Dossiê
Apresentação do Dossiê "Pensar com, contra e além de Edgar Morin"
Pensar con, contra y más allá de Edgar Morin
Thinking with, against and beyond Edgar Morin

Trazer à cena o dossiê Pensar com, contra e além de Edgar Morin no momento em que este pensador se aproxima dos 100 anos de vida é tarefa gratificante para a Simbiótica. Na verdade, é especialmente gratificante, pois muitos talvez não saibam que Morin nos honra como editor honorário de nossa revista. Por outro lado, há uma trajetória de pensamento e de pesquisa que é significativa, que não se pode deixar de reconhecer pela sua abrangência e profundidade. Morin é um daqueles pensadores cujas ideias nos instigam a vislumbrar outros mundos possíveis. A vivacidade de seu pensamento entoa, desde longa data, um exercício de crítica aos reducionismos epistêmicos, ao mesmo tempo em que entretece fios que ligam saberes como ecologia e educação, biologia e antropologia, poesia e política, amor, filosofia e arte, dentre tantos outros.
Desde a publicação de O Método, obra dividida em seis volumes escrita entre 1970 e a primeira década dos anos 2000, passando por outras tantas criações, Morin vem pondo em pauta as implicações do paradigma disjuntivo-fragmentário na constituição do pensamento
Somos parte de uma matriz planetária, em que a natureza está no humano e o humano está na natureza, lembra Morin, enquanto nos reitera, nos seus escritos, acerca da importância do pensamento ecologizado. Pensamento de matriz complexa que liga as partes ao todo e o todo às partes, um pensamento capaz de entender as interconexões que organizam as diferentes esferas do real e que está pautado na ideia de auto-eco-organização: nenhuma vida se constitui sozinha, todas as vidas se produzem na relação com outras vidas e com o meio. Ao trazer isso à tona, Morin nos insere na difícil tarefa de transformação de nossos princípios de conhecimento, e no desafio de uma nova ética capaz revolucionar as maneiras de pensar e entender as relações que nos envolvem.
Hoje, diante da pandemia do Covid-19, sob o protagonismo de um vírus e seus efeitos devastadores, caberia mobilizar o pensamento de Morin em algumas reflexões? Estaríamos diante de uma nova era planetária? Teríamos chegado finalmente ao momento da compreensão ampliada de que habitamos um planeta constituído por intensas trocas e comunicações entre viventes e não viventes, humanos e não-humanos? Trata-se de um exercício reflexivo em aberto, sabemos. Entretanto, com a pandemia temos mais um sintoma da agonia planetária e da interferência antrópica implicada. Há uma sonoridade lúgubre no ato de não se poder respirar. O ar, esse espaço habitado pelo vírus, tornou-se hoje o próprio espaço da vida tocado pela morte. Haveria outros mundos possíveis? Aprender a navegar em um oceano de incertezas, escreveu Morin aos 94 anos, na obra Ensinar a Viver (2015), talvez seja este um ensinamento a ser considerado.
Não foi intenção de nosso dossiê problematizar a questão da pandemia de Covid-19, até porque ela não figurava nos nossos horizontes quando houve a chamada para este número da revista. Tampouco foi este o mote abordado pelos autores que aqui publicam seus textos, pelo mesmo motivo. Todavia, sendo parte do nosso cotidiano, a experiência com a pandemia talvez possa se tornar, daqui para frente, mais um tema para se enfrentar a obra de Edgar Morin, imputando-lhe tanto reflexões quanto críticas. A contribuição intelectual deste pensador não se esgotou, ainda nos requisita enquanto tarefa do pensamento.
O objetivo desse dossiê é, portanto, recuperar o conceito de crítica entendida como um trabalho de problematização dos limites dos modos de pensar, conhecer e atuar. Assim, o dossiê Pensar com, contra e além de Edgar Morin busca envolver o leitor numa reflexão crítica sobre as possibilidades e limites da obra de Morin e do pensamento complexo. Sabe-se que seu trabalho tem recebido grande atenção na América Latina, possivelmente mais do que em qualquer outro continente, no entanto, o pensamento e a obra de Morin não tem sido, até agora, objeto de uma crítica construtiva e sistemática que permita: (i) identificar as principais limitações do pensamento complexo, (ii) propor estratégias ou formas para superar suas insuficiências, (iii) desenvolver o trabalho de Morin como um programa de pesquisa a longo prazo, (iv) contribuir para a regeneração do pensamento complexo.
Conforme outrora argumentamos, na chamada pública do presente dossiê, uma das máximas do pensamento complexo afirma que “Tudo o que não se regenera, degenera, é necessário regenerar para não se degenerar”. Assim, este dossiê propõe que é necessário aplicar reflexivamente este princípio ao pensamento e a obra de Edgar Morin. É necessário regenerar o pensamento complexo para evitar que ele degenere em repetição, em dogmatização, em pregação sem prática, em interpretação sem rigor, nos desvios de pensamento negligente e até mesmo no culto à personalidade, privatização e comércio acadêmico. O reconhecimento e a admiração a Morin não devem impedir o pensar, pelo contrário, deve motivar e estimular uma crítica lúcida e honesta, incisiva e construtiva da integridade de sua obra. A admiração sem crítica degenera em adulação celebratória. A problematização crítica do pensamento complexo é a melhor maneira de celebrar e honrar o pensamento, a vida e a obra de Edgar Morin. No entanto, o futuro do pensamento complexo requer, com efeito, a construção de uma comunidade de pesquisa que seja simultaneamente capaz de pensar com, contra e além de Morin. Este é o horizonte estratégico e programático onde se inscreve a contribuição que este dossiê pretende realizar.
Isto posto, o dossiê que agora publicamos reúne trabalhos de diversos autores, de diferentes nações, centros universitários, áreas de estudo e pesquisa, formações científicas, filosóficas e artísticas díspares, que enriqueceram o debate acerca do pensamento crítico em torno do autor e de sua obra.
Abrindo o dossiê, apresentamos o instigante artigo de José Luis Solana Ruiz, professor titular de antropologia social da Universidade de Jaén (Andalucía, Espana), intitulado ^Edgar Morin, un reduccionista biologista y fisicalista? Un ejemplo de mala crítica. Solana Ruiz nos oferece um trabalho provocativo, desafiador, ao argumentar que “As ideias de Morin foram submetidas à críticas ruins”. Seu artigo expõe e discute uma dessas críticas, conforme lemos no título, e provoca o leitor a questionar “como essa crítica é infundada e totalmente equivocada”.
Em seguida temos o artigo de Enrique Manuel Luengo González, professor numerário do Instituto Tecnológico e de Estudios Superiores do Ocidente, da Universidade Jesuíta de Guadalajara, México, com o título Repensar el pensamiento de Edgar Morin: Invitación y propuestas. Luengo González nos proporciona um trabalho audacioso e de fôlego intelectual ao discutir e propor “cinco estratégias com a intenção de pensar com, contra e além de Morin”.
A professora Josefina Fantoni, coordenadora do Centro de Estudos Interdisciplinares sobre Sistema e Pensamento Complexo (CsPC), da Universidad Nacional de Santiago del Estero, Argentina, brinda o leitor com o artigo Resignificación politica: Diálogos entre el pensamiento complejo y la planificación situacional para el desarrollo de la Antropolítica. Seu trabalho, bem fundamentado, “oferece uma leitura da produção de Edgar Morin e Carlos Matus”. Fantoni destaca que a “relação complementar entre as visões de ambos os autores mostra a aptidão do sujeito em relação ao contexto para encontrar ferramentas para futuras construções políticas”.
O quarto trabalho de nosso dossiê, intiulado A complexidade como alternativa epistemológica: Considerações a respeito de ciência e ética, foi preparado à três mãos, a saber, por Gabriela Allein, doutoranda em Educação em Ciências e em Matemática da Universidade Federal do Paraná, Brasil; por Sandra Cristina Martini Rostirola, mestre em Ensino de Ciências Matemática e Tecnologias da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil; e por Kariston Pereira, professor associado da Universidade do Estado de Santa Catarina. Um belo ensaio, com uma abordagem bibliográfica e, que, segundo os autores, “versa sobre a ética na produção do conhecimento, sob o baluarte da Teoria da Complexidade, considerando o ser humano como valor supremo”.
No quinto trabalho, cujo título lemos Contribuições do pensamento complexo de Edgar Morin aos estudos do imaginário, Rogério de Almeida, professor associado da Faculdade de Educação da USP, Brasil; e JulianaMichelli da Silva Oliveira, docente no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP, Brasil, apresentam uma importante contribuição ao penar com Morin, ao “estudar, de um lado, o significado e o papel que o imaginário assume no pensamento complexo do filósofo francés” e, “de outro, a contribuição do pensamento complexo para os estudos do imaginário”.
Por fim, encerrando o dossiê, Daniel Machado da Conceição, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, nos brinda com o ensaio A “complexidade” na capacitação do jovem aprendiz: entre a uni e a multidimensionalidade da formação técnico-profissional metódica. Nas palabras do próprio autor: “O interesse do ensaio está na política voltada para inserção de jovens no mercado de trabalho, a chamada da Lei da Aprendizagem (Lei 10.097/2000)”. Daniel Conceição argumenta, com propriedade, que o “referencial teórico do Pensamento Complexo permite questionar se as orientações sobre o conteúdo formativo presente na Portaria 723/2012 podem ser consideradas multidimensionais ou se continuam a ser unidimensionais”.
De mais a mais, convidamos os leitores a degustar cada trabalho do dossiê que preparamos, com um olhar, um pensar e um sentir que articulem o pensamento complexo, investigativo, crítico, questionador, audacioso, porém, arguto, benevolente e andarilho, assim como o próprio Edgar Nahoum (1921- ), cujo pseudônimo conhecemos carinhosamente por Edgar Morin.
Estamos felizes com a oportunidade que nos foi dada e com o desafio pujante de pensar com, contra e além de Edgar Nahoum Morin.
Que tenhamos uma excelente leitura!!
Os Organizadores
Vitória, Brasil, 12-09-2020