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Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia
Fabrício Neves
Fabrício Neves
Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia
Viruses, screens and children: intertwining in times of pandemic
Virus, pantallas y niños: enredos en tiempos de pandemia
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 7, núm. Esp.1, pp. 87-106, 2020
Universidade Federal do Espírito Santo
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Resumo: Este trabalho discute os usos da tecnologia por crianças, as quais, por meio das câmeras de celulares, tablets e computadores, partilham seus pontos de vistas nas redes sociais sobre a pandemia da COVID-19. Por meio de vídeos produzidos por meninos e meninas, selecionados nas plataformas YouTube e Instagram, focalizaremos nos modos complexos em que crianças e tecnologia se agenciam para produzir formas e conteúdos de comunicação sobre a pandemia. Mostraremos como seus posicionamentos contribuem para alargar o entendimento dos desafios que ora se colocam.

Palavras-chave:COVID-19COVID-19,criançascrianças,tecnologiatecnologia,sociologia da infânciasociologia da infância,sociologia da tecnologiasociologia da tecnologia.

Resumen: Este artículo discute los usos de la tecnología por parte de los niños, quienes, a través de las cámaras de teléfonos celulares, tablets y computadoras, comparten sus puntos de vista en las redes sociales sobre la pandemia de COVID-19. A través de videos producidos por niños y niñas, seleccionados en las plataformas de YouTube e Instagram, nos centraremos en las complejas formas en que los niños y la tecnología trabajan juntos para producir formas y contenido de comunicación sobre la pandemia. Mostraremos cómo sus posiciones contribuyen a ampliar la comprensión de los desafíos que ahora surgen.

Abstract: This paper discusses the uses of technology by children, who, through mobile phone cameras, tablets and computers, share their views on the COVID-19 pandemic in social networks. Through videos produced by boys and girls selected from Youtube and Instagran platforms, we will focus on the complex ways in which children and technology interact to produce forms and content of communication about the pandemic. We will show how their positions contribute to broadening the understanding of the challenges that now arise.

Keywords: COVID-19, children, technology, sociology of childhood, sociology of technology.

Carátula del artículo

Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia

Viruses, screens and children: intertwining in times of pandemic

Virus, pantallas y niños: enredos en tiempos de pandemia

Fabrício Neves
Universidade de Brasília (UNB), Brasil
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 7, núm. Esp.1, pp. 87-106, 2020
Universidade Federal do Espírito Santo
Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia

Introdução

A pandemia de covid-19 é um desafio à sociologia em vários sentidos. É um evento macro, global, com velocidade de expansão recorde, que interfere nas lógicas de reprodução dos distintos sistemas sociais das mais variadas formas (STICHWEH, 2020; NEVES, 2020). Tem uma dimensão política, econômica, científica, de saúde pública e que expõe a contingência de reprodução dos sistemas, ao mesmo tempo que desafia lógicas assentadas nas relações entre estados nacionais, ameaçando um esgarçamento da ordem precária sobre a qual tais relações se reproduzem. Ao mesmo tempo, interfere nas dinâmicas micro, das relações sociais, do cotidiano, e dos próprios corpos, ao instaurar lógicas de apartamento e distanciamento social e novas dinâmicas higiênicas que, ainda que de forma latente, interferem nos laços pessoais e na apresentação dos indivíduos aos outros. O engajamento com o vírus, em tal contexto, é praticamente incontornável, já que somos diariamente bombardeados com informações em tempo real da expansão da pandemia, do fechamento de estabelecimentos comerciais e educativos e, em casos mais dramáticos, com a perda do emprego ou redução salarial. Tudo isso nos leva à constatação de que a pandemia é um fato 88 social total.

Neste trabalho, ressaltaremos a dinâmica micro da “ordem social” da quarentena, em específico, dos usos da tecnologia por crianças, as quais, por meio das câmeras de celulares, tablets e computadores, partilham seus pontos de vistas nas redes sociais sobre a pandemia da covid-19. Focalizaremos, portanto, os modos complexos em que crianças e tecnologia se agenciam para produzir formas e conteúdo de comunicação, especialmente, mostraremos como seus posicionamentos contribuem para alargar o entendimento dos desafios que ora se colocam.

O campo de discussões que almejamos apresentar está em sintonia com uma agenda teórica e metodológica de estudos com crianças, produzidos de forma interdisciplinar, desde o final dos anos 80, a qual reconhece meninas e meninos como sujeitos históricos ativos na construção da realidade social, como seres criadores de saberes (PONTE, 2018). Tal agenda, diga-se de passagem, contraria um longo período das ciências sociais brasileiras, no qual as pesquisas “silenciaram ou simplesmente ignoraram as vozes das crianças. Mesmo quando elas apareciam, era em geral, como ‘adereço’ no universo do adulto” (PIRES; SARAIVA, 2016, p. 165). Buscando romper com esse tipo de abordagem “adultocêntrica”, partimos do princípio de que as crianças são, como diz Freitas (2003, p. 10), “agentes e protagonistas nas tramas do cotidiano” conseguindo, portanto, se expressar sobre o que lhes concerne. Em consonância com Schuch et al. (2013, p. 205), a intenção neste artigo passa ao largo de querer fortalecer a grande “divisão etária adultos/crianças e sim interrogar sua relativa arbitrariedade e caráter político, indicando a relevância de abordagens relacionais ‘das infâncias’ e das práticas coletivas das quais ‘as crianças’ participam.”

Em tempos de isolamento social, entre paredes que se colocam às crianças como impeditivos ao cotidiano desfrutado anteriormente, elas encontram na tecnologia, por meio de câmeras e redes sociais, formas de expressão que as conectam ao mundo, ainda que mobilizadas pela ameaça constante do contágio. Neste agenciamento recíproco, o sistema tecnológico se define no uso e as agências das crianças negociam a todo o tempo com suas relações e com as particularidades de seus cotidianos, no momento, atravessados pelo vírus. Nesse sentido, nos engajaremos em compreender os modos pelos quais crianças de diferentes classes vivenciam e significam o uso das tecnologias nesses tempos de quarentena e, nessa dinâmica, analisaremos de que forma os conteúdos gestados por elas nos oferecem possibilidades para pensar esse momento.

Almejamos organizar tais reflexões em torno de três tópicos. Primeiramente, apresentaremos o contexto mais geral, no qual discutiremos questões relativas ao uso de 89 tecnologias, tecendo uma crítica ao determinismo tecnológico. Focamos então no protagonismo das crianças na construção de seus cotidianos durante a pandemia, que envolve uso mais intensivo de tecnologias. Em seguida, por meio de uma seleção de material realizada nas plataformas YouTube e Instagram, serão apresentadas as produções audiovisuais protagonizadas pelas crianças, expressando seus pontos de vista sobre a pandemia. No último tópico, a partir de suas perspectivas, ofereceremos uma compreensão dos modos como as crianças significam esse momento delicado que todos atravessamos, lançando mão dos recursos tecnológicos para expressarem seus pontos de vista.

Infância e tecnologia na quarentena

Refletir sobre a relação tecnologia e infância no Brasil, no curso da quarentena, evidencia as duras desigualdades que assolam o país. Conforme dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, em tempos de ensino remoto, 4,8 milhões de crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, vivem em casas sem acesso à internet. A exclusão marca profundamente aqueles que vivem em áreas rurais (25%), nas regiões Norte e Nordeste (21%) e entre os domicílios das classes D e E (20%). Por outro lado, a referida pesquisa chama atenção para o uso intensivo da internet por crianças e jovens brasileiros: são 24,3 milhões de usuários entre 9 e 17 anos. É imperativo frisar que o acesso desigual a plataformas digitais e internet é apenas um entre tantos desafios enfrentados por crianças nesse quadro de pandemia.

Crianças são alvos do mercado de entretenimento tecnológico, incluindo televisão, videogames, redes sociais, vídeos. Os medos e receios que o uso intensivo de tecnologias causa vêm acompanhados de um entusiasmo por conta da pretensa capacidade tecnológica de substituir o cuidado familiar. A resultante desses medos e apologia explícita é um debate sobre o quanto a exposição e uso das tecnologias deveria ser tolerado. Várias respostas são dadas a esta equação, sem um consenso assentado ainda. Uma linha de discussão situaria o problema na relação entre casa-rua-escola, supondo que a casa seria o local da tecnologia – TV’s, games, celulares; a rua, o local das brincadeiras lúdicas de socialização, dos piques, do futebol, das brincadeiras de roda; e a escola, por sua vez, o local do aprendizado. Claro que estes espaços só esquematicamente podem ser considerados estanques, quando nos referimos à vivência cotidiana das crianças. Até porque, a tecnologia invadiu ruas e escolas, a casa é local de aprendizagem, etc. A questão é que a pandemia do covid-19 e as respectivas políticas de isolamento têm trazido ao centro do debate a relação de pais, filhos e tecnologias.

Pensemos em pais e mães em homeoffice, com demandas sem temporalidade 90

demarcadas, em afazeres ordinários de limpeza, compras e cozinha. Pensemos ainda naqueles que perderam empregos e retornam ao lar. Mães e pais em quarentena estão diante de demandas que fogem à cotidianidade construída desde períodos iniciais da vida da criança, levando-os a repensarem assentadas formas de dividir o tempo e cuidados. A tecnologia tem aparecido nos mais variados discursos sobre a quarentena, assumindo funções criativas diante do quadro pandêmico. Babá, controle parental, escola virtual, salas de bate-papo: todas estas funções aparecem, em um quadro de quarentena, como dependentes da tecnologia e são intensificadas por ele.

Todas estas tecnologias são flexíveis, não são boas nem más e respondem ao uso. Neste sentido, usando a metáfora de Harry Collins e Trevor Pinch (2002, p. 01), a tecnologia, como a ciência, é um Golem, “não é uma criatura maligna, mas é um pouco desprovido de sentido. Um golem não pode ser culpado se está a fazer o seu melhor. Mas não devemos esperar muito. Um golem, por muito poderoso que seja, é a criatura da nossa arte e do nosso ofício”. No caso em tela, a tecnologia está a serviço das crianças, seus medos e angústias, anseios e sonhos, propostas e ações. E, claro, este universo não pode ser encerrado nas paredes restritas, ele transcende este espaço, vinculando-se às mais variadas experiências anteriores, à sua condição de classe, raça e gênero. O sentido atribuído a tecnologia é a resultante dessas condições, hoje enquadradas pela pandemia. Assim, é provável que o uso infantil das tecnologias também transforme-as, imprimam conteúdos novos e expressem sentidos diferentes.

Outra discussão sobre tecnologia e uso é trazida pela vertente da “construção social da tecnologia” (SCOT - Social Construction of Technology) (KLINE; PINCH, 1996). Para os autores vinculados a essa corrente, os grupos de usuários das tecnologias – engenheiros, consumidores, mulheres, homens, governos, entre outros – são os agentes da mudança tecnológica, porque partilham seus significados próprios ao usarem as tecnologias, as quais são consideradas destituídas de significados por si mesmas. O YouTube, por exemplo, pode ser usado para propaganda política, aprendizado remoto, propaganda comercial, noticiário, e todos estes usos são produzidos a partir dos usuários e seus universos significativos. Embora tais significados sejam enquadrados dentro de algumas características do aplicativo (uso de som, imagem, caracteres, legendas, etc.), ainda assim, os aplicativos oferecem flexibilidade para seu uso, inclusive, eles reagem aos usos criativos não previstos em seu programa. Esta flexibilidade torna as tecnologias em transformação constante, ao mesmo tempo que se embrenham às mudanças da sociedade. Para dizê-lo com mais precisão, pode-se afirmar que

tecnologias e sociedade são co-produzidas. 91

O conhecimento e as suas encarnações materiais são simultaneamente produtos do trabalho social e constitutivos de formas de vida social; a sociedade não pode funcionar sem conhecimento, tal como o conhecimento não pode existir sem apoios sociais adequados. O conhecimento científico, em particular, não é um espelho transcendente da realidade. Incorpora e está incorporado em práticas sociais, identidades, normas, convenções, discursos, instrumentos e instituições - em suma, em todos os elementos constitutivos daquilo a que chamamos o social. O mesmo se pode dizer ainda mais energicamente da tecnologia (JASANOFF, 2004, pp. 2-3).

A dinâmica tecnológica em período de quarentena parece repercutir esta característica, porque um novo universo apareceu no horizonte dos usos infantis da tecnologia: a ameaça da covid-19. Ao mesmo tempo em que as crianças expressam novos mundos por meio da tecnologia, ajudam a construir um mundo novo. O que propomos aqui é negar noções antigas do determinismo tecnológico, ou seja, ideias de que a tecnologia mesma produzirá transformações sociais ou influenciará de forma unilateral comportamentos, sensações e pensamentos. Mais ainda, levando em conta ideias também antiquadas que consideram as crianças como seres passivos, esponjas de conteúdo e sentido, estes preconceitos são mais intensamente projetados e devem ser negados no idioma da co-produção. Assim, quais são os usos infantis da tecnologia em tempos de pandemia? Quais universos são mobilizados?

Não são poucas as vezes em que se compara crianças que fazem uso intenso de tecnologias a zumbis incapazes de autonomia, e essa analogia tem aparecido mais desde que a quarentena contra a covid-19 tornou-se política de saúde pública em grande parte do mundo. Segundo Buckingham (2009), é um erro pensar a relação entre crianças e tecnologias a partir de uma abordagem na qual a criança é isolada de tudo o mais e a tecnologia aparece como um mecanismo unilateral de influências variadas: “Precisamos considerar novas mídias em relação às mídias 'mais antigas' e no contexto da vida cotidiana das crianças; e também precisamos localizar o uso dessas mídias por crianças em relação a forças sociais, econômicas e políticas mais amplas” (BUCKINGHAM, 2009, p. 128 ). Ou seja, há duas abordagens que exageram seus argumentos quando tematizam crianças e tecnologias: de um lado, o determinismo tecnológico; do outro, o isolacionismo. Em conjunto, essas suas abordagens tendem a considerar a criança um ser passivo à influência tecnológica e isolada de tudo o mais.

A sociologia da infância tem apresentado estudos que negam a ideia da passividade infantil (PONTE, 2019). Sirota (2001), por exemplo, relaciona a ideia de passividade nos estudos da infância à visão funcionalista durkheimiana difundida na área, principalmente antes dos anos 90. Estes estudos sociológicos sobre a infância consideravam “as crianças seres fundamentalmente imaturos, incompletos e inteiramente passivos no processo de 92 socialização, designados a absorver o que estava posto socialmente” (PONTE, 2019, p. 135). Havia, portanto, um deficit da agência da criança em seu próprio universo, que, supostamente era governado pelas intenções e ações dos adultos. Fica claro, ao considerar estes estudos, que o determinismo tecnológico atrelado à passividade infantil mobilizava um conjunto de abordagens, cujas consequências eram relacionar diretamente audiência infantil a aumento de violência, e usos de videogames a isolamento e depressão.

Sirota (2011) mostra que a sociologia da infância, emergente nos anos 90, opõe-se à estas perspectivas, principalmente funcionalistas, promovendo novas maneiras de observar as crianças, valorizando mais “suas participações ativas nos processos de socialização” (PONTE, 2019, p. 136). O grande salto da sociologia da infância no período foi “inverter a proposição clássica, não de discutir sobre o que produzem a escola, a família ou o Estado, mas de indagar sobre o que a criança cria na intersecção de suas instâncias de socialização” (SIROTA, 2011, p. 19). As crianças, agora, passaram a ser estudadas nos mais diferentes espaços sociais, nos quais interagem e são consideradas seres criativas e criadoras.

Estamos acostumados a pensar nas crianças como alunas e alunos, geralmente em escolas ou espaços educativos formais, ou ainda nas crianças dentro de creches e pré-escolas. Estamos condicionados a pensar em educação como algo institucionalizado e vivido em espaços escolares. Na verdade, temos pesquisado e produzido muito pouco sobre outros espaços educativos como a televisão, os videogames, as salas da internet, os movimentos sociais, as ruas, as vilas e favelas com seus espaços informais e clandestinos de educação, as academias, os shoppings, as escolas de samba ou as danceterias. Enfim, pouco nos interessamos pelas crianças e suas culturas, interagindo em espaços que nós adultos ainda desconhecemos, ou pelos quais temos passado sem refletir de forma mais prolongada (DELGADO; MÜLLER, 2005, pp. 175-6).

O momento atual é de confinamento em casa para as crianças. Isso ocorre em um contexto de “explosão do mundo digital” nas vidas de meninos e meninas de diferentes segmentos sociais (PONTE, 2019). Girardello (2008, p. 1), em pesquisa com 2.000 crianças da primeira série do ensino fundamental em Florianópolis, constatou que “o computador foi apontado por 100% das crianças entrevistadas na favela mais empobrecida da cidade como mídia favorita, mesmo por aquelas que nunca tocaram o teclado de um computador”. Há quem chame estas crianças de “nativos digitais” (PRENSKY, 2001), porque são envolvidas por tecnologias desse tipo desde o nascimento. Embora não contemple a totalidade das formas de viver a infância, a expressão tem muito a dizer para uma sociedade que tem mobilizado o confinamento como política fundamental para “achatar a curva” das mortes pela covid-19, produzindo novos modos de vivência em casa, nos quais a tecnologia e, em especial, computadores e celulares, aparecem como meios de comunicação, entretenimento e compras. 93 Acreditamos que é nesse contexto social excecional, que relaciona isolamento com tecnologia, que as realidades das crianças estão sendo reconfiguradas, principalmente por meio de suas próprias ações.

Alguns relatórios internacionais indicam que a maioria das crianças de 0 a 6 anos usa algum tipo de mídia com tela (TV, videogames e computadores) todos os dias, por cerca de 2 horas (MCDONOUGH, 2009; VANDEWATER et al., 2007). No Brasil, o número de crianças, das mais variadas classes sociais, que acessam a internet está em expansão geométrica, como informa a recente pesquisa Geração YouTube: um mapeamento sobre o consumo e a produção infantil de vídeos para crianças de zero a 12 anos no Brasil, realizada pela ESPM Media Lab entre 2015 e 2016. Nestes anos, canais de youtubers mirins cresceram aproximadamente em 6 vezes, as visualizações de canais no youtube feitos por crianças teve um aumento de 564% e o número de inscritos nesses canais cresceu 550%. Isso não pode ser desprezado quando se está em uma condição social, na qual as crianças estão completamente em casa, e sua “conexão” com o “exterior” dá-se, majoritariamente, por meio da internet.

Neste sentido, é importante aproveitar a excepcionalidade do momento da pandemia de covid19, momento que exagera a relação doméstica entre crianças e tecnologia, para se estudar os usos que elas dão aos dispositivos, principalmente ressaltando o enquadramento dado por elas, a partir de seus respectivos universos, à questões como vírus, isolamento, ameaça, família, amigos, brincadeira, morte.

A quarentena deve ser compreendida como um contexto de desafio aos moradores de uma mesma casa. Os pais continuam em atividades remotas, devotados aos trabalhos domésticos e com outros membros, principalmente idosos e crianças. Estas, com o cotidiano suspenso, recriam brincadeiras, formas de aprendizado e são desafiadas a reconfigurarem as relações com os pais e amigos, principalmente no que toca ao tempo. Roberts e Foehr (2004) já indicavam que tempo e energia são os fatores mais importantes que explicam a falta de envolvimento dos pais no controle do uso de tecnologia pelos filhos, isso em período sem quarentena, quando dividiam a criação dos filhos com escolas e creches. Os autores mostram que “a maior parte dos pais (67%) considerou apropriado usar as tecnologias de mídia para crianças enquanto adultos realizam outras tarefas, e mesmo aqueles que não concordaram ainda admitiram que às vezes o faziam” (ROBERTS; FOEHR, 2004, p. 10). É provável que, em contexto de quarentena, estes fatores cobrem mais força na dinâmica dos usos tecnológicos por crianças, e que elas façam uso ainda mais intenso, principalmente das mídias

sociais. 94

Em tempos de pandemia, “ficar em casa” se mostra então uma experiência complexa: as pessoas permanecem mais tempo nela e novas atividades são trazidas para dentro desse lugar de vida. Homens e mulheres que trabalhavam fora se veem reinventando tarefas em trabalho remoto. Crianças, suas demandas fisiológicas e afetivas e suas atividades escolares impõem novos ritmos aos pais (ARAUJO, 2020, p. 3).

Assim, é razoável sugerir que, no atual momento, as crianças estão fazendo uso ainda mais intenso de tecnologias, o que nos leva a pensar que elas estão se informando e se comunicando mais por meio dessas ferramentas. Acresce-se que, ao tomar os canais de comunicação quase em sua integralidade, o tema da pandemia tem entrado de forma mais intensa em seus cotidianos, produzindo indagações e angústias que, na ausência dos pais, levam-nas a se expressarem de forma muito particular. A infância na quarentena tem transformado as rotinas das crianças, imaginários, práticas e corpos, que são midiaticamente expressos.

No contexto de pandemia, diferentes instâncias – medicina, pedagogia, psicologia – estão engajadas em refletir sobre essas transformações e em produzir uma série de orientações e diretrizes, sobretudo direcionadas aos responsáveis pelas crianças, com condutas sobre como desenvolver relações éticas e saudáveis com o ambiente digital e de como acompanhar as vivências das crianças nos usos da internet. Contudo, muitos desses conteúdos não são produzidos a partir de uma relação dialógica com elas nem tecidos a partir de uma compreensão aprofundada dos modos como elas significam esse momento delicado que todos atravessamos. Isso gera pesquisas, estudos, materiais que são feitos sobre as crianças e não com as crianças.

Na seção a seguir, apresentarmos suas produções audiovisuais em tempos de corona vírus, procurando primar pelo espaço de enunciação desses sujeitos, sem subalternizá-los. Partiremos da perspectiva que advoga que “os olhares das crianças dão aos adultos acesso privilegiado a materiais que estes não conseguiriam por nenhum outro meio e que o entendimento delas juntamente com os dos adultos, sem segregações, produzem um conhecimento mais aprofundado da vida social” (TOREN, 2013, p. 175).

Entrando em cena: crianças e tecnologias na pandemia

Para esta pesquisa, partimos de um volume significativo de vídeos nas plataformas YouTube e Instagram, protagonizados por crianças expressando seus pontos de vistas sobre a pandemia. Na primeira mirada, os vídeos nos convidam a vislumbrar infâncias diversas e 95 desiguais. Contrariam, portanto, formulações discursivas que costumam tratar esse tempo social – que é a infância – como um dado universal e como algo atemporal e homogêneo. No material selecionado, meninas e meninos de diferentes realidades sociais, econômicas e culturais ganham as cenas completamente distintos nos fenótipos, nas linguagens, nos vestuários, nas formas de abordar o tema em pauta. As produções audiovisuais suscitam, portanto, a percepção das noções de infância e criança, sem conotações essencialistas, atentando para o fato de não serem meras abstrações, vinculadas exclusivamente aos aspectos físicos das crianças, mas, sim, construções contingentes que devem ser compreendidas a partir do entendimento das vidas singulares dos sujeitos e de seus contextos sociais, especialmente, a partir dos entrelaçamentos que estabelecem com marcadores sociais da diferença (gênero, classe social, raça, idade, região).

A evidente diversidade também se expressa nos produtos tecnológicos manuseados pelas crianças e nas particularidades de seus usos. De acordo com Ames (2016, p. 19): “o acesso a bens culturais tais como computadores, celulares, tablets, aparelhos portáteis está muito estendido, mas de modo desigual. Nem todos acessam a tudo e nem todos os aparelhos são similares em capacidade e potência”. Em nossa pesquisa, vislumbramos desde vídeos com imagens tremidas, sem foco, iluminação precária, áudios com ruídos, até aqueles com enquadramentos, áudios e iluminações impecáveis, certamente produzidos a partir de

aparelhos caros e sofisticados, com suporte de recursos disponibilizados no mercado para aperfeiçoar a qualidade de produções audiovisuais, como lentes acopláveis, microfone externo, etc.

É importante mencionar, que na infinidade de vídeo observados, nos deparamos tanto com aqueles com número de visualizações bem discretas, até aqueles encenados por meninas e meninos considerados youtubers infantis, ou seja, crianças que produzem e enviam vídeos para essa plataforma e alcançam uma difusão significativa destes, com expressivo número de assinantes nos canais. Com um olhar atento tanto aos vídeos de discretas como os de expressivas visualizações, buscaremos, primar pelas perspectivas das crianças, oferecer uma interpretação sobre os modos como meninas e meninos percebem, sentem e significam esse fato social total que é a pandemia, especialmente quando lançam mão da tecnologia como forma de expressão. Convidamos o leitor e a leitora para conhecer alguns vídeos dentro do amplo universo pesquisado e em seguida teceremos algumas reflexões, buscando elucidar as questões deste trabalho.

Vídeo 1[1] 96

Vinicius, 12 anos, cabelos crespos tingidos de vermelho, corpo franzino, morador de um bairro pobre de Salvador, grava um vídeo em sua casa. Sem camisa, exibindo uma corrente dourada e segurando com firmeza o celular, faz uma ligação com voz destemida ao coronavírus. No curso do telefonema, o menino se mostra irritado e apresenta muitos argumentos para que o vírus, em suas palavras, “se saia do Brasil”:

Alô! É o coronavírus? Não, não passe para ninguém não, eu que quero falar com você! Boca de 09. É isso mermo! Ô, coronavírus, eu só vou te pedir uma coisa só: se saia! Se saia do Brasil, se saia! Eu quero me sair da sua vida. Tem como a senhora se sair, por favor?! Você tá atrapalhando muito a vida das pessoas. Você já fez as pessoas perder emprego, tá me atrapalhando que eu quero ir na padaria pra eu comprar meu pão pra fazer meu pão com pão. Tem como você se sair? Porque se você se sair eu posso sair, eu quero sair, eu devo sair! Tem como a senhora se sai por favor (...) Você vai passar em algumas cidades?! Você veio da onde? Do inferno?! Então, volte pra lá! Ninguém tá mais aguentando sua cara não, tá! Aguentando você não. Brigada pela atenção e não me dê boa tarde não porque meu dia não ta bom não por causa de você.

Vinicius não parou no primeiro telefonema. Com o passar dos dias, com a permanência do vírus no Brasil, voltou a ligar[2]. Dessa vez, seu tom de voz foi ainda mais enfático:

Alô é o coronavírus? Vem cá, vou direto ao ponto! Você é surda? Sua mãe não lhe deu educação não? Quando um burro fala o outro baixa a orelha! Você sabe o preço de uma máscara de botar na cara? Do álcool em gel pra se prevenir? Sabe o preço de ficar dentro de casa numa sexta feira? Em casa sem sextar com s de saudade? Se você sabe, você não sabe. Só te peço uma coisa: se saia do Brasil!

Vinicius já acumula 338 mil seguidores em seu perfil no Instagram. Só o seu primeiro vídeo alcançou 885.222 visualizações até o momento. Vinicius continua com muita energia realizando suas ligações. Uma delas foi para o governo[3]:

Alô é o governo? (...) não, não só quero fazer umas perguntas, uma reclama, uma denúncia. Eu posso falar? Então vou falar! Eu ouvi uns boatos aqui que o dinheiro do auxílio já acabou e eu nem recebi! Deixe eu falar! Eu não recebi nada. Tô chocado porque não recebi nada, nada (...). Disseram que deu o segundo e isso e aquilo que o dinheiro acabou e não recebi. Também 55 reais da escola e nem meu nome tava lá no negócio da escola. E eu estudo, e eu estudo, viu? Nem o auxilio e nem o negócio da escola... Eu quero saber por quê? Não tá dando mais não, meu filho! Eu joguei pedra na cruz? Trate de resolver meu problema, viu? Porque eu quero receber tudo.

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Vídeo 2[4]

Arthur Farias, cabelos e olhos castanhos, 10 anos, morador de João Pessoa, estudante de escola particular, possui o canal “Deixa de marmota”, atualmente com 159 inscritos. Costuma protagonizar vídeos apresentando seus jogos, brinquedos e cenas do cotidiano em sua casa espaçosa e confortável. A pandemia não passou impune ao olhar criativo de Arthur. No vídeo intitulado “criança explica o corona vírus”, o menino encarna vários personagens que, em seu olhar, compõem a cena da pandemia: o jornalista, o farmacêutico, os usuários da internet que espalham notícias exageradas sobre a doença, o pai de família que é obrigado a trabalhar devido ao chefe intransigente, o vendedor de remédios falsos, aqueles que não compreendem a gravidade da situação e acham o coronavírus uma frescura, o parente que chega da Europa espirrando sem parar com presentes para toda família e outros. Arthur modifica, com destreza, os figurinos, as vozes, os trejeitos em cada personagem e nos faz pensar nas diferentes posturas que os adultos têm assumido nessa pandemia. Com a palavra, o Arthur e seus muitos personagens:

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Como recebemos a notícia do coronavírus pela televisão? Boa tarde senhores e senhoras, está chegando um vírus parecido muito com a gripe, o coronavírus, aqui no nosso Brasil. E pela internet foi assim: o coronavírus é uma doença que vai fazer todo mundo morrer! Já tem vários boatos de pessoas morrendo! Já tem vários boatos de crianças e vai cair meteoros e agora?!! Têm as pessoas que não tão nem aí: coronavírus é frescura, todo ano tem uma doença dessa. E as pessoas que têm noção: realmente temos que nos cuidar. Essa doença não se brinca. E as pessoas exageradas: Ai meu Deus! Todos nós vamos morrer! E agora!? O mundo vai se acabar e temos que fazer alguma coisa! Vamos manter a calma. Em primeiro lugar, vamos comprar álcool em gel. Moço, por favor, tem álcool em gel? Tem não, moço. Certo. Vai chegar quando? Aqui na farmácia não tem previsão. Mas tem um lugar que eu sei que tem, um amigo meu que tá vendendo 200 reais 50ml... Agora vamos ver a segunda recomendação: todo mundo fica em casa. Ah! Não tem escola, eu vou pra praia agora, eu vou pro shopping, eu vou pro cinema e vou comer muito! Não, não, tá errado! É pra ficar em casa sem sair pra lugar nenhum. E tem os trabalhadores que querem ficar em casa, mas não podem: bem que eu queria ficar em casa mas esse chefe não deixa ninguém ficar em paz. Com esse coronavírus à solta, bem que eu queria ficar em casa com a minha família. Imagina um parente chega agora da Europa de uma viagem internacional...

O Arthur continua o vídeo encenando outros personagens: uma madame que chama o coronavírus várias vezes, e de repente, descobrimos que ela está se referindo ao seu cachorro; pessoas que fazem remédios falsos; a avó que tem um problema de surdez e sente dificuldade de entender as recomendações dadas pelo neto em tom professoral. Na finalização do vídeo, o menino, com um ar sereno e sóbrio diz: “Gente, tudo é só brincadeira, viu!? Essa doença é 98 realmente perigosa! A gente tem que tomar cuidado.” Arthur encerra ensinando medidas preventivas: lavar as mãos, usar a máscara, evitar o contato social, se alimentar adequadamente, fazer as técnicas corporais devidas para espirrar, tossir, cumprimentar as pessoas. Traz ainda um questionamento: por que os adultos vão pro supermercado comprar tantas coisas? Comprar tanto papel higiênico?

Vídeo 3[5]

Juju Teófilo, 4 anos, cearense, menina de cabelos lisos, olhos expressivos, protagoniza um diálogo com sua mãe sobre o coronavírus, que já alcançou a marca de 54 mil visualizações no YouTube. Juju, visivelmente incomodada, faz uma queixa sobre o coronavírus, explicando como ele atrapalha a sua sociabilidade: “Mulher, o coronavírus tá perto de sair, não? Eu preciso sair!” A mãe responde dizendo que vai demorar. Enfática, Juju continua: “Mãe, eu preciso ver minhas amigas! Preciso ir pro shopping, que eu adoro!” A mãe rebate e diz que também precisa. Ela continua com firmeza: “Você não tá entendendo, mamãe, eu preciso ver minhas amigas! O coronavírus só me dá fome, mãe. Pede pro Papai do Céu pra sair isso logo”. O vídeo finaliza com uma oração de Juju pelo fim da pandemia.

Vídeo 4

Quem movimenta o canal Vitor Rw Kids, com 7,46 mil inscritos, é um menino de cabelos lisos e negros, corpo franzino, com ar de seriedade, fala bem articulada, sempre portando roupas alinhadas, camisas de botão, pronto para fazer seus estudos bíblicos. Ultimamente, Vitor vem se dedicando a produzir conteúdos relacionados à pandemia para o público infantil. Dentre os vídeos que tratam dessa temática, podemos encontrar em seu canal “Brincadeiras e jogos para sua quarentena”, “Quarentena: oportunidade para receber um amigo (Jesus)” e “Coronavírus: tudo que você precisa saber”. Neste último, Vitor protagoniza um médico, explicando, em detalhes, para crianças sobre o vírus. Informa a respeito do público mais afetado, os sintomas, as medidas de prevenção. Há também o vídeo intitulado “Como vencer a ansiedade em tempo de corona vírus”. Vitor aparece ao lado de Diego, seu irmão mais novo e juntos dinamizam um jogral realizado em dois ambientes: num espaço 99 arborizado da cidade e no interior de sua casa ampla e confortável. Vitor diz:

Junto com a epidemia do coronavírus está acontecendo outra muito preocupante, é a epidemia do... [Diego completa]: do medo, tristeza e ansiedade. [Vitor retoma a fala] Vamos impedi-la transmitindo... [Diego completa]: amor, esperança e fé. [Vitor fala] E mesmo a distância, não deixe de demostrar... [Diego completa]: carinho e atenção! Acene, mande beijos, faça um coração com as mãos e fique em casa. [Vitor diz] Agora, o mais importante... [Diego fala]: as mãos não podem se tocar, nem os braços abraçar, mas o joelho pode orar.

Video 5[6]

Sophia, aproximadamente 6 anos, estudante de escola particular, encena o vídeo em seu quarto, em frente à sua casa de bonecas. Ela tem um canal chamado “O mundo de Sofia Wilson”, que no momento conta com 20 inscritos. Com a voz suave e muitas piscadelas para a câmera, a menina diz:

Olá pessoal, nós vamos falar sobre o Covid-19. Meu nome é Sophia Wilson e eu quero mandar essa mensagem para crianças, porquê e também a maioria dos adultos, os velhinhos que eles pegam muito e eles podem morrer. Porque o Covid-19 é o coronavírus. Então, lave bem as suas mãos. Se você for lá pra fora e andar e alguém te encontrar... Não! Você tem que ficar um metro de distância dessa pessoa pra você não pegar o coronavírus. E se ela tá com coronavírus ela vai espirrar e então vai

passar na mão. Então a mão vai lá passar lá na janela, a outra pessoa vai lá abre a janela e assim pega na mão. Pega o coronavírus.

Com delicadeza, Sophia ensina a lavar as mãos e a cumprimentar as pessoas. Nesse momento, ela coloca as mãos póstumas e abaixa a cabeça. Diz que há também outra forma possível de cumprimento “batendo as pontas dos pés.” A menina aconselha ainda: “Então, vai lá e lava as mãos. Se sua vó for não fica de agarrado, beijinho e abraço”.

Vídeo 6[7]

Nas fachadas dos prédios, nas varandas, nas janelas de diferentes cidades do mundo, desenhos de crianças são expostos. São arco-íris e palavras de incentivo para superar os desafios da pandemia. O movimento começou na China, Itália e se espalhou pelo mundo. Ao final do vídeo, crianças de diferentes nacionalidades mostram seus cartazes e repetem com firmeza que vai ficar tudo bem.

O que nos dizem as crianças em cena? 100

Os vídeos rompem com visões correntes em relação à infância que reduzem esse tempo social da vida como um “mundo à parte, preso a fantasias”, “fase da irracionalidade”. A materialidade apresentada mostra como as crianças são dotadas de agência e como desenvolvem percepções finas sobre seus contextos sociais. Lançando mão da tecnologia, elas narram como vivenciam, resistem, dialogam, negociam, transgridem com a dura realidade que se coloca a todos nós nesse momento de pandemia.

Manifestam sentir a dor da reclusão, sobretudo, do apartamento social que provoca a saudade das trocas afetuosas, do afago dos avós, amigos, familiares; a falta imensurável dos seus espaços de sociabilidade, caminhos abertos para a criatividade, nos quais seus corpos podiam se espalhar e brincar, numa poderosa plástica de invenção, num livre diálogo com a aprendizagem. Saudade daquele vento no rosto de quem pode ir em vir; apesar, diga-se de passagem, da hostilidade das cidades brasileiras que fazem das travessias um desafio para crianças, sobretudo para aquelas negras e pobres.

Nos vídeos analisados, elas não demostram apenas perceber e sentir o peso da quarentena e das ausências mencionadas, vão além: mostram compreensão sobre a necessidade das medidas, condutas e regras preventivas. Inclusive, são incentivadoras das mesmas, pois uma das cenas que mais se repete no conjunto do material estudado é de crianças ensinando as medidas para evitar a propagação da covid 19: lavar as mãos, usar máscara, evitar o contato social, técnicas corporais de como tossir, espirrar, cumprimentar. Para além de se engajarem na divulgação dessas medidas práticas, meninas e meninos mostram-se atentos não somente às suas dores e a de seus familiares, mas às dores coletivas, emocionais e sociais.

Nesse horizonte, pensemos em Vitor e Diego quando afirmam: “Junto com a epidemia do coronavírus está acontecendo outra muito preocupante, é a epidemia do medo, tristeza e ansiedade.” Lembremos também da campanha em que crianças se engajam em fazer desenhos em busca de oferecer um alívio no meio da dor. As crianças pensam, além disso, nas agruras sociais, como Vini, que fala do desemprego, do atraso do benefício de renda, da carestia da máscara, do álcool gel. Arthur, por seu turno, menciona a venda de remédios falsos, o superfaturamento da venda de álcool, pessoas alheias às medidas de prevenção, outras que espalham notícias falsas na internet e do parente que viaja e não se resguarda em quarentema.

Ainda que adultos tenham se envolvido na produção dos vídeos ou tenham contribuído 101 com a elaboração das narrativas, não há como negar que o protagonismo das cenas pertence a elas, o ritmo impresso na transmissão da mensagem, o tempo de fala, inclusive, todo o conjunto de técnicas corporais que mobilizam na relação com a tecnologia: uma forma de posicionar o corpo, o olhar e a voz. Pela análise das cenas, intuímos que, para muitas crianças, as experiências apreendidas na produção desses vídeos não se encerram no momento em que desligam a câmera. Certamente, tais experiências permanecem ressoando, refletindo nos modos como as crianças percebem seus próprios corpos, os corpos dos outros, as realidades que as cercam.

Nesse sentido, aludimos ao trabalho de Tomaz (2017). A pesquisadora investigou como crianças comuns, ao utilizarem sites de redes sociais, especialmente o YouTube, produzem lugares de relevo social e, assim, afetam a própria construção social da infância. A autora reflete que meninas e meninos assumem a posição de sujeitos de processos comunicacionais, produzem narrativas da infância, atuando, assim, na construção dessa categoria. Tomaz (2017, p. 1) constata “que os usos das crianças na plataforma de vídeos permitem que elas produzam novas sociabilidades às quais também se submetem.”

No entanto, para mirá-las como sujeitos e para abrir possibilidade de aprender com elas, é necessário romper com uma arraigada visão adultocêntrica de que as crianças estão meramente sujeitas a um processo de socialização e que recebem esse processo de forma

mecânica e sem reflexão. Tomamos como base, nesse sentido, as ideias de Spivak (2010). Ela inspira pensar que as crianças são vistas socialmente como seres subalternos que “não podem falar e quando tentam fazê-lo não encontram os meios para se fazer ouvir” (SPIVAK, 2010, p. 15). Embebidos no trabalho da autora, é possível contrapor a ideia presente na própria etimologia da palavra infância. Originária do vocábulo fari (falar, dizer) e do complemento fans (criança), o termo in-fans, que deu origem à infância, se refere àquele que não fala.

Conforme Sarmento (2003), essa etimologia gera uma conotação negativa, ao vincular infância com a ideia do discurso desarticulado ou ilegítimo. O autor afirma ainda que “a modernidade estabeleceu uma norma da infância, em larga medida, definida pela negatividade constituinte: a criança não trabalha, não tem acesso direto ao mercado, não se casa, não vota, nem é eleita, não toma decisões relevantes, não é punível por crimes (é inimputável)” (SARMENTO, 2003, pp. 17-8). Dentro desse prisma, as crianças não devem ter espaços de anunciação e não devem ser consultadas, no que diz respeito às realidades que lhes concernem.

A materialidade pesquisada nos vídeos consultados confronta a fragilidade desse pensamento. Os dados apontam que o entrelaçamento de crianças e tecnologias produzem 102 discursos articulados, elaboram o momento desafiador da pandemia e, nesse sentido, nos mostram, aos modos de Sousa (2017, p. 223), que “as crianças não são apenas boas em aprender, mas também em ensinar”. Fazendo uso de tecnologias que tornam a quarentena cotidiana menos isolada, elas ensinam e aprendem na mesma proporção, por meio delas, fazendo sentir acolá suas dores, medos e receios, mas também produzindo conteúdos que, na ausência de uma melhor expressão, respondem por comunicação não técnica, mas igualmente informativa.

Evidentemente, não podemos negar a infinidade de prejuízos que o uso excessivo ou inadequado das redes pode causar às trajetórias das crianças. Problemas de saúde mental, depressão, ansiedade, incentivo ao consumo desenfreado, problema físicos, posturais, dificuldades na linguagem, além dos traumas advindos da exposição a conteúdos nocivos que proliferam nas páginas da web. Também é importante atentar para o formato tecnologicamente mediado de relações comerciais que podem existir a partir da produção e recepção desse material audiovisual protagonizado por crianças. No entanto, a relação com a internet, ou com qualquer outra tecnologia, não é algo que possa ser definida a priori, pois, como se disse, está sempre em construção, não é boa, nem má, mas responde a um tipo de uso sempre contextual.

O que propomos a partir da reflexão acima é que se deve interpelar a ideia generalizada de que adultos “dão voz às crianças”, já que elas sempre tiveram suas vozes, enunciações e expressões, com ou sem o uso de tecnologias. Ao se deixar afetar por elas (FAVRET-SAADA, 2005), entrando em sintonia com seu tempo, seus interesses, sentidos e experiências, poder-se-ia melhorar, inclusive, os desenhos de políticas públicas que, em geral, tomam-nas como seres à espera, idiotas sociais. Assim, “relações dialógicas entre adultos e crianças sobre os conteúdos audiovisuais podem dinamizar formas mais saudáveis e democráticas de pensar o uso das redes” (PONTE, 2019, p. 146).

Recentemente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Brasil resolveu produzir um concurso para escolher “as melhores máscaras de proteção criadas por crianças”. Elas devem confeccionar suas máscaras e enviar para o órgão. “As quatro melhores máscaras, as mais bonitas, mais engraçadas, as crianças, junto com a mãe, com o pai ou responsável, vão ter uma tarde junto com a primeira-dama, Michele Bolsonaro, e a ministra. Ah! E se a criança morar fora de Brasília, vai viajar de avião”, diz a ministra Damares Alves no vídeo[8]. Deve, finalmente, ficar claro que as crianças Vinícius, Arthur, Sophia, Juju, Vitor,

Diego entenderam o que é quarentena, a ministra não. 103

Nas relações sociais que configuram usos e conteúdo das mais variadas tecnologias, como referido acima, diversos grupos participam dos caminhos que tais usos e conteúdos tomarão. Falamos de pais, mães, filhos, filhas, estrutura tecnológica, mercado, enfim, uma gama variada de elementos. Ressaltamos também, e isso é um dos pressupostos nas investigações aqui apresentadas, que estes elementos devem estar integrados a um debate público a respeito de estratégias saudáveis para os usos de tecnologias que inclua a regulamentação da publicidade infantil.

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