente também ocorreram. Assim, tais ações afirmativas não serviriam apenas para mitigar os efeitos negativos da pandemia, mas também impulsionariam o sistema para um maior desenvolvimento em termos qualitativos. Certamente, no pós-epidemia, existe, sim, a possibilidade de fortalecimento de cada sistema da sociedade a partir se sua auto-observação e de seleção de escolhas construtivas, cuja emergência sempre provém de seus próprios componentes, da estrutura interna dos seus elementos.
No escopo dessa reflexão introdutória, o presente dossiê “Em tempos de pandemia:
para um pós-epidêmico como oportunidade virtuosa”, através dos seus diferentes artigos, disponibiliza aos seus leitores e leitoras um conjunto de diversas reflexões, fruto de investigações e/ou áreas de expertise dos/as pesquisadores/as colaboradores/as deste número, considerando os múltiplos aspectos dessa pandemia que tem sido, quase que simultaneamente, vivenciada de forma global. Por se tratarem de textos produzidos no “olho do furacão”, ou seja, em meio à propagação da pandemia de Covid-19 no mundo e no Brasil, num momento em que os autores/as encontravam-se em distanciamento social, os artigos que compõem este dossiê podem ter um caráter mais ensaístico.
Abrindo o dossiê temos o artigo de Hugo Cadenas, da Universidade do Chile, 7
intitulado El sistema de la pandemia: apuntes sociológicos. No texto, o autor reflete sobre a dificuldade que pesquisadores, em particular sociólogos, têm de realizar leituras preditivas sobre os processos de transformação social ocasionados pela pandemia. Partindo de uma perspectiva sistêmica, o autor sustenta que a pandemia infectou também os sistemas observadores incapazes, neste momento, de considerar a complexidade inerente aos processos de morfogênese ou morfostase que só podem ser observados à posteriori. Ainda segundo a perspectiva sistêmica, o autor aponta que toda mudança na estrutura interna de um sistema social só pode ser observada em uma escala evolutiva – seleção e transformação de estados improváveis em prováveis –, dado que tais mudanças dependem das irritações (contingentes!) oriundas do seu ambiente externo e com isso impedindo qualquer predição no estado interno do sistema em questão.
Na sequência, temos o artigo intitulado COVID-19 e as revoltas maiúscula e minúscula: Albert Camus, Agamben e Slavoj Žižek lidos em paralaxe, de Murilo Paiotti Dias e Kátia Zanvettor, ambos da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), do Brasil, em pareceria com Jaciana Marlova, da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), do Brasil. No texto, os autores propõem articular literatura e filosofia para indicar posturas – as quais chamaram de “revoltas” – com o objetivo de superar a crise pandêmica instaurada pelo novo coronavírus. Partindo do método da paralaxe, entendido como uma forma de evidenciar as contradições numa mesma realidade sem a exclusão de uma em detrimento das demais, os autores relacionam o trabalho filosófico-literário de Albert Camus e suas personagens fictícias com o pensamento de dois filósofos que atualmente estão propondo novos olhares críticos sobre a pandemia, quais sejam: Giorgio Agamben e Slavoj Žižek.
O terceiro artigo, intitulado Covid-19: a globalização do infortúnio, de autoria de Kamila Nascimento, do Centro Universitário Fametro, do Brasil, buscou problematizar o caráter pandêmico da Covid-19 a partir de uma literatura sobre o processo de globalização. No texto, a autora argumenta que o caráter pandêmico da Covid-19 foi alcançado somente em função das novas tecnologias da informação – desenvolvidas e aprimoradas pelo processo de globalização – que permitem o encurtamento das distâncias e a aceleração dos contatos entre os povos. Além disso, a autora defende que é necessário modificar o imaginário político mundial para que o consenso, a paz e a cooperação sejam reestabelecidas para o enfrentamento dessa pandemia.
O quarto artigo, intitulado La guerra de las Curvas: pandemia, sensibilidades y estructuración social, de autoria de Adrían Scribano, da Universidade de Buenos Aires (UBA), da Argentina, apresenta alguns componentes básicos do cenário pandêmico em que 8
vivemos, sobretudo o que ele chama de “guerra das curvas”. Essas últimas, segundo o autor, podem ser problematizadas como um fenômeno epistêmico, uma vez que implicam a reestruturação de uma política de sensibilidade planetária. Para realizar seu objetivo, o autor começa verificando a conexão entre Verdade, Curvas e Fatos; passa pelo entendimento da origem da pandemia e indaga sobre o estado da “razão europeia”; depois, analisa os efeitos da distância social e das redes sociais no momento em que vivemos; faz uma reflexão sobre o
“senso de emergência social” e termina com algumas provocações pertinentes que nos permitem ver as rotas que a humanidade pode tomar.
Por sua vez, Marcos Lacerda, Pós-doutorando em sociologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Brasil, contribui com o quinto artigo intitulado Governança na pandemia: a ciência como regulação moral e os problemas da biopolítica. No texto, o autor apresenta a sua compreensão acerca das disputas em torno da pandemia nas diversas esferas sociais (acadêmica, política, social, etc.). Para tanto, o autor divide a sua compreensão do fenômeno em três níveis relacionais, a saber: a ciência vista como comunidade moral, quer dizer, produtora de valores que regulam a prática social; os problemas da biopolítica (política da vida) que emergem da ciência, bem como seu estímulo para a produção de uma autoconsciência pública em torno da vida; as consequências políticas, sociais e culturais da interface entre globalização e tecnologias da informação, visto que essas mesmas tecnologias da informação regulam a conduta dos indivíduos para garantir o distanciamento social e diminuir os riscos de contaminação coletiva.
Vanessa Ponte, doutoranda em Ciências Sociais na Universidade de Campinas (UNICAMP), no Brasil e Fabrício Neves, da Universidade de Brasília (UnB), do Brasil, contribuem com o sexto artigo sob o título Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia. No texto, os autores discutem criticamente o uso de tecnologias por crianças – de diferentes classes sociais –, as quais, por meio das câmeras de celulares, tablets e computadores, partilham suas percepções acerca da pandemia de Covid-19 nas plataformas youtube e instagram. Mais do que focalizar nos modos complexos em que as crianças e tecnologias se agenciam para produzir formas e conteúdo de comunicação sobre a pandemia, os autores também demonstram a relevância que as crianças têm para alargar o sentido e o entendimento dos seus próprios corpos, dos outros e das realidades que as cercam.
Thiago Mazucato, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Penápolis (FAFIPE), do Brasil, e Gabriel Burnatelli, do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), do Brasil, assinam o sétimo artigo intitulado Ideologias, utopias e cultura política: elementos para a compreensão da disputa ideológica no Brasil em tempos de coronavírus. No texto, os autores 9 propuseram analisar a disputa ideológica que o Brasil está enfrentando num cenário de “crise de sentido” decorrente da pandemia do coronavírus. Tal analise, além de resgatar a dimensão histórica do Brasil e suas matizes ideológicas que se desenvolveram desde os tempos do Brasil Colônia, passando pelo Brasil Império e Brasil República, questiona o cenário atual em que vivemos à luz da Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim (1929) para compreender, em especial, a disputa ideológica acerca da utilização ou não da cloroquina para o tratamento de casos de Covid-19.
Belmiro Nascimento, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), do Brasil, contribui com o oitavo artigo intitulado A construção de um novo paradigma de educar: do singular ao coletivo, reflexões necessárias em tempos de pandemia. No texto, o autor expõe uma reflexão acerca dos “novos modelos” de representar a realidade instaurada pela Covid-19, tomando como base analítica Educação, Sociologia e Psicanálise. Segundo o autor, a pandemia e o confinamento que vivenciamos está nos proporcionando – mesmo que de maneira trágica – a possibilidade de caminhar rumo a uma consciência de grupo, isto é, de nos tornarmos um grupo de pessoas mais unidas e solidárias. Ademais, o autor argumenta que o confinamento está nos induzindo a refletir sobre nossa situação particular, bem como das outras pessoas, mostrando a necessidade de (re)adaptação e (re)articulação com o mundo em que vivemos.
Fechando o dossiê, temos o artigo de autoria de Léo Peixoto Rodrigues, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do Brasil, sob o título A controvérsia científica em torno da Cloroquina e Hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19: a importância dos estudos sociais da ciência na sociedade complexa”. No texto, o autor analisa a atual controvérsia sobre o uso ou não da Cloroquina e/ou Hidroxicloroquina no combate à Covid19, pela perspectiva dos estudos sociais da ciência e tecnologia (ESC&T). Em vista disso, o autor ressaltou três dimensões da controvérsia que estavam presentes nas falas de pesquisadores da área biomédica e que foram analisadas em forma de discurso (falas de práticas) em entrevistas a jornalistas de quatro veículos distintos de televisão. Segundo o autor, a controvérsia científica demonstrou certa falta de “competência teórica” por parte dos pesquisadores sobre métodos para sustentarem seus pontos de vista; a controvérsia política demonstrou disputas por parte da ciência e da política por hegemonia (poder); já a controvérsia social foi a pior de todas, pois instaurou uma polarização política na população, que no fim das contas, foi a mais prejudicada.
Desejamos a todos/as leitores/as uma ótima leitura deste dossiê!